Este é o terceiro, e último, trabalho que fiz em torno da Estratégia Nacional de Defesa, para um encontro da Associação Nacional de Estudos de Defesa, focando nos aspectos de integração regional. Antes eu já achava essa perspectiva incômoda, do ponto de vista dos militares; depois de todas as estrepolias anti-democráticas da Unasul e das "invenções" do chamado Conselho de Defesa Sul-Americano, que não é de Defesa, e deveria ser tão simplesmente de Segurança (mas ninguém sabe como seria feito), creio que os militares devem continuar recusando esses exotismos dos companheiros.
A ementa é a seguinte:
Paulo Roberto de Almeida
A Estratégia Nacional de
Defesa e a Unasul: afinidades pouco eletivas
Paulo Roberto de
Almeida
Sumário:
1. O que é a END e
o que ela tem a dizer sobre a integração sul-americana?
2. Como a
integração sul-americana se integra às questões estratégicas?
3. As diretrizes
da END e as possibilidades de integração: análise critica
4. A Unasul e a
integração utópica da END
Resumo: Análise dos (poucos) elementos
integracionistas constantes da END, representados por diretrizes e medidas de
implementação, com discussão de sua adequação ao ambiente político-estratégico
da América do Sul e ao cenário brasileiro nessa área. Exame crítico dos
argumentos do documento e do posicionamento do Brasil em relação aos principais
problemas de segurança e de defesa da região. A política sul-americana do
governo Lula pretende criar estruturas e mecanismos próprios de atuação no
cenário estratégico estrutural, afastando a cooperação com o tradicional
parceiro econômico e militar da maior parte dos países. O documento é pouco
consistente ou abrangente o suficiente para permitir uma avaliação adequada
quanto às suas chances de sucesso.
Palavras-chave: Estratégia Nacional de
Defesa. Integração Sul-Americana. Análise.
1. O que é a END e o que ela tem a dizer sobre a integração
sul-americana?
A
END é considerada, por muitos militares e mesmo por alguns analistas políticos,
como um grande avanço no tratamento político das questões de defesa no Brasil.
De fato, o simples fato de existir uma, qualquer uma, estratégia de defesa já
constitui um avanço sobre a situação precedente, embora existam controvérsias a
respeito: o que havia antes era uma “doutrina” da defesa, estabelecida no
governo Fernando Henrique Cardoso, que talvez preenchesse as necessidades
percebidas pelo governo quanto ao assunto em questão. O governo Lula, não
satisfeito em dispor de uma “doutrina” de defesa pré-existente, resolver
apresentar sua própria estratégia, que supostamente seria mais completa e mais
avançada do que a primeira.
O
problema está em que a nova “doutrina” de defesa, equiparada a uma
“estratégia”, começa por apresentar diversas inconsistências conceituais e muitas
limitações operacionais, a começar pelo fato de exibir uma visão excessivamente
grandiosa que, entre outros desvios, comete o equívoco de confundir estratégia
de defesa com estratégia de desenvolvimento (Paulo Roberto de Almeida, “Estratégia Nacional de Defesa:
comentários dissidentes”, Meridiano 47 (n. 104, março de 2010, p. 5-9; “A
Arte de NÃO Fazer a Guerra: novos comentários à Estratégia Nacional de Defesa”,
Mundorama, 1.06.2010). Na origem de suas muitas
insuficiências conceituais está a intromissão de um tipo de pensamento completamente
desconectado das relações de força no mundo real, ou desconhecedor das
carências orçamentárias brasileiras, o que poderia ser debitado à personalidade
de um de seus formuladores, um acadêmico brasileiro treinado um universidades
estrangeiras, convertido politicamente em Secretário de Assuntos Estratégicos,
sem provavelmente exibir os requisitos para tal cargo. Não apenas esse fato,
mas diversas outras características do documento em questão indicam que ele se
encontra sensivelmente fora do foco do que deveria constituir uma verdadeira
estratégia de defesa, sendo apenas e tão somente “nacional” (com dúvidas
remanescentes a esse respeito).
A
integração econômica do Cone Sul, por outro lado, é, supostamente, o projeto
prioritário do governo brasileiro no capítulo de sua diplomacia regional,
talvez até mais do que regional – projeto diplomático, tout court – e provavelmente com pretensões maiores do que o Cone
Sul, abrangendo, no governo Lula, toda a América do Sul e, se possível, toda a
América Latina. Seria assim previsível, até inevitável, que a END se ocupasse
da “estratégia” de integração sul-americana do governo Lula e disso fizesse um
dos pontos centrais de sua estratégia nacional
de defesa.
Entretanto,
em nenhum outro setor de natureza política da END, suas inconsistências se
revelam de modo tão caracterizado quanto na política externa regional, ou seja,
no relacionamento com os vizinhos sul-americanos e no tratamento a ser dado às
questões estratégicas regionais. Assim como não existe na END uma exposição
precisa de quais seriam, no plano internacional, as ameaças latentes ou
persistentes à segurança do Brasil, não existe, nesse documento, um diagnóstico
sintético de quais seriam os objetivos nacionais em matéria de integração regional
e de como a END poderia se encaixar nesse esforço diplomático. O que existem
são frases soltas e intenções declaradas, sem que elas possuam, no entanto, uma
conexão mais precisa com a realidade sul-americana atual.
