O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

Mostrando postagens com marcador grande estratégia. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador grande estratégia. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Grande estratégia e idiossincrasias corporativas: uma reflexão a partir da experiência de George Kennan (2012) - Paulo Roberto de Almeida

 Grande estratégia e idiossincrasias corporativas:

uma reflexão a partir da experiência de George Kennan

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 2409: 14 de julho de 2012

 

 

Lendo a biografia de John Lewis Gaddis, sobre o grande diplomata e historiador americano, que dominou a segunda metade do século XX, George F. Kennan: An American Life (New York: The Penguin Press, 2011), deparo-me com um trecho, relativo ao ano de 1943, quando Kennan era encarregado de negócios na legação dos Estados Unidos em Lisboa; negociações eram conduzidas na capital portuguesa para assegurar o uso, por forças americanas, dos Açores, como plataforma absolutamente indispensável para conduzir as operações europeias da Segunda Guerra Mundial em sua vertente norte-atlântica:

“[George Kennan] began to develop... a new sense of responsibility within the duties assigned to him: at several points over the next few years Kennan took risks that jeopardized his own Foreign Service career because he thought that the national interest demanded that he do so. Obliged to operate for the first time at the level of grand strategy, he found the rules oh his profession falling short. He chose, successfully but dangerously, to violate them.” [Loc 3387 of 18204 Kindle edition, Ó Amazon].

Gaddis informa ainda, na sequência dessa passagem, as circunstâncias em que Kennan decidiu assumir vários riscos em sua carreira, violando deliberadamente várias regras do jogo, tal como definidas por instituições excessivamente burocráticas ou muito conservadoras, tanto o Departamento de Estado quanto o comando das Forças Armadas, como se pode depreender desta transcrição adicional:

“During the Azores base negotiations [com o próprio Primeiro-Ministro português Antonio de Oliveira Salazar], Kennan violated at least four rules, any one of which could have him sacked from the Foreign Service. He exceeded his instructions in a conversation with a foreign head of government. He refused to carry out a presidential order. He lied, to another government, about the position of his own. And he went over the heads of his superiors in the State Department – as well as the secretary of war and the Joint Chiefs of Staff – to make direct appeal to the White House.” (Loc 3436 of 18204 Kindle edition, Ó Amazon).

 

Estas passagens chamaram-me obviamente a atenção, ou “struck a cord on me”, como diria o próprio Gaddis, provavelmente o maior historiador vivo da Guerra Fria e o único biógrafo autorizado de George Kennan. Explico por que, já que isso tem a ver com a mesma sensação de barreiras burocráticas e conservadoras, em assuntos que demandariam uma visão mais larga dos processos diplomáticos, que eu já enfrentei na carreira. Não querendo me comparar a George Kennan, possivelmente o maior especialista diplomático americano em assuntos russos que jamais existiu nos anais daquele serviço diplomático, mas eu também adquiri, ainda antes de ingressar no serviço diplomático, uma percepção histórica e estrutural de muitos dos temas que compõem, burocraticamente, a agenda diplomática corrente. 

Tendo começado a estudar os assuntos brasileiros desde muito cedo – compulsando uma bibliografia de nível universitário, ou de pesquisa especializada, ainda quando estava em meio aos estudos do ciclo médio – desenvolvi provavelmente de maneira muito precoce um cuidado com a análise do contexto, dos precedentes históricos, e dos impactos estruturais ou implicações políticas de cada um dos problemas com que me deparava em minhas leituras ou pela leitura dos jornais de maior qualidade em suas edições dominicais (invariavelmente o velho jornal conservador O Estado de São Paulo, ainda quando discordasse profundamente de seus editoriais, que julgava representativos das opiniões da “classe dominante”). Foram anos, em meados da década de 1960, em que eu lia os grandes mestres da teoria social brasileira, entre eles os representantes da “escola paulista de Sociologia” – que pouco depois se tornaria minha alma mater, ao ter ingressado no curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP – e através dos quais eu filtrava minhas reações aos editoriais “reacionários” do Estadão, combinando todas essas leituras para refletir sobre os caminhos do desenvolvimento econômico e político brasileiro, no quadro das crises contínuas que agitavam o período que se tinha iniciado com o golpe de 1964, e que eu imaginava combater pela via do socialismo e de um governo comprometido com a “ditadura do proletariado”. 

Independentemente dessas ilusões e descaminhos ideológicos – que foram sendo corrigidos tão pronto eu deixei o país, no final de 1970, para conhecer o triste cenário do socialismo real do leste europeu e as nuances dos capitalismos realmente existentes na Europa, durante quase sete anos – eu adquiri, a partir desses hábitos juvenis de leitura, um sentido de abrangência analítica e de inserção contextual que me acompanharia pelo resto da vida, sobretudo no domínio profissional, quando ingressei na carreira diplomática, poucos meses depois de voltar da Europa em 1977. Mas o que isso quer dizer, no quadro desta seleção de trechos da biografia de Kennan por Lewis Gaddis? Explico-me agora mais detalhadamente. 

Ingressei no Itamaraty ainda na era militar, quando ainda pensava em derrubar o regime, embora não mais pela via das armas e sim pela via da pressão democrática. Tampouco pretendia converter o Brasil em uma nova Cuba ou uma nova China, como talvez fosse a intenção em meados dos anos 1960; mas o modelo ainda seria algo bem próximo do socialismo democrático europeu, que eu julgava bem mais propenso a empreender a correção das tremendas injustiças sociais em vigor no Brasil, desde sempre, do que, alternativamente, a visão mais pró-mercado que não tenho hesitação em defender atualmente. Nessa época, eu ainda era obrigado a escrever artigos com algum nom de plume, já que minhas “convicções radicais” provavelmente chocariam meus colegas e superiores diplomáticos – que eu considerava todos alinhados ao regime – e chamariam a atenção dos órgãos de segurança, especialmente ativos naquela conjuntura, quando a repressão física tinha amainado, mas o controle de inteligência continuava atento a todas as manobras da oposição ao governo militar.

Tendo iniciado minha carreira no Itamaraty por uma divisão secundária, a do Leste Europeu (então todo ele dominado pela União Soviética), pude distinguir-me rapidamente em alguns trabalhos analíticos, inclusive porque, ademais dos boletins da Radio Free Europe e da Radio Liberty – ambas financiadas pela CIA, obviamente – que líamos na DE-II, eu possuía um conhecimento interno, se ouso dizer, sobre o funcionamento desses regimes autoritários, já que tinha militado na esquerda marxista durante tempo suficiente para aprender – e apreender – todos os trejeitos vocabulares e as muitas peculiaridades políticas do mundo comunista. Recordo-me, em todo caso, de uma informação que preparei sobre o quadro político no leste europeu, em especial sobre a situação da Polônia, no imediato seguimento, em 1978, da surpreendente eleição do cardeal Karol Wojtila como o novo papa, de nome João Paulo II. Ao que parece, minha análise abrangente das implicações dessa escolha para todo o leste europeu e para o poder comunista foi devidamente apreciada pelos meus superiores, para ascender ao conhecimento do Gabinete do ministro, o que constitui, no Itamaraty, uma marca de distinção a dividir os assuntos que permanecem na “senzala”—como sempre foram depreciativamente chamados os serviços setoriais das divisões, no Anexo – e os que ascendem ao conhecimento da Casa Grande, como se designavam, respeitosamente, os dois gabinetes do Palácio. 

Não exatamente por esse episódio específico, mas talvez mais pelo meu jeito histórico-intelectual de interpretar cada iniciativa ou resposta do serviço diplomático brasileiro, em função de um contexto mais vasto, no tratamento dos assuntos da agenda corrente, fui sendo considerado um diplomata especial, ou diferente, talvez bizarro, em todo caso colocado num clube à parte, não necessariamente melhor, dessa tribo de elite dos servidores do Estado. De um lado, nunca tive que mendigar postos ou posições no curso da carreira, já que em geral recebia convites para servir em tal posto ou tal unidade da Secretaria de Estado; de outro lado, jamais me dediquei a “pescar” votos de colegas ou implorar apoio de chefes para ser promovido na escala funcional, o que ofenderia meus princípios pessoais, ou minha maneira de ser, mas que pode ter irritado muita gente da corporação. 

