Já que se anda falando tanto de "grande estratégia" para o país, eis aqui a minha, que deve ter sido elaborada em torno de 2012 ou 2013, depois integrada a este livro, de onde retiro, justamente o capítulo.
Paulo Roberto de Almeida
12. Uma grande estratégia
para o Brasil?, 255-267
Sumário do capítulo:
12. Uma grande estratégia para o Brasil?
12.1. O que
é uma grande estratégia?
12.2. Antes
da grande estratégia, breve descrição da situação do Brasil
12.3. O que
constituiria uma grande estratégia para o Brasil?
12.4.
Que tipo de estratégia deveria o Brasil seguir?
12. Uma grande estratégia para o Brasil?
12.1. O que
é uma grande estratégia?
O Brasil possui uma grande
estratégia nacional? Difícil dizer: não se tem registro de um documento único,
aberto e conhecido, tratando dos elementos substantivos do que se poderia
chamar de “ grandes objetivos nacionais”. Existem, obviamente, diferentes
textos – de natureza e origens muito diversas, como a Estratégia Nacional de
Defesa,[i]
que vincula esse conceito ao de desenvolvimento, ou o livro branco dessa mesma
área[ii]
– que poderiam ajudar a compor uma definição unificada dessa estratégia, ou que
poderiam integrar um documento dessa espécie; eventualmente, alguma autoridade
do setor pode, a título pessoal, reunir elementos atinentes à defesa nacional
com vistas a apresentar uma síntese de suas concepções a esse respeito,
inclusive sob o conceito de “estratégia”[iii],
embora isso não configure, exatamente, uma estratégia nacional mais ampla,
objetiva, organizada de maneira sistemática, em torno dessa problemática.[iv]
Não pretendo passar por
tal autoridade, mas invocando tão somente o direito de elaborar um exercício
intelectual, permito-me alinhar, nos parágrafos seguintes, algumas ideias que
imagino possam, ou devam compor um documento desse tipo. Registre-se,
preventivamente, que este ensaio não tem por título “A Grande Estratégia do
Brasil”, mas “Uma grande estratégia para o Brasil”, o que evidencia,
justamente, seu caráter exploratório. A questão básica, a ser respondida
inicialmente, antes de se tocar na situação brasileira, é a de saber o que é,
exatamente, uma grande estratégia.
Formalmente, uma
estratégia se articula em torno dos objetivos prioritários de um determinado
país, o que alternativamente se designa por “interesses nacionais”. Estes, no
caso do Brasil, constituíam uma preocupação constante da Escola Superior de
Guerra, nos seus bons tempos de preeminência intelectual. Definidos os grandes
objetivos nacionais, se trata, então, de examinar a equação permanente entre
meios e fins, ou seja, a capacitação do país em alcançar seus objetivos,
utilizando os meios e recursos disponíveis da forma mais eficiente possível.
E por que uma estratégia
teria de ser “grande”? Não existe nenhum motivo especial para isso: trata-se
apenas de um adjetivo, talvez exagerado, que visa, de certo modo, enfatizar o
aspecto crucial para o país na determinação de suas políticas mais essenciais;
neste caso, grande pode ser considerado como algo diferente de setorial (como
poderia ser apenas defesa ou desenvolvimento). Grandes países, com grande
interface ou exposição internacional, ou, ainda, países capazes de grande
projeção internacional, costumam ter grandes estratégias. Talvez seja o caso do
Brasil.
Os instrumentos clássicos
para combinar esses elementos materiais e os objetivos “ideais” costumam ser
identificados, na tradição clausewitziana, ou aroniana, como sendo uma
combinação sempre variável entre as armas da guerra e as armas da política, ou
seja: poder militar e diplomacia. Nada a ver, aqui, com qualquer teoria
idealista do poder nacional, e sim com a expressão sintética de uma realidade
imanente aos Estados: eles se relacionam com outros Estados, ou seja, no âmbito
internacional, com base nos agentes primários de ação externa: os soldados e os
diplomatas, atualmente (desde muito tempo complementados por uma fauna ainda
mais variada, composta de comerciantes, missionários, representantes de causas
globais no plano ambiental ou de direitos humanos, artistas, esportistas,
etc.).
