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terça-feira, 29 de junho de 2010

Diplomacia de Lula - Rubens Ricupero

À sombra de de Gaulle: uma diplomacia carismática e intransferível
A política externa do governo Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010)

Rubens Ricupero
Revista Novos Estudos CEBRAP, n. 87, julho 2010

O modelo ao qual mais se assemelha a diplomacia de Lula é o do general de Gaulle, embora muito provavelmente a semelhança não seja consciente e sim, como se dizia nos filmes antigos, ela se deva à mera coincidência.
De fato, a política externa brasileira dos últimos oito anos possui as seguintes características que foram tradicionalmente associadas à diplomacia gaullista:

1. É fortemente pessoal e carismática, inseparável mesmo da biografia e da personalidade do chefe de Estado.
2. Mais do que ditada por ideologias, é, acima de tudo, intensamente nacionalista, buscando aproveitar oportunidades de acumular prestígio internacional mediante o reconhecimento externo da grandeza do Brasil e de sua aspiração de igualdade com as maiores potências.
3. Sua principal marca externa é a contestação ao padrão de hegemonia do sistema internacional simbolizado pelos Estados Unidos e os outros membros permanentes do Conselho de Segurança, em relação aos quais a diplomacia brasileira manifesta constante independência, não hesitando em patentear de público suas divergências.
4. Busca estimular alianças e arranjos que se oponham ao sistema de poder preponderante como se constata na aproximação com a Turquia no acordo sobre o enriquecimento do urânio iraniano, na chamada “parceria estratégica” com o Irã, expressão repetida em relação à França de Sarkozy (os armamentos), a China, a Rússia, a África do Sul, o grupo dos BRICs.
5. Exprime-se, como no exemplo gaullista, no intento de criar uma zona de influência exclusiva no perímetro mais próximo da América do Sul, com exclusão dos Estados Unidos, como tentava fazer de Gaulle na Europa Ocidental.
6. O estilo é crítico e não-consensual, lembrando os tempos de Jânio Quadros, do qual afirmava seu chanceler, Afonso Arinos, que o presidente acertava no atacado e errava no varejo. Os exemplos abundam: as declarações em Cuba sobre a greve de fome de prisioneiros de consciência; a crise financeira de responsabilidade de “louros de olhos azuis”; as acusações de fraude nas eleições iranianas comparadas à briga de torcidas no Fla-Flu e assim por diante. Internamente acentua a ruptura, não a continuidade, se vincula claramente a uma facção partidária e a uma corrente ideológica, não se preocupando em edificar um consenso nacional em torno de temas de interesse nacional perdurável.
7. Demonstra relativa indiferença pela falta de resultados econômicos e comerciais tangíveis e imediatos em negociações e acordos bilaterais ou regionais, dispondo-se a sacrificar interesses e direitos materiais a objetivos políticos no relacionamento com vizinhos e terceiros em geral (gás da Bolívia, reivindicações paraguaias, medidas protecionistas argentinas, prioridade exclusiva na negociação multilateral da Organização Mundial de Comércio).
8. Revela escassa sensibilidade aos temas clássicos do idealismo e dos valores morais nas relações internacionais: direitos humanos, defesa da democracia, interferência internacional para impedir o genocídio e crimes contra a humanidade, o esforço de evitar a não-proliferação nuclear, preocupação com os efeitos planetários e globais da mudança climática.
9. Afasta-se do ideal republicano de institucionalização e impessoalidade, aproximando-se dos modelos carismáticos de liderança personalizada típicos da América Latina, exceções raras em democracias maduras (como a exceção gaullista).
Partindo das características esquemáticas acima resumidas, tentarei captar as linhas gerais que conferem inconfundível perfil à diplomacia desenvolvida durante o arco de tempo que cobre quase a inteira primeira década do século XXI.

1) Diplomacia pessoal e carismática
O apogeu a que atingiu o prestígio do Brasil no mundo não se deve exclusivamente a um só governante ou a um único fator. Ele resulta de uma conjunção excepcional de oportunidades externas favoráveis com uma situação interna de estabilidade política e econômica sem precedentes. O esforço cumulativo de sucessivos governos desde o retorno do país à ordem constitucional democrática foi responsável por muitas das razões da percepção favorável ao Brasil e que, embora recentes, tendem a se tornar estruturais: a estabilidade macroeconômica; a expansão do mercado interno de consumo; a consolidação do regime democrático; a alternância normal no poder, sem violência, de correntes e partidos diferentes, mas quase sempre próximos do centro do espectro ideológico; a moderação e o pluralismo da vida política, religiosa, cultural; o avanço em algumas reformas sociais; o desaparecimento da ameaça de golpes militares e a subordinação das Forças Armadas ao poder civil; a baixa intensidade de violências ou tensões raciais, religiosas, culturais.
Outras são conjunturais ou pessoais. Fernando Henrique Cardoso desfrutou de considerável prestígio e admiração em razão de suas realizações como intelectual, de sua decisiva contribuição à tarefa de estabilização da economia, da relação estreita que havia estabelecido com estadistas como Clinton e Blair. No período do governo atual ocorreram fatos novos ou se acentuaram tendências anteriores que atuaram todas no sentido de reforçar a imagem positiva do país. A descoberta da gigantesca reserva petrolífera do pré-sal seguramente aumentou a importância estratégica e as perspectivas econômicas futuras do Brasil. Da mesma forma agiram a aceleração do crescimento, o relativo êxito com que se enfrentou a crise financeira, as referências elogiosas de organizações internacionais a programas sociais como o bolsa-família, a atenuação da pobreza e da desigualdade.
O presidente Lula potencializou e multiplicou essas condições propícias ao simbolizar de certo modo, pela sua história pessoal, o exemplo de ascensão do país como um todo. Sua identificação com as grandes causas sociais de luta contra a fome e a pobreza, o carisma de personalidade autoconfiante, a vocação inata à negociação foram elementos adicionais para reforçar a percepção externa da emergência do Brasil como ator global.
Contudo, por excesso de protagonismo o sucesso indiscutível da diplomacia presidencial se colou de forma tão inseparável ao carisma do presidente Lula que se tornou demasiado personalista e intransferível. Na antevéspera da sucessão, o debate sobre a orientação internacional que mais convém ao Brasil e não apenas a um projeto de poder pessoal ou de uma facção não pode evitar o exame dessas alegações. É a partir delas que se poderia separar, na linha de ação atualmente seguida, o que reflete as realidades e os interesses do país como um todo do que não passaria do efeito real, mas efêmero, da sedução exercida por uma liderança carismática desacompanhada de resultados objetivos e concretos.