Tampouco pedia permissão para escrever à minha maneira – e não naquele burocratês diplomático que tanto desprezo – ou sequer me desculpava por pensar de forma muito diferente da maior parte dos colegas ou mesmo dos superiores, e mais de uma vez ousei contestar opiniões de chefes em reuniões de coordenação, quando os fundamentos de minha posição me pareciam suficientemente sólidos para levantar o dedo e exclamar – algumas vezes na estupefação dos colegas e alguns superiores – uma frase do tipo: “Não é bem assim [Fulano]!” Acho que isso talvez não tenha ajudado no curso ulterior, ou superior, da carreira. Já ao ingressar na carreira, revoltei-me contra a exigência, que sempre julguei absurda – e anticonstitucional, em todo caso violadora dos direitos individuais, que invariavelmente coloco acima dos interesses do Estado –, de ter de pedir permissão às autoridades pertinentes para contrair matrimônio com minha esposa: um abuso e uma indignidade, a que meu espírito anarquista jamais consentiu por princípio. Numa etapa intermediária, cansado do ritual de ter de pedir permissão para publicar que fosse uma simples resenha de livro sobre temas da diplomacia, deixei de submeter textos à apreciação superior, e passei a publicar o que julgava apropriado e conveniente (ainda que exercendo algum grau de autocensura no que era cabível dizer de público sobre tão augusta Casa e tão distinguido Serviço Exterior). 

De fato, se ouso julgar, agora, as características do serviço em prol do qual exerci meus talentos nas últimas três décadas e meia, eu diria que o Itamaraty tem uma cultura muito especial, em todo caso diferente das demais corporações a serviço do Estado. Confessadamente, eu nunca fui muito adepto das manias e trejeitos dos meus colegas diplomatas: trata-se de uma carreira ultra competitiva, com altas doses de autocontenção, marcada por dogmas de disciplina e hierarquia que nunca se encaixaram bem ao meu natural libertário, exigindo ainda certo enquadramento nos rituais internos para que essa competição seja bem sucedida no plano individual, ou seja, para que ela se reflita na progressão funcional, na atribuição de postos e outras distinções. Visivelmente, eu nunca pretendi me enquadrar no estilo de rigor. Sempre mantive meus hábitos de trabalho, em parte isolado, estudando e escrevendo, de outra parte falando com sinceridade aquilo que me parecia negativo do ponto de vista da pura racionalidade instrumental dos objetivos diplomáticos. Ainda que tal tipo de atitude possa suscitar admiração em certas áreas, acredito que essas não são as qualidades requeridas para se triunfar numa Casa que faz da obediência estrita aos superiores a pedra de toque para a inserção no inner circle dos premiados oficiais.

Tomando como base o que acima vai descrito, não tenho qualquer restrição mental em confessar que, em diversas ocasiões, dissenti das opiniões oficiais da Casa – ou seja, aprovadas em alguma instância superior – no tratamento de temas específicos ou na condução de algumas negociações para as quais eu me julgava especialmente preparado, em função, justamente, dos estudos que eu conduzia paralelamente à carreira, para aprofundar-me nos assuntos que me eram atribuídos. Uma atitude desse tipo não é fácil de ser assumida, quando se trata, não das preliminares para a formulação de uma posição negociadora, mas de instruções formais, consubstanciadas em telegrama da série, com base na qual a resposta invariável do diplomata obediente deve ser: “Cumpri instruções”, e o chefe do posto passa a relatar como ele se ateve fielmente às ordens emanadas da Santa Casa.

Pessoalmente, já passei por esse tipo de situação, envolvendo uma negociação internacional de um tratado multilateral. Tendo me ocupado do tema durante meses e meses, eu literalmente dominava o assunto, técnica e diplomaticamente, e as instruções formuladas em Brasília, de nítido corte tradicional, eram claramente inadequadas. Os argumentos que poderiam ser mobilizados em favor de teses diferentes ou alternativas, por mais racionais ou “probatórios” que sejam (com base numa análise histórica, nos dados da economia, numa visão de longo prazo), nem sempre são convincentes ou suficientes para “dobrar” o burocrata na outra ponta do processo ou até fazer com que a instituição como um todo se mova em outra direção. Esse tipo de situação pode ser terrível, pois aparentemente (ou concretamente) o diplomata em causa pode estar se colocando contra as instruções da sua instituição.

Não tive medo de fazê-lo, naquele momento preciso, assim como em outras circunstâncias posteriores. De certa forma, esse tipo de atitude me prejudicou, pois fiquei com fama de rebelde, de dissidente, de arrogante, de pretencioso “sabe-tudo” e outros qualificativos mais, que nem são do meu conhecimento. Se insisto em certas teses é, contudo, com base num estudo profundo das problemáticas das quais me é dado ocupar. Sou por excelência um estudioso compulsivo, e não costumo me dobrar a nenhum argumento de autoridade, e sim à autoridade do argumento. Numa casa “feudal”, como é o Itamaraty, isso é quase um crime de lesa-majestade.

Mas o assunto supera as atitudes individuais de um diplomata, para adentrar no terreno mais complicado das questões macro-políticas, ou se quisermos, no eterno debate sobre como interpretar o chamado “interesse nacional”, um conceito altamente difuso para permitir qualquer tipo de argumento não fundamentado ou especioso. Não vou tratar das bases epistemológicas do que, exatamente, constituiria o interesse nacional nos limites desta reflexão, mas vou tratar da questão no contexto da própria formação e educação dos diplomatas. Acredito, com base numa avaliação puramente subjetiva, que poucos diplomatas têm uma cultura econômica verdadeira, ou seja, o instrumental analítico de cunho histórico e econômico que poderia levá-los a analisar uma questão qualquer de política externa do ponto de vista daquilo que os economistas chamam de custo-oportunidade do capital, ou seja, a eficiência paretiana dos meios e fins, que não se restringe ao melhor emprego dos recursos, ou a um cálculo sobre o retorno dos investimentos, mas envolve todos os “fatores de produção” de um determinado assunto diplomático. Tudo, ou quase tudo, na diplomacia, é feito de forma muito politizada e, por vezes, de forma irracional, já que levando em conta circunstâncias imediatas e as preferências políticas de quem manda, não necessariamente os interesses de mais longo prazo da nação.

Teríamos inúmeros exemplos de decisões claramente absurdas, no contexto mais vasto das tradições diplomáticas brasileiras, tomadas em certo período, e que no entanto foram tomadas, ao arrepio de qualquer racionalidade administrativa ou mesmo política; eximo-me, por razões diversas, mas claramente compreensivas, de discorrer sobre elas neste momento. O fato é que, em momentos como esses, o ator em questão tem várias escolhas, todas elas difíceis: submeter-se passivamente a instruções que ele pode julgar prejudiciais ao país ou ao serviço, no contexto dos interesses de mais longo prazo; negar cumprimento e argumentar alternativamente ao que julga contrário a suas convicções ou avaliação do tema em apreço; afastar-se do processo, com prejuízo pessoal ou fricção funcional. 

Minhas próprias atitudes sempre foram pautadas em função de minha trajetória habitual de estudos e de busca de coerência lógica no processo decisório, esforçando-me por manter minha indispensável integridade intelectual, em face de eventuais adversidades momentâneas, que sempre julgo devam ser afrontadas com serenidade e com a dignidade funcional que devem guiar o comportamento de membros de uma corporação como esta à qual pertenço. Em tempos difíceis de submissão a vocações autoritárias essas atitudes cobram um preço por vezes difícil em termos pessoais, mas a coerência e a honestidade na defesa de certos princípios, que reputamos mais elevados do que a acomodação servil, e a consciência de se estar defendendo causas mais altas do que as escolhas sectárias do momento constituem os prêmios mais gratificantes que se possa ter num itinerário de vida. 

Vale persistir, como aliás demonstrou o próprio George Kennan, ao abandonar a carreira diplomática, para ingressar numa categoria à parte da história intelectual de seu país, como um grande pensador das relações internacionais dos Estados Unidos. Sem aspirar a tanto, e sem renunciar a uma carreira que me trouxe tantos benefícios intelectuais e pessoais, vou persistir na defesa da coerência com o livre pensamento mesmo nos tempos sombrios e tristes de um outro regime autoritário.


Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 2409: 14 de julho de 2012.

Postado no blog Diplomatizzando (http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2012/07/uma-reflexao-baseada-em-george-kennan.html).

Postado novamente no Diplomatizzando em 4/01/2016 (link: http://www.diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/01/george-kennan-era-um-contrarianista.html).

 

terça-feira, 22 de novembro de 2022

Uma Grande Estratégia para o Brasil - Rubens Barbosa (OESP)

 Uma Grande Estratégia para o Brasil

Rubens Barbosa 

O Estado de S. Paulo, 22/11/2022

As circunstâncias conjunturais pelas quais o Brasil passa hoje fazem com que as atenções da opinião pública informada se concentrem no debate sobre economia, taxa de juro e inflação, orçamento, sobre redução do desemprego, da pobreza, da saúde no novo governo. O brasileiro menos favorecido quer saber como ganhar dinheiro para pagar a comida, o remédio, o transporte e sua roupa.

Nesse contexto, pouca gente está pensando o Brasil, como uma potência emergente, cada vez mais dividida e com um novo governo que terá grandes desafios para reafirmar a democracia e as instituições, em vista da previsível feroz oposição bolsonarista. Assuntos institucionais, como lugar do Brasil no mundo, Defesa e Segurança, o aperfeiçoamento dos meios de trabalho das FFAA para defender os interesses reais do país e superar as novas ameaças globais são tratados por restrito número de pessoas no governo, no meio acadêmico, no âmbito de instituições militares e (muito pouco) no Congresso. O Brasil não enfrenta ameaças de uma guerra convencional entre Estados, sendo efetiva a atuação das Forças Armadas em missões de paz, intervenções humanitárias, combate ao terrorismo, ao crime organizado, a segurança cibernética, GLO, ações cívicas e outras.

No Brasil, soberania, defesa, segurança são, normalmente, associados a questões de natureza militar, como ocorre, em linhas gerais, nos importantes documentos recentes sobre Estratégia Nacional e Política Nacional de Defesa. O conceito de Defesa deveria ser examinado de forma mais abrangente não limitado `as percepções militares, como ocorre nesses documentos, que discutem as concepções política e os objetivos da Defesa e estratégica e os fundamentos da Defesa. Ambos os documentos procuram responder aos desafios como hoje percebidos e o planejamento das prioridades para a Defesa. A vantagem de uma percepção mais ampla de defesa e de segurança, não restrita ao âmbito militar, mas envolvendo outros atores, em diferentes setores da sociedade, responderia aos desafios da projeção do Brasil no contexto internacional, dentro das suas grandes dimensões estratégicas. E colocaria o país em melhor posição para a defesa de seus interesses no momento em que as transformações geopolíticas, de inovação e tecnologia e a nova ordem econômica, dão realce aos temas globais, como mudança do clima e a segurança alimentar.

Quando ministro da Defesa, Celso Amorim ressaltou que o Brasil deveria seguir o conceito de uma Grande Estratégia, baseado em uma coordenação de políticas de defesa e externa, com vistas `a defesa do interesse nacional e `a contribuição para a paz mundial. No contexto das limitadas discussões estratégicas, focadas sobretudo nos aspectos de soberania e defesa, está faltando um debate amplo, que deveria extrapolar o âmbito militar, sobre a formulação dessa Grande Estratégia, em que a política de defesa e a política externa sejam complementadas por anseios da sociedade civil e mais recentemente por demandas da comunidade internacional sobre segurança ambiental, energética, alimentar e outras áreas. A Constituição, que define os objetivos, princípios e direitos fundamentais, deveria ser a base para a definição da Grande Estratégia, levando em conta a geopolítica e as transformações por que passa o cenário internacional, em especial, na economia global, no meio ambiente, na tecnologia e na inovação e que reflita o Poder efetivo do país.

No âmbito do executivo, a elaboração da Grande Estratégia deveria ser responsabilidade do Conselho de Defesa Nacional (CDN), vinculado `a Presidência da República, com a participação de outros atores políticos,ministérios que tratam de temáticas interdependentes, como Relações Exteriores, Ciência Tecnologia e Inovações, Justiça e Segurança e Economia, assim como dos representantes do Congresso Nacional.  Instituições independentes, não pertencentes às corporações do Estado, serviriam para evitar possíveis omissões e distorções e contribuiriam para um maior apoio da sociedade às ações do Estado voltadas para a Defesa e Segurança. O documento definiria e priorizaria objetivos de longo prazo, levando em conta as condicionantes e necessidades derivadas de cenários e ameaças possíveis e de metas definidas para permitir o seu enfrentamento, bem como os recursos que o Estado estaria disposto a alocar ao longo do tempo para o alcance desses objetivos. Essas decisões de alto nível são essenciais para evitar alguns dos principais problemas da abordagem de baixo para cima que vem sendo usada.  A Grande Estratégia, política de Estado, cobriria um horizonte mais extenso (de 10 a 20 anos), como fez recentemente o Reino Unido, que, depois da saída da União Europeia, definiu seu lugar no mundo, dentro de uma ampla visão global ou a Estratégia de Segurança Nacional dos EUA, assinada pelo presidente Biden e recentemente divulgada.

Nesse contexto, o futuro governo, junto com o Congresso, a academia e “think tanks” especializados, poderia aproveitar o momento para propor uma Grande Estratégia para a segurança e a defesa dos interesses nacionais, de forma abrangente, a ser discutida, ampla e democraticamente, a partir de janeiro de 2023.

 

 

Rubens Barbosa, presidente do Centro de Estudos de Defesa e Segurança Nacional (CEDESEN)

 

quarta-feira, 21 de junho de 2017

Uma visao critica da politica externa brasileira - Paulo Roberto de Almeida (Academia.edu)

Hi Paulo Roberto, 
Congratulations! You uploaded your paper 2 days ago and it is already gaining traction. 
Total views since upload: 
You got 35 views from Brazil, Paraguay, Ecuador, Argentina, and Canada on "Uma visao critica da politica externa brasileira: a da SAE-SG/PR". 
Thanks,
The Academia.edu Team

A ficha completa do trabalho é esta aqui:  
3126. “Uma visão crítica da política externa brasileira: a da SAE-SG/PR”, Brasília, 17 junho 2017, 22 p. Considerações críticas sobre o documento da SAE, sobre uma “grande estratégia” para o Brasil. Postado em Academia.edu (link: https://www.academia.edu/s/28ae2de83d/uma-visao-critica-da-politica-externa-brasileira-a-da-sae-sgpr?source=link) e em Research Gate (link: https://www.researchgate.net/publication/317636574_Uma_visao_critica_da_politica_externa_brasileira_a_da_SAE-SGPR).



sábado, 17 de junho de 2017

Brasil: um pais em busca de uma grande estrategia (sera'?) - documento da SAE, analise Paulo Roberto de Almeida



Tendo elaborado uma análise crítica do “relatório de conjuntura n. 1”, da Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos, da Secretaria Geral da Presidência da República, intitulado “Brasil: um país em busca de uma grande estratégia”, da autoria do Secretário Especial e de seu Adjunto, respectivamente Hussein Kalout e Marcos Degaut, enviada com a mensagem transcrito in fine a determinados colegas e amigos, tenho recebido alguns comentários dos que tiveram acesso a essa minha análise, questionando qual seria, finalmente, uma estratégia adequada para o Brasil superar seus problemas atuais e projetar-se no cenário internacional com base nos recursos e ativos que legitimamente possui. Tenho respondido topicamente, mas talvez fosse útil explicar de maneira mais clara meu posicionamento em relação a esse tipo de exercício intelectual, que considero, de toda forma, uma colaboração importante à abertura de um debate bem informado sobre as grandes opções da nacionalidade.

O trabalho é este aqui: 
  Uma visão crítica da política externa brasileira: a da SAE-SG/PR”, Brasília, 17 junho 2017, 22 p. Considerações críticas sobre o documento da SAE, de autoria de Hussein Kalout e Marcos Degaut, sobre uma “grande estratégia” para o Brasil. Enviado aos autores e a certo número de interessados. Postado em Academia.edu (link: https://www.academia.edu/s/28ae2de83d/uma-visao-critica-da-politica-externa-brasileira-a-da-sae-sgpr?source=link) e em Research Gate (link: https://www.researchgate.net/publication/317636574_Uma_visao_critica_da_politica_externa_brasileira_a_da_SAE-SGPR).
 