Ouso afastar-me
parcialmente desse esquema clássico – o que já fiz em meu livro Os Primeiros Anos do Século XXI [v]
– para introduzir o elemento “economia” nessa equação; esse conceito,
entretanto, deve ser tomado num sentido amplo, ou seja: o fator econômico não
tem a ver apenas com as capacitações do país no terreno militar, tecnológico,
ou na sua projeção diplomática, mas adquire um status próprio, a ser
considerado enquanto tal, e não apenas como suporte de um ou outro daqueles
componentes clássicos. A grande estratégia, assim, é a realização dos objetivos
nacionais prioritários, por meio de uma adequada combinação de meios, ou
recursos, para atingir as finalidades pretendidas, e tanto os meios, quanto os
fins, não precisam estar definidos unicamente, ou principalmente, pelas armas e
pela diplomacia.
A justificativa da
inclusão do fator econômico na equação estratégica, no caso do Brasil, é a de
que, seja pelas características próprias do país no sistema político
internacional, seja pela configuração presente desse mesmo sistema, poder
militar e diplomacia já não podem atuar isoladamente de outros dados objetivos
da presença de um país no sistema internacional; este sistema é atualmente
caracterizado por uma interdependência econômica que não existia na época em
que os autores clássicos formularam suas considerações teóricas em torno do que
deveria ser a grande estratégia de um Estado. A globalização estava em recesso
ou não existia, de fato.
Feitas essas considerações
iniciais, vejamos o que conviria alinhar no campo dos principais elementos que
poderiam compor uma proposta de grande estratégia para o Brasil. Alerto que se
trata de uma elaboração inicial e preliminar, um mero exercício de reflexão;
como tal, ele não fará o exame de eventuais documentos já existentes em torno
dessa questão, mas, sim, se limitará a uma proposição de conceitos e de
argumentos que derivam, unicamente, de minha própria elaboração intelectual. O
foco, todavia, é, empiricamente, a situação brasileira, e não se cogita de
elaborar a estratégia “ideal” para o
Brasil, e sim uma estratégia
possível para o Brasil atual, nas circunstâncias presentes desta segunda década
do novo milênio.
1.2. Antes
da grande estratégia, breve descrição da situação do Brasil
Previamente ao exercício
propositivo, caberia delimitar o quadro conceitual do exercício, ele mesmo
precedido por uma operação de descarte de algumas utopias ou paranoias que
costumam frequentar este tipo de exercício. Essa contextualização e esses
descartes só podem ser feitos com base numa visão concreta do que é o Brasil
atualmente, e sobretudo de suas carências e limitações, em função, e a partir
das quais se trataria de traçar, justamente, a proposta de uma grande
estratégia.
Evidencie-se, por óbvio,
que não estamos falando de uma grande potência: o Brasil não tem, a despeito
das crenças de muitos, um papel relevante a cumprir no campo da paz e da
segurança internacionais. Ousaria dizer, inclusive, que o Brasil sequer
constitui uma potência média, uma vez que esse conceito implica certa
relevância regional, no sentido de determinar equilíbrios e grandes orientações
políticas e econômicas, sobre os quais essa “potência média” deveria, ou
poderia, exercer suas escolhas básicas, esperando que outros atores regionais
se alinhem a seus procedimentos e opções. Desse ponto de vista, a despeito de
constituir um grande território e uma grande economia no quadro regional
sul-americano, é evidente que o Brasil está longe de determinar as principais
orientações políticas ou econômicas que poderiam ser adotadas pelos demais
países da região; ele não é, sequer, um ator capaz de impor um quadro geopolítico
determinado, com base em suas capacitações primárias no campo militar, para
dentro ou para fora da região.
Mas o Brasil é um ator
relevante malgré lui, ou seja, possui
massa e presença de dimensões relevantes, embora não consiga determinar o curso
dos eventos e dos processos no subcontinente, mesmo mobilizando as armas de sua
política – a diplomacia – ou “ameaçando” (o que, aliás, seria difícil de
concretizar) recorrer à política das armas – para a qual lhe faltariam os
requisitos de base, justamente. Mesmo no terreno das proposições de política,
não se pode dizer que o Brasil tenha constituído um manancial de iniciativas
significativas, capazes de alterar, de maneira sensível, o peso e o papel da
região no contexto mundial.
E quais são os dados essenciais
em causa, isto é, aqueles atinentes às circunstâncias do Brasil?