Antes
de focar mais diretamente nessa área de interesse diplomático, cabe resumir
brevemente o que tem a END a dizer sobre a segurança do Brasil. Como
caracterização geral, pode-se dizer que “a END, a despeito de seu nome e de
seus nobres objetivos, não é bem uma estratégia e tampouco se destina, em sua conformação
atual, à defesa do País. Ela é, no máximo, nacional...” (Almeida, “Estratégia Nacional de Defesa: comentários
dissidentes”, op. cit.).
Pode-se identificar, na END, uma característica essencialmente “gaullista”, o
que não é necessariamente uma má qualidade, mas tampouco precisa ser
considerado um componente indispensável, tendo em vista os custos implícitos de
uma visão essencialmente soberanista e nacionalista da defesa nacional. Nenhum
país desejoso de afirmar seus interesses nacionais de modo soberano pode basear
sua defesa nacional na ilusão da cooperação externa; mas nenhuma autoridade
nacional tem o direito de ignorar realidades econômicas na construção de sua
estratégia de defesa.
No
plano estritamente econômico, pode-se ainda registrar que a END é essencialmente
antieconômica, não apenas por propor uma estratégia grandiosa, inalcançável no
plano dos recursos disponíveis, mas, sobretudo, por propor um caminho de
realização dessa estratégia que não leva em conta o princípio básico da
escassez de recursos. Mesmo no plano mais geral de suas formulações, é também notório
que o documento falha em identificar claramente onde estariam as ameaças ao
Brasil, como se o conceito de defesa não implicasse em seu complemento
necessário: contra o quê, exatamente, ou contra quem? Trata-se, simplesmente, de
uma das mais notáveis falhas da END. Ela constitui, na ausência de um quadro
geopolítico mais amplo sobre quais seriam as fontes mais prováveis de ameaças
ao Brasil, uma defesa in abstracto,
geral e vaga. A acreditar em certas formulações do documento, se trataria de um
oponente muito poderoso, mais provavelmente de uma coalizão de países
avançados, o que já denota toda uma filosofia política que está inegavelmente
vinculada a certas correntes partidárias portadoras de uma visão peculiar, em
certo sentido anacrônica, do mundo como ele é e de como o Brasil nele se situa.
No
que se refere especificamente à problemática sul-americana, ou integracionista,
o documento é bastante genérico e evasivo, limitando-se a algumas frases de
efeito mais retórico do que operacional. Em todo caso, vejamos o que a END
teria a dizer nesse terreno. O documento traça, inicialmente, as chamadas
diretrizes da Estratégia Nacional de Defesa,
seção na qual, em seu enunciado de número 18, recomenda “Estimular a integração
da América do Sul”, dizendo isto:
Essa integração
não somente contribuirá para a defesa do Brasil, como possibilitará fomentar a
cooperação militar regional e a integração das bases industriais de defesa. Afastará
a sombra de conflitos dentro da região. Com todos os países avança-se rumo à
construção da unidade sul-americana. O Conselho de Defesa Sul-Americano, em
debate na região, criará mecanismo consultivo que permitirá prevenir conflitos
e fomentar a cooperação militar regional e a integração das bases industriais
de defesa, sem que dele participe país alheio à região.
Em outros termos, se invocam
objetivos e propósitos meritórios, mas o documento não vai além disso; trata-se
mais propriamente de uma assemblagem de frases sem grande coerência entre si, e
muito pouco condizente com o que se poderia chamar de “diretrizes”. A temática
aparece novamente na segunda parte da END, que se refere às “medidas de
implementação”. Ali se recomenda o “estreitamento da cooperação entre os países
da América do Sul e, por extensão, com os do entorno estratégico brasileiro”
(ou seja, o Brasil designa os países do entorno como de seu interesse “estratégico”,
o que pode aparecer como uma demonstração de arrogância pouco diplomática). Em
todo caso, na seção voltada para a “Estabilidade Regional”, o documenta elenca
as medidas pensadas para sustentar sua manutenção:
1. O Ministério
da Defesa e o Ministério das Relações Exteriores promoverão o incremento das
atividades destinadas à manutenção da estabilidade regional e à cooperação nas
áreas de fronteira do País.
2. O Ministério
da Defesa e as Forças Armadas intensificarão as parcerias estratégicas nas
áreas cibernética, espacial e nuclear e o intercâmbio militar com as Forças Armadas
das nações amigas, neste caso particularmente com as do entorno estratégico
brasileiro e as da Comunidade de Países de Língua Portuguesa.
3. O Ministério
da Defesa, o Ministério das Relações Exteriores e as Forças Armadas buscarão
contribuir ativamente para o fortalecimento, a expansão e a consolidação da
integração regional, com ênfase na pesquisa e desenvolvimento de projetos
comuns de produtos de defesa.
