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sábado, 18 de junho de 2016

A Estrategia de Defesa do Brasil e a Integracao Regional - Paulo Roberto de Almeida

Este é o terceiro, e último, trabalho que fiz em torno da Estratégia Nacional de Defesa, para um encontro da Associação Nacional de Estudos de Defesa, focando nos aspectos de integração regional. Antes eu já achava essa perspectiva incômoda, do ponto de vista dos militares; depois de todas as estrepolias anti-democráticas da Unasul e das "invenções" do chamado Conselho de Defesa Sul-Americano, que não é de Defesa, e deveria ser tão simplesmente de Segurança (mas ninguém sabe como seria feito), creio que os militares devem continuar recusando esses exotismos dos companheiros.
A ementa é a seguinte:


Paulo Roberto de Almeida 


A Estratégia Nacional de Defesa e a Unasul: afinidades pouco eletivas

Paulo Roberto de Almeida

Sumário:
1. O que é a END e o que ela tem a dizer sobre a integração sul-americana?
2. Como a integração sul-americana se integra às questões estratégicas?
3. As diretrizes da END e as possibilidades de integração: análise critica
4. A Unasul e a integração utópica da END

Resumo: Análise dos (poucos) elementos integracionistas constantes da END, representados por diretrizes e medidas de implementação, com discussão de sua adequação ao ambiente político-estratégico da América do Sul e ao cenário brasileiro nessa área. Exame crítico dos argumentos do documento e do posicionamento do Brasil em relação aos principais problemas de segurança e de defesa da região. A política sul-americana do governo Lula pretende criar estruturas e mecanismos próprios de atuação no cenário estratégico estrutural, afastando a cooperação com o tradicional parceiro econômico e militar da maior parte dos países. O documento é pouco consistente ou abrangente o suficiente para permitir uma avaliação adequada quanto às suas chances de sucesso.

Palavras-chave: Estratégia Nacional de Defesa. Integração Sul-Americana. Análise.


1. O que é a END e o que ela tem a dizer sobre a integração sul-americana?
A END é considerada, por muitos militares e mesmo por alguns analistas políticos, como um grande avanço no tratamento político das questões de defesa no Brasil. De fato, o simples fato de existir uma, qualquer uma, estratégia de defesa já constitui um avanço sobre a situação precedente, embora existam controvérsias a respeito: o que havia antes era uma “doutrina” da defesa, estabelecida no governo Fernando Henrique Cardoso, que talvez preenchesse as necessidades percebidas pelo governo quanto ao assunto em questão. O governo Lula, não satisfeito em dispor de uma “doutrina” de defesa pré-existente, resolver apresentar sua própria estratégia, que supostamente seria mais completa e mais avançada do que a primeira.
O problema está em que a nova “doutrina” de defesa, equiparada a uma “estratégia”, começa por apresentar diversas inconsistências conceituais e muitas limitações operacionais, a começar pelo fato de exibir uma visão excessivamente grandiosa que, entre outros desvios, comete o equívoco de confundir estratégia de defesa com estratégia de desenvolvimento (Paulo Roberto de Almeida, “Estratégia Nacional de Defesa: comentários dissidentes”, Meridiano 47 (n. 104, março de 2010, p. 5-9; “A Arte de NÃO Fazer a Guerra: novos comentários à Estratégia Nacional de Defesa”, Mundorama, 1.06.2010). Na origem de suas muitas insuficiências conceituais está a intromissão de um tipo de pensamento completamente desconectado das relações de força no mundo real, ou desconhecedor das carências orçamentárias brasileiras, o que poderia ser debitado à personalidade de um de seus formuladores, um acadêmico brasileiro treinado um universidades estrangeiras, convertido politicamente em Secretário de Assuntos Estratégicos, sem provavelmente exibir os requisitos para tal cargo. Não apenas esse fato, mas diversas outras características do documento em questão indicam que ele se encontra sensivelmente fora do foco do que deveria constituir uma verdadeira estratégia de defesa, sendo apenas e tão somente “nacional” (com dúvidas remanescentes a esse respeito).
A integração econômica do Cone Sul, por outro lado, é, supostamente, o projeto prioritário do governo brasileiro no capítulo de sua diplomacia regional, talvez até mais do que regional – projeto diplomático, tout court – e provavelmente com pretensões maiores do que o Cone Sul, abrangendo, no governo Lula, toda a América do Sul e, se possível, toda a América Latina. Seria assim previsível, até inevitável, que a END se ocupasse da “estratégia” de integração sul-americana do governo Lula e disso fizesse um dos pontos centrais de sua estratégia nacional de defesa.
Entretanto, em nenhum outro setor de natureza política da END, suas inconsistências se revelam de modo tão caracterizado quanto na política externa regional, ou seja, no relacionamento com os vizinhos sul-americanos e no tratamento a ser dado às questões estratégicas regionais. Assim como não existe na END uma exposição precisa de quais seriam, no plano internacional, as ameaças latentes ou persistentes à segurança do Brasil, não existe, nesse documento, um diagnóstico sintético de quais seriam os objetivos nacionais em matéria de integração regional e de como a END poderia se encaixar nesse esforço diplomático. O que existem são frases soltas e intenções declaradas, sem que elas possuam, no entanto, uma conexão mais precisa com a realidade sul-americana atual.
Antes de focar mais diretamente nessa área de interesse diplomático, cabe resumir brevemente o que tem a END a dizer sobre a segurança do Brasil. Como caracterização geral, pode-se dizer que “a END, a despeito de seu nome e de seus nobres objetivos, não é bem uma estratégia e tampouco se destina, em sua conformação atual, à defesa do País. Ela é, no máximo, nacional...” (Almeida, “Estratégia Nacional de Defesa: comentários dissidentes”, op. cit.). Pode-se identificar, na END, uma característica essencialmente “gaullista”, o que não é necessariamente uma má qualidade, mas tampouco precisa ser considerado um componente indispensável, tendo em vista os custos implícitos de uma visão essencialmente soberanista e nacionalista da defesa nacional. Nenhum país desejoso de afirmar seus interesses nacionais de modo soberano pode basear sua defesa nacional na ilusão da cooperação externa; mas nenhuma autoridade nacional tem o direito de ignorar realidades econômicas na construção de sua estratégia de defesa.
No plano estritamente econômico, pode-se ainda registrar que a END é essencialmente antieconômica, não apenas por propor uma estratégia grandiosa, inalcançável no plano dos recursos disponíveis, mas, sobretudo, por propor um caminho de realização dessa estratégia que não leva em conta o princípio básico da escassez de recursos. Mesmo no plano mais geral de suas formulações, é também notório que o documento falha em identificar claramente onde estariam as ameaças ao Brasil, como se o conceito de defesa não implicasse em seu complemento necessário: contra o quê, exatamente, ou contra quem? Trata-se, simplesmente, de uma das mais notáveis falhas da END. Ela constitui, na ausência de um quadro geopolítico mais amplo sobre quais seriam as fontes mais prováveis de ameaças ao Brasil, uma defesa in abstracto, geral e vaga. A acreditar em certas formulações do documento, se trataria de um oponente muito poderoso, mais provavelmente de uma coalizão de países avançados, o que já denota toda uma filosofia política que está inegavelmente vinculada a certas correntes partidárias portadoras de uma visão peculiar, em certo sentido anacrônica, do mundo como ele é e de como o Brasil nele se situa.
No que se refere especificamente à problemática sul-americana, ou integracionista, o documento é bastante genérico e evasivo, limitando-se a algumas frases de efeito mais retórico do que operacional. Em todo caso, vejamos o que a END teria a dizer nesse terreno. O documento traça, inicialmente, as chamadas diretrizes da Estratégia Nacional de Defesa, seção na qual, em seu enunciado de número 18, recomenda “Estimular a integração da América do Sul”, dizendo isto:
Essa integração não somente contribuirá para a defesa do Brasil, como possibilitará fomentar a cooperação militar regional e a integração das bases industriais de defesa. Afastará a sombra de conflitos dentro da região. Com todos os países avança-se rumo à construção da unidade sul-americana. O Conselho de Defesa Sul-Americano, em debate na região, criará mecanismo consultivo que permitirá prevenir conflitos e fomentar a cooperação militar regional e a integração das bases industriais de defesa, sem que dele participe país alheio à região.

Em outros termos, se invocam objetivos e propósitos meritórios, mas o documento não vai além disso; trata-se mais propriamente de uma assemblagem de frases sem grande coerência entre si, e muito pouco condizente com o que se poderia chamar de “diretrizes”. A temática aparece novamente na segunda parte da END, que se refere às “medidas de implementação”. Ali se recomenda o “estreitamento da cooperação entre os países da América do Sul e, por extensão, com os do entorno estratégico brasileiro” (ou seja, o Brasil designa os países do entorno como de seu interesse “estratégico”, o que pode aparecer como uma demonstração de arrogância pouco diplomática). Em todo caso, na seção voltada para a “Estabilidade Regional”, o documenta elenca as medidas pensadas para sustentar sua manutenção:
1. O Ministério da Defesa e o Ministério das Relações Exteriores promoverão o incremento das atividades destinadas à manutenção da estabilidade regional e à cooperação nas áreas de fronteira do País.
2. O Ministério da Defesa e as Forças Armadas intensificarão as parcerias estratégicas nas áreas cibernética, espacial e nuclear e o intercâmbio militar com as Forças Armadas das nações amigas, neste caso particularmente com as do entorno estratégico brasileiro e as da Comunidade de Países de Língua Portuguesa.
3. O Ministério da Defesa, o Ministério das Relações Exteriores e as Forças Armadas buscarão contribuir ativamente para o fortalecimento, a expansão e a consolidação da integração regional, com ênfase na pesquisa e desenvolvimento de projetos comuns de produtos de defesa.

Representantes do Ministério das Relações Exteriores devem, supostamente, ter participado da redação dessa seção do documento. Mas o fato é que ele revela uma atitude que os anglo-saxões chamariam de “too patronizing”, ou seja, voluntária ou involuntariamente protetora, segura de si e algo sobranceira. Não é preciso dizer que essa fórmula não constitui a melhor receita para começar a construir a “integração estratégica” na região; ao contrário, pode ser totalmente contraproducente.