Explico desde já o que me distancia da visão exibida nesse documento. Minha diferença fundamental, filosófica talvez, em relação aos autores do documento da SAE, é a de que eles estão interessados em construir um Estado grande e forte, capaz de projetar internacionalmente o Brasil, que nunca deixará de ser uma potência média, o que quer que façamos. O Brasil só seria um país medíocre, e decadente (como tantos outros na história), se não fizermos nada, ou melhor, deixar que elites predatórias se apossem do Estado, como estão fazendo com sanha de sanguessugas e ratazanas com redobrado vigor, desde a redemocratização. Não creio que os militares construíram um Estado impoluto, mas o patrimonialismo rentista era certamente menor no regime militar.

Na redemocratização, nos tornamos presas de uma casta de políticos rentistas e assaltantes dos recursos públicos, o que foi exacerbado no regime companheiro. Não creio que o reforço da fiscalização do Estado resolva esse problema de apropriação de bens públicos. Só a redução do Estado o fará. À diferença da visão grandiosa do documento da SAE, não creio que tal tipo de projeto estatal transforme significativamente o Brasil. Pessoalmente, estou interessado em construir uma nação próspera, e isso não passa pelo Estado, mas por uma sociedade livre.

Na verdade, eu não estou interessado em construir potência nenhuma, de qualquer tipo. Estou apenas interessado em que o Brasil seja uma sociedade integrada, desenvolvida, capaz de prover uma vida decente à maioria dos seus cidadãos, sem qualquer espírito igualitário, baseado na competição e na maior oportunidade de chances a todos. Sei que mesmo numa perspectiva smithiana, a defesa, a segurança, as relações exteriores passam inevitavelmente pelo Estado, e por isso concedo em que esses aspectos sejam fortalecidos no âmbito do Estado, mas sempre na perspectiva de que uma sociedade livre e competitiva fará isso melhor que exércitos de burocratas e tecnocratas estatais, que se transformam facilmente numa corporação que vive do Estado, para o Estado, no Estado, e para si e em si, o que vale também para os diplomatas.

Eu acho esse debate sobre uma grande estratégia um desvio de objetivos. Em lugar de focalizar o macro, como feito em tantos documentos de tecnocratas — inclusive o recente “Brasil 2035” do Ipea —, eu focaria o micro, para construir um ambiente de negócios condizente com os requerimentos de desenvolvimento do país. Em uma palavra, acho que os tecnocratas impedem o Brasil de se desenvolver. Por isso sou por “pequenas estratégias” focadas no ambiente de negócios para construir riquezas via mercado, não pela mão torta do Estado.



Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 17 de junho de 2017
Mensagem que acompanhou a remessa do documento:


Tenho por hábito acadêmico ler cuidadosamente, anotar, eventualmente discorrer sobre livros, artigos, textos que julgo relevantes para um debate bem informado sobre questões de políticas públicas do Brasil e do mundo.
Tenho também por hábito (mas pouco diplomático) dizer rigorosamente o que penso, registrar o que digo, e divulgar o que escrevo, sempre que possível, pelos meios apropriados.
Não por outras razões, dediquei-me, nos últimos dias, a ler o importante documento liberado (desajeitadamente) pela SAE-SG/PR, não porque acredite que ele vai transformar imediatamente certas políticas públicas, nas áreas da diplomacia, da inteligência, da governança em geral. Mas acredito que ele oferece uma boa introdução a um debate de alto nível sobre a política externa e a diplomacia brasileira, ainda que não concorde com muitos dos argumentos ali contidos.
Se não o julgasse importante não teria dedicado quase igual volume de páginas a analisar e criticar esse documento, que reputo de boa qualidade redacional, ainda que carente de uma distinção clara entre as peculiaridades das políticas exteriores das últimas duas décadas, e sobretudo deixando de registrar a grande ruptura representada pelo lulopetismo em diversos capítulos da vida nacional, inclusive na política externa e na diplomacia. 
Meu texto foi elaborado ao correr da pena, isto é, a partir de uma leitura linear do documento, com observações feitas de maneira tópica, ainda sem grandes desenvolvimentos conceituais, o que provavelmente ocorrerá no decorrer do debate (se houver, o que me parece necessário).
Quero cumprimentar os autores pela coragem de divulgar um documento que poderia ser interno, sem eludir, porém, meu profundo questionamento sobre vários de seus argumentos. Também convido os recipiendários desta análise a formularem suas observações sobre o documento em questão.

===============

Quando o documento foi publicado, eu o registrei nesta postagem de meu blog, informado por uma nota de jornal: 
http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/06/sae-critica-politica-externa-documento.html

sexta-feira, 2 de junho de 2017

Uma grande estrategia para o Brasil? Eis a minha, modesta, como o pais - Paulo Roberto de Almeida

Já que se anda falando tanto de "grande estratégia" para o país, eis aqui a minha, que deve ter sido elaborada em torno de 2012 ou 2013, depois integrada a este livro, de onde retiro, justamente o capítulo.
Paulo Roberto de Almeida 

12. Uma grande estratégia para o Brasil?, 255-267

Sumário do capítulo: 

12. Uma grande estratégia para o Brasil?

12.1. O que é uma grande estratégia?
12.2. Antes da grande estratégia, breve descrição da situação do Brasil
12.3. O que constituiria uma grande estratégia para o Brasil?
12.4. Que tipo de estratégia deveria o Brasil seguir?