O Brasil e a América do
Sul – esta a única porção do planeta em que o primeiro pode atuar de alguma
forma relevante – constituem “polos de poder” – se o conceito se aplica –
absolutamente marginais do ponto de vista da geopolítica mundial. Dispensável
dizer que o continente é um grande fornecedor de matérias primas e de energia
para o resto do mundo, um papel que, teoricamente, pode ser exercido em caráter
substitutivo por diversas outras regiões. O que poderia haver de exclusivo ao
Brasil e à América do Sul, que seria de fato suscetível de afetar os grandes
equilíbrios planetários, em quaisquer dos campos relevantes da geopolítica ou
da geoeconomia do mundo? À parte ser um continente constituído de apreciável
volume de pessoas, um contingente humano potencialmente consumidor de produtos
e serviços de maior valor agregado produzidos em outras partes do mundo, a
América do Sul fornece emigrantes para o hemisfério norte, produz quantidade apreciável
de drogas e uma parte da criminalidade internacional associada a esses fluxos,
mas que tampouco são exclusivos da região. Descarto, como não relevantes,
certas teorias econômicas em voga no continente desde os anos 1950, ainda em
uso aqui e ali, mas que não parecem ter contribuído para um processo dinâmico
de crescimento.
O Brasil, a despeito do
que se crê habitualmente, não é propriamente um país subdesenvolvido, ou sequer
“em desenvolvimento”, como se declara também: trata-se de um país “rico” (pelo
menos em recursos potenciais), mas com muitos pobres. Ele constitui uma
economia quase totalmente industrializada, embora lhe falte certo grau de
autonomia tecnológica suscetível de inserir essa economia nos grandes circuitos
da interdependência produtiva mundial. A esse respeito, não existe nenhum
impedimento técnico a que essa inserção se faça de modo bem sucedido, e em
consonância com os interesses de sua população: os fatores impeditivos se
situam inteiramente no âmbito das políticas econômicas nacionais, não no
terreno do potencial de base de seu sistema produtivo. O processo que,
atualmente, se classifica equivocadamente como de “desindustrialização” não
deriva de uma incapacidade própria do país a se desempenhar de modo
satisfatório no seu setor secundário – uma vez que o país possui empresários,
técnicos e dotação de fatores capazes de manter sua plena capacidade industrial
– mas deve ser atribuído, inteiramente, a políticas equivocadas de sua
governança econômica, políticas que dificultam, ou até obstaculizam, um ritmo
adequado de crescimento da produtividade e a manutenção da competividade de seu
setor industrial: uma vez corrigidas essas políticas, o país poderia voltar a
se exercer satisfatoriamente no terreno industrial, uma vez que possui requisitos
suficientes para isso (e que já o fez no passado).
Cabe descartar,
igualmente, concepções equivocadas quanto ao tipo de economia de mercado que o
Brasil constitui, ou que poderia vir a conhecer, caso ele corrija as políticas
atuais, no sentido de maior inserção nos circuitos da economia mundial. Alguns
acadêmicos ainda trabalham com conceitos absolutamente inadequados, como o de
capitalismo nacional, como se o Brasil pudesse ser outra coisa que uma economia
capitalista, e como se esta pudesse ser estreitamente nacional, como certas
mentalidades ainda insistem em recomendar. Daí derivam, justamente, propostas e
políticas em total descompasso com os requerimento de um processo de
desenvolvimento econômico e tecnológico plenamente inserido na modernidade da
economia de mercado globalizada, como é inevitável atualmente. Tentativas de
fazê-lo voltar ao tipo de stalinismo industrial praticado em outras épocas –
como durante o processo de acabamento de sua industrialização, nos anos
“gloriosos” do regime militar – são totalmente inadequadas ao estágio alcançado
por sua economia, e só podem fazê-la retroceder a estágios e práticas já
sepultados pela evolução “geológica” da economia planetária.
No plano da sua inserção
regional, por sua vez, carecem de coerência as propostas que vêm sendo
acompanhadas de iniciativas diplomáticas tendentes a conformar instituições e
programas exclusivamente sub-regionais, e que duplicam os mandatos e agendas
existentes em nível hemisférico ou mundial; essas iniciativas apenas traduzem o
anti-imperialismo infantil, e o antiamericanismo primário, das forças políticas
que determinaram, no curso da última década, a política regional e
internacional do país. O mesmo tipo de voluntarismo se manifestou em outras
instâncias e direções, como reuniões de cúpula bi-continentais, ampliando a
audiência do governo no plano internacional – inclusive em função dos altos
investimentos em publicidade centrada no protagonista principal –, mas com
escassos resultados práticos, ou duvidosos efeitos do ponto de vista daqueles
interesses nacionais valorizados nos círculos de planejamento estratégico.
Justamente, com respeito
aos chamados interesses nacionais, caberia revisar as antigas listas da Escola
Superior de Guerra, que começavam por enfatizar a defesa da soberania nacional,
a proteção do território pátrio, a preservação da independência e da
integridade do Estado, e continuavam proclamando objetivos grandiosos, embora
genéricos, como a promoção do desenvolvimento do país, a industrialização, a melhoria
das condições de vida da população e várias outras metas generosas. O trabalho
de conciliar o atingimento desses objetivos com os meios disponíveis podia ser
objeto de algum planejamento global ou setorial – como no Plano de Metas do
governo JK, ou nos diversos planos nacionais de desenvolvimento dos governos
militares – mas geralmente se visava mais alto do que as possibilidades reais,
e havia sempre o desejo de preservar as bases autônomas do desenvolvimento
nacional.