Representantes do Ministério
das Relações Exteriores devem, supostamente, ter participado da redação dessa
seção do documento. Mas o fato é que ele revela uma atitude que os anglo-saxões
chamariam de “too patronizing”, ou seja, voluntária ou involuntariamente
protetora, segura de si e algo sobranceira. Não é preciso dizer que essa
fórmula não constitui a melhor receita para começar a construir a “integração
estratégica” na região; ao contrário, pode ser totalmente contraproducente.
2. Como a integração sul-americana se integra às questões
estratégicas?
Na
verdade, o documento quase não trata de duas das grandes prioridades da
política externa do governo Lula (que constituem, aliás, opções diplomáticas
preferenciais herdadas da gestão anterior): o reforço do Mercosul e a
integração política e física da América do Sul (sendo duas outras o ingresso do
Brasil no Conselho de Segurança e a conclusão das negociações comerciais
multilaterais). Quando o faz, as menções são puramente retóricas, sem a
perspectiva de uma integração real, igualitária, ou sem discutir as condições
segundo as quais a estratégia brasileira de defesa se amoldaria aos objetivos
da integração (talvez vice-versa, na concepção de seus autores). Os vizinhos
são basicamente considerados como clientes potenciais da indústria brasileira
de defesa, que deveria ser totalmente independente, no espírito da END, embora
a mesma autonomia não seja contemplada precipuamente do ponto de vista dos
vizinhos. A “integração estratégica” parece ser algo puramente instrumental, feita
expressamente para viabilizar economias de escala para a indústria nacional,
diluindo, portanto, seus custos fixos entre um número maior de clientes (talvez
de “dependentes”, condição que se recusa para o próprio Brasil).
Em
outros termos, a “integração estratégica” não convive nos melhores termos com a
integração, que deveria ser estimulada nos terrenos econômico e comercial. Ela
constitui uma entidade à parte, quase destacada do resto, e vem sendo promovida
politicamente pelo governo brasileiro com outros objetivos que não os da
integração. O Conselho de Defesa Sul-Americano, por exemplo – que não é bem de
defesa, mas simplesmente de coordenação tentativa da segurança regional – parece ter sido criado para servir a esses
mesmos objetivos, e sua característica mais realçada é a de que ele seria
conduzido sem qualquer parceiro externo à própria região. Este é, por sinal, o
traço identificador da “estratégia regional” e de toda a diplomacia do governo
Lula: afastar a região das garras consideradas perversas do “império”.
Essa
busca de ‘isolamento’ dos EUA do resto da região – como se tal fosse possível –
parece resultar de dois elementos combinados, a partir de dois vetores
completamente diferentes: por um lado, a tradicional necessidade militar de
definir ‘ameaças’ credíveis – e não se concebe qualquer outra ameaça efetiva na
região, depois da normalização das relações com a Argentina – agora
parcialmente coberta pela figura da ‘potência superior’; por outro lado, o
anti-imperialismo infantil, e completamente démodé,
de setores políticos da base de sustentação do governo e da esquerda acadêmica
esclerosada. Essas intenções ficaram desde o início muito claras com o
tratamento totalmente assimétrico dado aos casos das relações do Brasil com a
Colômbia, por um lado – considerada aliada dos EUA na região – e, por outro
lado, com a Venezuela, objeto de uma leniência incompreensível, em face das
ações e iniciativas do regime atual em relação aos focos existentes de
instabilidade – como o das FARC, por exemplo, ademais da próprias compras
militares do pais caribenho.
Esse
exclusivismo regional, à exclusão do grande irmão hemisférico, e a política de
aproximação do Brasil com parceiros ‘emergentes’ ditos estratégicos – como a
Índia, por exemplo – podem vir a ser fontes de problemas na estratégia
brasileira de integração regional, na área política e de segurança, inclusive
porque isso tem implicações para os problemas da cadeira no CSNU e o da opção
nuclear. A política de aproximação com o Irã e os esforços feitos em torno da
suposta vocação pacífica do programa nuclear do país persa podem, aliás, ter
aberto novas fontes de suspeição contra o Brasil na própria região, o que pode
dificultar o pretendido papel de liderança regional. Esse projeto, já por si
irrealista, ficou de resto prejudicado pelo tratamento no mínimo inamistoso
demonstrado pelo governo Lula em face dos acordos da Colômbia com os EUA, o
único país do hemisfério que se dispôs a ajudar o vizinho andino na luta contra
os narcotraficantes travestidos em guerrilheiros.
É
relevante registrar que, para que o Brasil pudesse realizar seus objetivos
regionais, sobretudo o da integração sub-regional e sul-americana – que
supostamente são os mais valorizados pela diplomacia brasileira, ademais de
constituírem a própria base da cooperação regional no terreno da segurança e,
talvez, da defesa –, o Brasil precisaria utilizar-se muito mais dos elementos
de soft power da
economia do que daqueles de hard power,
pelo lado da defesa. Na verdade, o Brasil já possui, teórica ou
hipoteticamente, as condições potenciais para praticar soft power na região, não o fazendo, entretanto, por razões
históricas, políticas e de carência de recursos.