2) Projeção nacional e busca de prestígio
A evolução nos anos recentes do contexto político e econômico internacional se mostrou extremamente propícia à aspiração de países como o Brasil de adotar e executar uma política externa de crescente afirmação.
Foi justamente nessa primeira década do século que se assistiu, em termos políticos globais, ao aparecimento de espaço favorável à afirmação de um novo policentrismo, isto é, à possibilidade de que atores de poder intermediário (Brasil, Índia, África do Sul, Turquia) tomem iniciativas autônomas em temas globais antes reservados às potências preponderantes (os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU: EUA, China, Rússia, Reino Unido, França). O policentrismo se viabilizou aos poucos, à medida que o unilateralismo da estratégia de George W. Bush na resposta aos atentados de Onze de Setembro, sobretudo a invasão do Iraque, a doutrina do “preemptive attack” e do Eixo do Mal, se revelaram incapazes de resolver com êxito o engajamento militar não apenas no Iraque, mas também no Afeganistão. O conseqüente enfraquecimento relativo do poder e do prestígio americanos sofreu o desgaste adicional da crise econômico-financeira, levando à aceitação pelo próprio governo Obama dessa alteração na realidade internacional.
O cenário econômico foi marcado no início (2003-2008) por fase sem precedentes de expansão da economia mundial (preços das commodities, liquidez financeira, juros baixos), seguida por crise financeira aguda que desorganizou e debilitou de preferência as economias ocidentais de capitalismo avançado, reforçando os efeitos da emergência econômica da China e precipitando a aceitação do G-20 como instância substituta do G-7 na coordenação da economia global.
Na América Latina, registra-se um vazio de liderança, provocado pela acentuação do desvio da atenção dos EUA para outras regiões prioritárias do ponto de vista de segurança, em particular o Oriente Médio e a Ásia e pelo apagamento temporário do México e da Argentina. Ao mesmo tempo, aumentaram em intensidade as divergências e a heterogeneidade de regimes em decorrência das experiências radicais de refundação encarnadas na Venezuela de Chávez, na Bolívia de Morales e no Equador de Correa, complicando as perspectivas de efetiva integração econômica ou de colaboração político-estratégica.
As duas primeiras tendências se reforçaram uma à outra, abrindo possibilidades inéditas para atores intermediários favorecidos por condições de estabilidade político-econômica e dotados de capacidade de formulação e iniciativa diplomáticas como o Brasil no começo de 2003. Superados os solavancos econômicos iniciais, o governo Lula foi o afortunado herdeiro de uma Nova República que havia consolidado a democracia de massas, a coesão social interna e a estabilidade dos horizontes econômicos.
Inspirada pelo desejo de aproveitar as oportunidades surgidas, sobretudo em âmbito global, a política externa do governo Lula se desdobrou desde o início ao longo de quatro eixos principais:
1) a obtenção do reconhecimento do Brasil como ator político global de primeira ordem no sistema internacional policêntrico em formação, o que normalmente se vem traduzindo pela busca de um posto permanente no Conselho de Segurança da ONU, mas pode assumir eventualmente outras modalidades de realização como a participação nos recém-criados agrupamentos do G-20, BRICs e IBAS.
2) A consolidação de condições econômicas internacionais que favoreçam o desenvolvimento a partir das vantagens comparativas brasileiras concentradas na agricultura, objetivo que se expressa primordialmente na conclusão da Rodada Doha da OMC.
3) A dimensão reforçada emprestada às relações Sul-Sul, ensejada naturalmente pela forte e visível emergência da China, Índia, África do Sul, pela retomada do crescimento africano e expressa na proliferação de foros de contactos, alguns superpostos aos gerais (IBAS, BRICs em parte), outros originais, (AFRAS, ASPA, Brasil-CARICOM etc).
4) A edificação de espaço político-estratégico e econômico-comercial de composição exclusiva sul-americana (implicitamente de preponderância brasileira no resultado, se não na intenção), a partir da expansão gradual do MERCOSUL.
Dependendo do tema o balanço dos resultados alcançados pela diplomacia mostra que os avanços variam, mas, talvez com exceção do mais fácil, o eixo Sul-Sul, em nenhum dos casos os objetivos foram realmente atingidos. Nem sempre, contudo, a frustração das metas se deve a culpas e deficiências da política exterior brasileira. De forma um tanto simplificada pode-se afirmar que nos dois primeiros eixos, o Brasil quer, mas não pode; no da América do Sul, o governo pode, mas não quer.
Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas: Na Organização das Nações Unidas e na Organização Mundial de Comércio, a capacidade brasileira de influenciar os acontecimentos não é suficiente para resolver os impasses. Por mais que o governo se esforce, não se logrou até agora produzir consenso para reformar o Conselho de Segurança, nem para concluir a Rodada Doha, quanto mais para fazê-lo de acordo com os interesses do Brasil. Quer dizer: é mais um problema de insuficiência de poder ou vontade política, não só do Brasil, mas dos demais, que de falta de política apropriada de parte da diplomacia nacional.
Isso não significa que não se haja feito nada. Ao contrário, em ambos os foros a atuação brasileira nos havia posicionado até recentemente de maneira favorável a tirar bom partido de eventual retorno de condições propícias a um avanço. É inegável que o Brasil conquistou neste momento uma situação diferenciada em relação a outros aspirantes latino-americanos como o México e a Argentina, distanciando-se como o favorito para ocupar uma cadeira que vier acaso a ser destinada à América Latina. Reflexo principalmente do próprio crescimento econômico e estabilidade brasileiras, a percepção diferenciada deve ser também creditada ao ativismo e senso de oportunidade da atual política externa.
As negociações na Organização Mundial de Comércio (OMC): Se houve, portanto, diferenças inegáveis em relação ao governo anterior na ênfase dada ao Conselho de Segurança, bem como nas oportunidades antes inexistentes sobre agrupamentos que só surgiram agora como o G-20, os BRICs, e outros, existe nas negociações da OMC muito mais continuidade do que mudança na linha negociadora seguida pelos governos brasileiros ao longo de muitos anos, primeiro no GATT, mais tarde na sua sucessora, a Organização Mundial de Comércio. Mesmo as eventuais alterações se afiguram quase sempre desdobramentos naturais impostos por novas fases da Rodada Doha, originando-se nos governos passados muitas das posições e alianças utilizadas na OMC.
O recurso à abertura de contenciosos exemplares como o dos subsídios ao algodão contra os Estados Unidos (posteriormente contra os subsídios da União Européia ao açúcar) é uma boa ilustração da continuidade de política de Estado, pois havia sido iniciado pelo governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. Ademais, data igualmente da administração do ministro Celso Lafer a decisão de estabelecer na estrutura do Itamaraty um setor de contencioso provido dos recursos capazes de empreender uma ação de extraordinária complexidade técnica e jurídica como foi a dessa indiscutível vitória da diplomacia comercial brasileira.
Outro exemplo da continuidade básica na política do Brasil nas negociações comerciais multilaterais é o da criação do Grupo dos Vinte da OMC, inovação tática que se deveu à iniciativa, acolhida pelo chanceler Celso Amorim, do então embaixador do Brasil na OMC, Luiz Felipe de Seixas Corrêa, que havia sido justamente o secretário-geral do Itamaraty na gestão anterior, do ministro Lafer.