Deixando de lado,
portanto, propostas tradicionais relativas aos interesses nacionais
brasileiros, tentaremos traçar, na seção seguinte, os elementos constitutivos
de uma grande estratégia para o Brasil, nas circunstâncias dadas do sistema
internacional em vigor, e no contexto regional que é o seu. A ordem das
prioridades é puramente subjetiva, embora corresponda a uma interpretação
realista, o mais possível de caráter econômico, em torno das capacidades e
limitações brasileiras no quadro das circunstâncias referidas acima.
12.3. O que
constituiria uma grande estratégia para o Brasil?
A teoria realista das
relações internacionais, assim como os exemplos conhecidos, na prática, de
exercício da soberania nacional por Estados participantes do sistema
internacional costumam considerar a inviolabilidade dessa soberania e o pleno
controle dos instrumentos da defesa da integridade territorial e de segurança
do Estado como constituindo os elementos essenciais para a sobrevivência do
Estado e para o desenvolvimento normal de suas funções enquanto pessoa de
direito internacional, legitimamente reconhecido por seus pares do sistema e
inserido no quadro jurídico do mútuo reconhecimento de Estados membros da
comunidade das nações (princípios formalmente estabelecidos no âmbito da Carta
das Nações Unidas e seus instrumentos acessórios, de acesso livre e soberano
por esses Estados). Tanto as digressões teóricas, quanto as políticas dos
Estados envolvidas nesses exercícios tratam geralmente da política das grandes
potências e de seus conflitos parciais e globais, estes últimos até a
emergência da era nuclear (que reduziu, ou eliminou, o recurso aos
enfrentamentos globais como meio de “solução” de suas controvérsias).
Não é preciso ser um
grande especialista em relações internacionais, nem um teórico de qualquer
escola nessa área, para constatar que o Brasil – e, com ele, grande parte da
América Latina – é relativamente marginal nesse jogo de lutas entre grandes
Estados. De resto, refazendo o itinerário histórico do continente, no último
século, pode-se dizer que, depois do afastamento dos desafios nazista e
soviético à estabilidade e a qualquer papel político de relevo, da região, nos
grandes equilíbrios estratégicos, não existe, aparentemente, qualquer
protagonismo do país e da América do Sul que possa contar para a paz e a
segurança internacionais. Relevando-se os elementos negativos já destacados
anteriormente – drogas, emigração ilegal e crimes transnacionais associados – o
continente e o Brasil são praticamente neutros em qualquer jogo estratégico
entre grandes potências, cujos cenários tradicionais foram a Eurásia, o Oriente
Médio e a Ásia do Sul, agora deslocando-se para a Ásia Pacífico.
Em outros termos, o Brasil
não enfrenta nenhuma ameaça real à sua segurança e estabilidade estratégica,
nenhum desafio à sua soberania ou integridade territorial, nenhum risco de
sofrer um ataque de vizinhos ou de protagonistas extracontinentais. Como é
óbvio, os atores militares e alguns observadores geopolíticos sempre vão
apontar para ameaças potenciais ou latentes para as riquezas ainda não
exploradas da Amazônia verde e da Amazônia azul, bem como qualquer outro
constrangimento à nossa soberania que possa ser causado sob escusa de direitos
humanos, de ameaças a minorias indígenas ou questões de qualquer outra
natureza, como justificativa para a manutenção de um grande instrumento de
dissuasão e controle sobre a jurisdição do Estado brasileiro.
Muitos desses temores
derivam de paranoias sem fundamentação empírica ou são pretextos para legitimar
transferências orçamentárias e grandes investimentos em matéria de defesa, que
não encontram embasamento em cenários geopolíticos reais. Suas fontes ou
pretensas justificativas podem até ser possíveis, ou factíveis, ou seja, no
domínio das possibilidades, mas não são efetivos e, portanto, não são
prioritários. Pode ser patético, assim, assistir responsáveis políticos dessa
área afirmar que o Brasil precisa defender-se de eventuais ataques das grandes
potências, quando a referência implícita é feita contra potências capitalistas,
de fato contra os EUA: presume-se que se trata de uma deformação ideológica
temporária, a ser superada proximamente.