Esse
soft power estaria baseado na
abertura irrestrita do seu mercado interno a todos os vizinhos sul-americanos,
de forma integral e incondicional – vale dizer, sem qualquer exigência de
reciprocidade – e na concepção e implementação de imenso esforço de cooperação
bilateral com cada um deles (acolhendo bolsistas no Brasil, por exemplo, e
desenvolvendo projetos nesses países); cabe considerar, ademais, o papel
crucial do investimento direto brasileiro na região, essencialmente a cargo do
setor privado (eventualmente estimulado por políticas governamentais) e de uma
ou outra estatal (Petrobras). O fato é que o Brasil não tem condições de
exercer esse soft power, seja porque
o país é naturalmente protecionista, em suas disposições internas, seja porque
os arranjos do Mercosul não o permitiriam, nas atuais condições.
A
questão hemisférica, por sua vez, tem a ver com as relações do Brasil com o
‘império’, atualmente considerado uma presença nitidamente não desejada e não desejável
na região, sequer como parceiro (a menos que seja como fornecedor complacente
da tecnologia necessária à capacitação brasileira em defesa). Pode-se até
conceber essa ‘opção’ como uma derivação lógica – ainda que não assumida
publicamente, por notórias implicações políticas – da antiga tese do chanceler
Rio Branco quanto a uma divisão de tarefas no hemisfério: o império fica com o
norte (aqui compreendendo todo o Caribe e América Central) e o Brasil se ‘ocupa’
da América do Sul. Mesmo admitindo que esse tipo de ‘missão compartilhada’ seja
admissível ou possível, na prática – com todos os problemas ligados a uma
suposta liderança brasileira na região – ela não resolve nenhum dos demais
problemas vinculados à presença internacional brasileira ou, sobretudo, ao
CSNU, que passam inevitavelmente por uma ‘boa relação’ de cooperação ativa com
o império (algo ainda não admitido até aqui).
3. As diretrizes da END e as possibilidades de integração: análise
critica
As
diretrizes da END para a integração regional são as mais primárias possíveis,
representando, se tanto, um ajuntamento de frases sem conexão lógica entre si e
que constituem um emaranhado de boas intenções e de desejos otimistas que
guardam poucos vínculos com a realidade. Cabe um exame circunstanciado de seus
enunciados e proposições, o que faremos a seguir, topicamente.
1)
Essa integração não
somente contribuirá para a defesa do Brasil, como possibilitará fomentar a
cooperação militar regional e a integração das bases industriais de defesa.
Trata-se de uma expressão de
vontade política, que carece de bases empíricas e de sentido das proporções,
uma vez que o conceito de integração e sua realidade efetiva não são definidos,
podendo significar distintas configurações, segundo se fale da cooperação
econômica, da unificação econômica ou de mera troca de consultas políticas,
como ocorre atualmente. A integração comercial, em si, enquanto processo
fundamentalmente econômico, mas de características basicamente políticas, não
tem tanto a virtude de contribuir para a defesa do Brasil, assim como não o
faria para a defesa de qualquer outro país, quanto tem a possibilidade de
afastar hipóteses de guerra com países vizinhos com os quais se busca integrar,
o que é completamente diferente. A história europeia fornece um bom exemplo no
gênero.
A integração da França e da
Alemanha, por exemplo, primeiro através do tratado de Paris – Comunidade
Europeia do Carvão e do Aço, 1951 – e depois pela via dos Tratados de Roma e os
vários instrumentos subsequentes – que, a partir de 1957, criaram o Mercado
Comum Europeu, em seguida as Comunidades Europeias e que, sobretudo a partir do
Tratado de Maastricht, de 1992, consolidaram o conjunto numa verdadeira União
Europeia, dotada supostamente de mecanismos de defesa e de uma política externa
comum – certamente afastou a hipótese de conflito entre os dois maiores países
continentais da Europa – os mesmos que tinham se enfrentado em três conflitos
terríveis entre 1870 e 1945 – e tornou totalmente remota a possibilidade, até
mesmo teórica, de novas guerras entre ambos. Mas ela não afastou a necessidade
de políticas de defesa de cada um deles, definidas no âmbito puramente
nacional, ou a preocupação com a defesa de ambos, tomados conjuntamente.