  
12. Uma grande estratégia para o Brasil?

12.1. O que é uma grande estratégia?
O Brasil possui uma grande estratégia nacional? Difícil dizer: não se tem registro de um documento único, aberto e conhecido, tratando dos elementos substantivos do que se poderia chamar de “ grandes objetivos nacionais”. Existem, obviamente, diferentes textos – de natureza e origens muito diversas, como a Estratégia Nacional de Defesa,[i] que vincula esse conceito ao de desenvolvimento, ou o livro branco dessa mesma área[ii] – que poderiam ajudar a compor uma definição unificada dessa estratégia, ou que poderiam integrar um documento dessa espécie; eventualmente, alguma autoridade do setor pode, a título pessoal, reunir elementos atinentes à defesa nacional com vistas a apresentar uma síntese de suas concepções a esse respeito, inclusive sob o conceito de “estratégia”[iii], embora isso não configure, exatamente, uma estratégia nacional mais ampla, objetiva, organizada de maneira sistemática, em torno dessa problemática.[iv]
Não pretendo passar por tal autoridade, mas invocando tão somente o direito de elaborar um exercício intelectual, permito-me alinhar, nos parágrafos seguintes, algumas ideias que imagino possam, ou devam compor um documento desse tipo. Registre-se, preventivamente, que este ensaio não tem por título “A Grande Estratégia do Brasil”, mas “Uma grande estratégia para o Brasil”, o que evidencia, justamente, seu caráter exploratório. A questão básica, a ser respondida inicialmente, antes de se tocar na situação brasileira, é a de saber o que é, exatamente, uma grande estratégia.
Formalmente, uma estratégia se articula em torno dos objetivos prioritários de um determinado país, o que alternativamente se designa por “interesses nacionais”. Estes, no caso do Brasil, constituíam uma preocupação constante da Escola Superior de Guerra, nos seus bons tempos de preeminência intelectual. Definidos os grandes objetivos nacionais, se trata, então, de examinar a equação permanente entre meios e fins, ou seja, a capacitação do país em alcançar seus objetivos, utilizando os meios e recursos disponíveis da forma mais eficiente possível.
E por que uma estratégia teria de ser “grande”? Não existe nenhum motivo especial para isso: trata-se apenas de um adjetivo, talvez exagerado, que visa, de certo modo, enfatizar o aspecto crucial para o país na determinação de suas políticas mais essenciais; neste caso, grande pode ser considerado como algo diferente de setorial (como poderia ser apenas defesa ou desenvolvimento). Grandes países, com grande interface ou exposição internacional, ou, ainda, países capazes de grande projeção internacional, costumam ter grandes estratégias. Talvez seja o caso do Brasil.
Os instrumentos clássicos para combinar esses elementos materiais e os objetivos “ideais” costumam ser identificados, na tradição clausewitziana, ou aroniana, como sendo uma combinação sempre variável entre as armas da guerra e as armas da política, ou seja: poder militar e diplomacia. Nada a ver, aqui, com qualquer teoria idealista do poder nacional, e sim com a expressão sintética de uma realidade imanente aos Estados: eles se relacionam com outros Estados, ou seja, no âmbito internacional, com base nos agentes primários de ação externa: os soldados e os diplomatas, atualmente (desde muito tempo complementados por uma fauna ainda mais variada, composta de comerciantes, missionários, representantes de causas globais no plano ambiental ou de direitos humanos, artistas, esportistas, etc.).
Ouso afastar-me parcialmente desse esquema clássico – o que já fiz em meu livro Os Primeiros Anos do Século XXI [v] – para introduzir o elemento “economia” nessa equação; esse conceito, entretanto, deve ser tomado num sentido amplo, ou seja: o fator econômico não tem a ver apenas com as capacitações do país no terreno militar, tecnológico, ou na sua projeção diplomática, mas adquire um status próprio, a ser considerado enquanto tal, e não apenas como suporte de um ou outro daqueles componentes clássicos. A grande estratégia, assim, é a realização dos objetivos nacionais prioritários, por meio de uma adequada combinação de meios, ou recursos, para atingir as finalidades pretendidas, e tanto os meios, quanto os fins, não precisam estar definidos unicamente, ou principalmente, pelas armas e pela diplomacia.
A justificativa da inclusão do fator econômico na equação estratégica, no caso do Brasil, é a de que, seja pelas características próprias do país no sistema político internacional, seja pela configuração presente desse mesmo sistema, poder militar e diplomacia já não podem atuar isoladamente de outros dados objetivos da presença de um país no sistema internacional; este sistema é atualmente caracterizado por uma interdependência econômica que não existia na época em que os autores clássicos formularam suas considerações teóricas em torno do que deveria ser a grande estratégia de um Estado. A globalização estava em recesso ou não existia, de fato.
Feitas essas considerações iniciais, vejamos o que conviria alinhar no campo dos principais elementos que poderiam compor uma proposta de grande estratégia para o Brasil. Alerto que se trata de uma elaboração inicial e preliminar, um mero exercício de reflexão; como tal, ele não fará o exame de eventuais documentos já existentes em torno dessa questão, mas, sim, se limitará a uma proposição de conceitos e de argumentos que derivam, unicamente, de minha própria elaboração intelectual. O foco, todavia, é, empiricamente, a situação brasileira, e não se cogita de elaborar a estratégia “ideal” para o Brasil, e sim uma estratégia possível para o Brasil atual, nas circunstâncias presentes desta segunda década do novo milênio.

1.2. Antes da grande estratégia, breve descrição da situação do Brasil
Previamente ao exercício propositivo, caberia delimitar o quadro conceitual do exercício, ele mesmo precedido por uma operação de descarte de algumas utopias ou paranoias que costumam frequentar este tipo de exercício. Essa contextualização e esses descartes só podem ser feitos com base numa visão concreta do que é o Brasil atualmente, e sobretudo de suas carências e limitações, em função, e a partir das quais se trataria de traçar, justamente, a proposta de uma grande estratégia.
Evidencie-se, por óbvio, que não estamos falando de uma grande potência: o Brasil não tem, a despeito das crenças de muitos, um papel relevante a cumprir no campo da paz e da segurança internacionais. Ousaria dizer, inclusive, que o Brasil sequer constitui uma potência média, uma vez que esse conceito implica certa relevância regional, no sentido de determinar equilíbrios e grandes orientações políticas e econômicas, sobre os quais essa “potência média” deveria, ou poderia, exercer suas escolhas básicas, esperando que outros atores regionais se alinhem a seus procedimentos e opções. Desse ponto de vista, a despeito de constituir um grande território e uma grande economia no quadro regional sul-americano, é evidente que o Brasil está longe de determinar as principais orientações políticas ou econômicas que poderiam ser adotadas pelos demais países da região; ele não é, sequer, um ator capaz de impor um quadro geopolítico determinado, com base em suas capacitações primárias no campo militar, para dentro ou para fora da região.
Mas o Brasil é um ator relevante malgré lui, ou seja, possui massa e presença de dimensões relevantes, embora não consiga determinar o curso dos eventos e dos processos no subcontinente, mesmo mobilizando as armas de sua política – a diplomacia – ou “ameaçando” (o que, aliás, seria difícil de concretizar) recorrer à política das armas – para a qual lhe faltariam os requisitos de base, justamente. Mesmo no terreno das proposições de política, não se pode dizer que o Brasil tenha constituído um manancial de iniciativas significativas, capazes de alterar, de maneira sensível, o peso e o papel da região no contexto mundial.
E quais são os dados essenciais em causa, isto é, aqueles atinentes às circunstâncias do Brasil?
O Brasil e a América do Sul – esta a única porção do planeta em que o primeiro pode atuar de alguma forma relevante – constituem “polos de poder” – se o conceito se aplica – absolutamente marginais do ponto de vista da geopolítica mundial. Dispensável dizer que o continente é um grande fornecedor de matérias primas e de energia para o resto do mundo, um papel que, teoricamente, pode ser exercido em caráter substitutivo por diversas outras regiões. O que poderia haver de exclusivo ao Brasil e à América do Sul, que seria de fato suscetível de afetar os grandes equilíbrios planetários, em quaisquer dos campos relevantes da geopolítica ou da geoeconomia do mundo? À parte ser um continente constituído de apreciável volume de pessoas, um contingente humano potencialmente consumidor de produtos e serviços de maior valor agregado produzidos em outras partes do mundo, a América do Sul fornece emigrantes para o hemisfério norte, produz quantidade apreciável de drogas e uma parte da criminalidade internacional associada a esses fluxos, mas que tampouco são exclusivos da região. Descarto, como não relevantes, certas teorias econômicas em voga no continente desde os anos 1950, ainda em uso aqui e ali, mas que não parecem ter contribuído para um processo dinâmico de crescimento.
O Brasil, a despeito do que se crê habitualmente, não é propriamente um país subdesenvolvido, ou sequer “em desenvolvimento”, como se declara também: trata-se de um país “rico” (pelo menos em recursos potenciais), mas com muitos pobres. Ele constitui uma economia quase totalmente industrializada, embora lhe falte certo grau de autonomia tecnológica suscetível de inserir essa economia nos grandes circuitos da interdependência produtiva mundial. A esse respeito, não existe nenhum impedimento técnico a que essa inserção se faça de modo bem sucedido, e em consonância com os interesses de sua população: os fatores impeditivos se situam inteiramente no âmbito das políticas econômicas nacionais, não no terreno do potencial de base de seu sistema produtivo. O processo que, atualmente, se classifica equivocadamente como de “desindustrialização” não deriva de uma incapacidade própria do país a se desempenhar de modo satisfatório no seu setor secundário – uma vez que o país possui empresários, técnicos e dotação de fatores capazes de manter sua plena capacidade industrial – mas deve ser atribuído, inteiramente, a políticas equivocadas de sua governança econômica, políticas que dificultam, ou até obstaculizam, um ritmo adequado de crescimento da produtividade e a manutenção da competividade de seu setor industrial: uma vez corrigidas essas políticas, o país poderia voltar a se exercer satisfatoriamente no terreno industrial, uma vez que possui requisitos suficientes para isso (e que já o fez no passado).
Cabe descartar, igualmente, concepções equivocadas quanto ao tipo de economia de mercado que o Brasil constitui, ou que poderia vir a conhecer, caso ele corrija as políticas atuais, no sentido de maior inserção nos circuitos da economia mundial. Alguns acadêmicos ainda trabalham com conceitos absolutamente inadequados, como o de capitalismo nacional, como se o Brasil pudesse ser outra coisa que uma economia capitalista, e como se esta pudesse ser estreitamente nacional, como certas mentalidades ainda insistem em recomendar. Daí derivam, justamente, propostas e políticas em total descompasso com os requerimento de um processo de desenvolvimento econômico e tecnológico plenamente inserido na modernidade da economia de mercado globalizada, como é inevitável atualmente. Tentativas de fazê-lo voltar ao tipo de stalinismo industrial praticado em outras épocas – como durante o processo de acabamento de sua industrialização, nos anos “gloriosos” do regime militar – são totalmente inadequadas ao estágio alcançado por sua economia, e só podem fazê-la retroceder a estágios e práticas já sepultados pela evolução “geológica” da economia planetária.
No plano da sua inserção regional, por sua vez, carecem de coerência as propostas que vêm sendo acompanhadas de iniciativas diplomáticas tendentes a conformar instituições e programas exclusivamente sub-regionais, e que duplicam os mandatos e agendas existentes em nível hemisférico ou mundial; essas iniciativas apenas traduzem o anti-imperialismo infantil, e o antiamericanismo primário, das forças políticas que determinaram, no curso da última década, a política regional e internacional do país. O mesmo tipo de voluntarismo se manifestou em outras instâncias e direções, como reuniões de cúpula bi-continentais, ampliando a audiência do governo no plano internacional – inclusive em função dos altos investimentos em publicidade centrada no protagonista principal –, mas com escassos resultados práticos, ou duvidosos efeitos do ponto de vista daqueles interesses nacionais valorizados nos círculos de planejamento estratégico.
Justamente, com respeito aos chamados interesses nacionais, caberia revisar as antigas listas da Escola Superior de Guerra, que começavam por enfatizar a defesa da soberania nacional, a proteção do território pátrio, a preservação da independência e da integridade do Estado, e continuavam proclamando objetivos grandiosos, embora genéricos, como a promoção do desenvolvimento do país, a industrialização, a melhoria das condições de vida da população e várias outras metas generosas. O trabalho de conciliar o atingimento desses objetivos com os meios disponíveis podia ser objeto de algum planejamento global ou setorial – como no Plano de Metas do governo JK, ou nos diversos planos nacionais de desenvolvimento dos governos militares – mas geralmente se visava mais alto do que as possibilidades reais, e havia sempre o desejo de preservar as bases autônomas do desenvolvimento nacional.
Deixando de lado, portanto, propostas tradicionais relativas aos interesses nacionais brasileiros, tentaremos traçar, na seção seguinte, os elementos constitutivos de uma grande estratégia para o Brasil, nas circunstâncias dadas do sistema internacional em vigor, e no contexto regional que é o seu. A ordem das prioridades é puramente subjetiva, embora corresponda a uma interpretação realista, o mais possível de caráter econômico, em torno das capacidades e limitações brasileiras no quadro das circunstâncias referidas acima.