2. Como a integração sul-americana se integra às questões estratégicas?
Na verdade, o documento quase não trata de duas das grandes prioridades da política externa do governo Lula (que constituem, aliás, opções diplomáticas preferenciais herdadas da gestão anterior): o reforço do Mercosul e a integração política e física da América do Sul (sendo duas outras o ingresso do Brasil no Conselho de Segurança e a conclusão das negociações comerciais multilaterais). Quando o faz, as menções são puramente retóricas, sem a perspectiva de uma integração real, igualitária, ou sem discutir as condições segundo as quais a estratégia brasileira de defesa se amoldaria aos objetivos da integração (talvez vice-versa, na concepção de seus autores). Os vizinhos são basicamente considerados como clientes potenciais da indústria brasileira de defesa, que deveria ser totalmente independente, no espírito da END, embora a mesma autonomia não seja contemplada precipuamente do ponto de vista dos vizinhos. A “integração estratégica” parece ser algo puramente instrumental, feita expressamente para viabilizar economias de escala para a indústria nacional, diluindo, portanto, seus custos fixos entre um número maior de clientes (talvez de “dependentes”, condição que se recusa para o próprio Brasil).
Em outros termos, a “integração estratégica” não convive nos melhores termos com a integração, que deveria ser estimulada nos terrenos econômico e comercial. Ela constitui uma entidade à parte, quase destacada do resto, e vem sendo promovida politicamente pelo governo brasileiro com outros objetivos que não os da integração. O Conselho de Defesa Sul-Americano, por exemplo – que não é bem de defesa, mas simplesmente de coordenação tentativa da segurança regional  – parece ter sido criado para servir a esses mesmos objetivos, e sua característica mais realçada é a de que ele seria conduzido sem qualquer parceiro externo à própria região. Este é, por sinal, o traço identificador da “estratégia regional” e de toda a diplomacia do governo Lula: afastar a região das garras consideradas perversas do “império”.
Essa busca de ‘isolamento’ dos EUA do resto da região – como se tal fosse possível – parece resultar de dois elementos combinados, a partir de dois vetores completamente diferentes: por um lado, a tradicional necessidade militar de definir ‘ameaças’ credíveis – e não se concebe qualquer outra ameaça efetiva na região, depois da normalização das relações com a Argentina – agora parcialmente coberta pela figura da ‘potência superior’; por outro lado, o anti-imperialismo infantil, e completamente démodé, de setores políticos da base de sustentação do governo e da esquerda acadêmica esclerosada. Essas intenções ficaram desde o início muito claras com o tratamento totalmente assimétrico dado aos casos das relações do Brasil com a Colômbia, por um lado – considerada aliada dos EUA na região – e, por outro lado, com a Venezuela, objeto de uma leniência incompreensível, em face das ações e iniciativas do regime atual em relação aos focos existentes de instabilidade – como o das FARC, por exemplo, ademais da próprias compras militares do pais caribenho.
Esse exclusivismo regional, à exclusão do grande irmão hemisférico, e a política de aproximação do Brasil com parceiros ‘emergentes’ ditos estratégicos – como a Índia, por exemplo – podem vir a ser fontes de problemas na estratégia brasileira de integração regional, na área política e de segurança, inclusive porque isso tem implicações para os problemas da cadeira no CSNU e o da opção nuclear. A política de aproximação com o Irã e os esforços feitos em torno da suposta vocação pacífica do programa nuclear do país persa podem, aliás, ter aberto novas fontes de suspeição contra o Brasil na própria região, o que pode dificultar o pretendido papel de liderança regional. Esse projeto, já por si irrealista, ficou de resto prejudicado pelo tratamento no mínimo inamistoso demonstrado pelo governo Lula em face dos acordos da Colômbia com os EUA, o único país do hemisfério que se dispôs a ajudar o vizinho andino na luta contra os narcotraficantes travestidos em guerrilheiros.
É relevante registrar que, para que o Brasil pudesse realizar seus objetivos regionais, sobretudo o da integração sub-regional e sul-americana – que supostamente são os mais valorizados pela diplomacia brasileira, ademais de constituírem a própria base da cooperação regional no terreno da segurança e, talvez, da defesa –, o Brasil precisaria utilizar-se muito mais dos elementos de soft power da economia do que daqueles de hard power, pelo lado da defesa. Na verdade, o Brasil já possui, teórica ou hipoteticamente, as condições potenciais para praticar soft power na região, não o fazendo, entretanto, por razões históricas, políticas e de carência de recursos.
Esse soft power estaria baseado na abertura irrestrita do seu mercado interno a todos os vizinhos sul-americanos, de forma integral e incondicional – vale dizer, sem qualquer exigência de reciprocidade – e na concepção e implementação de imenso esforço de cooperação bilateral com cada um deles (acolhendo bolsistas no Brasil, por exemplo, e desenvolvendo projetos nesses países); cabe considerar, ademais, o papel crucial do investimento direto brasileiro na região, essencialmente a cargo do setor privado (eventualmente estimulado por políticas governamentais) e de uma ou outra estatal (Petrobras). O fato é que o Brasil não tem condições de exercer esse soft power, seja porque o país é naturalmente protecionista, em suas disposições internas, seja porque os arranjos do Mercosul não o permitiriam, nas atuais condições.
A questão hemisférica, por sua vez, tem a ver com as relações do Brasil com o ‘império’, atualmente considerado uma presença nitidamente não desejada e não desejável na região, sequer como parceiro (a menos que seja como fornecedor complacente da tecnologia necessária à capacitação brasileira em defesa). Pode-se até conceber essa ‘opção’ como uma derivação lógica – ainda que não assumida publicamente, por notórias implicações políticas – da antiga tese do chanceler Rio Branco quanto a uma divisão de tarefas no hemisfério: o império fica com o norte (aqui compreendendo todo o Caribe e América Central) e o Brasil se ‘ocupa’ da América do Sul. Mesmo admitindo que esse tipo de ‘missão compartilhada’ seja admissível ou possível, na prática – com todos os problemas ligados a uma suposta liderança brasileira na região – ela não resolve nenhum dos demais problemas vinculados à presença internacional brasileira ou, sobretudo, ao CSNU, que passam inevitavelmente por uma ‘boa relação’ de cooperação ativa com o império (algo ainda não admitido até aqui).

3. As diretrizes da END e as possibilidades de integração: análise critica
As diretrizes da END para a integração regional são as mais primárias possíveis, representando, se tanto, um ajuntamento de frases sem conexão lógica entre si e que constituem um emaranhado de boas intenções e de desejos otimistas que guardam poucos vínculos com a realidade. Cabe um exame circunstanciado de seus enunciados e proposições, o que faremos a seguir, topicamente.
1) Essa integração não somente contribuirá para a defesa do Brasil, como possibilitará fomentar a cooperação militar regional e a integração das bases industriais de defesa.
Trata-se de uma expressão de vontade política, que carece de bases empíricas e de sentido das proporções, uma vez que o conceito de integração e sua realidade efetiva não são definidos, podendo significar distintas configurações, segundo se fale da cooperação econômica, da unificação econômica ou de mera troca de consultas políticas, como ocorre atualmente. A integração comercial, em si, enquanto processo fundamentalmente econômico, mas de características basicamente políticas, não tem tanto a virtude de contribuir para a defesa do Brasil, assim como não o faria para a defesa de qualquer outro país, quanto tem a possibilidade de afastar hipóteses de guerra com países vizinhos com os quais se busca integrar, o que é completamente diferente. A história europeia fornece um bom exemplo no gênero.
A integração da França e da Alemanha, por exemplo, primeiro através do tratado de Paris – Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, 1951 – e depois pela via dos Tratados de Roma e os vários instrumentos subsequentes – que, a partir de 1957, criaram o Mercado Comum Europeu, em seguida as Comunidades Europeias e que, sobretudo a partir do Tratado de Maastricht, de 1992, consolidaram o conjunto numa verdadeira União Europeia, dotada supostamente de mecanismos de defesa e de uma política externa comum – certamente afastou a hipótese de conflito entre os dois maiores países continentais da Europa – os mesmos que tinham se enfrentado em três conflitos terríveis entre 1870 e 1945 – e tornou totalmente remota a possibilidade, até mesmo teórica, de novas guerras entre ambos. Mas ela não afastou a necessidade de políticas de defesa de cada um deles, definidas no âmbito puramente nacional, ou a preocupação com a defesa de ambos, tomados conjuntamente.
Tanto isso é verdade que as principais potências militares da integração europeia – França, Alemanha e Reino Unido – adotaram trajetórias completamente diferentes em suas políticas nacionais – seria bom sublinhar – de defesa e no quadro de suas alianças externas. A França gaullista, amuada com a arrogância do poder imperial americano sobre a Europa do pós-guerra, resolveu desenvolver sua force de frappe independente, inclusive com vetor nuclear completamente autônomo, decidiu abandonar os esquemas militares da OTAN e continuou, durante muito tempo (talvez até hoje), a sabotar os esforços de integração estratégica europeia sobre a base do predomínio militar americano, através da OTAN ou fora dela, no que se constituiu em longa história de equívocos e desentendimentos desde o voto negativo sobre a Comunidade Europeia de Defesa (1953) até a intervenção da OTAN na Bósnia e no Kossovo. A Alemanha, por sua vez, continuou a ser um anão militar desarmado nuclearmente, sob as asas do grande irmão americano, e apenas recentemente ensaia alguma doutrina própria de defesa estratégica, de toda forma seguramente inserida nos esquemas americanos para o equilíbrio euroasiático. O Reino Unido, por fim, desde a diminuição do Império Britânico ainda durante a Segunda Guerra Mundial, tornou-se o mais fiel aliado – o que nem Israel é – do novo império universal, e foi o mais consistente defensor dos interesses americanos (dentro e fora da OTAN) na definição de diretrizes europeias relativas à defesa e segurança. Não por outros motivos a União da Europa Ocidental – que deveria ser o embrião de uma perna europeia na área da defesa – resultou totalmente carente de significado, até ser extinta nos arranjos ulteriores feitos em nível comunitário (que, aliás, permanecem débeis).
Ou seja, a integração entre o Brasil e a Argentina, a consolidação do Mercosul – hoje algo nitidamente hipotético – ou sequer a integração imaginária da América do Sul não possuem, por elas mesmas, quaisquer virtudes na área estratégica ou de defesa, se não forem acompanhadas de medidas apropriadas nos mecanismos e instituições pertinentes a esses objetivos. Os autores do documento, na parte relativa às diretrizes para a integração não sabem, portanto, do que estão falando, ou então não se detiveram em examinar minimamente o conteúdo real do processo de integração em curso na região, dentro e fora do Mercosul. Se o fizerem, vão se decepcionar.