Tanto isso é verdade que as
principais potências militares da integração europeia – França, Alemanha e
Reino Unido – adotaram trajetórias completamente diferentes em suas políticas nacionais
– seria bom sublinhar – de defesa e no quadro de suas alianças externas. A
França gaullista, amuada com a arrogância do poder imperial americano sobre a
Europa do pós-guerra, resolveu desenvolver sua force de frappe independente, inclusive com vetor nuclear
completamente autônomo, decidiu abandonar os esquemas militares da OTAN e
continuou, durante muito tempo (talvez até hoje), a sabotar os esforços de
integração estratégica europeia sobre a base do predomínio militar americano,
através da OTAN ou fora dela, no que se constituiu em longa história de
equívocos e desentendimentos desde o voto negativo sobre a Comunidade Europeia
de Defesa (1953) até a intervenção da OTAN na Bósnia e no Kossovo. A Alemanha,
por sua vez, continuou a ser um anão militar desarmado nuclearmente, sob as
asas do grande irmão americano, e apenas recentemente ensaia alguma doutrina
própria de defesa estratégica, de toda forma seguramente inserida nos esquemas
americanos para o equilíbrio euroasiático. O Reino Unido, por fim, desde a
diminuição do Império Britânico ainda durante a Segunda Guerra Mundial,
tornou-se o mais fiel aliado – o que nem Israel é – do novo império universal,
e foi o mais consistente defensor dos interesses americanos (dentro e fora da
OTAN) na definição de diretrizes europeias relativas à defesa e segurança. Não
por outros motivos a União da Europa Ocidental – que deveria ser o embrião de
uma perna europeia na área da defesa – resultou totalmente carente de
significado, até ser extinta nos arranjos ulteriores feitos em nível
comunitário (que, aliás, permanecem débeis).
Ou seja, a integração entre o
Brasil e a Argentina, a consolidação do Mercosul – hoje algo nitidamente
hipotético – ou sequer a integração imaginária da América do Sul não possuem,
por elas mesmas, quaisquer virtudes na área estratégica ou de defesa, se não
forem acompanhadas de medidas apropriadas nos mecanismos e instituições
pertinentes a esses objetivos. Os autores do documento, na parte relativa às
diretrizes para a integração não sabem, portanto, do que estão falando, ou
então não se detiveram em examinar minimamente o conteúdo real do processo de
integração em curso na região, dentro e fora do Mercosul. Se o fizerem, vão se
decepcionar.
2)
[A integração] Afastará
a sombra de conflitos dentro da região.
A
frase tem escasso significado real, dentro ou fora de seu parágrafo; ela não
tem sentido muito lógico, nem qualquer embasamento nos dados da realidade. Nenhum
projeto de integração superficial, como tem sido o itinerário de esquemas
integracionistas na América Latina, tem o poder de estancar fontes de conflito
ou impedir focos de tensão entre os países da região, como a própria história
ensina.
Peru-Equador,
Chile-Argentina, Chile-Bolívia, Chile-Peru, Venezuela-Colômbia, todos esses
países pertencem ao mesmo acordo integracionista geral existente na região, o
do Tratado de Montevidéu-1960, que criou a Alalc (Associação Latino-Americana
de Livre Comércio, substituído, em 1980, pelo segundo Tratado de Montevidéu
que, aproveitando as facilidades permitidas pela Cláusula de Habilitação
aprovada na Rodada Tóquio de Negociações Comerciais Multilaterais do GATT,
criou a Aladi (Associação Latino-Americana de Integração). Ainda que vinculados
pelos mesmos esquemas de integração comercial formalmente adotados entre eles –
ademais de esquemas próprios, bilaterais ou plurilaterais, de preferências
comerciais – esses pares de países estiveram (alguns ainda estão) em conflito
direto ou indireto, no plano geopolítico, com pontos de fricção emergindo por
vezes em apelos militares.
Não
se pode excluir, assim, que os mais recentes esquemas de integração
patrocinados pelo Brasil – Comunidade Sul-Americana de Nações, substituída pela
Unasul, e dentro desta o Conselho de Defesa – sejam incapazes de prevenir ou de
evitar o surgimento de conflitos entre os países da região. A frase, portanto,
tal como figura na END, é obviamente irrealista, deixando de levar em conta
fatores históricos, estruturais ou até político-contingentes que podem suscitar
o surgimento de tensões militares na região. Em sua ingenuidade simplista, esse
tipo de argumento reproduz a mesma postura idealista, e carente de pragmatismo,
que marcou a Europa da belle époque,
ou seja, previamente à Primeira Guerra Mundial, tal como refletida nas páginas de
um jornalista que acreditava que a integração financeira dos países europeus os
impediriam de recorrer à guerra para resolver suas diferenças.
Com
efeito, em The
Great Illusion, publicado em 1910, Norman Angell dizia que a profunda
mudança efetuada pelo crédito e a interdependência delicada das finanças
internacionais tinham tornado a guerra irracional e talvez mesmo impossível,
uma vez que nenhuma força física poderia superar a força das finanças (Cf. Norman Angell, The Great Illusion: A Study of the Relation of Military Power to
National Advantage (New York and London: G. P. Putnam's Sons, 1910);
em menos de cinco anos, as mesmas potências financeiras se dilaceravam
mutuamente nos campos de batalha. Não caberia esperar comportamento mais
civilizado do que o dos europeus da belle
époque no âmbito das relações interestatais na América do Sul.
3)
Com todos os países
avança-se rumo à construção da unidade sul-americana.
Como
a frase precedente, peca por excesso de otimismo. Como está, trata-se apenas da
expressão de um mero desejo, podendo talvez figurar em algum pronunciamento
político de campanha eleitoral, mas é imprópria para figurar num documento sobre
“diretrizes” de defesa. A realidade regional, vista por qualquer ângulo que se
deseje, desmente cabalmente esse tipo de assertiva.