3) Contestação da hegemonia e afirmação da independência
O Brasil há muito tempo se empenha numa linha diplomática que favorece a emergência de um sistema decisório mundial mais equilibrado e multipolar, ao mesmo tempo em que defende ciosamente a autonomia e independência de suas opções. O que tem variado no tempo é o estilo mais ou menos construtivo dessa postura. A evolução do atual governo registra uma tendência gradual a um discurso acentuadamente mais militante e crítico em temas como o do impasse das negociações da Rodada Doha, do comportamento norte-americano diante do golpe de Honduras, do acordo militar entre os Estados Unidos e a Colômbia e, de modo incalculavelmente mais importante, na questão do programa nuclear iraniano.
A recente guinada da atitude brasileira em relação a um regime como o de Teerã, objeto de sucessivas sanções do Conselho de Segurança, conduziu o Brasil perigosamente perto de uma rota de colisão com os Estados Unidos em dois assuntos correlatos de importância crucial para o governo Obama: a legitimação de regime recém-saído de eleições contestadas e a não-proliferação nuclear, uma das prioridades principais da nova Administração. Ao aceitar a troca de visitas no mais alto nível com nação geralmente acusada de desafiar as sanções, violar a democracia e os direitos humanos, negar o Holocausto e tentar adquirir armas atômicas, contrariando o Tratado de Não-Proliferação Nuclear, o país tomou decisão de implicações negativas junto a uma parcela importante e influente da opinião pública americana e mundial. Não se percebe bem quais os ganhos que a diplomacia brasileira esperar colher de iniciativa que se reveste de alguns aspectos brilhantes como jogada diplomática, mas que arrisca deixar um saldo pesado de ressentimentos e desconfianças.
O acordo com o Irã, mediado junto com a Turquia, teria sido um passo relevante, talvez até decisivo, para valorizar a postura brasileira (e turca), caso tivesse sido coordenado e harmonizado com o grupo de “Cinco mais Um” (os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança mais a Alemanha). Para isso, ele deveria ter sido precedido e acompanhado de consultas a esses países, dos quais teria de depender a implementação do acordo no Conselho. Ficou evidente, contudo, pela reação dos integrantes do grupo, que o resultado das tratativas em Teerã apareceu como um fato consumado a ser imposto aos demais, já que a solução negociada deixou de cobrir pontos vitais para dissipar a desconfiança. Ademais, a própria atmosfera de triunfo desportivo que cercou a assinatura na capital do Irã, com os patrocinadores erguendo os braços em sinal de vitória, realçou no gesto os aspectos de desafio, não de conciliação, não contribuindo naturalmente para fazer apreciar o acordo pelos destinatários da manobra.
O episódio revela, ao mesmo tempo, o potencial e os limites hoje existentes para a afirmação de atores intermediários e a lição a extrair do ocorrido é que o potencial terá possibilidades maiores de se traduzir em frutos concretos na medida em que as iniciativas assumirem natureza mais construtiva. O mérito do esforço brasileiro permanece, mas amputado do êxito completo que se poderia haver esperado, deixando até rescaldos de má vontade e suspeitas que poderão complicar o atendimento das aspirações nacionais ao Conselho de Segurança.
Os resultados indecisos da empresa aconselhariam no futuro escolher com critério cuidadoso as oportunidades de atuar. Convém sempre avaliar o balanço de custos e benefícios potenciais, esforçando-se a agir de maneira cooperativa com outros atores, de modo discreto, sem excessos ou jactâncias geradoras de resistências e reações hostis.
Essa, aliás, deve ser a linha de orientação a ser seguida nos trabalhos do Conselho de Segurança, no seio do qual o Brasil deve se firmar pelos méritos de uma diplomacia que represente uma força de moderação e equilíbrio, de conciliação e aproximação de adversários. Sem ansiedades ou ativismos desnecessários, essa é a melhor postura para assegurar que o nome do Brasil se imponha consensualmente como aspirante irrecusável no processo de tornar o Conselho mais representativo das novas realidades internacionais.

4) Encorajamento a alianças e grupos alternativos
Os novos grupos de coordenação diplomática: Os esforços de articular agrupamentos diplomáticos inéditos com a Rússia, a Índia e a China (BRICs) ou com a Índia e a África do Sul (IBAS) oferecem a vantagem do fato consumado: pelo próprio peso específico, sem qualquer necessidade de delegação dos outros, o Brasil tornou-se efetivamente o representante da América Latina nesses grupos. Não por acaso, eles reúnem os membros permanentes do Conselho de Segurança (China e Rússia) e os aspirantes a essa posição que têm em comum a circunstância de não serem aliados dos Estados Unidos na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Seria uma espécie de clube dos “candidatos naturais” ao reconhecimento de um status internacional mais elevado em cada um dos três continentes: Índia (Ásia), África do Sul (África) e Brasil (América Latina). Os foros Sul-Sul servem para realçar que o Brasil é o ator mais “global” entre os latino-americanos, muitos dos quais confinados a uma diplomacia meramente regional.
O desafio que o Brasil terá no futuro de superar consistirá em contribuir para formular uma plataforma de ação conjunta que unifique o comportamento de países de interesses tão heterogêneos, condição para que aportem algum valor adicional ao que já vem sendo feito pelo G-20. Todos esses grupos de geometria variável são expressão do mesmo fenômeno: a procura por instituições e mecanismos de coordenação e de governança global, diante do bloqueio da possibilidade de reforma dentro do processo legitimador por excelência da Carta da ONU, como seria ideal e desejável. Até o presente, no entanto, esses agrupamentos não se mostraram capazes de ir além de documentos declaratórios genéricos, sem impacto perceptível naquilo que seria sua finalidade natural: conseguir que os quatro BRICs atuem em uníssono, com uma plataforma de ação comum, no aprimoramento da governança global.
O Grupo dos 20: Essa tarefa tem ficado virtualmente por conta do G-20, cuja emergência como instância política suprema de coordenação macroeconômica foi, sem dúvida, uma das mais impressionantes transformações da ordem internacional dos últimos anos. A incorporação súbita de novos atores a um processo decisório até então protegido com exclusividade pelas grandes economias avançadas representou, ao mesmo tempo, a imposição de uma exigência nascida da crise financeira mundial e o reconhecimento de modificação na correlação das forças econômicas que já estava em curso. Para o Brasil o salto foi ainda mais significativo por nos habilitar a aceder ao âmbito das grandes decisões financeiras e monetárias a que antes só comparecíamos como réus de moratórias e atrasos de pagamento.
Em estreita articulação com os demais BRICs, o Brasil se empenhou no seio do grupo em contribuir para proporcionar aos países emergentes maiores poderes e responsabilidades em todas as instâncias deliberativas na área monetária e financeira. Esse esforço visou não só as instituições de Bretton Woods, mas também a incorporação dos emergentes no Foro de Estabilidade Financeira (FSF), transformado em Conselho de Estabilidade Financeira (FSB) de Basiléia, assim como em outros foros que congregam supervisores e reguladores do sistema financeiro.
Uma iniciativa de implicações relevantes foi a decisão dos BRICs de conquistarem virtual poder de veto (blocking minority) ao fazerem um aporte de US$ 92 bilhões (US$ 50 bi da China e US$ 14 bi de cada um dos três, Brasil, Índia e Rússia), mais de 15% do total, à nova estrutura criada para socorrer as economias em crise, o chamado New Arrangements to Borrow (NAB). O poder desse modo adquirido ganha relevo particular quando se considera que o volume da facilidade criada (US$ 590 bi) é mais do que o dobro do que os US$ 250 bi das quotas regulares/capital do Fundo Monetário Internacional.
A questão que ora se coloca é de assegurar a contínua relevância do G-20 como foro central das decisões no momento, oxalá próximo, em que as crises atuais, concentradas na Europa, tiverem afinal sido superadas. Isso significa que o Brasil se deve preparar a contribuir com competência intelectual e técnica à tarefa de edificar uma economia nova, menos sujeita a crises catastróficas periódicas e evitáveis. Não bastará ao país se limitar a uma atitude de vigilância e resistência à tendência das maiores economias avançadas no sentido de reverterem os avanços de democratização do processo decisório uma vez se retorne à normalidade. Será indispensável que, além da atitude vigilante, o governo ganhe efetiva capacidade propositiva no debate sobre macroeconomia mundial e instituições de regulamentação e supervisão.