2) [A integração] Afastará a sombra de conflitos dentro da região.
A frase tem escasso significado real, dentro ou fora de seu parágrafo; ela não tem sentido muito lógico, nem qualquer embasamento nos dados da realidade. Nenhum projeto de integração superficial, como tem sido o itinerário de esquemas integracionistas na América Latina, tem o poder de estancar fontes de conflito ou impedir focos de tensão entre os países da região, como a própria história ensina.
Peru-Equador, Chile-Argentina, Chile-Bolívia, Chile-Peru, Venezuela-Colômbia, todos esses países pertencem ao mesmo acordo integracionista geral existente na região, o do Tratado de Montevidéu-1960, que criou a Alalc (Associação Latino-Americana de Livre Comércio, substituído, em 1980, pelo segundo Tratado de Montevidéu que, aproveitando as facilidades permitidas pela Cláusula de Habilitação aprovada na Rodada Tóquio de Negociações Comerciais Multilaterais do GATT, criou a Aladi (Associação Latino-Americana de Integração). Ainda que vinculados pelos mesmos esquemas de integração comercial formalmente adotados entre eles – ademais de esquemas próprios, bilaterais ou plurilaterais, de preferências comerciais – esses pares de países estiveram (alguns ainda estão) em conflito direto ou indireto, no plano geopolítico, com pontos de fricção emergindo por vezes em apelos militares.
Não se pode excluir, assim, que os mais recentes esquemas de integração patrocinados pelo Brasil – Comunidade Sul-Americana de Nações, substituída pela Unasul, e dentro desta o Conselho de Defesa – sejam incapazes de prevenir ou de evitar o surgimento de conflitos entre os países da região. A frase, portanto, tal como figura na END, é obviamente irrealista, deixando de levar em conta fatores históricos, estruturais ou até político-contingentes que podem suscitar o surgimento de tensões militares na região. Em sua ingenuidade simplista, esse tipo de argumento reproduz a mesma postura idealista, e carente de pragmatismo, que marcou a Europa da belle époque, ou seja, previamente à Primeira Guerra Mundial, tal como refletida nas páginas de um jornalista que acreditava que a integração financeira dos países europeus os impediriam de recorrer à guerra para resolver suas diferenças.
Com efeito, em The Great Illusion, publicado em 1910, Norman Angell dizia que a profunda mudança efetuada pelo crédito e a interdependência delicada das finanças internacionais tinham tornado a guerra irracional e talvez mesmo impossível, uma vez que nenhuma força física poderia superar a força das finanças (Cf. Norman Angell, The Great Illusion: A Study of the Relation of Military Power to National Advantage (New York and London: G. P. Putnam's Sons, 1910); em menos de cinco anos, as mesmas potências financeiras se dilaceravam mutuamente nos campos de batalha. Não caberia esperar comportamento mais civilizado do que o dos europeus da belle époque no âmbito das relações interestatais na América do Sul.

3) Com todos os países avança-se rumo à construção da unidade sul-americana.
Como a frase precedente, peca por excesso de otimismo. Como está, trata-se apenas da expressão de um mero desejo, podendo talvez figurar em algum pronunciamento político de campanha eleitoral, mas é imprópria para figurar num documento sobre “diretrizes” de defesa. A realidade regional, vista por qualquer ângulo que se deseje, desmente cabalmente esse tipo de assertiva.
A despeito da retórica integracionista das reuniões presidenciais nos últimos dez anos – grosso modo, desde o primeiro encontro de chefes de Estado e de governo realizado em Brasília em 2000 – não existe o mínimo sinal prático de que os países possuam visões convergentes, e menos ainda coincidentes, sobre a integração. Isso não se dá apenas porque os governos divergem entre si quanto às prioridades de todos e cada um no que respeita ao processo de integração; cabe também registrar que o documento central desse processo, o tratado constitutivo da Unasul, é inacreditavelmente vago e impreciso quanto aos mecanismos, modalidades e objetivos concretos – ou seja, metas e prazos – pelos quais essa integração deveria ser implementada, a começar pela sua total falta de conteúdo quanto aos componentes econômicos e comerciais desse processo. Raramente se assistiu a tamanho esforço de reuniões de cúpula em torno de objetivos tão carentes de conteúdo quanto os da Unasul, a ponto de se poder afirmar, como na frase clássica, que a montanha pariu um rato. De fato, contrariamente ao que pretende essa frase da END, não se vislumbra nenhum sinal de que a unidade sul-americana esteja sendo construída, embora tal ambiente negativo não possa ser creditado, sob qualquer aspecto, ao tratado constitutivo da Unasul – inócuo para todos os efeitos – ou à proposta do Conselho de Defesa: as raízes da desintegração devem ser buscadas em outros fatores, não suscetíveis de serem equacionados por tratados ou acordos políticos entre os países.

4) O Conselho de Defesa Sul-Americano, em debate na região, criará mecanismo consultivo que permitirá prevenir conflitos e fomentar a cooperação militar regional e a integração das bases industriais de defesa, sem que dele participe país alheio à região.
Esse parágrafo da END consiste em uma longa frase, dividida em seis partes, das quais apenas duas, a primeira e a última, apresentam qualquer sentido de realidade; a primeira apenas involuntariamente, sendo que as demais constituem a expressão de desejos idealistas, não de elementos que possam ser considerados como constitutivos de diretrizes para a defesa, quaisquer que sejam eles. Vejamos.
O Conselho não está mais em debate; já foi criado. Congratulações aos seus promotores: trata-se de um excelente motivo para viagens pagas, para travar maior conhecimento pessoal com os contrapartes da região – o que até agora já estava sendo feito, apenas que com a presença e o olho vigilante do grande irmão – e até para fomentar o intercâmbio acadêmico “sul-sul” na área militar, o que também já estava sendo feito, cabendo apenas observações sobre o programa, a necessidade de tradução simultânea e o conforto das acomodações (descontando a qualidade da comida, que deve continuar sofrível em todas as circunstâncias). Mas um Conselho, qualquer conselho, é apenas uma estrutura amorfa; sua eficácia depende da definição dos temas da agenda, da qualidade dos participantes, da decisão dos países membros de trazer, ou não, questões relevantes para debate e de sua capacidade de tornar resoluções de natureza meramente recomendatória em realidades tangíveis nos campos em que pretenderia atuar. Isso não ocorre de modo automático, como é sabido.
A única outra realidade tangível da “diretriz” em questão é a que diz que o Conselho é um “mecanismo” – seja lá o que isso queira dizer – “sem que dele participe país alheio à região”. Ou seja, a intenção, agora expressamente declarada, era mesmo afastar o grande irmão das deliberações e esquemas próprios à América do Sul. Numa interpretação mais generosa, pode se tratar de uma demonstração de independência política e militar, um atestado de maioridade que os países se atribuem, dizendo que podem caminhar com suas próprias pernas na área da defesa, sem necessitar equipamentos, instrução, cooperação e, sobretudo, “conselhos” do grande irmão, que alguns sempre tomaram como imposições unilaterais. Numa interpretação mais rasteira, pode também representar mais uma dessas demonstrações birrentas do anti-imperialismo infantil que teima em percorrer o continente de tempos em tempos, sempre quando um desses partidos identificados com a “soberania nacional” e a “defesa dos interesses nacionais” ascende ao poder político.
Não deveria haver maiores problemas em se dispor de um Conselho apenas reunindo os primos pobres do continente, sempre quando alguns dos integrantes se julgassem livres, como de fato alguns o fazem, para visitar o primo rico quando isso lhes convier (ou quando a necessidade se impuser), inclusive porque se supõe que o Conselho disponha, entre seus membros apenas, de muito poucas capacidades logísticas e operacionais que atendam aos requerimentos de todos e de cada um. Enfim, se supõe que a partir de agora se prescindirá, pelo menos, da necessidade de gastos com interpretação simultânea; mas nem isso é certo, pois nuestros hermanos parecem duros de orelha ao ouvir o outro idioma ibérico (nem tão diferente assim).
Quanto ao núcleo mesmo dessa frase, que diz que o Conselho “permitirá prevenir conflitos e fomentar a cooperação militar regional e a integração das bases industriais de defesa”, as mesmas observações anteriores se aplicam. Ele poderá, presumivelmente, fomentar a cooperação militar regional, quaisquer que sejam os contornos exatos, as limitações intrínsecas e as virtudes pedagógicas desse tipo de cooperação. Poderá, até, mas dificilmente, tentar a integração das bases industriais de defesa, supondo-se que projeto similar exista nos demais países, como parece ser a intenção do grande irmão brasileiro em criar algo parecido em seu próprio sistema econômico. Digamos que tudo isso seja possível, ainda que pareça pouco provável que daí resultem grandes enriquecimentos e fortalecimentos dos esquemas nacionais de defesa e de segurança (nunca se deve desprezar, porém, vontades tão afirmadas quanto as que se revelam por trás dessas diretrizes, assim como da própria END).
No que se refere, finalmente, à pretensão de “prevenir conflitos”, trata-se certamente de meta ambiciosa, provavelmente inédita nos anais da história militar mundial. Ela está eivada de otimismo antecipado quanto às virtudes pacificadoras do citado Conselho. Não existe registro de Conselhos, sempre de natureza puramente burocrática, que tenham evitado conflitos e até guerras entre contendores estratégicos; aliás, nem tratados de paz o fizeram. Não é preciso recordar aqui o patético registro dos volteios da Liga das Nações nos casos da Itália e do Japão, para citar apenas dois exemplos de falência completa dos mecanismos de segurança coletiva; ou os esforços (se verdadeiramente ocorreram) do Conselho de Segurança da ONU em relação às muitas guerras travadas desde sua criação (ainda que o CSNU, de fato paralisado por décadas de enfrentamentos ideológicos entre seus principais membros, nunca tenha sido tão pretensiosamente de “defesa” quanto o novo exemplo sul-americano). Nem é preciso lembrar que a OTAN, que dispõe de diversos mecanismos de consulta e de coordenação, bem como de instrumentos de efetiva integração militar entre os seus membros, sequer conseguiu evitar conflitos em sua esfera de atuação própria, como os ocorridos entre a Grécia e a Turquia em torno de Chipre e de algumas ilhas do mar Egeu. Se o Conselho de Defesa Sul-Americano conseguir realizar essa verdadeira proeza de evitar, preventivamente, conflitos entre os países membros, será uma première mundial, a ser saudada nos anais da diplomacia e da história militar.