Esta é a razão para que o
autor deste ensaio atribua baixa prioridade a supostas ameaças à soberania
nacional como derivadas de fatores internacionais, ou vinculadas a forças
externas, no trabalho de construção de uma proposta para uma grande estratégia
brasileira. Não que elas inexistam, ou sejam irrelevantes, provavelmente mais
no contexto estritamente regional do que no âmbito global; mas elas não parecem
ser de suficiente monta para justificar uma estratégia inadaptada aos terrenos
e às circunstâncias nos quais deve atuar o Brasil, com vistas a cumprir seus
objetivos maiores de desenvolvimento econômico e social equilibrado e de plena
inserção na ordem internacional. Feitas estas considerações preliminares ao
objeto desta seção, vejamos, por fim, quais são os elementos de uma grande
estratégia para o Brasil.
Quais são, numa análise
realista, os componentes dessa grande estratégia? A resposta a esta questão
implica necessariamente identificar os principais desafios colocados ao Brasil
na realização dos supremos interesses nacionais. Quais são estes últimos,
portanto? Em plena transparência de propósitos, não parece restar dúvidas de
que o objetivo supremo da nação – ademais daquelas questões básicas de
soberania, que já consideramos não prioritárias – é o atingimento de uma etapa
superior no seu processo de desenvolvimento, de maneira a garantir bem estar e
vida digna a todos os brasileiros, como condição da plena integração do país ao
sistema internacional num status de potência capaz e plenamente dotada dos
meios de ação para atuar positivamente nesses sistema, em conformidade com os
propósitos da Carta das Nações Unidas e dos demais instrumentos da cooperação
internacional.
Assumidos esses
pressupostos empíricos, a questão real passa a ser: o sistema internacional, em
sua conformação atual (ou até em configurações passadas), ou em seus
desenvolvimentos previsíveis no futuro de médio e longo prazo, constitui um
obstáculo fundamental ao atingimento daqueles objetivos superiores da nação
brasileira? Do ponto de vista deste ensaísta, desde a assunção da independência
nacional, parece claro que não. Ainda que o sistema internacional,
especialmente no plano de sua estruturação econômica, possa ser acusado de
assimétrico, desigual, injusto ou até perverso (mas isso segundo alguns
intérpretes da ordem mundial), cabe lembrar foi nesse mesmo sistema que países
notoriamente dependentes, ou humilhados, no passado, conseguiram desenvolver-se
e assumir preeminência na ordem global. Tanto quanto o Brasil, os EUA foram
colônia, e tanto quanto o Japão, a China também foi humilhada por imperialistas
estrangeiros, durante certa conjuntura de sua história passada. Nada disso
impediu o segundo país (mesmo antes de sua independência política) e os dois
últimos de seguirem, em épocas e circunstâncias diversas, e por caminhos sempre
únicos e originais, processos notáveis de crescimento econômico, de progresso
material e de desenvolvimento social que os trouxeram ao primeiro plano das
relações internacionais, a despeito em alguns casos, de condições internas ou
externas eventualmente negativas e nas mais diferentes configurações da
economia mundial de mercado na qual esses países estiveram inseridos, em maior
ou menos grau, de formas distintas, ao longo dos últimos dois ou três séculos.
Que o Brasil não os tenha
seguido no caminho da preeminência mundial, na qual eles se encontram
inegavelmente inseridos atualmente, não pode ser atribuído, portanto, a
qualquer conformação estruturalmente negativa do sistema internacional, uma vez
que esse sistema – ou a “economia-mundo”, como preferem certos analistas – não
possui qualquer unidade central encarregada de, por um lado, distribuir
benesses para uns poucos e de, por outro lado, impor barreiras aos demais
membros da comunidade internacional. Ao contrário: o sistema internacional,
pelos estímulos dados pela via do comércio internacional – transmissor de
ideias e de tecnologias – e dos livres fluxos de capitais – sob diversas formas,
mas especialmente enquanto investimentos diretos –, bem como pela movimentação
de pessoas e de competências, tem sido totalmente benéfico ao Brasil, como à
maior parte dos países que conseguem se inserir nesse sistema, de maneira a
tirar vantagem de suas possibilidades e minimizar suas eventuais dificuldades
ou fatores negativos.
Retornando, pois, ao
núcleo central da construção de uma grande estratégia para o Brasil, e tomando
como pressuposto a seleção dos elementos verdadeiramente relevantes para a
superação dos atuais (e históricos) constrangimentos à elevação dos padrões
internos da nação, cabe indicar o fator primordial em função do qual o país não
conseguiu se alçar à condição de preeminência a que parecem aspirar suas elites
políticas desde a independência. Esse fator não é muito diferente da causa
principal das diferenças entre as diferentes nações do mundo, historicamente e
atualmente, que alguns creditam à exploração de nações ditas “periféricas”
pelas chamadas “potências centrais”, numa reprodução simplista de certas
teorias ultrapassadas ou simplesmente equivocadas desde o início.