5) A América do Sul como zona de influência
Na América do Sul, o Brasil não pode tudo, mas pode algo. Em tese, a diplomacia brasileira teria tido condições de agir mais ou de agir de modo diferente. Por exemplo, entre o Uruguai e a Argentina, para ajudar, como facilitador, dois vizinhos prioritários e membros do mesmo acordo de integração a superarem o conflito em torno da instalação de empresas de papel em solo uruguaio. O Uruguai e a região do Rio da Prata são, incontestavelmente, as áreas do mundo onde o Brasil possui mais longa tradição de envolvimento, melhor conhecimento direto das situações e mais numerosas e legítimas razões para desejar um desenvolvimento pacífico.
Justifica-se, antes e depois do pior momento da crise argentino-uruguaia, que o governo brasileiro se empenhe em papel construtivo de aproximação entre os mais íntimos de nossos dois vizinhos. Sem necessidade de estimular a proliferação de organizações e burocracias redundantes, bastaria reativar o Tratado da Bacia do Prata, injustamente esquecido e que possui competência temática em problemas de vizinhança como os que ainda opõem o Uruguai à Argentina.
A mesma abordagem se aplica à necessidade de corrigir a parcialidade ocasional e a quase permanente omissão do atual governo em relação a outros conflitos sul-americanos, voltando a observar rigorosa eqüidistância e não-ingerência em eleições ou processos políticos internos de vizinhos, o que tem sido cada vez menos freqüente nestes tempos de diplomacia de afinidades partidárias e ideológicas. O corolário da confiança que decorreria de tal postura seria a credibilidade para um esforço brasileiro de pacificação entre a Venezuela e a Colômbia ou de reconciliação desta última com o Equador, todos vizinhos próximos, com os quais mantemos relações de colaboração e cordialidade.
Um instrumento idôneo para impulsionar a colaboração de interesse recíproco de potencial desaproveitado seria o Tratado de Cooperação Amazônica, que reúne todos os países da metade setentrional da América do Sul, inclusive as duas Guianas independentes. Representa a única estrutura que possibilita uma coordenação dos esforços para melhor proteger os complexos e ameaçados biomas dessa gigantesca região e para uma abordagem integrada dos rios amazônicos, a maioria dos quais possuem suas nascentes nos países vizinhos.
Diplomacia gestual: A contradição entre a busca incessante de resultados de prestígio nos agrupamentos aparecidos em época recente como o G-20 e os BRICs contrasta com o desempenho sensivelmente mais mitigado no eixo de direta influência brasileira, o imediato entorno da América Latina e do Sul. Não que tenham faltado aqui exemplos do talento aparentemente inesgotável de criar foros novos (o Conselho de Defesa) ou de rebatizar com nome novo grupos pré-existentes (como a Comunidade de Nações Sul-Americanas ou CASA, transfigurada em União de Nações Sul-Americanas ou UNASUL). Não se deixou até de estabelecer uma “OEA sem Estados Unidos ou Canadá”, curiosamente iniciativa do México, o primeiro país latino a se associar no NAFTA aos dois gigantes desenvolvidos do hemisfério norte num acordo de livre comércio e talvez por isso preocupado em atenuar seu isolamento em relação aos ibero-americanos.
Esse tipo de diplomacia (não só do Brasil) merece talvez o qualificativo de “gestual” no sentido de que a ausência de condições objetivas ou de resultados palpáveis é menos importante do que o gesto em si mesmo. Às vezes se assemelha a uma fuite en avant: o aumento da dose de remédio que não está dando certo, um pouco como a anotação feita por célebre orador peruano à margem de parágrafo de um discurso – argumento débil, reformar el énfasis.
Nesse domínio, tanto o governo atual como o futuro deveria preocupar-se menos em multiplicar estruturas novas sim em tornar efetivas e operacionais as estruturas ou processos já existentes, sobretudo quando se justificam por razões concretas e válidas. É o caso da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IRSA) do governo passado, que tem avançado sem alardes publicitários e conserva toda sua atualidade uma vez que o problema da falta de uma integração das redes de transporte na América do Sul continua a ser um dos maiores obstáculos à efetiva integração das economias. A mesma afirmação se aplica aos tratados já citados acima, o da Bacia do Prata e o de Cooperação Amazônica.
Venezuela e MERCOSUL: O ingresso da Venezuela no MERCOSUL é um dos exemplos de decisões de graves implicações na América Latina sobre os quais até hoje a opinião pública tem dificuldade em compreender a motivação brasileira e o próprio desenrolar do processo decisório. A impressão que se colheu no momento do convite formulado por Nestor Kirchner, quando a Argentina exercia a presidência do bloco, foi de que ele não havia sido precedido de consultas entre todos os membros, nem de avaliação cuidadosa das implicações. Uma análise criteriosa teria provavelmente demonstrado a falta de sentido em promover a entrada de país que só poderia aumentar os problemas agudos de que sofre o grupo, entre eles, a ausência de compatibilidade entre orientações macroeconômicas, adicionando um complicador ideológico, o socialismo do século XXI, à economia de mercado dos demais. Se já existe impaciência crescente com a pesada máquina decisória da união aduaneira e as dificuldades, supostas ou reais, que ela cria para a negociação de acordos comerciais com terceiros, a adição de governo atritado com inúmeros outros como o venezuelano apenas dificultaria ainda mais os impasses.
Detentor do maior peso específico no grupo teria sido normal que o Brasil ponderasse que as adesões a acordos comerciais de extrema ambição como as uniões aduaneiras demandam longo processo prévio de negociação técnico-comercial, como ocorre na Organização Mundial de Comércio. Não seria necessário antagonizar o regime de Chávez, nem invocar argumentos de ordem ideológica, mas simplesmente lembrar e fazer respeitar um princípio elementar de negociação comercial. O governo poderia ter feito algo nessa linha, mas preferiu não fazer. A questão não seria tanto de falta de poder, mas da falta de vontade para exercer tal poder da forma mais adequada para defender os direitos e promover os interesses do Brasil, utilizando o diferencial em nosso favor.
Questões polêmicas: Sendo essa a região do mundo onde a influência brasileira, no passado e no presente, sempre se fez sentir de modo mais forte e imediato, o natural é que nela se tivessem concentrado as maiores realizações da diplomacia. É igualmente nessa área que a diplomacia brasileira terá de demonstrar sua superior capacidade para superar obstáculos, persuadir recalcitrâncias, edificar obra concreta. Paradoxalmente, entretanto, até agora, a maioria das divergências sobre falhas e equívocos da política exterior se refere a assuntos sul ou latino-americanos.
As prioridades do Brasil deveriam coincidir naturalmente com esses problemas e a efetividade da diplomacia tem de ser avaliada pela capacidade que revele de encaminhar solução para as seguintes questões: a) o persistente fracasso em resolver os contínuos atritos e contenciosos com a Argentina em matéria comercial; b) a passividade e falta de iniciativa corretiva frente ao descrédito do MERCOSUL; c) a incompreensível renúncia a acionar os meios pacíficos do direito internacional em defesa de direitos brasileiros atropelados em incidentes como o da violação boliviana de tratados e contratos sobre o gás; d) a imprudente ingerência nas eleições bolivianas e paraguaias por motivo de simpatias ideológicas; e) a parcialidade na campanha contra o acordo militar entre a Colômbia e os Estados Unidos, em contraste com a omissão diante de iniciativas de compra de armamentos de Chávez ou de suas freqüentes provocações aos colombianos; f) a falta de senso de medida e equilíbrio em relação ao golpe hondurenho, ao mesmo tempo em que se mantinha incoerente complacência frente a regime controvertido como o cubano, sem falar no iraniano.
Muitas dessas dificuldades nos foram impostas nesses últimos anos por uma adversa evolução que se processou em direção oposta à convergência de valores e modelos de organização político-econômicos registrada na Europa e no mundo após o fim do comunismo. Na América do Sul, ao contrário, a integração e até o bom convívio normal têm sido dificultados por processos radicalizados de refundação e lideranças polarizadoras de tensões e conflitos, internos e externos. Uma leitura realista da situação exigiria reconhecer os limites do que é possível fazer com esses governos. Abriria espaço, por outro lado, a uma diplomacia alternativa mais sintonizada com os países que adotam posturas econômicas e políticas centristas mais próximas às nossas. Não por acaso, esses países são aqueles que, pelo tamanho ou desempenho econômico, ofereceriam oportunidades mais promissoras: México, Chile, Colômbia, Peru, Uruguai.
Unasul e Conselho de Defesa: Não obstante a evidente ausência dos requisitos objetivos mínimos, a diplomacia atual insistiu em edificar um espaço político-econômico que utilizasse não o conceito de América Latina, mas apenas o da América do Sul. Em projetos de caráter territorial justifica-se optar por esse gênero de integração exclusiva, como sucede com a referida Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana ou IIRSA. É muito mais difícil estender o critério a áreas mais amplas e complexas como as do comércio e da defesa, que dependem não da contigüidade territorial, mas da compatibilidade de visões políticas e econômicas. Em contexto regional de aumento da divergência de modelos, de desconfianças e animosidades, projetos como o da Unasul ou do Conselho de Defesa correm risco considerável de passarem à história como meras expressões de uma diplomacia gestual cujo potencial se esgota em reuniões que constituem um fim em si mesmo, sem maiores conseqüências.
O mínimo que se deveria exigir de tais grupos é que lograssem o que a Argentina, o Brasil e o Chile tinham consolidado no Acordo do A.B.C., há mais de um século, a saber, a reafirmação da mais estrita observância do princípio de não-ingerência nos assuntos internos dos vizinhos e o compromisso de não permitir a presença ou ações de movimentos armados nas zonas fronteiriças.
Objetivo como esse teria de constituir a pré-condição básica de qualquer união de países, parecendo, entretanto, fora do alcance de uma organização que se intitula com alguma pretensão de “União de Nações Sul-Americanas”. Para que serve o Conselho de Defesa se não somos sequer capazes de adotar uma posição comum a respeito das guerrilhas das FARCs? Sem esse mínimo dos mínimos, não se concebe que a Colômbia, país que luta há meio século contra guerrilhas e narcotraficantes, aceitasse abrir mão da assistência militar dos Estados Unidos. Por desejável que seja evitar a presença militar americana no continente não se vê bem que alternativa existiria para que Bogotá obtivesse os recursos e o know-how de que necessita. O Brasil, impotente diante do controle exercido pelo narcotráfico em morros do Rio de Janeiro e longe de poder oferecer assistência militar e policial a quem quer que seja, dispõe de escassa autoridade para censurar os colombianos por buscarem quem os ajude.
A questão das preferências comerciais: É presumir demais da própria importância querer exigir de um vizinho ameaçado por problemas de guerrilha e de narcotráfico que escolha entre nós e os Estados Unidos em matéria de defesa contra tais flagelos. Situação idêntica prevalece no âmbito econômico e comercial no caso daqueles países latinos e sul-americanos – e não são poucos – para os quais o mercado norte-americano representa 50% ou mais do destino de suas exportações. O Brasil não tem evidentemente condições de rivalizar com os EUA como mercado importador ou fonte de investimento, uma vez que há décadas acumulamos com quase todos os sul-americanos saldos comerciais crescentes. Nem mesmo dentro do MERCOSUL o país conseguiu desempenhar o papel de mercado impulsionador do crescimento do Uruguai e do Paraguai.
Não surpreende, assim, que até no âmbito restrito da América do Sul, três países médios e talvez não por acaso os de melhores fundamentos e desempenho econômico, o Chile, o Peru e a Colômbia, tenham optado pelos acordos de livre comércio com os EUA. Inviabilizou-se assim a possibilidade de uma zona comercial puramente sul-americana, gerando ao mesmo tempo para as exportações brasileiras o perigo de tratamento discriminatório frente às de procedência americana.
As negociações da ALCA não conseguiram infelizmente produzir um terreno de equilíbrio e entendimento entre as expectativas demasiado ambiciosas de Washington e concessões norte-americanas, especialmente em agricultura, que atendessem aos interesses do Brasil e do MERCOSUL, proporcionando-nos no mercado americano tratamento preferencial equivalente ao dos outros. Na ausência do acordo de livre comércio, a prioridade de qualquer governo brasileiro futuro deve ser a de negociar algum arranjo alternativo que preencha o vácuo desvantajoso da falta de preferências em que se encontram presentemente os produtos brasileiros. Essa prioridade comercial vale tanto para o mercado dos EUA, no qual estamos sendo discriminados pelas preferências outorgadas aos produtos oriundos de acordos da ALCA quanto para os mercados dos latinos (como o Chile ou o México), onde enfrentamos a concorrência favorecida das exportações norte-americanas.
Relações com os EUA: Esse vazio ilustra a persistente incapacidade de alcançar com os Estados Unidos uma relação madura e construtiva da qual um elemento indispensável teria de ser uma base de crescentes vantagens mútuas no comércio e na complementação de cadeias produtivas e exportadoras. Tentou-se durante a administração de George W. Bush revitalizar essas relações, superando o impasse da ALCA com uma colaboração em torno do etanol. Além de obviamente estreito demais para fundamentar uma relação mais vasta, o esforço não foi capaz de sobrepujar o protecionismo em relação ao etanol de milho americano.
É paradoxal que no governo Obama o relacionamento com Washington principie a denunciar sinais de um alargamento das divergências em torno de uma agenda negativa em expansão: o manejo do golpe de Honduras e agora da situação pós-eleitoral naquele país; o acordo de cooperação militar da Colômbia com os EUA; as responsabilidades americanas pelo impasse da Rodada Doha e ultimamente o complexo de questões relativas ao Irã, a seu programa nuclear e à maneira de tratar com o regime iraniano.
A tensão oriunda da multiplicação de tais desencontros começa a encontrar expressão na imprensa e no Congresso dos EUA e só tem sido disfarçada na área oficial pelo reconhecimento do papel moderador do Brasil num contexto sul-americano conturbado por personalidades mais abrasivas e provocadoras que as dos nossos líderes.