No que se refere, por outro lado, às “medidas de implementação” da END, no tocante à integração regional, alguns curtos comentários podem ser úteis.
1. O Ministério da Defesa e o Ministério das Relações Exteriores promoverão o incremento das atividades destinadas à manutenção da estabilidade regional e à cooperação nas áreas de fronteira do País.
Excelente. Talvez ambos pudessem começar pelos fatores de instabilidade regional e de baixa (ou nenhuma) cooperação nas fronteiras. Do ponto de vista exclusivo do Brasil, eles começam pelas movimentações de agentes das FARC nas fronteiras amazônicas e no próprio interior do Brasil, certamente com envolvimento no tráfico de drogas e na lavagem de dinheiro sujo, possivelmente também no contrabando de armas, entre outros exemplos de atividades criminosas. Existe também muito contrabando de drogas e de diversos outros bens (e “serviços”) nas fronteiras situadas do coração da América do Sul. Mas tudo isso é amplamente conhecido, para não receber a atenta atenção (sendo redundante) das agências em questão. Se o Brasil quisesse ser ainda mais proativo, também promoveria estabilidade e paz em fronteiras atualmente sob forte tensão, como podem ser as da Colômbia com a Venezuela e o Equador, ou então entre a Venezuela e a Guiana, a propósito de velhas reivindicações de território, que já ameaçaram transbordar para o terreno militar. Ou faria ainda mais: em lugar de tratar “assimetricamente” da suposta ameaça regional representada pelos acordos de cooperação militar entre a Colômbia e os EUA, não deixaria convenientemente de lado acordos militares, de cooperação e de aquisição de equipamentos militares por parte de países vizinhos, sem distingui-los em função de qualquer simpatia política ou afinidade ideológica entre partidos no poder. O Conselho de Defesa não pode se abrir seletivamente a certos casos, enquanto afasta seletivamente aqueles temas considerados politicamente “menos interessantes”.

2. O Ministério da Defesa e as Forças Armadas intensificarão as parcerias estratégicas nas áreas cibernética, espacial e nuclear e o intercâmbio militar com as Forças Armadas das nações amigas, neste caso particularmente com as do entorno estratégico brasileiro e as da Comunidade de Países de Língua Portuguesa.
Essa “medida de implementação” é claramente “inimplementável”, tanto em seu objeto próprio – as “parcerias estratégicas” em áreas claramente fora do escopo e das possibilidades da maior parte dos países visados –, como em função dos limitados recursos disponíveis no Brasil. Trata-se de uma dispersão de esforços, de uma perda de foco na implementação de uma (qualquer uma) estratégia nacional de defesa, e que coloca uma responsabilidade ainda maior nas já estressadas FFAA brasileiras. Existe também uma dúvida sobre quais seriam as “nações amigas”; supostamente são todos os vizinhos latino-americanos e os países da CPLP, independentemente da natureza de seus regimes políticos, das orientações efetivas de seus governos e das linhas básicas de suas diplomacias respectivas (o que faz supor, a priori, que todos estejam favoravelmente bem dispostos em relação ao Brasil). Em todo caso, pelo que se deduz de outras partes do documento, já sabemos, pelo menos, quais são as nações “não amigas”: seriam, presumivelmente, os países avançados, um em especial, mas uma coalizão deles de maneira geral, pois que se quer afastar “país alheio à região” (o que chega a ser mesquinhamente ridículo em seu anti-imperialismo primário, já que se trata, simplesmente, do país que mais condições oferece, ainda que de forma interessada, de fornecer a cooperação militar requerida pelas nossas FFAA).

3. O Ministério da Defesa, o Ministério das Relações Exteriores e as Forças Armadas buscarão contribuir ativamente para o fortalecimento, a expansão e a consolidação da integração regional, com ênfase na pesquisa e desenvolvimento de projetos comuns de produtos de defesa.
Pode-se desejar sucesso a este formidável empreendimento coletivo. Seria desejável, porém, que antes de chegar a esse ponto tão sofisticado, se assegurasse a plena e simples integração na área de produtos e serviços corriqueiros, ou seja, a liberalização comercial completa, como aliás estabelecido no artigo primeiro do Tratado de Assunção, até hoje não implementado. Quando se chegar a um mercado comum digno desse nome, ou, pelo menos, a uma zona de livre comércio efetiva, pode-se passar a pensar em etapas mais avançadas da integração.

4. A Unasul e a integração utópica da END
A END é um documento embrionário, pouco efetivo no que se refere a uma definição da verdadeira estratégia de defesa do Brasil, e ainda menos relevante no tocante às “diretrizes” para a integração regional ou às “medidas de implementação” a ela associadas. Provavelmente se necessitará revisar todo o documento, e não apenas a parte que toca no problema da integração regional. No que toca este aspecto específico, ou seja, suas propostas pretensamente integracionistas, as insuficiências são ainda mais gritantes do que para o resto de seus argumentos políticos, também eivados de equívocos diversos.
O cenário estratégico regional é, de toda forma, suficientemente complexo, e confuso, para poder ser “equacionado” por um documento tão genérico e vago quanto a END, em especial em setores tão sensíveis, no plano nacional, como doutrinas, mecanismos, órgãos e ferramentas de defesa e de segurança estratégica. A END propõe poucos elementos concretos nessas áreas, a não ser a expressão de desejos otimistas e de programas ambiciosos, num exercício mais retórico do que verdadeiramente operacional e factível (e não apenas em função dos recursos limitados do Brasil). Seus principais problemas, nessa área, são de concepção e de orientações políticas, fortemente marcadas, no governo Lula, por algumas inclinações bizarras da equipe no poder. Não se pode, claro, descurar o imenso trabalho técnico que transparece em porções significativas da END, graças aos esforços dos militares e de tecnocratas competentes na área da defesa. Mas as partes de orientação mais nitidamente política são muito vagas e de fato desorientadas para merecer sequer uma crítica mais aprofundada.
Se, e quando, uma END – qualquer uma digna desse nome – vier a ser novamente apresentada no Brasil, e se a nova contiver conceitos claros e definições compreensíveis e minimamente dotados de algum significado concreto no tocante ao problema da integração regional, pode-se tentar fazer um exame das interações entre essas questões e o problema da segurança estratégica do Brasil. No estágio atual de elaboração, totalmente embrionário e nitidamente insuficiente para um exame em detalhe e uma análise abrangente de suas implicações para uma END do Brasil, as poucas considerações sobre integração regional do documento atual não justificam um exercício exegético muito sofisticado, inclusive porque as poucas frases alinhadas de forma desalinhada no documento não são nada sofisticadas. Ao contrário: elas apenas refletem o estado de confusão mental de quem elaborou essa parte da END, provavelmente um grupo de pessoas (daí os acréscimos inconsistentes). Seus problemas mais graves, porém, derivam de um total desalinhamento seja com o estado atual da integração regional, seja com os requerimentos de uma estratégia de defesa que tenha de manter interações com países vizinhos, amigos ou não.
A importância do tema, contudo, justificaria um novo exame da questão, mas em outras bases e a partir de argumentos mais consistentes, epistemologicamente coerentes e embasados na realidade nacional e regional. Uma nova equipe, dotada de especialistas reputados nos temas próprios da END, poderia se dedicar a um exame realista do cenário estratégico internacional e regional, com vistas a oferecer uma segunda versão desse documento relevante para as forças de defesa do Brasil.



quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Estrategia Nacional de Defesa - Mario Cesar Flores

Concordo com o Almirante Flores em que a END não tem sido suficientemente debatida pela sociedade, aliás nem pelo Parlamento, só por um punhado de abnegados estudiosos da defesa nacional. Sem me classificar entre os especialistas, eu também me permiti ler, e criticar, a END, mais do ponto de vista econômico, e no plano das relações internacionais, do que propriamente nos conceitos de defesa, para o que confesso minha ignorância. Mas, creio que sei medir seu impacto para o Brasil, e por isso escrevi estes dois trabalhos:

1) 895. “Estratégia Nacional de Defesa: comentários dissidentes”, Mundorama (14.03.2009; link: http://mundorama.net/2009/03/14/estrategia-nacional-de-defesa-comentarios-dissidentes-por-paulo-roberto-de-almeida/). Via Política (23.03.2009; link: http://www.viapolitica.com.br/diplomatizando_view.php?id_diplomatizando=92). Relação de Originais n. 1984.

2) 1001. “A Arte de Não Fazer a Guerra: novos comentários à Estratégia Nacional de Defesa”, Revista de Geopolítica (Ponta Grossa, PR; Vol. 1, No 2; jul-dez. 2010, p. 5-20; link : http://www.revistageopolitica.com.br/ojs/ojs-2.2.3/index.php/rg/issue/view/2). Relação de Originais n. 2066.

Tem outros, mas bastam esses dois, por enquanto.
Paulo Roberto de Almeida

Estratégia Nacional de Defesa
Mario Cesar Flores
O Estado de S.Paulo, 31 de agosto de 2011

A Estratégia Nacional de Defesa (END), em vigor desde dezembro de 2008 e desde então aberta ao conhecimento público, vem interessando à opinião pública? Não. Que repercussão teve no Congresso, corresponsável pela defesa, numa democracia? Nenhuma. Este artigo aborda aspectos da END que, esperançosamente, talvez possam contribuir para despertar interesse pelo tema.

Comecemos com uma observação instigante: a END foi formulada por comitê dirigido pelo ministro da Defesa, coordenado pelo secretário de Assuntos Estratégicos e integrado pelos ministros do Planejamento, da Fazenda e de Ciência e Tecnologia, assistidos pelos comandantes das Forças e ouvidas pessoas de saber nessa área. Chama a atenção a não menção ao ministro do Exterior (à época do preparo do documento, o hoje ministro da Defesa...), cuja participação seria supostamente apropriada.

Na contramão da tradição de autonomia das Forças, a END enfatiza o Ministério da Defesa. Afirma que "o ministro exercerá (...) os poderes de direção (...) que a Constituição e as leis não reservarem (...) ao presidente". Centraliza a "política de compras" e preconiza a "unificação doutrinária, estratégica e operacional" das Forças - ideias que respondem à tecnologia moderna e pretendem integrar as visões corporativas das Forças e suas prioridades. Define que o ministro indica ao presidente os comandantes das Forças - uma ruptura com o passado, ao conferir ao ministro a intermediação entre o poder político e o militar.