Quais são, pois, as causas
das desigualdades entre as nações e, no caso brasileiro, responsáveis pelo
insuficiente desenvolvimento nacional, o que obstou a que o país alcançasse
seus objetivos primordiais? Elas se resumem a um conceito básico da ciência
econômica e absolutamente essencial nas práticas econômicas que acompanham o
itinerário das nações que integram o sistema internacional: o de produtividade.
Independentemente de fatores outros, como o estabelecimento de relações
“especiais” entre uns e outros participantes desse sistema, a partir das quais
possam ter resultado efeitos negativos, do ponto de vista do seu desempenho,
para algumas partes, cabe de fato confirmar que são os diferenciais de
produtividade entre as nações que estão na raiz de suas diferentes capacitações
no plano do potencial econômico, da inovação tecnológica, das contribuições
científicas e outros aspectos materiais ou culturais associados a esse
desempenho.
Obviamente que o conjunto
dos desafios brasileiros constitui um volume bem maior de problemas, e estes
são bem mais diversificados, do que a “mera” questão da produtividade e dos
obstáculos associados que se apresentam para a elevação de sua taxa de
crescimento. Mas esse conceito resume, de modo amplo, o núcleo central do
desafio brasileiro, tanto de caráter conjuntural – ou seja, base de eventual
esforço de crescimento –, quanto de ordem sistêmica (o que tem a ver, por
exemplo, com a acumulação de riqueza para enfrentar a curva demográfica do
envelhecimento da população, ao final do período de bônus demográfico). Não são
fáceis as soluções a esse grave problema da sociedade brasileira, e qualquer
processo de correção da trajetória até aqui seguida exigirá bem mais do que
simples medidas de políticas setoriais nas áreas mais relevantes, em especial
no que se refere ao capital humano e os vetores de inovação tecnológica.
O “saneamento” dessas
deficiências tomará, provavelmente, o espaço de uma geração inteira, ou mais,
sem que no entanto exista garantia de que os problemas seja de fato corrigidos,
na ausência de medidas apropriadas. E não se pode, ou não se deve esperar que o
país “resolva” seu problema de produtividade no isolamento, ou como tarefa
prévia, e descolada, das tarefas vinculadas aos diferentes processos de
inserção internacional: tudo isso se fará em paralelo e simultaneamente. Nada
disso impede que o eixo central da grande estratégia brasileira deva ser, de
fato, a elevação substancial dos ganhos de produtividade, sem o que o país não
poderá manter um ritmo sustentado de crescimento econômico, tendendo a
permanecer em um baixo patamar de desenvolvimento social, o que obviamente o
colocará em enormes dificuldades econômicas ao final do atual bônus
demográfico.
Essa questão,
absolutamente doméstica, totalmente interna, me parece constituir o pilar
central de qualquer grande estratégia brasileira, digna desse nome, para
superar os entraves que se colocam no caminho de sua, senão completa, pelo
menos maior preeminência nacional, regional e internacional. Apenas cumprindo
com tal qualificação, e consequente capacitação, poderá o Brasil exercer seus
talentos econômicos, diplomáticos e outros, na escala certamente pretendida por
suas elites políticas, militares e diplomáticas. Pode parecer incongruente que
a projeção externa do Brasil, e a defesa de seus interesses no plano
internacional – como geralmente se coloca como constituindo uma suposta
estratégia nacional –, possa depender de fatores eminentemente domésticos, e
prosaicamente internos, como são os vetores que influenciam a produtividade
nacional (a começar pelo capital humano); mas este é, de fato, o ponto mais
relevante para o exercício efetivo de sua projeção internacional e de outras
missões daí decorrentes. Aceita esta premissa, cabe então verificar os demais
elementos de uma grande estratégia nacional.
1.4. Que
tipo de estratégia deveria o Brasil seguir?
Embora o núcleo central de
“minha” grande estratégia seja constituído pelo problema da produtividade do
capital humano no Brasil, a visão tradicional da questão costuma privilegiar os
elementos diplomáticos, ou externos, da inserção do país no sistema
internacional. Sendo assim, vejamos como considerar o tipo de estratégia que o
Brasil talvez deva seguir nessa vertente. São muito variados os componentes de
uma grande estratégia em sua vertente externa, uma vez que eles não dependem
apenas das capacitações internas, mas devem se exercer num ambiente não
determinado, muitas vezes não suscetível de modificações a partir de uma ação
dada do Estado brasileiro, na sua interação com os demais atores do sistema
internacional.
