Quando assinar não é preciso
Lúcia Guimarães
O Estado de S.Paulo, 30 de julho de 2011
Em Nom de Plume, a americana Carmela Ciuraru aborda a utilização de pseudônimos e heterônimos no século 19 e seu declínio em nossa época, marcada pela fama, em que o autor é garoto-propaganda
O que pode revelar um nome? Muito ou muito pouco. Virginia Woolf dizia que uma condição da autoria é "nunca ser você mesma, e sempre ser - este é o problema". O poeta Walt Whitman se satisfazia em conter multidões.
Em 1858, Marian Evans e seu companheiro George Lewes receberam, em Londres, a visita do editor John Blackwood. Ele havia acabado de publicar a coleção de contos Scenes From Clerical Life, que começara como uma série de contribuições para sua Blackwood"s Edinburgh Magazine. Lewes perguntou: você gostaria de conhecer George Eliot? Claro, respondeu o editor, que só mantinha contato com sua nova estrela literária através de cartas e estava convencido de que o autor era um membro do clero. O casal saiu da sala e voltou momentos depois. Lewes reapresentou sua mulher a Blackwood. George Eliot e Marian Evans eram a mesma pessoa.
Esta e outras histórias formam Nom de Plume, uma fascinante exploração biográfica de 16 pseudônimos literários ao longo de um século, das irmãs Brontë a Pauline Réage-Anne Desclos, de História de O. A autora Carmela Ciuraru diz que a decisão de entrar na pele de outro eu, além de familiar para qualquer autor de ficção, é quase um impulso erótico.
Na noite da última quarta-feira, Carmela Ciuraru (seu nome real), está diante do microfone no subsolo de uma das bravas livrarias independentes que resistem em Manhattan.
Depois de responder a afiadas perguntas do público, a autora anuncia que vai haver uma seleção dos melhores pseudônimos sugeridos pelos presentes. Pedaços de papel circulam entre a plateia e começa a leitura dos nomes, uma mistura de trocadilhos e uma curiosa incidência de evocações da literatura russa. Os escolhidos vão ganhar prêmios - romances clássicos escritos sob pseudônimo, chaveiros e até um pacote de salame. "Sasha Raskolnikov" se revela uma mulher de meia-idade borbulhante, ao contrário do torturado Raskolnikov de Crime e Castigo. "Will Back" é um jovem que confessa ter se envergonhado com a má qualidade dos artigos que publicara numa revista e quis começar zero quilômetro, sob outro nome.
O clima de programa de auditório ajuda a ilustrar a tese de Carmela Ciuraru sobre o declínio do pseudônimo no século 21: o autor literário hoje é garoto-propaganda, interlocutor obrigatório do leitor e marca à venda. Além disso, ela lembra, com a internet todo mundo quer ter uma voz e aparecer como si mesmo.
Dias antes, num café do bairro de Chelsea, a voz de Carmela Ciuraru é abafada pelo homem que senta na mesa mais próxima, decidido a aparecer com seus brados intermináveis no celular. Pergunto por que ela escolheu retratar apenas autores mortos em Nom de Plume. "Morto não move processo", diz, meio brincalhona, e completa: "Preferi examinar histórias concluídas. E, como ficou claro ao longo da pesquisa, os motivos para esconder a identidade também evoluem".
No século 19 os pseudônimos literários viraram sensações. Além das irmãs Brontë, George Sand-Aurore Dupin, George Eliot-Marian Evans, Lewis Carrol-Charles Dodgson, Mark Twain-Samuel Clemens se tornaram clássicos mas escondiam seus nomes verdadeiros por motivos diferentes. Nom de Plume é rico em autoras mulheres que se emanciparam como figuras literárias graças ao nome masculino. Mas Ciuraru lembra que a profissão de escritor, no século 19, podia ser considerada vulgar e o pseudônimo protegia também a respeitabilidade de homens.
"O pseudônimo pode começar", diz, "como simples estripulia, como Mark Twain (Samuel Clemens) que queria brincar com seu nome. Ou pode ser a única saída, como no caso de James Tiptree Jr.- Alice Bradley Sheldon, para mim, é uma história muito triste." Sheldon, insegura e atormentada, se fez passar por James Tiptree Jr., o confiante e celebrado autor de ficção científica. Como Tiptree Jr, Sheldon escreveu o emblemático The Women Men Don"t See (As Mulheres Que os Homens Não Veem) e confundiu as noções convencionais de identidade sexual na narrativa. Quando tentou publicar sob o próprio nome e escreveu sob outro pseudônimo, a inspiração secou. Sheldon não suportou a perda de seu eu alternativo e se suicidou, em 1987.