Sem citar ameaças, diz a END que as Forças devem ser usadas "para resguardar o espaço aéreo, o território e as águas jurisdicionais brasileiras" e que "convém organizar as Forças em torno de capacidade, não em torno de inimigos específicos. O Brasil não tem inimigos no presente" - conceito em princípio correto (ressalte-se o cauteloso no presente...); mas capacidade referenciada a que tipo e grau de ameaça? Ao criticar a concentração (coerente com o passado) do Exército no Sudeste e no Sul e da Marinha no Rio de Janeiro, afirma que "as preocupações mais agudas estão (...) no Norte, Oeste e Atlântico Sul" e sugere esta distribuição: Amazônia e fronteiras, forças dotadas de mobilidade na região central para emprego onde necessário e (à primeira vista, desconectada das preocupações agudas) forças no Sul/Sudeste para defesa da concentração demográfica e econômica (?), além da maior presença naval no Norte.

A tecnologia e seu desenvolvimento são enfatizados. O compromisso com a não proliferação nuclear é complementado pela "necessidade estratégica de desenvolver e dominar essa tecnologia" - supostamente para fins pacíficos, mas fórmula semântica ambígua, usada por países (Irã...) que querem manter aberta a porta nuclear. À ênfase na tecnologia é acrescentado o estímulo à indústria de interesse militar. Parcerias com empresas estrangeiras são condicionadas à transferência de tecnologia. Embora realçando a indústria privada, atribui à estatal o pioneirismo em tecnologia "que as empresas privadas não possam alcançar ou obter (...) de maneira rentável". Importante: é preconizada a continuidade orçamentária indispensável aos projetos longos - e até mesmo à sobrevivência empresarial -, o que há muito não ocorre.

A END afirma que "o Brasil ascenderá ao primeiro plano (...) sem exercer hegemonia e dominação". Correto, mas conviria mencionar que para ser membro permanente do Conselho de Segurança da ONU é condição a responsabilidade correlata, propiciada também por capacidade militar. Não é cogitada a segurança coletiva como a pretendida no Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (Tiar) - sem sentido no pós-guerra fria - e tampouco há menção a substituto sul-americano, acertadamente porque segurança coletiva pressupõe ameaça comum, inexistente. A afirmação de que o Conselho de Defesa Sul-Americano "criará mecanismo consultivo que permitirá prevenir conflitos" aparenta destoar da política regular: prevenir conflitos cabe a organizações políticas - ONU, OEA, Unasul... Sobre esse conselho, é sintomática a frase: "... sem que dele participe país alheio à região", obviamente, os EUA.

A defesa do serviço militar obrigatório responde à responsabilidade de toda a sociedade pela defesa nacional - conceito consensualmente escamoteado: não temos recrutas das camadas superiores da pirâmide social. Entretanto, é preciso conciliá-lo com a tecnologia moderna, que exige capacitação dificilmente adquirida em dez meses de serviço militar por recrutas de instrução modesta. O relevo atribuído à participação em forças internacionais e às forças de pronto emprego e de operações especiais reforça a influência da tecnologia na configuração dos efetivos: elas requerem profissionalização. Diz a END que a tecnologia não é alternativa à mobilização: estará hierarquizando a quantidade sobre a qualidade, ao contrário do mundo de poder militar eficiente? Há que procurar o equilíbrio do ideal republicano com o não comprometimento da eficiência, condicionada pela tecnologia.

Ao afirmar que "o País cuida para evitar que as Forças Armadas desempenhem papel de polícia", a redação "cuida para evitar" aparenta aceitar, a contragosto, o papel de polícia, impróprio numa democracia quando além de episódio crítico que de fato imponha a ação militar transitória. Essa atuação está exigindo, nas palavras da END, "legislação que ordene e respalde as condições específicas e os procedimentos federativos que deem ensejo a tais operações, com resguardo de seus integrantes".

Enfim, o saldo da END é positivo. O reconhecimento da conveniência de sua existência e sua abertura à sociedade já são relevantes, em país onde a defesa nacional não entusiasma a política e a sociedade. Há espaço para aperfeiçoamentos, alguns insinuados neste artigo. Mas é improvável que a END possa satisfazer a dimensão estratégica da inserção internacional do Brasil, a persistir o atual descaso societário e político pela defesa nacional.

ALMIRANTE DE ESQUADRA (REFORMADO)

quarta-feira, 11 de maio de 2011

A Estrategia Nacional de Defesa e a Unasul - Paulo Roberto de Almeida

O mais recente trabalho publicado, finalmente (esperando desde 2010):

A Estratégia Nacional de Defesa e a Unasul: afinidades pouco eletivas
Paulo Roberto de Almeida
Diplomata, professor universitário (MRE; Uniceub).
Anais da IV ENABED (Brasília 2010; Seção Temática 5: A Comunidade Sul-Americana na Área dos Estudos Estratégicos; link: http://www.abed-defesa.org/page4/page9/page2/page7/files/pauloalmeida.pdf).

Sumário:
1. O que é a END e o que ela tem a dizer sobre a integração sul-americana?
2. Como a integração sul-americana se integra às questões estratégicas?
3. As diretrizes da END e as possibilidades de integração: análise crítica
4. A Unasul e a integração utópica da END

1. O que é a END e o que ela tem a dizer sobre a integração sul-americana?
A END é considerada, por muitos militares e mesmo por alguns analistas políticos, como um grande avanço no tratamento político das questões de defesa no Brasil. De fato, o simples fato de existir uma, qualquer uma, estratégia de defesa já constitui um avanço sobre a situação precedente, embora existam controvérsias a respeito: o que havia antes era uma “doutrina” da defesa, estabelecida no governo Fernando Henrique Cardoso, que talvez preenchesse as necessidades percebidas pelo governo quanto ao assunto em questão. O governo Lula, não satisfeito em dispor de uma “doutrina” de defesa pré-existente, resolver apresentar sua própria estratégia, que supostamente seria mais completa e mais avançada do que a primeira.
O problema está em que a nova “doutrina” de defesa, equiparada a uma “estratégia”, começa por apresentar diversas inconsistências conceituais e muitas limitações operacionais, a começar pelo fato de exibir uma visão excessivamente grandiosa que, entre outros desvios, comete o equívoco de confundir estratégia de defesa com estratégia de desenvolvimento. Na origem de suas muitas insuficiências conceituais está a intromissão de um tipo de pensamento completamente desconectado das relações de força no mundo real, ou desconhecedor das carências orçamentárias brasileiras, o que poderia ser debitado à personalidade de um de seus formuladores, um acadêmico brasileiro treinado um universidades estrangeiras, convertido politicamente em Secretário de Assuntos Estratégicos, sem provavelmente exibir os requisitos para tal cargo. Não apenas esse fato, mas diversas outras características do documento em questão indicam que ele se encontra sensivelmente fora do foco do que deveria constituir uma verdadeira estratégia de defesa, sendo apenas e tão somente “nacional” (com dúvidas remanescentes a esse respeito).
A integração econômica do Cone Sul, por outro lado, é, supostamente, o projeto prioritário do governo brasileiro no capítulo de sua diplomacia regional, talvez até mais do que regional – projeto diplomático, tout court – e provavelmente com pretensões maiores do que o Cone Sul, abrangendo, no governo Lula, toda a América do Sul e, se possível, toda a América Latina. Seria assim previsível, até inevitável, que a END se ocupasse da “estratégia” de integração sul-americana do governo Lula e disso fizesse um dos pontos centrais de sua estratégia nacional de defesa.
Entretanto, em nenhum outro setor de natureza política da END, suas inconsistências se revelam de modo tão caracterizado quanto na política externa regional, ou seja, no relacionamento com os vizinhos sul-americanos e no tratamento a ser dado às questões estratégicas regionais. Assim como não existe na END uma exposição precisa de quais seriam, no plano internacional, as ameaças latentes ou persistentes à segurança do Brasil, não existe, nesse documento, um diagnóstico sintético de quais seriam os objetivos nacionais em matéria de integração regional e de como a END poderia se encaixar nesse esforço diplomático. O que existem são frases soltas e intenções declaradas, sem que elas possuam, no entanto, uma conexão mais precisa com a realidade sul-americana atual.
Antes de focar mais diretamente nessa área de interesse diplomático, cabe resumir brevemente o que tem a END a dizer sobre a segurança do Brasil. Como caracterização geral, pode-se dizer que “a END, a despeito de seu nome e de seus nobres objetivos, não é bem uma estratégia e tampouco se destina, em sua conformação atual, à defesa do País. Ela é, no máximo, nacional...”. Pode-se identificar, na END, uma característica essencialmente “gaullista”, o que não é necessariamente uma má qualidade, mas tampouco precisa ser considerado um componente indispensável, tendo em vista os custos implícitos de uma visão essencialmente soberanista e nacionalista da defesa nacional. Nenhum país desejoso de afirmar seus interesses nacionais de modo soberano pode basear sua defesa nacional na ilusão da cooperação externa; mas nenhuma autoridade nacional tem o direito de ignorar realidades econômicas na construção de sua estratégia de defesa.
No plano estritamente econômico, pode-se ainda registrar que a END é essencialmente anti-econômica, não apenas por propor uma estratégia grandiosa, inalcançável no plano dos recursos disponíveis, mas, sobretudo, por propor um caminho de realização dessa estratégia que não leva em conta o princípio básico da escassez de recursos. Mesmo no plano mais geral de suas formulações, é também notório que o documento falha em identificar claramente onde estariam as ameaças ao Brasil, como se o conceito de defesa não implicasse em seu complemento necessário: contra o quê, exatamente, ou contra quem? Trata-se, simplesmente, de uma das mais notáveis falhas da END. Ela constitui, na ausência de um quadro geopolítico mais amplo sobre quais seriam as fontes mais prováveis de ameaças ao Brasil, uma defesa in abstracto, geral e vaga. A acreditar em certas formulações do documento, se trataria de um oponente muito poderoso, mais provavelmente de uma coalizão de países avançados, o que já denota toda uma filosofia política que está inegavelmente vinculada a certas correntes partidárias portadoras de uma visão peculiar, em certo sentido anacrônica, do mundo como ele é e de como o Brasil nele se situa.
No que se refere especificamente à problemática sul-americana, ou integracionista, o documento é bastante genérico e evasivo, limitando-se a algumas frases de efeito mais retórico do que operacional. Em todo caso, vejamos o que a END teria a dizer nesse terreno. O documento traça, inicialmente, as chamadas diretrizes da Estratégia Nacional de Defesa, seção na qual, em seu enunciado de número 18, recomenda “Estimular a integração da América do Sul”, dizendo isto:
Essa integração não somente contribuirá para a defesa do Brasil, como possibilitará fomentar a cooperação militar regional e a integração das bases industriais de defesa. Afastará a sombra de conflitos dentro da região. Com todos os países avança-se rumo à construção da unidade sul-americana. O Conselho de Defesa Sul-Americano, em debate na região, criará mecanismo consultivo que permitirá prevenir conflitos e fomentar a cooperação militar regional e a integração das bases industriais de defesa, sem que dele participe país alheio à região.