Admitindo-se que o peso do
Brasil nas grandes questões de segurança estratégica global seja efetivamente
reduzido, ou limitado aos poucos domínios nos quais fatores, dotações e
iniciativas nacionais possam, realmente, fazer alguma diferença no plano
mundial, cabe identificar, portanto, e de maneira realista, o terreno de
atuação privilegiado do ponto de vista dos interesses brasileiros. Pode-se,
obviamente, inserir o Brasil no grande jogo estratégico no plano global, quando
se menciona a capacidade do país oferecer colaboração para a construção da
chamada multipolaridade, com base nos instrumentos multilaterais atualmente
disponíveis. O que se costuma apontar, neste terreno, é a candidatura do Brasil
a uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, objetivo que parece
constituir uma obsessão pessoal de alguns diplomatas e de vários militares,
ademais de ser uma aspiração que frequente, habitualmente, as considerações de
amplos setores da comunidade acadêmica, sempre com a justificativa que tal
acesso contribuiria para “democratizar as relações internacionais” e para
ampliar o grau de representatividade do sistema internacional”. Tal objetivo
talvez mereça integrar uma grande estratégia brasileira, mas ele não parece
apresentar relevância suficiente para ser considerado prioritário na presente
conjuntura; fica na agenda e será tratado oportunamente.
As prioridades têm a ver, portanto, com uma
agenda na qual o Brasil possa atuar com pleno domínio de suas iniciativas, num
contexto no qual essas iniciativas apresentem alguma diferença real no plano
dos resultados. Tal contextualização nos remeteria, de imediato, ao entorno
sul-americano e ao espaço econômico e político do hemisférico americano
meridional, onde a presença e a atuação do Brasil encontram meios e condições
para se exercer com força e impacto significativos. Não que do contexto
regional sobrevenham, exatamente, ameaças à segurança e à estabilidade do
Brasil, a não ser em aspectos marginais, stricto
et lato sensi, como podem ser os problemas da droga, dos tráficos diversos,
da lavagem de dinheiro em escala transnacional e outros crimes associados.
Imagina-se, por pura
observação do entorno regional, que não existam, a partir dele, fatores
relevantes que possam colocar em perigo a soberania e a integridade do Brasil
enquanto nação. O que é absolutamente contrário a uma grande estratégia do
Brasil no contexto regional – e mesmo alhures – seria, na verdade, representado
por alianças espúrias com ditaduras anacrônicas, com caudilhos de opereta, com
violadores dos direitos humanos e dos valores democráticos, ou uma tolerância
indevida em relação a promotores de bizarras políticas econômicas e sociais,
que possam afetar, por exemplo, os interesses econômicos nacionais no quadro de
processos de integração, ao estilo do Mercosul ou esquemas similares.
Admitindo-se que o Brasil
seja um país capitalista, ou seja, uma economia de mercado baseada mais na
iniciativa privada do que no planejamento e indução estatais – embora isso não
fique muito claro, em função do ativismo governamental em várias áreas de
interesse relevante para o setor privado –, seria presumível supor que Estado e
governo (representados por regras impessoais e por políticas públicas e por
medidas setoriais) atuem sempre no sentido de garantir o tipo de ambiente no
qual os negócios privados e sua projeção no entorno regional – bem como alguns
exemplos seletivos de cooperação intergovernamental – possam ser estimulados e
impulsionados com base em regras claras, estáveis, com respeito aos contratos e
garantias associadas (de solução de controvérsias, por exemplo), de molde a
produzir retornos ampliados ao país e a seus empreendedores.
Em face e a partir dessa
constatação, que é absolutamente de senso comum, os responsáveis governamentais
deveriam elaborar uma (ou mais de uma) estratégia – pequena ou grande, não
importa muito neste momento – que seja capaz de definir a ação prioritária do
Brasil na busca do atingimento dos objetivos tidos por relevantes nesse
contexto. Toda estratégia implica um conceito unificador, ou mais de um
conceito, também suscetível de definir o que se considera relevante na ação externa
do país. Alguns conceitos vêm sendo aventados, nos últimos anos como capazes de
estabelecer esse sentido prioritário. O conceito de “aliança estratégica”, por
exemplo, foi um tanto quanto abusado no período recente, devendo ser usado com
extrema parcimônia, a menos de descaracterizar totalmente seu alto significado
político.