12.3. O que constituiria uma grande estratégia para o Brasil?
A teoria realista das relações internacionais, assim como os exemplos conhecidos, na prática, de exercício da soberania nacional por Estados participantes do sistema internacional costumam considerar a inviolabilidade dessa soberania e o pleno controle dos instrumentos da defesa da integridade territorial e de segurança do Estado como constituindo os elementos essenciais para a sobrevivência do Estado e para o desenvolvimento normal de suas funções enquanto pessoa de direito internacional, legitimamente reconhecido por seus pares do sistema e inserido no quadro jurídico do mútuo reconhecimento de Estados membros da comunidade das nações (princípios formalmente estabelecidos no âmbito da Carta das Nações Unidas e seus instrumentos acessórios, de acesso livre e soberano por esses Estados). Tanto as digressões teóricas, quanto as políticas dos Estados envolvidas nesses exercícios tratam geralmente da política das grandes potências e de seus conflitos parciais e globais, estes últimos até a emergência da era nuclear (que reduziu, ou eliminou, o recurso aos enfrentamentos globais como meio de “solução” de suas controvérsias).
Não é preciso ser um grande especialista em relações internacionais, nem um teórico de qualquer escola nessa área, para constatar que o Brasil – e, com ele, grande parte da América Latina – é relativamente marginal nesse jogo de lutas entre grandes Estados. De resto, refazendo o itinerário histórico do continente, no último século, pode-se dizer que, depois do afastamento dos desafios nazista e soviético à estabilidade e a qualquer papel político de relevo, da região, nos grandes equilíbrios estratégicos, não existe, aparentemente, qualquer protagonismo do país e da América do Sul que possa contar para a paz e a segurança internacionais. Relevando-se os elementos negativos já destacados anteriormente – drogas, emigração ilegal e crimes transnacionais associados – o continente e o Brasil são praticamente neutros em qualquer jogo estratégico entre grandes potências, cujos cenários tradicionais foram a Eurásia, o Oriente Médio e a Ásia do Sul, agora deslocando-se para a Ásia Pacífico.
Em outros termos, o Brasil não enfrenta nenhuma ameaça real à sua segurança e estabilidade estratégica, nenhum desafio à sua soberania ou integridade territorial, nenhum risco de sofrer um ataque de vizinhos ou de protagonistas extracontinentais. Como é óbvio, os atores militares e alguns observadores geopolíticos sempre vão apontar para ameaças potenciais ou latentes para as riquezas ainda não exploradas da Amazônia verde e da Amazônia azul, bem como qualquer outro constrangimento à nossa soberania que possa ser causado sob escusa de direitos humanos, de ameaças a minorias indígenas ou questões de qualquer outra natureza, como justificativa para a manutenção de um grande instrumento de dissuasão e controle sobre a jurisdição do Estado brasileiro.
Muitos desses temores derivam de paranoias sem fundamentação empírica ou são pretextos para legitimar transferências orçamentárias e grandes investimentos em matéria de defesa, que não encontram embasamento em cenários geopolíticos reais. Suas fontes ou pretensas justificativas podem até ser possíveis, ou factíveis, ou seja, no domínio das possibilidades, mas não são efetivos e, portanto, não são prioritários. Pode ser patético, assim, assistir responsáveis políticos dessa área afirmar que o Brasil precisa defender-se de eventuais ataques das grandes potências, quando a referência implícita é feita contra potências capitalistas, de fato contra os EUA: presume-se que se trata de uma deformação ideológica temporária, a ser superada proximamente.
Esta é a razão para que o autor deste ensaio atribua baixa prioridade a supostas ameaças à soberania nacional como derivadas de fatores internacionais, ou vinculadas a forças externas, no trabalho de construção de uma proposta para uma grande estratégia brasileira. Não que elas inexistam, ou sejam irrelevantes, provavelmente mais no contexto estritamente regional do que no âmbito global; mas elas não parecem ser de suficiente monta para justificar uma estratégia inadaptada aos terrenos e às circunstâncias nos quais deve atuar o Brasil, com vistas a cumprir seus objetivos maiores de desenvolvimento econômico e social equilibrado e de plena inserção na ordem internacional. Feitas estas considerações preliminares ao objeto desta seção, vejamos, por fim, quais são os elementos de uma grande estratégia para o Brasil.
Quais são, numa análise realista, os componentes dessa grande estratégia? A resposta a esta questão implica necessariamente identificar os principais desafios colocados ao Brasil na realização dos supremos interesses nacionais. Quais são estes últimos, portanto? Em plena transparência de propósitos, não parece restar dúvidas de que o objetivo supremo da nação – ademais daquelas questões básicas de soberania, que já consideramos não prioritárias – é o atingimento de uma etapa superior no seu processo de desenvolvimento, de maneira a garantir bem estar e vida digna a todos os brasileiros, como condição da plena integração do país ao sistema internacional num status de potência capaz e plenamente dotada dos meios de ação para atuar positivamente nesses sistema, em conformidade com os propósitos da Carta das Nações Unidas e dos demais instrumentos da cooperação internacional.
Assumidos esses pressupostos empíricos, a questão real passa a ser: o sistema internacional, em sua conformação atual (ou até em configurações passadas), ou em seus desenvolvimentos previsíveis no futuro de médio e longo prazo, constitui um obstáculo fundamental ao atingimento daqueles objetivos superiores da nação brasileira? Do ponto de vista deste ensaísta, desde a assunção da independência nacional, parece claro que não. Ainda que o sistema internacional, especialmente no plano de sua estruturação econômica, possa ser acusado de assimétrico, desigual, injusto ou até perverso (mas isso segundo alguns intérpretes da ordem mundial), cabe lembrar foi nesse mesmo sistema que países notoriamente dependentes, ou humilhados, no passado, conseguiram desenvolver-se e assumir preeminência na ordem global. Tanto quanto o Brasil, os EUA foram colônia, e tanto quanto o Japão, a China também foi humilhada por imperialistas estrangeiros, durante certa conjuntura de sua história passada. Nada disso impediu o segundo país (mesmo antes de sua independência política) e os dois últimos de seguirem, em épocas e circunstâncias diversas, e por caminhos sempre únicos e originais, processos notáveis de crescimento econômico, de progresso material e de desenvolvimento social que os trouxeram ao primeiro plano das relações internacionais, a despeito em alguns casos, de condições internas ou externas eventualmente negativas e nas mais diferentes configurações da economia mundial de mercado na qual esses países estiveram inseridos, em maior ou menos grau, de formas distintas, ao longo dos últimos dois ou três séculos.
Que o Brasil não os tenha seguido no caminho da preeminência mundial, na qual eles se encontram inegavelmente inseridos atualmente, não pode ser atribuído, portanto, a qualquer conformação estruturalmente negativa do sistema internacional, uma vez que esse sistema – ou a “economia-mundo”, como preferem certos analistas – não possui qualquer unidade central encarregada de, por um lado, distribuir benesses para uns poucos e de, por outro lado, impor barreiras aos demais membros da comunidade internacional. Ao contrário: o sistema internacional, pelos estímulos dados pela via do comércio internacional – transmissor de ideias e de tecnologias – e dos livres fluxos de capitais – sob diversas formas, mas especialmente enquanto investimentos diretos –, bem como pela movimentação de pessoas e de competências, tem sido totalmente benéfico ao Brasil, como à maior parte dos países que conseguem se inserir nesse sistema, de maneira a tirar vantagem de suas possibilidades e minimizar suas eventuais dificuldades ou fatores negativos.
Retornando, pois, ao núcleo central da construção de uma grande estratégia para o Brasil, e tomando como pressuposto a seleção dos elementos verdadeiramente relevantes para a superação dos atuais (e históricos) constrangimentos à elevação dos padrões internos da nação, cabe indicar o fator primordial em função do qual o país não conseguiu se alçar à condição de preeminência a que parecem aspirar suas elites políticas desde a independência. Esse fator não é muito diferente da causa principal das diferenças entre as diferentes nações do mundo, historicamente e atualmente, que alguns creditam à exploração de nações ditas “periféricas” pelas chamadas “potências centrais”, numa reprodução simplista de certas teorias ultrapassadas ou simplesmente equivocadas desde o início.
Quais são, pois, as causas das desigualdades entre as nações e, no caso brasileiro, responsáveis pelo insuficiente desenvolvimento nacional, o que obstou a que o país alcançasse seus objetivos primordiais? Elas se resumem a um conceito básico da ciência econômica e absolutamente essencial nas práticas econômicas que acompanham o itinerário das nações que integram o sistema internacional: o de produtividade. Independentemente de fatores outros, como o estabelecimento de relações “especiais” entre uns e outros participantes desse sistema, a partir das quais possam ter resultado efeitos negativos, do ponto de vista do seu desempenho, para algumas partes, cabe de fato confirmar que são os diferenciais de produtividade entre as nações que estão na raiz de suas diferentes capacitações no plano do potencial econômico, da inovação tecnológica, das contribuições científicas e outros aspectos materiais ou culturais associados a esse desempenho.
Obviamente que o conjunto dos desafios brasileiros constitui um volume bem maior de problemas, e estes são bem mais diversificados, do que a “mera” questão da produtividade e dos obstáculos associados que se apresentam para a elevação de sua taxa de crescimento. Mas esse conceito resume, de modo amplo, o núcleo central do desafio brasileiro, tanto de caráter conjuntural – ou seja, base de eventual esforço de crescimento –, quanto de ordem sistêmica (o que tem a ver, por exemplo, com a acumulação de riqueza para enfrentar a curva demográfica do envelhecimento da população, ao final do período de bônus demográfico). Não são fáceis as soluções a esse grave problema da sociedade brasileira, e qualquer processo de correção da trajetória até aqui seguida exigirá bem mais do que simples medidas de políticas setoriais nas áreas mais relevantes, em especial no que se refere ao capital humano e os vetores de inovação tecnológica.
O “saneamento” dessas deficiências tomará, provavelmente, o espaço de uma geração inteira, ou mais, sem que no entanto exista garantia de que os problemas seja de fato corrigidos, na ausência de medidas apropriadas. E não se pode, ou não se deve esperar que o país “resolva” seu problema de produtividade no isolamento, ou como tarefa prévia, e descolada, das tarefas vinculadas aos diferentes processos de inserção internacional: tudo isso se fará em paralelo e simultaneamente. Nada disso impede que o eixo central da grande estratégia brasileira deva ser, de fato, a elevação substancial dos ganhos de produtividade, sem o que o país não poderá manter um ritmo sustentado de crescimento econômico, tendendo a permanecer em um baixo patamar de desenvolvimento social, o que obviamente o colocará em enormes dificuldades econômicas ao final do atual bônus demográfico.
Essa questão, absolutamente doméstica, totalmente interna, me parece constituir o pilar central de qualquer grande estratégia brasileira, digna desse nome, para superar os entraves que se colocam no caminho de sua, senão completa, pelo menos maior preeminência nacional, regional e internacional. Apenas cumprindo com tal qualificação, e consequente capacitação, poderá o Brasil exercer seus talentos econômicos, diplomáticos e outros, na escala certamente pretendida por suas elites políticas, militares e diplomáticas. Pode parecer incongruente que a projeção externa do Brasil, e a defesa de seus interesses no plano internacional – como geralmente se coloca como constituindo uma suposta estratégia nacional –, possa depender de fatores eminentemente domésticos, e prosaicamente internos, como são os vetores que influenciam a produtividade nacional (a começar pelo capital humano); mas este é, de fato, o ponto mais relevante para o exercício efetivo de sua projeção internacional e de outras missões daí decorrentes. Aceita esta premissa, cabe então verificar os demais elementos de uma grande estratégia nacional.