6) Estilo e fim do consenso em diplomacia
A crise do consenso em política exterior: Não faltam, por conseguinte, questões que vêm erodindo o relativo consenso multipartidário que prevalecia na véspera de fundação da Nova República, a julgar pelo discurso de fins de 1984, no qual Tancredo Neves declarava: “(...) se há um ponto na política brasileira que encontrou consenso em todas as correntes de pensamento, esse ponto é a política externa levada a efeito pelo Itamaraty.” Transcorridos 25 anos dessas palavras, a simples leitura dos jornais ou o acompanhamento dos debates no Congresso são suficientes para indicar que esse consenso deixou de existir.
A crise do consenso brasileiro é produto não só das questões substantivas da política externa propriamente dita, mas também da “política interna” da diplomacia, isto é, a maneira como ela é formulada e apresentada à opinião pública, a seus formadores, aos políticos e o modo como é percebida por esses últimos. Dessa perspectiva, a responsabilidade maior cabe a comportamentos concentrados nos seguintes fatores que afetam a possibilidade de edificar consensos em política exterior: a ênfase na ruptura, em lugar da continuidade; o excesso de protagonismo e glorificação da liderança pessoal de Lula; a politização partidária e ideologização da política externa.
Ênfase na ruptura: Os dirigentes atuais, destacando-se nisso o presidente, não souberam em geral resistir à tentação de se atribuir o crédito total pelos eventuais êxitos que tiveram. Buscaram fazer crer que era novo e sem precedentes tudo o que empreendiam. De maneira geral, Lula e seus colaboradores no Itamaraty tiveram a possibilidade de admitir e valorizar, nos assuntos que apresentavam autêntica continuidade com o passado, a parcela maior ou menor, que teriam acaso herdado de governos anteriores, mas preferiram apropriar-se todo o mérito em nome do governo atual e de seu partido.
Naturalmente é opção sem surpresa, mas seguramente não será a melhor em termos de construção de consensos. Há, com efeito, nessa matéria uma espécie de “trade off”: não é possível monopolizar o crédito para o governo e seu partido e esperar, ao mesmo tempo, que os injustamente excluídos do reconhecimento se sintam partes integrantes dessa política.
Excesso de protagonismo: São traços indiscutíveis desta fase política brasileira o abuso do protagonismo e o excesso de glorificação personalista, criando a impressão de que se depende cada vez mais das qualidades de desempenho do líder supremo. Aliás, a política externa não constitui exceção no panorama geral de um governo, cujos ministros são quase anônimos.
Em democracias maduras sempre se procurou imprimir à diplomacia um caráter aberto à participação efetiva mesmo da oposição. Nos Estados Unidos, por exemplo, o modelo ideal de que se tem nostalgia até nossos dias é o do “consenso bipartidário” com os republicanos no início da Guerra Fria. Na França de Sarkozy, qualquer que tenha sido sua motivação, o presidente foi buscar no partido socialista seu ministro de assuntos estrangeiros e numerosas personalidades convidadas a cumprirem missões internacionais de relevo. No Brasil de hoje seria difícil encontrar algum exemplo dessa tendência salutar.
Interferências partidárias e ideológicas: O discurso de Tancredo deixava claro não ser uma política externa qualquer a que mereceria consenso, mas apenas a “levada a efeito pelo Itamaraty.” Não se tratava da política dos militares no poder, de um determinado governo ou facção, mas de uma política de Estado, acima das disputas internas e a serviço da nação. Convém recordar que a etimologia da palavra “partido” significa fragmentado, rompido, quebrado, parte do todo que é a nação. Quem faz diplomacia de partido mostra indiferença pelo esforço de converter tais ações em causas autenticamente nacionais.
É incompatível com esse objetivo a existência de uma “diplomacia paralela” do Partido dos Trabalhadores junto a governos ou movimentos ideologicamente afins, exercida por meio de contactos fora dos canais diplomáticos e emissários como o assessor de política externa da Presidência da República. Tal divisão de “esferas de influência” converteu-se em causa de complicações, de que foram exemplos as incursões na política interna da Venezuela, em momentos de tensões naquele país; a falta de isenção ideológica com que se tem acompanhado a campanha eleitoral em países vizinhos; a parcialidade citada antes em relação ao acordo militar da Colômbia com os EUA; o contraste entre as reações ao golpe hondurenho e a complacência diante de Cuba ou do Irã e numerosos outros episódios.
Não há evidências de que essas afinidades ou simpatias tenham demonstrado eficácia ou utilidade perceptível para encaminhar soluções satisfatórias quando surgem questões espinhosas como as que opuseram o Brasil à Bolívia ou ao Equador. A diplomacia paralela do PT parece, assim, servir mais para contaminar desnecessariamente a política exterior com suspeitas ideológicas de que para qualquer propósito prático.
Mais do que um valor perfeito e absoluto, inatingível na prática, o consenso sobre diplomacia é objetivo desejável sempre que possível de edificar mediante compromissos razoáveis com a oposição, sem sacrifício de valores mais altos. Um grau maior ou menor de honesta divergência pode ser até saudável desde que não derive de uma subordinação instrumental da política externa a ganhos partidários ou ideológicos internos. Nesse caso, renuncia-se à possibilidade de assegurar a continuidade de políticas de Estado que devem, em princípio, fazer apelo não a facções, mas ao conjunto dos cidadãos.
Nesse particular, seria difícil encontrar melhor explicação das vantagens potenciais da busca do consenso do que as palavras com que o barão do Rio Branco explicava porque se afastara em definitivo da política interna e não tinha querido aproveitar sua imensa popularidade para lançar-se candidato a presidente: “(...) seria discutido, atacado, diminuído, desautorizado (...) e não teria como Presidente a força que hoje tenho (...) para dirigir as relações exteriores. Ocupando-me de assuntos ou causas incontestavelmente nacionais, sentir-me-ia mais forte e poderia habilitar-me a merecer o concurso da animação de todos os meus concidadãos” (grifado por mim).

