Concordo com o Almirante Flores em que a END não tem sido suficientemente debatida pela sociedade, aliás nem pelo Parlamento, só por um punhado de abnegados estudiosos da defesa nacional. Sem me classificar entre os especialistas, eu também me permiti ler, e criticar, a END, mais do ponto de vista econômico, e no plano das relações internacionais, do que propriamente nos conceitos de defesa, para o que confesso minha ignorância. Mas, creio que sei medir seu impacto para o Brasil, e por isso escrevi estes dois trabalhos:
1) 895. “Estratégia Nacional de Defesa: comentários dissidentes”, Mundorama (14.03.2009; link: http://mundorama.net/2009/03/14/estrategia-nacional-de-defesa-comentarios-dissidentes-por-paulo-roberto-de-almeida/). Via Política (23.03.2009; link: http://www.viapolitica.com.br/diplomatizando_view.php?id_diplomatizando=92). Relação de Originais n. 1984.
2) 1001. “A Arte de Não Fazer a Guerra: novos comentários à Estratégia Nacional de Defesa”, Revista de Geopolítica (Ponta Grossa, PR; Vol. 1, No 2; jul-dez. 2010, p. 5-20; link : http://www.revistageopolitica.com.br/ojs/ojs-2.2.3/index.php/rg/issue/view/2). Relação de Originais n. 2066.
Tem outros, mas bastam esses dois, por enquanto.
Paulo Roberto de Almeida
Estratégia Nacional de Defesa
Mario Cesar Flores
O Estado de S.Paulo, 31 de agosto de 2011
A Estratégia Nacional de Defesa (END), em vigor desde dezembro de 2008 e desde então aberta ao conhecimento público, vem interessando à opinião pública? Não. Que repercussão teve no Congresso, corresponsável pela defesa, numa democracia? Nenhuma. Este artigo aborda aspectos da END que, esperançosamente, talvez possam contribuir para despertar interesse pelo tema.
Comecemos com uma observação instigante: a END foi formulada por comitê dirigido pelo ministro da Defesa, coordenado pelo secretário de Assuntos Estratégicos e integrado pelos ministros do Planejamento, da Fazenda e de Ciência e Tecnologia, assistidos pelos comandantes das Forças e ouvidas pessoas de saber nessa área. Chama a atenção a não menção ao ministro do Exterior (à época do preparo do documento, o hoje ministro da Defesa...), cuja participação seria supostamente apropriada.
Na contramão da tradição de autonomia das Forças, a END enfatiza o Ministério da Defesa. Afirma que "o ministro exercerá (...) os poderes de direção (...) que a Constituição e as leis não reservarem (...) ao presidente". Centraliza a "política de compras" e preconiza a "unificação doutrinária, estratégica e operacional" das Forças - ideias que respondem à tecnologia moderna e pretendem integrar as visões corporativas das Forças e suas prioridades. Define que o ministro indica ao presidente os comandantes das Forças - uma ruptura com o passado, ao conferir ao ministro a intermediação entre o poder político e o militar.
Sem citar ameaças, diz a END que as Forças devem ser usadas "para resguardar o espaço aéreo, o território e as águas jurisdicionais brasileiras" e que "convém organizar as Forças em torno de capacidade, não em torno de inimigos específicos. O Brasil não tem inimigos no presente" - conceito em princípio correto (ressalte-se o cauteloso no presente...); mas capacidade referenciada a que tipo e grau de ameaça? Ao criticar a concentração (coerente com o passado) do Exército no Sudeste e no Sul e da Marinha no Rio de Janeiro, afirma que "as preocupações mais agudas estão (...) no Norte, Oeste e Atlântico Sul" e sugere esta distribuição: Amazônia e fronteiras, forças dotadas de mobilidade na região central para emprego onde necessário e (à primeira vista, desconectada das preocupações agudas) forças no Sul/Sudeste para defesa da concentração demográfica e econômica (?), além da maior presença naval no Norte.
A tecnologia e seu desenvolvimento são enfatizados. O compromisso com a não proliferação nuclear é complementado pela "necessidade estratégica de desenvolver e dominar essa tecnologia" - supostamente para fins pacíficos, mas fórmula semântica ambígua, usada por países (Irã...) que querem manter aberta a porta nuclear. À ênfase na tecnologia é acrescentado o estímulo à indústria de interesse militar. Parcerias com empresas estrangeiras são condicionadas à transferência de tecnologia. Embora realçando a indústria privada, atribui à estatal o pioneirismo em tecnologia "que as empresas privadas não possam alcançar ou obter (...) de maneira rentável". Importante: é preconizada a continuidade orçamentária indispensável aos projetos longos - e até mesmo à sobrevivência empresarial -, o que há muito não ocorre.