A
despeito da retórica integracionista das reuniões presidenciais nos últimos dez
anos – grosso modo, desde o primeiro encontro de chefes de Estado e de governo
realizado em Brasília em 2000 – não existe o mínimo sinal prático de que os
países possuam visões convergentes, e menos ainda coincidentes, sobre a
integração. Isso não se dá apenas porque os governos divergem entre si quanto
às prioridades de todos e cada um no que respeita ao processo de integração;
cabe também registrar que o documento central desse processo, o tratado
constitutivo da Unasul, é inacreditavelmente vago e impreciso quanto aos
mecanismos, modalidades e objetivos concretos – ou seja, metas e prazos – pelos
quais essa integração deveria ser implementada, a começar pela sua total falta
de conteúdo quanto aos componentes econômicos e comerciais desse processo.
Raramente se assistiu a tamanho esforço de reuniões de cúpula em torno de
objetivos tão carentes de conteúdo quanto os da Unasul, a ponto de se poder
afirmar, como na frase clássica, que a montanha pariu um rato. De fato,
contrariamente ao que pretende essa frase da END, não se vislumbra nenhum sinal
de que a unidade sul-americana esteja sendo construída, embora tal ambiente
negativo não possa ser creditado, sob qualquer aspecto, ao tratado constitutivo
da Unasul – inócuo para todos os efeitos – ou à proposta do Conselho de Defesa:
as raízes da desintegração devem ser buscadas em outros fatores, não
suscetíveis de serem equacionados por tratados ou acordos políticos entre os
países.
4)
O Conselho de Defesa
Sul-Americano, em debate na região, criará mecanismo consultivo que permitirá
prevenir conflitos e fomentar a cooperação militar regional e a integração das
bases industriais de defesa, sem que dele participe país alheio à região.
Esse parágrafo da END consiste em
uma longa frase, dividida em seis partes, das quais apenas duas, a primeira e a
última, apresentam qualquer sentido de realidade; a primeira apenas involuntariamente,
sendo que as demais constituem a expressão de desejos idealistas, não de elementos
que possam ser considerados como constitutivos de diretrizes para a defesa,
quaisquer que sejam eles. Vejamos.
O Conselho não está mais em
debate; já foi criado. Congratulações aos seus promotores: trata-se de um
excelente motivo para viagens pagas, para travar maior conhecimento pessoal com
os contrapartes da região – o que até agora já estava sendo feito, apenas que
com a presença e o olho vigilante do grande irmão – e até para fomentar o
intercâmbio acadêmico “sul-sul” na área militar, o que também já estava sendo
feito, cabendo apenas observações sobre o programa, a necessidade de tradução
simultânea e o conforto das acomodações (descontando a qualidade da comida, que
deve continuar sofrível em todas as circunstâncias). Mas um Conselho, qualquer
conselho, é apenas uma estrutura amorfa; sua eficácia depende da definição dos
temas da agenda, da qualidade dos participantes, da decisão dos países membros
de trazer, ou não, questões relevantes para debate e de sua capacidade de
tornar resoluções de natureza meramente recomendatória em realidades tangíveis
nos campos em que pretenderia atuar. Isso não ocorre de modo automático, como é
sabido.
A única outra realidade
tangível da “diretriz” em questão é a que diz que o Conselho é um “mecanismo” –
seja lá o que isso queira dizer – “sem que dele participe país alheio à região”.
Ou seja, a intenção, agora expressamente declarada, era mesmo afastar o grande
irmão das deliberações e esquemas próprios à América do Sul. Numa interpretação
mais generosa, pode se tratar de uma demonstração de independência política e militar, um atestado de maioridade que
os países se atribuem, dizendo que podem caminhar com suas próprias pernas na
área da defesa, sem necessitar equipamentos, instrução, cooperação e,
sobretudo, “conselhos” do grande irmão, que alguns sempre tomaram como
imposições unilaterais. Numa interpretação mais rasteira, pode também
representar mais uma dessas demonstrações birrentas do anti-imperialismo
infantil que teima em percorrer o continente de tempos em tempos, sempre quando
um desses partidos identificados com a “soberania nacional” e a “defesa dos
interesses nacionais” ascende ao poder político.
Não deveria haver maiores
problemas em se dispor de um Conselho apenas reunindo os primos pobres do
continente, sempre quando alguns dos integrantes se julgassem livres, como de
fato alguns o fazem, para visitar o primo rico quando isso lhes convier (ou
quando a necessidade se impuser), inclusive porque se supõe que o Conselho disponha,
entre seus membros apenas, de muito poucas capacidades logísticas e
operacionais que atendam aos requerimentos de todos e de cada um. Enfim, se
supõe que a partir de agora se prescindirá, pelo menos, da necessidade de
gastos com interpretação simultânea; mas nem isso é certo, pois nuestros hermanos parecem duros de
orelha ao ouvir o outro idioma ibérico (nem tão diferente assim).