1.4. Que tipo de estratégia deveria o Brasil seguir?
Embora o núcleo central de “minha” grande estratégia seja constituído pelo problema da produtividade do capital humano no Brasil, a visão tradicional da questão costuma privilegiar os elementos diplomáticos, ou externos, da inserção do país no sistema internacional. Sendo assim, vejamos como considerar o tipo de estratégia que o Brasil talvez deva seguir nessa vertente. São muito variados os componentes de uma grande estratégia em sua vertente externa, uma vez que eles não dependem apenas das capacitações internas, mas devem se exercer num ambiente não determinado, muitas vezes não suscetível de modificações a partir de uma ação dada do Estado brasileiro, na sua interação com os demais atores do sistema internacional.
Admitindo-se que o peso do Brasil nas grandes questões de segurança estratégica global seja efetivamente reduzido, ou limitado aos poucos domínios nos quais fatores, dotações e iniciativas nacionais possam, realmente, fazer alguma diferença no plano mundial, cabe identificar, portanto, e de maneira realista, o terreno de atuação privilegiado do ponto de vista dos interesses brasileiros. Pode-se, obviamente, inserir o Brasil no grande jogo estratégico no plano global, quando se menciona a capacidade do país oferecer colaboração para a construção da chamada multipolaridade, com base nos instrumentos multilaterais atualmente disponíveis. O que se costuma apontar, neste terreno, é a candidatura do Brasil a uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, objetivo que parece constituir uma obsessão pessoal de alguns diplomatas e de vários militares, ademais de ser uma aspiração que frequente, habitualmente, as considerações de amplos setores da comunidade acadêmica, sempre com a justificativa que tal acesso contribuiria para “democratizar as relações internacionais” e para ampliar o grau de representatividade do sistema internacional”. Tal objetivo talvez mereça integrar uma grande estratégia brasileira, mas ele não parece apresentar relevância suficiente para ser considerado prioritário na presente conjuntura; fica na agenda e será tratado oportunamente.
 As prioridades têm a ver, portanto, com uma agenda na qual o Brasil possa atuar com pleno domínio de suas iniciativas, num contexto no qual essas iniciativas apresentem alguma diferença real no plano dos resultados. Tal contextualização nos remeteria, de imediato, ao entorno sul-americano e ao espaço econômico e político do hemisférico americano meridional, onde a presença e a atuação do Brasil encontram meios e condições para se exercer com força e impacto significativos. Não que do contexto regional sobrevenham, exatamente, ameaças à segurança e à estabilidade do Brasil, a não ser em aspectos marginais, stricto et lato sensi, como podem ser os problemas da droga, dos tráficos diversos, da lavagem de dinheiro em escala transnacional e outros crimes associados.
Imagina-se, por pura observação do entorno regional, que não existam, a partir dele, fatores relevantes que possam colocar em perigo a soberania e a integridade do Brasil enquanto nação. O que é absolutamente contrário a uma grande estratégia do Brasil no contexto regional – e mesmo alhures – seria, na verdade, representado por alianças espúrias com ditaduras anacrônicas, com caudilhos de opereta, com violadores dos direitos humanos e dos valores democráticos, ou uma tolerância indevida em relação a promotores de bizarras políticas econômicas e sociais, que possam afetar, por exemplo, os interesses econômicos nacionais no quadro de processos de integração, ao estilo do Mercosul ou esquemas similares.
Admitindo-se que o Brasil seja um país capitalista, ou seja, uma economia de mercado baseada mais na iniciativa privada do que no planejamento e indução estatais – embora isso não fique muito claro, em função do ativismo governamental em várias áreas de interesse relevante para o setor privado –, seria presumível supor que Estado e governo (representados por regras impessoais e por políticas públicas e por medidas setoriais) atuem sempre no sentido de garantir o tipo de ambiente no qual os negócios privados e sua projeção no entorno regional – bem como alguns exemplos seletivos de cooperação intergovernamental – possam ser estimulados e impulsionados com base em regras claras, estáveis, com respeito aos contratos e garantias associadas (de solução de controvérsias, por exemplo), de molde a produzir retornos ampliados ao país e a seus empreendedores.
Em face e a partir dessa constatação, que é absolutamente de senso comum, os responsáveis governamentais deveriam elaborar uma (ou mais de uma) estratégia – pequena ou grande, não importa muito neste momento – que seja capaz de definir a ação prioritária do Brasil na busca do atingimento dos objetivos tidos por relevantes nesse contexto. Toda estratégia implica um conceito unificador, ou mais de um conceito, também suscetível de definir o que se considera relevante na ação externa do país. Alguns conceitos vêm sendo aventados, nos últimos anos como capazes de estabelecer esse sentido prioritário. O conceito de “aliança estratégica”, por exemplo, foi um tanto quanto abusado no período recente, devendo ser usado com extrema parcimônia, a menos de descaracterizar totalmente seu alto significado político.
No âmbito regional, e numa incabível (para as tradições diplomáticas) atitude paternalista, foi também sugerido o conceito de “diplomacia da generosidade”, ou de “não indiferença”, ambos utilizados de forma bastante parcial, em função de critérios políticos, que por sua vez estavam marcados por inclinações claramente ideológicas. Não se trata do melhor tipo de relação que se pretende estabelecer com vizinhos ou  parceiros igualmente soberanos, dotados de autoestima condizente ou compatível com o estatuto de que gozam no concerto político regional. Procedeu-se, por outro lado, à criação de diversos organismos que duplicam as funções de outros existentes, apenas que com redução do escopo geográfico para afastar supostas “tutelas imperiais” e “intromissões” julgadas indevidas, já que a intenção era realmente a de impor uma nova orientação política a antigas alianças, num inacreditável novo determinismo geográfico auto-imposto, necessariamente redutor em suas possibilidades.
O Brasil tem todo interesse, como sociedade, como economia e como Estado cioso de sua segurança nacional, em ampliar, reforçar e consolidar o processo de integração regional, especificamente pela conformação de um amplo espaço de livre comércio no âmbito sul-americano e pela concretização de diversos tipos de vínculos físicos entre os países da região, nas áreas de transportes, comunicações, energia, defesa e preservação do meio ambiente, prevenção e minimização de desastres naturais, bem como em todos os outros terrenos da cooperação cultural e política.  Esse processo teria de ser feito com a perspectiva de resultados concretos, sem o investimento sobre os meios políticos que têm caracterizado as iniciativas retóricas no contexto sul-americano nos últimos anos. 
No plano mais geral da conduta política do país no âmbito multilateral, é também do interesse do Brasil colaborar com a manutenção de um ambiente aberto aos negócios, com fluxos comerciais e financeiros livres e desimpedidos de obstáculos indevidos ao pleno exercício das competitividades nacionais, no quadro de uma ordem política de pleno respeito ao direito internacional e, tanto quanto possível, isento de ameaças graves à paz e à segurança internacionais, o que implica plena adesão aos esquemas vigentes de não proliferação de armas de destruição em massa, bem como, sempre que cabível, contribuir para a contenção dos focos principais de instabilidade geopolítica. Essa é a visão positiva, ou otimista, da participação do Brasil num sistema caracterizado pelo cumprimento dos dispositivos substantivos da Carta das Nações Unidas e dos protocolos complementares relativos a seus capítulos principais, tanto no que concerne a paz e a segurança internacionais, quanto a cooperação multilateral e bilateral ao desenvolvimento.
Pelo lado negativo, ou não recomendado para uma estratégia de cooperação voluntária com os princípios fundamentais do direito internacional e de suas próprias disposições constitucionais, está claro que o Brasil deveria abster-se de aliar-se a “parceiros estratégicos” cujo perfil político ou econômico contrapõe-se a, ou não condiz, simplesmente, com aqueles valores e princípios, que são, basicamente, os de direitos humanos, democracia e pleno respeito às liberdades e os direitos individuais.
Não é preciso insistir na evidência de que apoiar ou aliar-se politicamente a ditaduras e regimes autoritários, sustentar Estados que cometem grosseiras violações dos direitos humanos, bem como abster-se de condenar tais atos, por razões de puro oportunismo político ou comercial, ou ainda, por adesão a ideologias anacrônicas, já condenadas pela história, tudo isso conforma uma deplorável renúncia aos próprios princípios constitucionais brasileiros, além de constituir notório desrespeito ao espírito e à letra de diversos instrumentos internacionais subscritos pelo Brasil.
Uma grande estratégia não precisa renunciar a determinados princípios éticos para existir e ser efetiva; mas a falta deles pode ser um indicador de que seus formuladores tampouco os defendem, se por acaso se aventurarem a conceber alguma.