7) Insuficiências de resultados comerciais
No momento em que escrevo, o comércio exterior brasileiro vive uma aguda crise de competitividade, manifestada no acelerado declínio do saldo na balança comercial e no alarmante agravamento do déficit em conta corrente. A gravidade da situação é acentuada pela tendência aparentemente irreversível para a erosão das vantagens competitivas dos produtos manufaturados e a crescente concentração das exportações em número sempre menor de commodities e artigos de baixo nível de elaboração derivados de recursos naturais.
Não é este o lugar apropriado para discutir os desequilíbrios macroeconômicos que se encontram na raiz do problema, a conjuntura de crescimento puxado quase exclusivamente pelo consumo do governo e dos particulares, a baixa poupança, o investimento insuficiente e a inelutável contrapartida de todo esse quadro, que consiste no aumento da dependência em relação à poupança externa e aos influxos financeiros de fora. O que não se pode esconder é que a taxa de câmbio representa papel fundamental na deterioração das contas externas, não sendo possível cogitar de solução duradoura para os problemas do comércio exterior em abstração da questão cambial.
É verdade que, além do câmbio, outras deficiências estruturais afetam duramente a capacidade brasileira de concorrer nos mercados mundiais com os asiáticos e outras estrelas do comércio contemporâneo. O altíssimo custo do capital, a sufocante carga de tributos, a burocratização e baixa qualidade da regulamentação governamental, a péssima infraestrutura de transportes e portos, enfim, o conjunto dos fatores que formam o “custo Brasil”, responsável pelo alto custo de transação em nosso país. Todos esses elementos se situam em área de competência muito além do alcance da política exterior, mas é inegável que sem a solução parcial ou completa dessas permanentes causas da baixa capacidade brasileira de competir não é muito o que a diplomacia comercial poderá fazer deixada a si mesma.
Existem entre nós ilusões desmesuradas sobre a capacidade que têm as negociações comerciais ou os acordos bilaterais e/ou regionais de alterar essa ingrata realidade competitiva. Não se percebe o bastante que negociações e acordos, mesmo quando bem sucedidos e executados, podem no máximo gerar oportunidades de exportação. Aproveitar essas oportunidades vai depender, como sempre, da capacidade de oferta de produtos de qualidade e preço competitivos nos mercados, o que passa por câmbio favorável acima de tudo e os demais fatores citados.
Por essa razão, no futuro o governo terá de primeiramente equacionar e encaminhar os problemas que ora afetam negativamente a taxa cambial e os outros componentes da competitividade, o que exigirá o envolvimento pessoal e constante do Presidente da República a fim de que se possa de fato dispor de um mecanismo eficiente de coordenação de todos os órgãos relevantes dos quais depende uma boa condução do comércio exterior.
Diante do persistente impasse nas negociações da Rodada Doha, não se poderá deixar de conduzir um exame criterioso da conveniência de remanejar as prioridades da diplomacia comercial do Brasil. Não se trata de recomendar que se desconheça o valor insubstituível da Organização Mundial de Comércio como o foro por excelência para avanços em temas sistêmicos como o dos subsídios agrícolas ou para a solução quase-judicial de contenciosos, mas de indagar até que ponto se justifica uma concentração excessiva nas expectativas criadas pela Rodada Doha.
A verdade é que a indústria brasileira, que sofre de problemas crônicos de competitividade, revela escasso entusiasmo pelos ganhos potenciais da Rodada, temendo que os benefícios da eventual redução nos picos tarifários em produtos sensíveis (têxteis, calçados, artigos de couro) sejam praticamente monopolizados pelos chineses e outros asiáticos
A compensação que esperamos receber em agricultura precisa também ser submetida a um crivo analítico rigoroso. Os subsídios agrícolas, é claro, somente serão reduzidos de modo apreciável nas negociações multilaterais, sendo essa a razão principal que aconselha nosso contínuo engajamento. Para entidades representativas como a Confederação Nacional da Agricultura o problema maior não viria tanto dos subsídios, mas sim das barreiras de acesso aos mercados externos. O Banco Mundial chegou à mesma conclusão: os ganhos de acesso seriam mais substanciais que a diminuição dos subsídios, indicando a experiência que, em matéria de conquista de acesso, os acordos bilaterais são geralmente mais eficazes que negociações longas e complicadas como as da OMC.
Portanto, paralelamente à continuação do empenho brasileiro na Rodada Doha, conviria devotar tempo e esforços comparáveis a iniciativas menos ambiciosas, nas quais é possível alcançar resultados mais imediatos e tangíveis. Se nos últimos oito anos, em lugar de apostar tudo em Doha, tivéssemos dedicado mais energia e atenção a remover ou reduzir barreiras fitossanitárias às nossas carnes, frutas e vegetais frescos em mercados específicos, talvez tivéssemos agora resultados mais alentadores.
Não será fácil obter acordos desse gênero com grandes países, mas recomenda-se, com espírito aberto, explorar todos os caminhos comerciais possíveis, procurando não concentrar nossa diplomacia comercial exclusivamente no âmbito da OMC. Caso passemos a ter condições para uma política comercial menos defensiva e capaz de oferecer compensações, seria factível encetar negociações de acordos com atores médios como preparação para vôos mais ambiciosos em relação aos grandes mercados.
No que tange ao futuro do MERCOSUL, o governo não terá como evitar um reexame da conveniência de manter ou não a União Aduaneira e/ou a Tarifa Externa Comum (TEC). Talvez seja viável trabalhar com fórmula de meio-termo: uma União Tarifária, formal ou informal (alinhamento voluntário como na ASEAN), com flexibilidade para negociações externas em separado, sem a sobrecarga burocrática das exigências para uma efetiva União Aduaneira. Tal situação não seria radicalmente diferente da realidade atual, faltando apenas a flexibilidade para negociações externas dentro de critérios a definir.