No âmbito regional, e numa
incabível (para as tradições diplomáticas) atitude paternalista, foi também
sugerido o conceito de “diplomacia da generosidade”, ou de “não indiferença”,
ambos utilizados de forma bastante parcial, em função de critérios políticos,
que por sua vez estavam marcados por inclinações claramente ideológicas. Não se
trata do melhor tipo de relação que se pretende estabelecer com vizinhos ou parceiros igualmente soberanos, dotados de
autoestima condizente ou compatível com o estatuto de que gozam no concerto
político regional. Procedeu-se, por outro lado, à criação de diversos
organismos que duplicam as funções de outros existentes, apenas que com redução
do escopo geográfico para afastar supostas “tutelas imperiais” e “intromissões”
julgadas indevidas, já que a intenção era realmente a de impor uma nova
orientação política a antigas alianças, num inacreditável novo determinismo
geográfico auto-imposto, necessariamente redutor em suas possibilidades.
O Brasil tem todo
interesse, como sociedade, como economia e como Estado cioso de sua segurança
nacional, em ampliar, reforçar e consolidar o processo de integração regional,
especificamente pela conformação de um amplo espaço de livre comércio no âmbito
sul-americano e pela concretização de diversos tipos de vínculos físicos entre
os países da região, nas áreas de transportes, comunicações, energia, defesa e
preservação do meio ambiente, prevenção e minimização de desastres naturais,
bem como em todos os outros terrenos da cooperação cultural e política. Esse processo teria de ser feito com a
perspectiva de resultados concretos, sem o investimento sobre os meios
políticos que têm caracterizado as iniciativas retóricas no contexto
sul-americano nos últimos anos.
No plano mais geral da
conduta política do país no âmbito multilateral, é também do interesse do
Brasil colaborar com a manutenção de um ambiente aberto aos negócios, com
fluxos comerciais e financeiros livres e desimpedidos de obstáculos indevidos
ao pleno exercício das competitividades nacionais, no quadro de uma ordem
política de pleno respeito ao direito internacional e, tanto quanto possível,
isento de ameaças graves à paz e à segurança internacionais, o que implica
plena adesão aos esquemas vigentes de não proliferação de armas de destruição
em massa, bem como, sempre que cabível, contribuir para a contenção dos focos
principais de instabilidade geopolítica. Essa é a visão positiva, ou otimista,
da participação do Brasil num sistema caracterizado pelo cumprimento dos
dispositivos substantivos da Carta das Nações Unidas e dos protocolos
complementares relativos a seus capítulos principais, tanto no que concerne a
paz e a segurança internacionais, quanto a cooperação multilateral e bilateral
ao desenvolvimento.
Pelo lado negativo, ou não
recomendado para uma estratégia de cooperação voluntária com os princípios
fundamentais do direito internacional e de suas próprias disposições
constitucionais, está claro que o Brasil deveria abster-se de aliar-se a
“parceiros estratégicos” cujo perfil político ou econômico contrapõe-se a, ou
não condiz, simplesmente, com aqueles valores e princípios, que são,
basicamente, os de direitos humanos, democracia e pleno respeito às liberdades
e os direitos individuais.
Não é preciso insistir na
evidência de que apoiar ou aliar-se politicamente a ditaduras e regimes
autoritários, sustentar Estados que cometem grosseiras violações dos direitos
humanos, bem como abster-se de condenar tais atos, por razões de puro
oportunismo político ou comercial, ou ainda, por adesão a ideologias
anacrônicas, já condenadas pela história, tudo isso conforma uma deplorável
renúncia aos próprios princípios constitucionais brasileiros, além de constituir
notório desrespeito ao espírito e à letra de diversos instrumentos
internacionais subscritos pelo Brasil.
Uma grande estratégia não
precisa renunciar a determinados princípios éticos para existir e ser efetiva;
mas a falta deles pode ser um indicador de que seus formuladores tampouco os
defendem, se por acaso se aventurarem a conceber alguma.
[iv] A Universidade de Yale, por exemplo,
possui, desde 2000, um programa de estudos e pesquisas sobre grande estratégia,
do qual participam alguns grandes nomes da área, como os professores John Lewis
Gaddis (autor de uma biografia autorizada de George Kennan), Paul Kennedy (o
estudioso da ascensão e queda dos impérios) entre outros grandes nomes (ver
informações sobre o programa: http://iss.yale.edu/grand-strategy-program).
[v] Cf. Paulo Roberto de Almeida, Os Primeiros Anos do Século XXI: o Brasil e
as relações internacionais contemporâneas (São Paulo: Paz e Terra, 2001).