Quanto
ao núcleo mesmo dessa frase, que diz que o Conselho “permitirá
prevenir conflitos e fomentar a cooperação militar regional e a integração das
bases industriais de defesa”,
as mesmas observações anteriores se aplicam. Ele poderá, presumivelmente,
fomentar a cooperação militar regional, quaisquer que sejam os contornos
exatos, as limitações intrínsecas e as virtudes pedagógicas desse tipo de
cooperação. Poderá, até, mas dificilmente, tentar a integração das bases
industriais de defesa, supondo-se que projeto similar exista nos demais países,
como parece ser a intenção do grande irmão brasileiro em criar algo parecido em
seu próprio sistema econômico. Digamos que tudo isso seja possível, ainda que
pareça pouco provável que daí resultem grandes enriquecimentos e
fortalecimentos dos esquemas nacionais de defesa e de segurança (nunca se deve
desprezar, porém, vontades tão afirmadas quanto as que se revelam por trás
dessas diretrizes, assim como da própria END).
No
que se refere, finalmente, à pretensão de “prevenir conflitos”, trata-se
certamente de meta ambiciosa, provavelmente inédita nos anais da história
militar mundial. Ela está eivada de otimismo antecipado quanto às virtudes pacificadoras
do citado Conselho. Não existe registro de Conselhos, sempre de natureza
puramente burocrática, que tenham evitado conflitos e até guerras entre
contendores estratégicos; aliás, nem tratados de paz o fizeram. Não é preciso
recordar aqui o patético registro dos volteios da Liga das Nações nos casos da
Itália e do Japão, para citar apenas dois exemplos de falência completa dos
mecanismos de segurança coletiva; ou os esforços (se verdadeiramente ocorreram)
do Conselho de Segurança da ONU em relação às muitas guerras travadas desde sua
criação (ainda que o CSNU, de fato paralisado por décadas de enfrentamentos
ideológicos entre seus principais membros, nunca tenha sido tão
pretensiosamente de “defesa” quanto o novo exemplo sul-americano). Nem é
preciso lembrar que a OTAN, que dispõe de diversos mecanismos de consulta e de
coordenação, bem como de instrumentos de efetiva integração militar entre os seus
membros, sequer conseguiu evitar conflitos em sua esfera de atuação própria,
como os ocorridos entre a Grécia e a Turquia em torno de Chipre e de algumas
ilhas do mar Egeu. Se o Conselho de Defesa Sul-Americano conseguir realizar
essa verdadeira proeza de evitar, preventivamente, conflitos entre os países membros,
será uma première mundial, a ser
saudada nos anais da diplomacia e da história militar.
No que se refere, por outro
lado, às “medidas de implementação” da END, no tocante à integração regional,
alguns curtos comentários podem ser úteis.
1.
O Ministério da Defesa e o Ministério das Relações Exteriores promoverão o
incremento das atividades destinadas à manutenção da estabilidade regional e à
cooperação nas áreas de fronteira do País.
Excelente. Talvez ambos
pudessem começar pelos fatores de instabilidade regional e de baixa (ou
nenhuma) cooperação nas fronteiras. Do ponto de vista exclusivo do Brasil, eles
começam pelas movimentações de agentes das FARC nas fronteiras amazônicas e no
próprio interior do Brasil, certamente com envolvimento no tráfico de drogas e
na lavagem de dinheiro sujo, possivelmente também no contrabando de armas, entre
outros exemplos de atividades criminosas. Existe também muito contrabando de
drogas e de diversos outros bens (e “serviços”) nas fronteiras situadas do
coração da América do Sul. Mas tudo isso é amplamente conhecido, para não
receber a atenta atenção (sendo redundante) das agências em questão. Se o Brasil
quisesse ser ainda mais proativo, também promoveria estabilidade e paz em
fronteiras atualmente sob forte tensão, como podem ser as da Colômbia com a
Venezuela e o Equador, ou então entre a Venezuela e a Guiana, a propósito de
velhas reivindicações de território, que já ameaçaram transbordar para o
terreno militar. Ou faria ainda mais: em lugar de tratar “assimetricamente” da
suposta ameaça regional representada pelos acordos de cooperação militar entre
a Colômbia e os EUA, não deixaria convenientemente de lado acordos militares,
de cooperação e de aquisição de equipamentos militares por parte de países
vizinhos, sem distingui-los em função de qualquer simpatia política ou
afinidade ideológica entre partidos no poder. O Conselho de Defesa não pode se
abrir seletivamente a certos casos, enquanto afasta seletivamente aqueles temas
considerados politicamente “menos interessantes”.
2.
O Ministério da Defesa e as Forças Armadas intensificarão as parcerias
estratégicas nas áreas cibernética, espacial e nuclear e o intercâmbio militar
com as Forças Armadas das nações amigas, neste caso particularmente com as do
entorno estratégico brasileiro e as da Comunidade de Países de Língua
Portuguesa.