8) Escassa sensibilidade aos valores
Um dos aspectos em que a linha internacional de Lula mais se confunde com a política externa gaullista é na invariável subordinação da promoção dos direitos humanos e objetivos universais como a luta contra o aquecimento global, as armas de destruição maciça e o genocídio a uma estreita e egoísta consideração de interesses de curto prazo. A opinião pública brasileira está ciente dos exemplos mais comentados dessa insensibilidade, tais como expressos pelo próprio presidente durante a visita à Havana - a apologia da repressão do governo cubano contra dissidentes, a assimilação de greves de fome de desesperados prisioneiros de consciência a ações de criminosos comuns – ou a descrição de “estratégica” da relação com o regime iraniano que, dias antes da visita do presidente brasileiro, havia enforcado vários dos participantes das manifestações contra as fraudes eleitorais.
Tem sido muito menos divulgado, fora de círculos especializados, o comportamento no Conselho dos Direitos Humanos da ONU em Genebra da delegação do Brasil, que se vem notabilizando pela cumplicidade com a sinistra aliança responsável pelo bloqueio de todas as tentativas de investigação ou pressão para alívio das vítimas de violações maciças dos direitos mais elementares. É sugestivo que em direitos humanos o Brasil se afasta de sua proclamada identificação com os valores latino-americanos. Em posição contrastante com a da Argentina, do Chile, do México, que honram as melhores tradições da América Latina, o governo brasileiro se tem alinhado nessa matéria aos mais notórios violadores como Cuba e Paquistão.
Fazendo causa comum com regimes empenhados em debilitar o cumprimento dos compromissos de direitos humanos, o governo brasileiro se tem desonrado a si mesmo e ao país ao colaborar, por omissão absenteísta ou ação bloqueadora, na vergonhosa tarefa de obstruir o correto funcionamento do Conselho. Ademais, é uma triste ironia que o governo responsável por esse comportamento atraiçoe a memória dos que se sacrificaram na resistência ao regime ditatorial em nosso país ao concorrer ativamente para proteger e favorecer os autores dos piores atentados aos valores humanos nos dias atuais, na Coréia do Norte, em Sri Lanka, no Congo, no Irã, no Sudão do genocídio de Darfur.
Ao preferir ganhos diplomáticos imediatistas aos valores universais, o governo brasileiro se torna culpado de dupla contradição. De um lado, suscita dúvidas sobre a sinceridade das causas que afirma sustentar internamente como, por exemplo, ao decretar o controvertido plano nacional de direitos humanos. Do outro, enfraquece e desmoraliza o próprio fundamento de seu recém-adquirido prestígio internacional, que deriva da conjunção de duas imagens, a do Brasil e a de Lula, ambas associadas a valores humanos como a paz, o combate à fome, à injustiça e à miséria.
Há por detrás disso uma contradição mais profunda, que nasce da falta de clareza em relação aos objetivos e valores finais que inspiram o esforço do governo em conquistar reconhecimento e respeito internacionais. Já se disse acima que a diplomacia atual se caracteriza pela incessante busca de oportunidades de acumular prestígio. O prestígio é um dos elementos componentes do poder, do que hoje se denomina “soft” ou “smart power”, o poder suave, brando, o poder inteligente, a capacidade de persuadir pelo exemplo e os argumentos, em contraposição ao poder contundente dos armamentos ou da coerção econômica.
A singularidade do Brasil entre os países de grande território e população é justamente o de ser o único que só dispõe a rigor da primeira modalidade de poder. Dos quatro BRICs, por exemplo, apenas o Brasil não é potência atômica nem militar convencional. Isso se deve, no fundo, a um conjunto de razões geográficas e históricas que nos beneficiaram com situação invulgar de segurança. No passado 1º de março, aniversário do fim da Guerra da Tríplice Aliança, comemoramos 140 anos de paz ininterrupta com dez vizinhos, conquista provavelmente sem paralelos entre países de porte e número de vizinhos comparáveis aos nossos.
O próprio presidente Lula defendeu a tradição de autocontrole e moderação no que tange à resposta a dar a ações adversas da Bolívia, do Equador, do Paraguai, embora confunda cordura com a renúncia a acionar os mecanismos jurídicos de defesa de direitos. Ora, o fato de não ser potência nuclear nem militar, de não se comportar como os demais, longe de impedir, foi o fator que habilitou o Brasil a se tornar credor de crescente prestígio internacional. Esse patrimônio intangível de prestígio nasce em nosso caso não da potência, mas da cultura da paz. Naquilo que não é reflexo do tamanho e da economia, a irradiação brasileira é fruto do exemplo, da encarnação de valores morais. Por que então destruir essa reputação ao proteger e se confundir com os inimigos do reforço mundial dos direitos humanos?
A mesma pergunta se aplica ao nosso atual papel de concorrer para o enfraquecimento do regime internacional de não-proliferação nuclear ao recusar, sem motivo convincente, a adesão ao Protocolo Adicional do Tratado de Não-Proliferação (TNP). Se o governo é sincero em acatar a adesão ao Tratado, efetuada pelo governo passado, se não tenciona violar a proibição constitucional de armas nucleares, por que adotar atitude cômoda de crítica aos defeitos inegáveis do TNP, sem utilizar sua reconhecida capacidade de proposição diplomática para sugerir modos de fortalecê-lo?
O general de Gaulle era coerente em sua estratégia de se inspirar apenas na grandeza da França, desafiando o mundo com os testes nucleares para edificar seu arsenal. O Brasil, porém, parece vacilar entre perseverar no caminho pacífico que lhe valeu o prestígio até agora ou passar a agir como aqueles que sempre criticou com razão. A não ser que a ambigüidade sobre proliferação esconda uma reserva mental para eventual reviravolta futura, em linha com o programa de armamentos dispendiosos como o submarino nuclear, os aviões caça e outros projetos recentes que evocam o fantasma do retorno aos sonhos de Brasil Grande Potência da ditadura (aliás, o argumento da soberania invocado às vezes para justificar os votos brasileiros no Conselho de Direitos Humanos é exatamente o mesmo brandido pelos militares no passado).
A miopia de um falso “realismo” concentrado em ganhos de prestígio sem maior substância acaba por levar ao desperdício de oportunidades de construir algo muito mais valioso. É o que se constata na área onde o Brasil teria melhores condições para reclamar o status de potência, o de potência ambiental. Graças às características da matriz energética e do seu baixo custo potencial de redução de emissões, o país poderia, sem afetar interesses econômicos relevantes, tornar-se símbolo de uma política pró-ativa como primeiro grande país em desenvolvimento a aceitar metas de redução. Em lugar de servir de instrumento à China e à Índia na resistência a avanços nas negociações sobre mudança climática, o governo brasileiro deveria voltar a desempenhar, como fez durante a grande conferência do Rio de Janeiro em 1992, o papel de intermediário e facilitador de um acordo histórico entre as nações avançadas e os países em desenvolvimento, o que significaria de fato uma vitória diplomática consagradora não só para o Brasil, mas para toda a humanidade.