O caso de Romain Gary (Émile Ajar) ilustra para Ciuraru o uso do pseudônimo como recomeço. Ele achava a fama restritiva e já era aclamado por uma vasta obra que incluía o romance As Raízes do Céu. Como Émile Ajar, ele se tornou o primeiro autor a ganhar, pela segunda vez, o Prêmio Goncourt com Uma Vida À Sua Frente. Só com o suicídio de Gary, em 1980, foi revelada a identidade de Ajar. "É irônico", diz Ciuraru, "que ele logo tenha se tornado famoso como Ajar. Passou a enfrentar novo conjunto de estereótipos, o que mostra como a fama desafia o autor e como temos a necessidade de rotular pessoas."
Em 1837, aos 21 anos, a jovem Charlotte Brontë, a mais velha do trio de irmãs escritoras, escreveu numa carta ao poeta laureado Robert Southey, que queria ser "conhecida para sempre". Amargou três meses de espera pelo veredicto sobre seus primeiros escritos e a resposta incluía a advertência: "A literatura não pode ser o negócio da vida de uma mulher, nem deve ser". Desafiante, ela disparou a tréplica mordaz: "À noite, eu confesso que penso. Mas nunca incomodo ninguém com meus pensamentos". A futura autora de Jane Eyre prometeu ao velho poeta que, se a ambição literária voltasse, ia reler seus conselhos e suprimir o impulso.
Embora Anne, Charlotte e Emily Brontë tenham se beneficiado do mundo masculino para se emancipar como Acton, Currer e Ellis Bell, na primeira metade do século 19, Ciaruru acha que elas representam, em parte, o uso do pseudônimo como meio de controle do processo: "Charlotte queria controlar a produção de seus livros. Era mais do que uma mulher com um nome de homem. Escolhia um tipo específico de papel, determinava as publicações que podiam resenhar as obras. Ela se apresentava como agente para Currer, Acton e Ellis".
O caso de George Eliot-Marian Evans é, talvez, o mais extraordinário exemplo do pseudônimo masculino de uma mulher que já era admirada por seu intelecto e desafiou convenções literárias e sociais. Nascida Mary Anne, ela ainda se assinava Marian Evans quando se tornou uma rara editora de resenha literária em Londres, aos 31 anos. Ao ler Scenes From a Clerical Life, Charles Dickens escreveu para Eliot: "Observei tal toque feminino nestas ficções comoventes, que o nome sob o título é insuficiente para me convencer".
Depois de ver seu suposto religioso revelado em Marian Evans, o editor John Blackwood manteve o segredo. Como Eliot, a poeta, contista e romancista se tornaria a mais celebrada escritora vitoriana, com romances que incluem Silas Marner, Middlemarch e Daniel Deronda, obras-primas de crítica social e crônicas incomparáveis da vida privada na Inglaterra. Invariavelmente descrita como feia e desenxabida, Marian despertava admiração nos maiores intelectos do seu tempo. Henry James escreveu sobre sua aparência "deliciosamente horrenda": "Nesta vasta feiura reside a beleza mais poderosa que, em poucos minutos, se impõe, seduz a mente e, no fim, você, como eu, está se apaixonando por ela".
Em Nom de Plume, Ciuraru questiona os variados ímpetos para a clandestinidade autoral: "George Orwell-Eric Blair, por exemplo, dizia que não se orgulhava do que escrevia e não queria constranger sua família. Mas ele era também meio paranoico, cheio de manias e não há dúvida de que perseguia a fama".
O caso da poeta Sylvia Plath, que escreveu seu único e semiautobiográfico romance, A Redoma de Vidro, como Victoria Lucas, marca o pseudônimo sacrificado pela morte prematura. Plath se suicidou pouco depois da publicação na Grã-Bretanha, em 1963. A partir de 1967, A Redoma de Vidro saiu com o nome real da autora, cuja vida curta e trágica atraiu enorme atenção para o romance.
Nenhum dos escritores retratados em Nom de Plume fascinou tanto Carmela Ciuraru quanto Fernando Pessoa, com suas dezenas de heterônimos. Ela conta que encontrou uma tradução de O Livro do Desassossego numa livraria de Nova York, há alguns anos, e se apaixonou de imediato. "Fico surpresa com a ignorância do mundo literário americano sobre o Pessoa", reclama. "Toda vez que vou a um evento em livraria peço para o público dizer se já ouviu falar dele e, às vezes, só uma pessoa levanta a mão." Ciuraru explica aos potenciais novos leitores que o caso de Fernando Pessoa-Alberto Caeiro-Ricardo Reis-Álvaro de Campos, entre tantos outros, vai além do pseudônimo porque há uma pluralidade de eus. "Isto me interessa muito. Mas ele não era um ventríloquo, experimentava vozes diferentes, que falavam através dele", diz. "E acredito que ele acreditava nisso."
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