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sábado, 2 de dezembro de 2006

649) Uma reflexao pessoal sobre as relacoes entre Estado e governo

(que também pode ser lida como uma declaração de princípios)
Paulo Roberto de Almeida

As relações entre funcionários de carreira do Estado e os governos em vigor são sempre delicadas, uma vez que governos costumam solicitar adesões imediatas, em geral incondicionais, ao passo que Estados são entidades impessoais, aparentemente desprovidas de vontade própria, ainda que pautando-se por normas constitucionais mais ou menos permanentes. Os governos passam, o Estado fica, mas ele pode ser transformado pelo governo em vigor, se este último imprime uma ação de transformação estrutural das condições existentes ao início de seu mandato.
Funcionários de Estado devem ater-se, antes de mais nada, às normas constitucionais, tendo como diretrizes adicionais as leis gerais e os estatutos particulares que regem sua categoria ou profissão. Geralmente, mas nem sempre, os governos respeitam os estatutos próprios e os princípios que devem enquadrar as diferentes categorias de servidores do Estado, estabelecendo determinações que incidem mais sobre a conjuntura do que sobre a estrutura. Em alguns casos, governos pretendem não apenas transformar estruturalmente o Estado e a sociedade, mas também os regulamentos e as formas de atuação do Estado.
Desde que respaldada nas normas constitucionais em vigor e na vontade legítima da sociedade, tal como expressa pela via democrática das eleições, essa vontade transformista pode concorrer para a melhoria das condições de bem-estar da sociedade, pois se supõe que o governo encarna aquilo que em linguagem rousseauniana se chamaria “vontade geral”. A “vontade geral” é, contudo, algo tão difícil de ser definida quanto o chamado “interesse nacional”, suscetível de receber diferentes interpretações, tantas são as correntes políticas, os grupos sociais, os partidos em disputa pelo poder e outras configurações sociais que gravitam em torno do poder. Sim, antes de qualquer outra coisa, “vontade geral” e “interesse nacional” são basicamente definidos por quem detém o poder, não necessariamente em conclaves abertos ao conjunto da sociedade.
O moderno Estado democrático deveria ostentar um sistema de freios e contrapesos que impeça – ou pelo menos dificulte – sua manipulação por minorias partidárias que pretendem agir com base em “interesses peculiares” ou com base na “vontade particular” do grupo que ocasionalmente ocupa o governo. Tais são os papéis respectivos do parlamento e dos tribunais constitucionais, segundo o velho sistema do “equilíbrio de poderes”, ou segundo o moderno sistema – de inspiração anglo-saxã – dos checks and balances, que transformam toda vontade de alteração institucional em um delicado jogo de pressões e contra-pressões. Há que se atentar, também, para a necessária continuidade da ação do Estado, que poderia ficar comprometida caso a ação de um grupo detendo o poder temporariamente – isto é, exercendo o governo de forma legítima – busque alterar radicalmente políticas e orientações estabelecidas através de consensos anteriormente alcançados.
Pode-se dizer que as democracias modernas funcionam quase sempre segundo essa visão gradualista, qual seja, a de uma custosa negociação entre os grupos políticos representados no parlamento, seguida de uma lenta implementação das decisões alcançadas. A construção de consensos é tipica dos regimes parlamentaristas, baseados numa maioria mais ampla do corpo político e social, mas é menos típica nos regimes puramente presidencialistas, onde tendem a se desenvolver comportamentos cesaristas ou bonapartistas (isto é, com um apelo direto às massas). Neste caso, o carisma do líder político pode resultar num canal de comunicação direta deste com os eleitores, por cima e acima dos demais poderes, que encontram dificuldades para participar do processo decisório em bases rotineiras.
Tal tipo de situação também pode colocar desafios não convencionais aos funcionários de Estado, que podem ser chamados a implementar decisões que resultem, não de um processo gradual de consensus building, mas de uma decisão solitária do líder cesarista. Velhas normas e antigas tradições podem ser contestadas ou postas à prova nesse novo roteiro, o que coloca esses funcionários ante o dilema de aderir simplesmente à vontade do governo ou de buscar respaldo nas formas mais convencionais de atuação do Estado.
Não há uma resposta simples a esse dilema, pois ele implica em que o funcionário possa aferir se o processo decisório que conduziu a uma determinada tomada de decisão política está seguindo os canais institucionais consagrados ou se os novos procedimentos estão atropelando as normas e procedimentos do Estado. Em geral, a resposta é dada pela linha de menor resistência, que passa pela afirmação dos conhecidos princípios da hierarquia e da disciplina. Do funcionário de Estado se pede obediência aos ditames do governo, não necessariamente uma reflexão pessoal sobre os fundamentos da ação do governo. Esta última atitude é própria dos agentes políticos, não dos funcionários de carreira, aos quais se demanda obediência e aquiescências às ordens e determinações superiores, não uma contestação filosófica, ou prática, dessas determinações. A rigor, ao funcionário não se pede nem se requer reflexão própria, mas sim acatamento de decisão já tomada.
Quando o próprio funcionário é convertido em agente político, pode surgir algum conflito de consciência entre a antiga forma de procedimento coletivo – as burocracias estatais são sempre construções coletivas – e as novas condições de trabalho, que impõem adesão incontida e total ao poder do qual emana o seu novo cargo. Dele se espera, então, equilíbrio e ponderação na forma de conduzir sua ação.
Em que condições, nessas circunstâncias, pode o funcionário de Estado continuar a exibir independência de pensamento – e uma certa faculdade na propositura de novos cursos de ação – quando a autoridade legítima requer adesão pura e simples a decisões emanadas de uma fonte cesarista de poder? Não há respostas teóricas a esta questão, que exige uma reflexão de ordem essencialmente prática, em função das relações sociais, modos de atuação e poder de barganha respectivos dos agentes de Estado e de governo envolvidos num determinado processo decisório.
Minha própria ordem de prioridades tenderia a colocar esse processo decisório numa escala de preferências que parte da Nação, passa pelo Estado e, finalmente, desemboca no governo. Pragmaticamente, porém, sou também levado a reconhecer que os dois primeiros conceitos, os de Nação e Estado – assim como os de “vontade geral” e de “interesse nacional” –, são suficientemente vagos e arbitrários para abrigar todo tipo de postura em face de determinações governamentais. Em última instância tende a prevalecer o bom senso e uma certa capacidade de avaliação racional dos “custos de oportunidade” envolvidos em cada uma das decisões governamentais com as quais o funcionário de Estado pode ser confrontado.
Quero crer que a construção de um Estado “racional-legal” e a consolidação de uma democracia efetiva no Brasil já avançaram o suficiente como para permitir que funcionários de Estado – como o que aqui escreve – possam contribuir, de forma mais ou menos institucionalizada, para a tomada de decisões em sua esfera de atuação, independentemente de posturas mais ou menos marcadas pela vontade momentânea de alguma autoridade governamental. Ou estarei enganado?


Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 2 de dezembro de 2006
(pralmeida@mac.com; www.pralmeida.org)

2 comentários:

Anônimo disse...

Caro Paulo, seu texto sintetizou uma vaga impressão que sempre tive mas que nunca fui capaz de formular como você fez aqui neste blogger. Gostaria de colaborar com dois casos práticos e com a exposição da "praxis" brasileira (que é comum a outras democracias) que penso ilustrar seu texto. Sou funcionário de um Instituto de Pesquisas do Estado. Já fui professor em uma universidade federal (e já andei pelo meio privado). Há uma interessante prática naqueles dois tipos de órgãos que julgo constituirem bons "cases" para os conflitos que seu texto apresenta. Acho que no rito de escolha dos dirigentes naqueles órgãos, frequentemente surge esse "impasse democrático". Acredito nisso pelas seguintes razões. Após trabalhar bastante no meio privado, tendo voltado a ser professor numa universidade federal, deparei-me com o critério de escolha de um Chefe de Departamento. Pois bem: a eleição era direta. Não se cogitava experiência administrativa, habilidades interpessoais, nada disso. Muitas vezes até mesmo o número de artigos publicados ou de citações era um fator que contava de forma preponderante para a escolha da chefia. Eu achava que isso era sensato ou poderia ser explicado pela necessidade de independência intelectual pertinente ao meio universitário. Isto é, era bom ao grupo, sua função e papel que cumpriam na sociedade, que existissem certas prerrogativas, entre elas, a de eleger o próprio chefe. Mas sempre vi aí um conflito, na medida em que eramos funcionários públicos e que uma prestação de contas honesta de nossas atividades deveria ser proveniente de uma avaliação menos "culturalmente" viciada. Depois, ao passar a trabalhar num Instituto de Pesquisas, pude observar que a mesma prática existia por lá. Mas lá eu não esperava que a liberdade intelectual fosse um fator tão pertinente, mas que os resultados das pesquisas, que são artefatos com destino à sociedade como um todo (na forma de inovação tecnológica e etc.) é que fossem determinantes. Aqui a liberdade de expressão e pensamento deveriam cumprir um papel não tão proeminente quanto na universidade, mas parâmetros de administração mais ortodoxos tais como prazo, custo e qualidade, fossem utilizados pela administração. Qual não foi a minha surpresa ao descobrir que o "modus operandi" universitário estava impregnado até num Instituto de Pesquisa Tecnológica, sendo o próprio Diretor um entre os pesquisadores que se dispôs a gerir a organização (em troca de um DAS), sem nenhum curriculum administrativo (ortodoxo). Assim, o mesmo conflito está posto: uma vez que você permite que funcionários públicos possam escolher seus chefes, automaticamente está inserindo um forte componente político num órgão público que deveria cumprir funções muito bem definidas dentro da estrutura do Estado (Isso pode ocorrer inclusive quando o processo envolve "Comitês de Busca"). Não está se abrindo as portas nesses casos a uma verdadeira apropriação do Estado por uma burocracia (ainda que a mesma não se reconheça como tal)? É justificada uma gradação Universidade/Instituto de Pesquisas/ etc. no que se refere aos ritos de escolha de dirigentes destas organizações? Não estaria aí, no amadorismo da gestão, uma forte componente da ineficiência pública, na medida que vários gestores enxergam seus cargos como um elã a mais em seu CV, e não como um conjunto de compromissos com resultados?

Paulo Roberto de Almeida disse...

Meu caro Anônimo (sua anonimia me impede responder-lhe diretamente),
Agradeço seus comentários e partilho inteiramente sua opinião e argumentos sobre a situacao de certas instituições universitarias e de pesquisa. Convivo com esse meio e sei bem dos problemas enormes acumulados ao longo de décadas de "heterodoxia" (chamemos assim) no trabalho e nos procedimentos de seleção ou de "avaliação". Como tantas outras instituições públicas, as pequenas miserias materiais, a erosão moral, ou mesmo a desfaçatez e o laisser-aller se disseminam, perpetuam e se agravam.
Não tenho solucao para esse tipo de problema, a não ser um rápido recuo da esfera pública em favor de uma esfera de responsabilidades aferidas, que pode ser tanto privada quanto de administração autônoma, inclusive na forma de arrecadar recursos (quando as pessoas têm de batalhar por sua sobrevivência, aprendem a ser responsáveis).
Antes, o principal inimigo do Brasil era a saúva, agora eu acho que é o corporativismo...
O abraco do
Paulo Roberto de Almeida