9) Limitações do personalismo carismático
Não se discute que a diplomacia do governo Lula tenha possibilitado elevar exponencialmente o prestígio internacional do Brasil. Examinada, contudo, pelo critério rigoroso dos problemas resolvidos ou dos ganhos concretizados o balanço é indeciso, pois o prestígio não foi suficiente para realizar as aspirações brasileiras em relação ao Conselho de Segurança ou nas negociações da OMC. Tampouco logrou contribuir para pacificar as relações entre vizinhos sul-americanos, reforçar a convergência, não a divergência adicional em matéria de valores e práticas democráticas, superar os atritos comerciais recorrentes com a Argentina, revitalizar o MERCOSUL, celebrar acordos comerciais para neutralizar a falta de preferências no continente e no mundo, em outras palavras, para produzir resultados concretos e tangíveis.
Essa constatação chama a atenção para os limites do prestígio nas relações internacionais. Trata-se de elemento valioso, uma condição necessária na maioria dos casos, mas não suficiente. O prestígio não se deve transformar em objetivo narcisista em si mesmo, algo que se esgota na própria autogratificação. Somente terá sentido se for posto a serviço de projeto de nação que maximize a segurança, a paz, o bem-estar dos cidadãos, não metas nebulosas como a “grandeza” desacompanhada de benefícios concretos e valores morais.
À medida que o governo conseguiu superar sua insegurança inicial acentuou-se infelizmente a tendência à personalização na figura de Lula dos êxitos internos e exteriores. Com isso o Brasil se aproximou dos modelos de poder pessoal e populista que têm proliferado na América do Sul, com os quais, aliás, o presidente não esconde sua afinidade. É possível por isso que, desse ponto de vista, a experiência do governo Lula passe à história como um retrocesso em relação aos avanços em termos de institucionalização e impessoalidade do poder registrados na Nova República.
Jamais como agora teve o Brasil uma política externa tão inseparavelmente identificada, para o bem e para o mal, com a figura do Chefe de Estado, nem mesmo na época do Imperador D. Pedro II, quando a diplomacia já se distinguia pela institucionalidade. Mais até do que na insuficiência de ganhos efetivos, a principal falha da diplomacia do período Lula se situa justamente na ambigüidade dos valores morais e humanos, reflexo inevitável das contradições e incoerências de seu protagonista central. Há incontestavelmente muitas coisas de valor na política exterior do presidente que merecem ser valorizadas e preservadas ou, quando necessário, corrigidas e complementadas. Não se inclui entre elas a confusão entre personalidade e política, negação do espírito republicano e obstáculo a uma diplomacia que traduza não um projeto de poder pessoal ou de uma facção, mas o mais amplo consenso possível da nação como um todo.

São Paulo, em 29 de maio de 2010.

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