Essa “medida de implementação”
é claramente “inimplementável”, tanto em seu objeto próprio – as “parcerias
estratégicas” em áreas claramente fora do escopo e das possibilidades da maior
parte dos países visados –, como em função dos limitados recursos disponíveis
no Brasil. Trata-se de uma dispersão de esforços, de uma perda de foco na
implementação de uma (qualquer uma) estratégia nacional de defesa, e que coloca uma responsabilidade ainda maior
nas já estressadas FFAA brasileiras. Existe também uma dúvida sobre quais
seriam as “nações amigas”; supostamente são todos os vizinhos latino-americanos
e os países da CPLP, independentemente da natureza de seus regimes políticos,
das orientações efetivas de seus governos e das linhas básicas de suas
diplomacias respectivas (o que faz supor, a
priori, que todos estejam favoravelmente bem dispostos em relação ao
Brasil). Em todo caso, pelo que se deduz de outras partes do documento, já
sabemos, pelo menos, quais são as nações “não amigas”: seriam, presumivelmente,
os países avançados, um em especial, mas uma coalizão deles de maneira geral, pois
que se quer afastar “país alheio à região” (o que chega a ser mesquinhamente
ridículo em seu anti-imperialismo primário, já que se trata, simplesmente, do país
que mais condições oferece, ainda que de forma interessada, de fornecer a
cooperação militar requerida pelas nossas FFAA).
3.
O Ministério da Defesa, o Ministério das Relações Exteriores e as Forças
Armadas buscarão contribuir ativamente para o fortalecimento, a expansão e a
consolidação da integração regional, com ênfase na pesquisa e desenvolvimento
de projetos comuns de produtos de defesa.
Pode-se desejar sucesso a este
formidável empreendimento coletivo. Seria desejável, porém, que antes de chegar
a esse ponto tão sofisticado, se assegurasse a plena e simples integração na
área de produtos e serviços corriqueiros, ou seja, a liberalização comercial
completa, como aliás estabelecido no artigo primeiro do Tratado de Assunção,
até hoje não implementado. Quando se chegar a um mercado comum digno desse
nome, ou, pelo menos, a uma zona de livre comércio efetiva, pode-se passar a
pensar em etapas mais avançadas da integração.
4. A Unasul e a integração utópica da END
A
END é um documento embrionário, pouco efetivo no que se refere a uma definição
da verdadeira estratégia de defesa do Brasil, e ainda menos relevante no
tocante às “diretrizes” para a integração regional ou às “medidas de
implementação” a ela associadas. Provavelmente se necessitará revisar todo o
documento, e não apenas a parte que toca no problema da integração regional. No
que toca este aspecto específico, ou seja, suas propostas pretensamente
integracionistas, as insuficiências são ainda mais gritantes do que para o
resto de seus argumentos políticos, também eivados de equívocos diversos.
O
cenário estratégico regional é, de toda forma, suficientemente complexo, e
confuso, para poder ser “equacionado” por um documento tão genérico e vago quanto
a END, em especial em setores tão sensíveis, no plano nacional, como doutrinas,
mecanismos, órgãos e ferramentas de defesa e de segurança estratégica. A END
propõe poucos elementos concretos nessas áreas, a não ser a expressão de
desejos otimistas e de programas ambiciosos, num exercício mais retórico do que
verdadeiramente operacional e factível (e não apenas em função dos recursos
limitados do Brasil). Seus principais problemas, nessa área, são de concepção e
de orientações políticas, fortemente marcadas, no governo Lula, por algumas
inclinações bizarras da equipe no poder. Não se pode, claro, descurar o imenso
trabalho técnico que transparece em porções significativas da END, graças aos
esforços dos militares e de tecnocratas competentes na área da defesa. Mas as
partes de orientação mais nitidamente política são muito vagas e de fato
desorientadas para merecer sequer uma crítica mais aprofundada.
Se,
e quando, uma END – qualquer uma digna desse nome – vier a ser novamente
apresentada no Brasil, e se a nova contiver conceitos claros e definições
compreensíveis e minimamente dotados de algum significado concreto no tocante
ao problema da integração regional, pode-se tentar fazer um exame das
interações entre essas questões e o problema da segurança estratégica do
Brasil. No estágio atual de elaboração, totalmente embrionário e nitidamente
insuficiente para um exame em detalhe e uma análise abrangente de suas
implicações para uma END do Brasil, as poucas considerações sobre integração
regional do documento atual não justificam um exercício exegético muito
sofisticado, inclusive porque as poucas frases alinhadas de forma desalinhada
no documento não são nada sofisticadas. Ao contrário: elas apenas refletem o
estado de confusão mental de quem elaborou essa parte da END, provavelmente um
grupo de pessoas (daí os acréscimos inconsistentes). Seus problemas mais
graves, porém, derivam de um total desalinhamento seja com o estado atual da
integração regional, seja com os requerimentos de uma estratégia de defesa que
tenha de manter interações com países vizinhos, amigos ou não.
A
importância do tema, contudo, justificaria um novo exame da questão, mas em outras
bases e a partir de argumentos mais consistentes, epistemologicamente coerentes
e embasados na realidade nacional e regional. Uma nova equipe, dotada de
especialistas reputados nos temas próprios da END, poderia se dedicar a um
exame realista do cenário estratégico internacional e regional, com vistas a
oferecer uma segunda versão desse documento relevante para as forças de defesa
do Brasil.
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