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sábado, 19 de junho de 2010

Educacao brasileira: a tragedia continua

Dois artigos sobre esse drama brasileiro por dois especialistas da área.

Repetência e aprendizado
Naercio Menezes Filho
Valor Econômico, 18/6/2010

"Pesquisas mostram que a repetência é prejudicial tanto para os alunos como para a sociedade"
Naercio Menezes Filho é coordenador do Centro de Políticas Públicas do Insper e professor associado da FEA-USP. Artigo publicado no "Valor Econômico":

O Conselho Nacional de Educação está votando nesta semana uma proposta para acabar com a reprovação nos três primeiros anos do ensino fundamental nas escolas públicas brasileiras.

O objetivo é evitar que as crianças sejam punidas com a reprovação antes que elas tenham o tempo necessário para completar a primeira parte do seu aprendizado, principalmente agora que a entrada na escola acontece aos seis anos de idade. Essa proposta faz sentido? Será que o fim da repetência iria diminuir mais a qualidade da educação no Brasil?

A discussão sobre reprovação é antiga. Todos nós já ouvimos alguma história sobre a época em que as escolas públicas eram as melhores no Brasil. Na verdade, era mais fácil ter qualidade quando as escolas públicas atendiam apenas a elite da sociedade brasileira.

Em 1940, havia somente 3,5 milhões de alunos no ensino básico, para uma população de 41 milhões de pessoas, em sua maior parte composta de crianças e jovens. Hoje em dia há cerca de 40 milhões de alunos no ensino básico, para uma população de 190 milhões (uma taxa de 21%, para uma população bem mais velha, versus 8,5% em 1940).

Apesar da entrada maciça de novos alunos com nível sócio-econômico mais baixo, as escolas públicas tentaram manter seu nível de exigência. Isso fez a taxa de repetência aumentar fortemente, chegando a atingir 40% na primeira série. Os novos alunos não conseguiam fazer as provas, eram reprovados e tinham que cursar novamente a série. Muitos desistiam e saiam da escola.

Foi assim que, a partir da década de 80, surgiram os ciclos de progressão continuada, em que os alunos não podem ser reprovados por deficiências de aprendizado nas primeiras séries, apenas por faltas. Como resultado desses programas, a taxa de repetência hoje em dia gira torno de 20%, ainda elevada para os padrões mundiais (na Inglaterra, por exemplo, não existe repetência).

Várias pesquisas mostram que a repetência é prejudicial tanto para os alunos como para a sociedade. Altos índices de repetência fazem com que estados e municípios gastem recursos com alunos que cursam a mesma série por vários anos, ao invés de disponibilizar salas para alunos de ensino infantil e médio, que ainda não estão suficientemente atendidos.

Além disso, um estudo recente* comparou as taxas de abandono e de aprendizado nas escolas que adotam o regime de progressão continuada com relação às que mantém o regime seriado, em que os alunos reprovados são obrigados a repetir a série. O abandono é significativamente menor nas primeiras.

Como resultado desses programas, cerca de 800 mil alunos desistem de abandonar a escola todos os anos. A sociedade agradece, pois fora da escola esses jovens poderiam engajar-se em atividades ilícitas que causariam grandes perdas de bem-estar. Não adianta educar somente a elite.

Apesar desses efeitos positivos, o regime de ciclos é questionado em quase todas as eleições estaduais e municipais. Candidatos atribuem ao regime de ciclos a culpa pela péssima qualidade da educação no seu município e prometem abolir o programa. Pais acreditam que seus filhos aprendem pouco por causa da falta de repetência. Professores tampouco gostam do programa, pois perdem autoridade frente aos alunos. Mas será que os programas de ciclo são mesmo responsáveis pela baixa qualidade do ensino no Brasil?

Esse mesmo estudo avaliou o impacto da progressão continuada sobre a qualidade da educação. Os resultados mostram que na 4ª série não há efeitos significativos do programa sobre o aprendizado das crianças, mesmo após levarmos em conta fatores como a escolaridade e a renda dos pais.

Na 8ª série os alunos das escolas que adotam o regime de ciclos têm notas um pouco menores do que os que estudam sob o regime seriado. A diferença, entretanto, é de apenas 2%. O fato é que os alunos das escolas públicas brasileiras aprendem muito pouco, sejam elas seriadas ou de ciclo.

Pesquisas que acompanham alunos repetentes e aprovados ao longo do tempo mostram como uma diferença pequena de proficiência entre eles no ano inicial amplia-se dramaticamente um ano após a reprovação. A reprovação diminui a autoestima e a motivação do aluno, que perde o contato com seus antigos colegas. Além disso, os critérios de reprovação dos professores são bastante discutíveis. Estudos mostram que esses critérios nem sempre são baseados apenas no desempenho dos alunos, medido segundo critérios objetivos.

Assim, os programas de não repetência nas primeiras séries ajustam o fluxo de alunos de acordo com a idade correta, diminuem a evasão escolar e a desigualdade e tem impactos muito reduzidos sobre o aprendizado dos alunos. Qualquer análise de custo-benefício mostraria que a lei proposta seria altamente benéfica para a sociedade.

A culpa pela baixa qualidade da educação pública não é da falta de repetência. Ela é somente o "bode expiatório" de prefeitos e governadores que não conseguem mexer com os interesses corporativos que, esses sim, atrasam a educação brasileira.