Em outros termos, se invocam objetivos e propósitos meritórios, mas o documento não vai além disso; trata-se mais propriamente de uma assemblagem de frases sem grande coerência entre si, e muito pouco condizente com o que se poderia chamar de “diretrizes”. A temática aparece novamente na segunda parte da END, que se refere às “medidas de implementação”. Ali se recomenda o “estreitamento da cooperação entre os países da América do Sul e, por extensão, com os do entorno estratégico brasileiro” (ou seja, o Brasil designa os países do entorno como de seu interesse “estratégico”, o que pode aparecer como uma demonstração de arrogância pouco diplomática). Em todo caso, na seção voltada para a “Estabilidade Regional”, o documenta elenca as medidas pensadas para sustentar sua manutenção:
1. O Ministério da Defesa e o Ministério das Relações Exteriores promoverão o incremento das atividades destinadas à manutenção da estabilidade regional e à cooperação nas áreas de fronteira do País.
2. O Ministério da Defesa e as Forças Armadas intensificarão as parcerias estratégicas nas áreas cibernética, espacial e nuclear e o intercâmbio militar com as Forças Armadas das nações amigas, neste caso particularmente com as do entorno estratégico brasileiro e as da Comunidade de Países de Língua Portuguesa.
3. O Ministério da Defesa, o Ministério das Relações Exteriores e as Forças Armadas buscarão contribuir ativamente para o fortalecimento, a expansão e a consolidação da integração regional, com ênfase na pesquisa e desenvolvimento de projetos comuns de produtos de defesa.

Representantes do Ministério das Relações Exteriores devem, supostamente, ter participado da redação dessa seção do documento. Mas o fato é que ele revela uma atitude que os anglo-saxões chamariam de “too patronizing”, ou seja, voluntária ou involuntariamente protetora, segura de si e algo sobranceira. Não é preciso dizer que essa fórmula não constitui a melhor receita para começar a construir a “integração estratégica” na região; ao contrário, pode ser totalmente contraproducente.

2. Como a integração sul-americana se integra às questões estratégicas?
Na verdade, o documento quase não trata de duas das grandes prioridades da política externa do governo Lula (que constituem, aliás, opções diplomáticas preferenciais herdadas da gestão anterior): o reforço do Mercosul e a integração política e física da América do Sul (sendo duas outras o ingresso do Brasil no Conselho de Segurança e a conclusão das negociações comerciais multilaterais). Quando o faz, as menções são puramente retóricas, sem a perspectiva de uma integração real, igualitária, ou sem discutir as condições segundo as quais a estratégia brasileira de defesa se amoldaria aos objetivos da integração (talvez vice-versa, na concepção de seus autores). Os vizinhos são basicamente considerados como clientes potenciais da indústria brasileira de defesa, que deveria ser totalmente independente, no espírito da END, embora a mesma autonomia não seja contemplada precipuamente do ponto de vista dos vizinhos. A “integração estratégica” parece ser algo puramente instrumental, feita expressamente para viabilizar economias de escala para a indústria nacional, diluindo, portanto, seus custos fixos entre um número maior de clientes (talvez de “dependentes”, condição que se recusa para o próprio Brasil).
Em outros termos, a “integração estratégica” não convive nos melhores termos com a integração, que deveria ser estimulada nos terrenos econômico e comercial. Ela constitui uma entidade à parte, quase destacada do resto, e vem sendo promovida politicamente pelo governo brasileiro com outros objetivos que não os da integração. O Conselho de Defesa Sul-Americano, por exemplo – que não é bem de defesa, mas simplesmente de coordenação tentativa da segurança regional – parece ter sido criado para servir a esses mesmos objetivos, e sua característica mais realçada é a de que ele seria conduzido sem qualquer parceiro externo à própria região. Este é, por sinal, o traço identificador da “estratégia regional” e de toda a diplomacia do governo Lula: afastar a região das garras consideradas perversas do “império”.
Essa busca de ‘isolamento’ dos EUA do resto da região – como se tal fosse possível – parece resultar de dois elementos combinados, a partir de dois vetores completamente diferentes: por um lado, a tradicional necessidade militar de definir ‘ameaças’ credíveis – e não se concebe qualquer outra ameaça efetiva na região, depois da normalização das relações com a Argentina – agora parcialmente coberta pela figura da ‘potência superior’; por outro lado, o anti-imperialismo infantil, e completamente démodé, de setores políticos da base de sustentação do governo e da esquerda acadêmica esclerosada. Essas intenções ficaram desde o início muito claras com o tratamento totalmente assimétrico dado aos casos das relações do Brasil com a Colômbia, por um lado – considerada aliada dos EUA na região – e, por outro lado, com a Venezuela, objeto de uma leniência incompreensível, em face das ações e iniciativas do regime atual em relação aos focos existentes de instabilidade – como o das FARC, por exemplo, ademais da próprias compras militares do pais caribenho.
Esse exclusivismo regional, à exclusão do grande irmão hemisférico, e a política de aproximação do Brasil com parceiros ‘emergentes’ ditos estratégicos – como a Índia, por exemplo – podem vir a ser fontes de problemas na estratégia brasileira de integração regional, na área política e de segurança, inclusive porque isso tem implicações para os problemas da cadeira no CSNU e o da opção nuclear. A política de aproximação com o Irã e os esforços feitos em torno da suposta vocação pacífica do programa nuclear do país persa podem, aliás, ter aberto novas fontes de suspeição contra o Brasil na própria região, o que pode dificultar o pretendido papel de liderança regional. Esse projeto, já por si irrealista, ficou de resto prejudicado pelo tratamento no mínimo inamistoso demonstrado pelo governo Lula em face dos acordos da Colômbia com os EUA, o único país do hemisfério que se dispôs a ajudar o vizinho andino na luta contra os narcotraficantes travestidos em guerrilheiros.
É relevante registrar que, para que o Brasil pudesse realizar seus objetivos regionais, sobretudo o da integração sub-regional e sul-americana – que supostamente são os mais valorizados pela diplomacia brasileira, ademais de constituírem a própria base da cooperação regional no terreno da segurança e, talvez, da defesa –, o Brasil precisaria utilizar-se muito mais dos elementos de soft power da economia do que daqueles de hard power, pelo lado da defesa. Na verdade, o Brasil já possui, teórica ou hipoteticamente, as condições potenciais para praticar soft power na região, não o fazendo, entretanto, por razões históricas, políticas e de carência de recursos.
Esse soft power estaria baseado na abertura irrestrita do seu mercado interno a todos os vizinhos sul-americanos, de forma integral e incondicional – vale dizer, sem qualquer exigência de reciprocidade – e na concepção e implementação de imenso esforço de cooperação bilateral com cada um deles (acolhendo bolsistas no Brasil, por exemplo, e desenvolvendo projetos nesses países); cabe considerar, ademais, o papel crucial do investimento direto brasileiro na região, essencialmente a cargo do setor privado (eventualmente estimulado por políticas governamentais) e de uma ou outra estatal (Petrobras). O fato é que o Brasil não tem condições de exercer esse soft power, seja porque o país é naturalmente protecionista, em suas disposições internas, seja porque os arranjos do Mercosul não o permitiriam, nas atuais condições.
A questão hemisférica, por sua vez, tem a ver com as relações do Brasil com o ‘império’, atualmente considerado uma presença nitidamente não desejada e não desejável na região, sequer como parceiro (a menos que seja como fornecedor complacente da tecnologia necessária à capacitação brasileira em defesa). Pode-se até conceber essa ‘opção’ como uma derivação lógica – ainda que não assumida publicamente, por notórias implicações políticas – da antiga tese do chanceler Rio Branco quanto a uma divisão de tarefas no hemisfério: o império fica com o norte (aqui compreendendo todo o Caribe e América Central) e o Brasil se ‘ocupa’ da América do Sul. Mesmo admitindo que esse tipo de ‘missão compartilhada’ seja admissível ou possível, na prática – com todos os problemas ligados a uma suposta liderança brasileira na região – ela não resolve nenhum dos demais problemas vinculados à presença internacional brasileira ou, sobretudo, ao CSNU, que passam inevitavelmente por uma ‘boa relação’ de cooperação ativa com o império (algo ainda não admitido até aqui).