A END afirma que "o Brasil ascenderá ao primeiro plano (...) sem exercer hegemonia e dominação". Correto, mas conviria mencionar que para ser membro permanente do Conselho de Segurança da ONU é condição a responsabilidade correlata, propiciada também por capacidade militar. Não é cogitada a segurança coletiva como a pretendida no Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (Tiar) - sem sentido no pós-guerra fria - e tampouco há menção a substituto sul-americano, acertadamente porque segurança coletiva pressupõe ameaça comum, inexistente. A afirmação de que o Conselho de Defesa Sul-Americano "criará mecanismo consultivo que permitirá prevenir conflitos" aparenta destoar da política regular: prevenir conflitos cabe a organizações políticas - ONU, OEA, Unasul... Sobre esse conselho, é sintomática a frase: "... sem que dele participe país alheio à região", obviamente, os EUA.
A defesa do serviço militar obrigatório responde à responsabilidade de toda a sociedade pela defesa nacional - conceito consensualmente escamoteado: não temos recrutas das camadas superiores da pirâmide social. Entretanto, é preciso conciliá-lo com a tecnologia moderna, que exige capacitação dificilmente adquirida em dez meses de serviço militar por recrutas de instrução modesta. O relevo atribuído à participação em forças internacionais e às forças de pronto emprego e de operações especiais reforça a influência da tecnologia na configuração dos efetivos: elas requerem profissionalização. Diz a END que a tecnologia não é alternativa à mobilização: estará hierarquizando a quantidade sobre a qualidade, ao contrário do mundo de poder militar eficiente? Há que procurar o equilíbrio do ideal republicano com o não comprometimento da eficiência, condicionada pela tecnologia.
Ao afirmar que "o País cuida para evitar que as Forças Armadas desempenhem papel de polícia", a redação "cuida para evitar" aparenta aceitar, a contragosto, o papel de polícia, impróprio numa democracia quando além de episódio crítico que de fato imponha a ação militar transitória. Essa atuação está exigindo, nas palavras da END, "legislação que ordene e respalde as condições específicas e os procedimentos federativos que deem ensejo a tais operações, com resguardo de seus integrantes".
Enfim, o saldo da END é positivo. O reconhecimento da conveniência de sua existência e sua abertura à sociedade já são relevantes, em país onde a defesa nacional não entusiasma a política e a sociedade. Há espaço para aperfeiçoamentos, alguns insinuados neste artigo. Mas é improvável que a END possa satisfazer a dimensão estratégica da inserção internacional do Brasil, a persistir o atual descaso societário e político pela defesa nacional.
ALMIRANTE DE ESQUADRA (REFORMADO)
Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas. Ver também minha página: www.pralmeida.net (em construção).
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Postagem em destaque
Livro Marxismo e Socialismo finalmente disponível - Paulo Roberto de Almeida
Meu mais recente livro – que não tem nada a ver com o governo atual ou com sua diplomacia esquizofrênica, já vou logo avisando – ficou final...
-
Uma preparação de longo curso e uma vida nômade Paulo Roberto de Almeida A carreira diplomática tem atraído número crescente de jovens, em ...
-
FAQ do Candidato a Diplomata por Renato Domith Godinho TEMAS: Concurso do Instituto Rio Branco, Itamaraty, Carreira Diplomática, MRE, Diplom...
-
Países de Maior Acesso aos textos PRA em Academia.edu (apenas os superiores a 100 acessos) Compilação Paulo Roberto de Almeida (15/12/2025) ...
-
Mercado Comum da Guerra? O Mercosul deveria ser, em princípio, uma zona de livre comércio e também uma zona de paz, entre seus próprios memb...
-
Reproduzo novamente uma postagem minha de 2020, quando foi publicado o livro de Dennys Xavier sobre Thomas Sowell quarta-feira, 4 de março...
-
Israel Products in India: Check the Complete list of Israeli Brands! Several Israeli companies have established themselves in the Indian m...
-
Itamaraty 'Memórias', do embaixador Marcos Azambuja, é uma aula de diplomacia Embaixador foi um grande contador de histórias, ...
-
Desde el post de José Antonio Sanahuja Persles (Linkedin) Con Camilo López Burian, de la Universidad de la República, estudiamos el ascens...
-
O Brics vai de vento em popa, ao que parece. Como eu nunca fui de tomar as coisas pelo seu valor de face, nunca deixei de expressar meu pen...
Nenhum comentário:
Postar um comentário