[i] A END encontra-se disponível neste link do Ministério da Defesa: www.defesa.gov.br/projetosweb/estrategia; analisei o documento nestes dois artigos complementares: “Estratégia Nacional de Defesa: comentários dissidentes”, Meridiano 47 (n. 104, março de 2009, p. 5-9; link: http://sites.google.com/a/mundorama.net/mundorama/biblioteca/meridiano-47/sumariodaedicaono104-marco2009/Meridiano104.pdf?attredirects=0); “A Arte de Não Fazer a Guerra: novos comentários à Estratégia Nacional de Defesa”, Revista de Geopolítica (Ponta Grossa, PR; vol. 1, n. 2; Jul.-Dez. 2010, p. 5-20; link : http://www.revistageopolitica.com.br/ojs/ojs-2.2.3/index.php/rg/issue/view/2).
[ii] Cf. Ministério da Defesa, Livro Branco da Defesa; link: http://www.defesa.gov.br/projetosweb/livrobranco/lbdndigital/.
[iii] Ver, por exemplo, Celso Amorim, “Uma visão brasileira do panorama estratégico global”, Contexto Internacional (vol. 33, n. 3, 2011; link: http://www.scielo.br/pdf/cint/v33n2/a01v33n2.pdf).
[iv] A Universidade de Yale, por exemplo, possui, desde 2000, um programa de estudos e pesquisas sobre grande estratégia, do qual participam alguns grandes nomes da área, como os professores John Lewis Gaddis (autor de uma biografia autorizada de George Kennan), Paul Kennedy (o estudioso da ascensão e queda dos impérios) entre outros grandes nomes (ver informações sobre o programa: http://iss.yale.edu/grand-strategy-program).
[v] Cf. Paulo Roberto de Almeida, Os Primeiros Anos do Século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas (São Paulo: Paz e Terra, 2001).