* "Avaliando o impacto da progressão continuada sobre as taxas de rendimento e desempenho escolar no Brasil", por Menezes Filho, Vasconcellos, Werlang e Biondi (2009).

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Meritocracia nos sistemas de educação
Maria Alice Setúbal
O Estado de S.Paulo, 18/6/2010

"Um sistema educacional justo, além de garantir bons níveis médios de qualidade, deve também assegurar padrões mínimos de aprendizagem para todos os alunos, independentemente de suas particularidades socioculturais"
Maria Alice Setúbal é presidente do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária. Artigo publicado em "O Estado de SP":

A ampliação do debate da educação para diferentes setores da sociedade tem trazido à tona interpretações e contribuições diversas, com o mérito de envolver a sociedade na discussão de quais seriam os caminhos para que possamos alcançar uma educação de qualidade para todos.

Dentre essas análises, a ênfase nos baixos resultados educacionais medidos nas avaliações nacionais tem ocupado maior espaço na mídia, trazendo para o cerne da discussão a responsabilização da escola e dos professores pelos resultados da aprendizagem dos alunos e, como consequência, a implementação de políticas de incentivo e de premiação por resultados e pelo cumprimento de metas - a chamada meritocracia.

Como essa é uma questão controversa, é importante termos em conta as diferentes dimensões desse posicionamento. No Brasil, estamos longe de alcançar um patamar básico para todas as escolas, mesmo que estas pertençam a uma mesma rede.

Um sistema educacional justo, além de garantir bons níveis médios de qualidade, deve também assegurar padrões mínimos de aprendizagem para todos os alunos, independentemente de suas particularidades socioculturais.

Em nosso sistema educacional - marcado por desigualdades de partida -, o risco de um plano de incentivos aumentar o hiato educacional é grande. O sistema de bonificação a partir de metas pode gerar uma concorrência entre as escolas capaz de reforçar as diferenças entre elas.

As escolas lidam com realidades distintas, principalmente se considerarmos as localizadas nas regiões mais pobres das periferias dos grandes centros urbanos e que atendem a uma clientela de alta vulnerabilidade. Geralmente, essas escolas têm um corpo docente altamente instável e a própria infraestrutura escolar não oferece condições adequadas para o trabalho dos profissionais da educação.

É importante salientar que o sistema de incentivos - qualquer que seja - diferencia negativamente as escolas, porque provavelmente (a conferir) os professores passarão a procurar e se transferir para as escolas mais bem colocadas nas avaliações, com o objetivo de obter maiores chances de bônus ao final do ano.

Se essa situação vier a se comprovar como verdadeira, as escolas com maiores dificuldades ficarão relegadas, cada vez mais, a um corpo docente instável e com menor preparo, tirando de uma parcela significativa da população condições de acesso a uma educação de qualidade - o que poderá comprometer os nossos indicadores de desenvolvimento e de combate à pobreza.

Obviamente, não quero defender, aqui, o professor despreparado e, principalmente, não comprometido com seus alunos. Minha intenção é colocar as diferentes dimensões de uma questão que me parece central no momento atual do debate educacional brasileiro.

Os resultados do Plano Nacional de Educação que enfatizam o não-cumprimento de metas básicas relativas à qualidade do sistema reforçam a importância de se considerar que a gestão da educação tem sentido apenas em função de um projeto pedagógico que organize as atividades de ensino e de aprendizagem dentro da própria escola.

Responsabilização implica colocar não apenas o diretor da escola, mas também o professor no centro das políticas educacionais, por meio da valorização da profissão, da capacitação continuada e do suporte didático para o seu trabalho na sala de aula. Assim, a responsabilização tem que ver com os resultados da escola e também com as políticas educacionais da rede que deem suporte aos resultados. Deve ser uma via de mão dupla.

A responsabilização e o sistema de premiação pelo cumprimento de metas - quaisquer que sejam - têm de ter como limite e eixo central de implementação as questões de equidade e das desigualdades sociais. Nesse sentido, é fundamental pensar políticas de ação afirmativa que ofereçam condições efetivas para que as escolas de mais baixo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) possam atuar dentro de suas redes em direção à melhoria da qualidade do ensino.

Não existe uma receita única, mas várias propostas norteadas pela equidade já estão em andamento em algumas redes de educação. Entre elas, incentivos para os professores permanecerem na mesma escola, combate ao absenteísmo, respeito ao tempo escolar, programas de reforço escolar, aceleração da aprendizagem, estagiários e professores auxiliares, etc.

É preciso articular essas diferentes experiências com as propostas de premiação e incentivo, de modo que se criem condições de equidade, para não cairmos no grande equívoco de deixar para trás uma parcela significativa da população, acarretando um alto custo no médio e no longo prazos nas nossas pretensões de desenvolvimento.

O caminho não é simples e exige um esforço de todos, tanto dos governos quanto da sociedade civil e dos pais de alunos, no sentido de buscarmos uma visão de educação mais sistêmica, ajustada às necessidades do mundo moderno.

Precisamos construir uma política de educação que leve em conta as questões de gestão e, portanto, de seus mecanismos institucionais, de forma simultânea aos aspectos pedagógicos - em que o professor ocupa um lugar central. E, finalmente, o esforço nacional pela melhoria da qualidade da educação passa também pela articulação de políticas sociais de forma integrada à escola.

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