3. As diretrizes da END e as possibilidades de integração: análise crítica
As diretrizes da END para a integração regional são as mais primárias possíveis, representando, se tanto, um ajuntamento de frases sem conexão lógica entre si e que constituem um emaranhado de boas intenções e de desejos otimistas que guardam poucos vínculos com a realidade. Cabe um exame circunstanciado de seus enunciados e proposições, o que faremos a seguir, topicamente.
1) Essa integração não somente contribuirá para a defesa do Brasil, como possibilitará fomentar a cooperação militar regional e a integração das bases industriais de defesa.
Trata-se de uma expressão de vontade política, que carece de bases empíricas e de sentido das proporções, uma vez que o conceito de integração e sua realidade efetiva não são definidos, podendo significar distintas configurações, segundo se fale da cooperação econômica, da unificação econômica ou de mera troca de consultas políticas, como ocorre atualmente. A integração comercial, em si, enquanto processo fundamentalmente econômico, mas de características basicamente políticas, não tem tanto a virtude de contribuir para a defesa do Brasil, assim como não o faria para a defesa de qualquer outro país, quanto tem a possibilidade de afastar hipóteses de guerra com países vizinhos com os quais se busca integrar, o que é completamente diferente. A história europeia fornece um bom exemplo no gênero.
A integração da França e da Alemanha, por exemplo, primeiro através do tratado de Paris – Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, 1951 – e depois pela via dos Tratados de Roma e os vários instrumentos subsequentes – que, a partir de 1957, criaram o Mercado Comum Europeu, em seguida as Comunidades Europeias e que, sobretudo a partir do Tratado de Maastricht, de 1992, consolidaram o conjunto numa verdadeira União Europeia, dotada supostamente de mecanismos de defesa e de uma política externa comum – certamente afastou a hipótese de conflito entre os dois maiores países continentais da Europa – os mesmos que tinham se enfrentado em três conflitos terríveis entre 1870 e 1945 – e tornou totalmente remota a possibilidade, até mesmo teórica, de novas guerras entre ambos. Mas ela não afastou a necessidade de políticas de defesa de cada um deles, definidas no âmbito puramente nacional, ou a preocupação com a defesa de ambos, tomados conjuntamente.
Tanto isso é verdade que as principais potências militares da integração europeia – França, Alemanha e Reino Unido – adotaram trajetórias completamente diferentes em suas políticas nacionais – seria bom sublinhar – de defesa e no quadro de suas alianças externas. A França gaullista, amuada com a arrogância do poder imperial americano sobre a Europa do pós-guerra, resolveu desenvolver sua force de frappe independente, inclusive com vetor nuclear completamente autônomo, decidiu abandonar os esquemas militares da OTAN e continuou, durante muito tempo (talvez até hoje), a sabotar os esforços de integração estratégica europeia sobre a base do predomínio militar americano, através da OTAN ou fora dela, no que se constituiu em longa história de equívocos e desentendimentos desde o voto negativo sobre a Comunidade Europeia de Defesa (1953) até a intervenção da OTAN na Bósnia e no Kossovo. A Alemanha, por sua vez, continuou a ser um anão militar desarmado nuclearmente, sob as asas do grande irmão americano, e apenas recentemente ensaia alguma doutrina própria de defesa estratégica, de toda forma seguramente inserida nos esquemas americanos para o equilíbrio euro-asiático. O Reino Unido, por fim, desde a diminuição do Império Britânico ainda durante a Segunda Guerra Mundial, tornou-se o mais fiel aliado – o que nem Israel é – do novo império universal, e foi o mais consistente defensor dos interesses americanos (dentro e fora da OTAN) na definição de diretrizes europeias relativas à defesa e segurança. Não por outros motivos a União da Europa Ocidental – que deveria ser o embrião de uma perna europeia na área da defesa – resultou totalmente carente de significado, até ser extinta nos arranjos ulteriores feitos em nível comunitário (que, aliás, permanecem débeis).
Ou seja, a integração entre o Brasil e a Argentina, a consolidação do Mercosul – hoje algo nitidamente hipotético – ou sequer a integração imaginária da América do Sul não possuem, por elas mesmas, quaisquer virtudes na área estratégica ou de defesa, se não forem acompanhadas de medidas apropriadas nos mecanismos e instituições pertinentes a esses objetivos. Os autores do documento, na parte relativa às diretrizes para a integração não sabem, portanto, do que estão falando, ou então não se detiveram em examinar minimamente o conteúdo real do processo de integração em curso na região, dentro e fora do Mercosul. Se o fizerem, vão se decepcionar.

2) [A integração] Afastará a sombra de conflitos dentro da região.
A frase tem escasso significado real, dentro ou fora de seu parágrafo; ela não tem sentido muito lógico, nem qualquer embasamento nos dados da realidade. Nenhum projeto de integração superficial, como tem sido o itinerário de esquemas integracionistas na América Latina, tem o poder de estancar fontes de conflito ou impedir focos de tensão entre os países da região, como a própria história ensina.
Peru-Equador, Chile-Argentina, Chile-Bolívia, Chile-Peru, Venezuela-Colômbia, todos esses países pertencem ao mesmo acordo integracionista geral existente na região, o do Tratado de Montevidéu-1960, que criou a Alalc (Associação Latino-Americana de Livre Comércio, substituído, em 1980, pelo segundo Tratado de Montevidéu que, aproveitando as facilidades permitidas pela Cláusula de Habilitação aprovada na Rodada Tóquio de Negociações Comerciais Multilterais do GATT, criou a Aladi (Associação Latino-Americana de Integração). Ainda que vinculados pelos mesmos esquemas de integração comercial formalmente adotados entre eles – ademais de esquemas próprios, bilaterais ou plurilaterais, de preferências comerciais – esses pares de países estiveram (alguns ainda estão) em conflito direto ou indireto, no plano geopolítico, com pontos de fricção emergindo por vezes em apelos militares.
Não se pode excluir, assim, que os mais recentes esquemas de integração patrocinados pelo Brasil – Comunidade Sul-Americana de Nações, substituída pela Unasul, e dentro desta o Conselho de Defesa – sejam incapazes de prevenir ou de evitar o surgimento de conflitos entre os países da região. A frase, portanto, tal como figura na END, é obviamente irrealista, deixando de levar em conta fatores históricos, estruturais ou até político-contingentes que podem suscitar o surgimento de tensões militares na região. Em sua ingenuidade simplista, esse tipo de argumento reproduz a mesma postura idealista, e carente de pragmatismo, que marcou a Europa da belle époque, ou seja, previamente à Primeira Guerra Mundial, tal como refletida nas páginas de um jornalista que acreditava que a integração financeira dos países europeus os impediriam de recorrer à guerra para resolver suas diferenças.
Com efeito, em The Great Illusion, publicado em 1910, Norman Angell dizia que a profunda mudança efetuada pelo crédito e a interdependência delicada das finanças internacionais tinham tornado a guerra irracional e talvez mesmo impossível, uma vez que nenhuma força física poderia superar a força das finanças; em menos de cinco anos, as mesmas potências financeiras se dilaceravam mutuamente nos campos de batalha. Não caberia esperar comportamento mais civilizado do que o dos europeus da belle époque no âmbito das relações inter-estatais na América do Sul.

3) Com todos os países avança-se rumo à construção da unidade sul-americana.
Como a frase precedente, peca por excesso de otimismo. Como está, trata-se apenas da expressão de um mero desejo, podendo talvez figurar em algum pronunciamento político de campanha eleitoral, mas é imprópria para figurar num documento sobre “diretrizes” de defesa. A realidade regional, vista por qualquer ângulo que se deseje, desmente cabalmente esse tipo de assertiva.
A despeito da retórica integracionista das reuniões presidenciais nos últimos dez anos – grosso modo, desde o primeiro encontro de chefes de Estado e de governo realizado em Brasília em 2000 – não existe o mínimo sinal prático de que os países possuam visões convergentes, e menos ainda coincidentes, sobre a integração. Isso não se dá apenas porque os governos divergem entre si quanto às prioridades de todos e cada um no que respeita ao processo de integração; cabe também registrar que o documento central desse processo, o tratado constitutivo da Unasul, é inacreditavelmente vago e impreciso quanto aos mecanismos, modalidades e objetivos concretos – ou seja, metas e prazos – pelos quais essa integração deveria ser implementada, a começar pela sua total falta de conteúdo quanto aos componentes econômicos e comerciais desse processo. Raramente se assistiu a tamanho esforço de reuniões de cúpula em torno de objetivos tão carentes de conteúdo quanto os da Unasul, a ponto de se poder afirmar, como na frase clássica, que a montanha pariu um rato. De fato, contrariamente ao que pretende essa frase da END, não se vislumbra nenhum sinal de que a unidade sul-americana esteja sendo construída, embora tal ambiente negativo não possa ser creditado, sob qualquer aspecto, ao tratado constitutivo da Unasul – inócuo para todos os efeitos – ou à proposta do Conselho de Defesa: as raízes da desintegração devem ser buscadas em outros fatores, não suscetíveis de serem equacionados por tratados ou acordos políticos entre os países.

4) O Conselho de Defesa Sul-Americano, em debate na região, criará mecanismo consultivo que permitirá prevenir conflitos e fomentar a cooperação militar regional e a integração das bases industriais de defesa, sem que dele participe país alheio à região.
Esse parágrafo da END consiste em uma longa frase, dividida em seis partes, das quais apenas duas, a primeira e a última, apresentam qualquer sentido de realidade; a primeira apenas involuntariamente, sendo que as demais constituem a expressão de desejos idealistas, não de elementos que possam ser considerados como constitutivos de diretrizes para a defesa, quaisquer que sejam eles. Vejamos.
O Conselho não está mais em debate; já foi criado. Congratulações aos seus promotores: trata-se de um excelente motivo para viagens pagas, para travar maior conhecimento pessoal com os contrapartes da região – o que até agora já estava sendo feito, apenas que com a presença e o olho vigilante do grande irmão – e até para fomentar o intercâmbio acadêmico “sul-sul” na área militar, o que também já estava sendo feito, cabendo apenas observações sobre o programa, a necessidade de tradução simultânea e o conforto das acomodações (descontando a qualidade da comida, que deve continuar sofrível em todas as circunstâncias). Mas um Conselho, qualquer conselho, é apenas uma estrutura amorfa; sua eficácia depende da definição dos temas da agenda, da qualidade dos participantes, da decisão dos países membros de trazer, ou não, questões relevantes para debate e de sua capacidade de tornar resoluções de natureza meramente recomendatória em realidades tangíveis nos campos em que pretenderia atuar. Isso não ocorre de modo automático, como é sabido.
A única outra realidade tangível da “diretriz” em questão é a que diz que o Conselho é um “mecanismo” – seja lá o que isso queira dizer – “sem que dele participe país alheio à região”. Ou seja, a intenção, agora expressamente declarada, era mesmo afastar o grande irmão das deliberações e esquemas próprios à América do Sul. Numa interpretação mais generosa, pode se tratar de uma demonstração de independência política e militar, um atestado de maioridade que os países se atribuem, dizendo que podem caminhar com suas próprias pernas na área da defesa, sem necessitar equipamentos, instrução, cooperação e, sobretudo, “conselhos” do grande irmão, que alguns sempre tomaram como imposições unilaterais. Numa interpretação mais rasteira, pode também representar mais uma dessas demonstrações birrentas do anti-imperialismo infantil que teima em percorrer o continente de tempos em tempos, sempre quando um desses partidos identificados com a “soberania nacional” e a “defesa dos interesses nacionais” ascende ao poder político.
Não deveria haver maiores problemas em se dispor de um Conselho apenas reunindo os primos pobres do continente, sempre quando alguns dos integrantes se julgassem livres, como de fato alguns o fazem, para visitar o primo rico quando isso lhes convier (ou quando a necessidade se impuser), inclusive porque se supõe que o Conselho disponha, entre seus membros apenas, de muito poucas capacidades logísticas e operacionais que atendam aos requerimentos de todos e de cada um. Enfim, se supõe que a partir de agora se prescindirá, pelo menos, da necessidade de gastos com interpretação simultânea; mas nem isso é certo, pois nuestros hermanos parecem duros de orelha ao ouvir o outro idioma ibérico (nem tão diferente assim).
Quanto ao núcleo mesmo dessa frase, que diz que o Conselho “permitirá prevenir conflitos e fomentar a cooperação militar regional e a integração das bases industriais de defesa”, as mesmas observações anteriores se aplicam. Ele poderá, presumivelmente, fomentar a cooperação militar regional, quaisquer que sejam os contornos exatos, as limitações intrínsecas e as virtudes pedagógicas desse tipo de cooperação. Poderá, até, mas dificilmente, tentar a integração das bases industriais de defesa, supondo-se que projeto similar exista nos demais países, como parece ser a intenção do grande irmão brasileiro em criar algo parecido em seu próprio sistema econômico. Digamos que tudo isso seja possível, ainda que pareça pouco provável que daí resultem grandes enriquecimentos e fortalecimentos dos esquemas nacionais de defesa e de segurança (nunca se deve desprezar, porém, vontades tão afirmadas quanto as que se revelam por trás dessas diretrizes, assim como da própria END).
No que se refere, finalmente, à pretensão de “prevenir conflitos”, trata-se certamente de meta ambiciosa, provavelmente inédita nos anais da história militar mundial. Ela está eivada de otimismo antecipado quanto às virtudes pacificadoras do citado Conselho. Não existe registro de Conselhos, sempre de natureza puramente burocrática, que tenham evitado conflitos e até guerras entre contendores estratégicos; aliás, nem tratados de paz o fizeram. Não é preciso recordar aqui o patético registro dos volteios da Liga das Nações nos casos da Itália e do Japão, para citar apenas dois exemplos de falência completa dos mecanismos de segurança coletiva; ou os esforços (se verdadeiramente ocorreram) do Conselho de Segurança da ONU em relação às muitas guerras travadas desde sua criação (ainda que o CSNU, de fato paralisado por décadas de enfrentamentos ideológicos entre seus principais membros, nunca tenha sido tão pretensiosamente de “defesa” quanto o novo exemplo sul-americano). Nem é preciso lembrar que a OTAN, que dispõe de diversos mecanismos de consulta e de coordenação, bem como de instrumentos de efetiva integração militar entre os seus membros, sequer conseguiu evitar conflitos em sua esfera de atuação própria, como os ocorridos entre a Grécia e a Turquia em torno de Chipre e de algumas ilhas do mar Egeu. Se o Conselho de Defesa Sul-Americano conseguir realizar essa verdadeira proeza de evitar, preventivamente, conflitos entre os países membros, será uma première mundial, a ser saudada nos anais da diplomacia e da história militar.

No que se refere, por outro lado, às “medidas de implementação” da END, no tocante à integração regional, alguns curtos comentários podem ser úteis.
1. O Ministério da Defesa e o Ministério das Relações Exteriores promoverão o incremento das atividades destinadas à manutenção da estabilidade regional e à cooperação nas áreas de fronteira do País.
Excelente. Talvez ambos pudessem começar pelos fatores de instabilidade regional e de baixa (ou nenhuma) cooperação nas fronteiras. Do ponto de vista exclusivo do Brasil, eles começam pelas movimentações de agentes das FARC nas fronteiras amazônicas e no próprio interior do Brasil, certamente com envolvimento no tráfico de drogas e na lavagem de dinheiro sujo, possivelmente também no contrabando de armas, entre outros exemplos de atividades criminosas. Existe também muito contrabando de drogas e de diversos outros bens (e “serviços”) nas fronteiras situadas do coração da América do Sul. Mas tudo isso é amplamente conhecido, para não receber a atenta atenção (sendo redundante) das agências em questão. Se o Brasil quisesse ser ainda mais pró-ativo, também promoveria estabilidade e paz em fronteiras atualmente sob forte tensão, como podem ser as da Colômbia com a Venezuela e o Equador, ou então entre a Venezuela e a Guiana, a propósito de velhas reivindicações de território, que já ameaçaram transbordar para o terreno militar. Ou faria ainda mais: em lugar de tratar “assimetricamente” da suposta ameaça regional representada pelos acordos de cooperação militar entre a Colômbia e os EUA, não deixaria convenientemente de lado acordos militares, de cooperação e de aquisição de equipamentos militares por parte de países vizinhos, sem distingui-los em função de qualquer simpatia política ou afinidade ideológica entre partidos no poder. O Conselho de Defesa não pode se abrir seletivamente a certos casos, enquanto afasta seletivamente aqueles temas considerados politicamente “menos interessantes”.

2. O Ministério da Defesa e as Forças Armadas intensificarão as parcerias estratégicas nas áreas cibernética, espacial e nuclear e o intercâmbio militar com as Forças Armadas das nações amigas, neste caso particularmente com as do entorno estratégico brasileiro e as da Comunidade de Países de Língua Portuguesa.
Essa “medida de implementação” é claramente “inimplementável”, tanto em seu objeto próprio – as “parcerias estratégicas” em áreas claramente fora do escopo e das possibilidades da maior parte dos países visados –, como em função dos limitados recursos disponíveis no Brasil. Trata-se de uma dispersão de esforços, de uma perda de foco na implementação de uma (qualquer uma) estratégia nacional de defesa, e que coloca uma responsabilidade ainda maior nas já estressadas FFAA brasileiras. Existe também uma dúvida sobre quais seriam as “nações amigas”; supostamente são todos os vizinhos latino-americanos e os países da CPLP, independentemente da natureza de seus regimes políticos, das orientações efetivas de seus governos e das linhas básicas de suas diplomacias respectivas (o que faz supor, a priori, que todos estejam favoravelmente bem dispostos em relação ao Brasil). Em todo caso, pelo que se deduz de outras partes do documento, já sabemos, pelo menos, quais são as nações “não amigas”: seriam, presumivelmente, os países avançados, um em especial, mas uma coalizão deles de maneira geral, pois que se quer afastar “país alheio à região” (o que chega a ser mesquinhamente ridículo em seu anti-imperialismo primário, já que se trata, simplesmente, do país que mais condições oferece, ainda que de forma interessada, de fornecer a cooperação militar requerida pelas nossas FFAA).

3. O Ministério da Defesa, o Ministério das Relações Exteriores e as Forças Armadas buscarão contribuir ativamente para o fortalecimento, a expansão e a consolidação da integração regional, com ênfase na pesquisa e desenvolvimento de projetos comuns de produtos de defesa.
Pode-se desejar sucesso a este formidável empreendimento coletivo. Seria desejável, porém, que antes de chegar a esse ponto tão sofisticado, se assegurasse a plena e simples integração na área de produtos e serviços corriqueiros, ou seja, a liberalização comercial completa, como aliás estabelecido no artigo primeiro do Tratado de Assunção, até hoje não implementado. Quando se chegar a um mercado comum digno desse nome, ou, pelo menos, a uma zona de livre comércio efetiva, pode-se passar a pensar em etapas mais avançadas da integração.

4. A Unasul e a integração utópica da END
A END é um documento embrionário, pouco efetivo no que se refere a uma definição da verdadeira estratégia de defesa do Brasil, e ainda menos relevante no tocante às “diretrizes” para a integração regional ou às “medidas de implementação” a ela associadas. Provavelmente se necessitará revisar todo o documento, e não apenas a parte que toca no problema da integração regional. No que toca este aspecto específico, ou seja, suas propostas pretensamente integracionistas, as insuficiências são ainda mais gritantes do que para o resto de seus argumentos políticos, também eivados de equívocos diversos.
O cenário estratégico regional é, de toda forma, suficientemente complexo, e confuso, para poder ser “equacionado” por um documento tão genérico e vago quanto a END, em especial em setores tão sensíveis, no plano nacional, como doutrinas, mecanismos, órgãos e ferramentas de defesa e de segurança estratégica. A END propõe poucos elementos concretos nessas áreas, a não ser a expressão de desejos otimistas e de programas ambiciosos, num exercício mais retórico do que verdadeiramente operacional e factível (e não apenas em função dos recursos limitados do Brasil). Seus principais problemas, nessa área, são de concepção e de orientações políticas, fortemente marcadas, no governo Lula, por algumas inclinações bizarras da equipe no poder. Não se pode, claro, descurar o imenso trabalho técnico que transparece em porções significativas da END, graças aos esforços dos militares e de tecnocratas competentes na área da defesa. Mas as partes de orientação mais nitidamente política são muito vagas e de fato desorientadas para merecer sequer uma crítica mais aprofundada.
Se, e quando, uma END – qualquer uma digna desse nome – vier a ser novamente apresentada no Brasil, e se a nova contiver conceitos claros e definições compreensíveis e minimamente dotados de algum significado concreto no tocante ao problema da integração regional, pode-se tentar fazer um exame das interações entre essas questões e o problema da segurança estratégica do Brasil. No estágio atual de elaboração, totalmente embrionário e nitidamente insuficiente para um exame em detalhe e uma análise abrangente de suas implicações para uma END do Brasil, as poucas considerações sobre integração regional do documento atual não justificam um exercício exegético muito sofisticado, inclusive porque as poucas frases alinhadas de forma desalinhada no documento não são nada sofisticadas. Ao contrário: elas apenas refletem o estado de confusão mental de quem elaborou essa parte da END, provavelmente um grupo de pessoas (daí os acréscimos inconsistentes). Seus problemas mais graves, porém, derivam de um total desalinhamento seja com o estado atual da integração regional, seja com os requerimentos de uma estratégia de defesa que tenha de manter interações com países vizinhos, amigos ou não.
A importância do tema, contudo, justificaria um novo exame da questão, mas em outras bases e a partir de argumentos mais consistentes, epistemologicamente coerentes e embasados na realidade nacional e regional. Uma nova equipe, dotada de especialistas reputados nos temas próprios da END, poderia se dedicar a um exame realista do cenário estratégico internacional e regional, com vistas a oferecer uma segunda versão desse documento relevante para as forças de defesa do Brasil.

Resumo: Análise dos (poucos) elementos integracionistas constantes da END, representados por diretrizes e medidas de implementação, com discussão de sua adequação ao ambiente político-estratégico da América do Sul e ao cenário brasileiro nessa área. Exame crítico dos argumentos do documento e do posicionamento do Brasil em relação aos principais problemas de segurança e de defesa da região. A política sul-americana do governo Lula pretende criar estruturas e mecanismos próprios de atuação no cenário estratégico estrutural, afastando a cooperação com o tradicional parceiro econômico e militar da maior parte dos países. O documento é pouco consistente ou abrangente o suficiente para permitir uma avaliação adequada quanto às suas chances de sucesso.

Palavras-chave: Estratégia Nacional de Defesa. Integração Sul-Americana. Análise.

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Shanghai, 10 de junho de 2010; revisão em 23 de junho de 2010.
Paper apresentado no IV ENABED; 19 e 21 de julho de 2010, UnB; Seção Temática 5: A Comunidade Sul-Americana na Área dos Estudos Estratégicos. Coordenador: Eurico de Lima Figueiredo (UFF).
Revisão final: 1 de agosto de 2010.