Teorias de relações internacionais, blocos comerciais
Mais algumas questões colocadas por estudantes...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4 junho 2016, n. 2990.
Na continuidade do exercício
anterior, figuram aqui mais algumas das questões colocadas quase um ano atrás,
em relação a preocupações tipicamente estudantes, ou seja, teorias (sempre
esses bizarros animais universitários, até mesmo científicos) e problemas do
mundo real, como comércio, investimentos, vida prática...
Questões colocadas:
As [suas] posições econômicas (...) não poderiam ter ficado mais
claras, mas gostaríamos de saber como [você] se enquadraria, por exemplo, nas
teorias de relações internacionais. A [sua] aproximação (...) é realista, neo-realista
(ou realismo estrutural), liberal ou construtivista? Pode parecer irônico, mas,
pelo que eu vi nas respostas (...), acho que o marxismo é o que mais se
aproximaria do que [você] defenderia, uma vez que (...) não vê os Estados como
atores principais no cenário internacional.
Ademais, todo o mundo está se
organizando em blocos econômicos. Você acha que o Brasil, sozinho, poderia
enfrentar o mercado protecionista da União Europeia, NAFTA, etc.? Que poder de
barganha teríamos para pedir a abertura deles, uma vez que abrirmos nosso
mercado?
PRA: As perguntas colocadas
(...) se desdobram em duas questões, totalmente distintas em sua natureza e
problemática: de um lado temos um questionamento essencialmente teórico, ou
acadêmico, a saber, como [eu me] posiciono em termos de teorias de relações
internacionais, qual seria [minha] abordagem teórica na interpretação dessas
relações, paralelamente a uma afirmação (aliás equivocada) segundo a qual [eu]
teria uma postura teórica aparentada ao marxismo, por não privilegiar os
Estados como principais atores do jogo internacional. De outro lado, uma questão
prática, relativa ao posicionamento que (...) adotaria caso estivesse sob [minha]
responsabilidade a definição da política comercial do Brasil num mundo
(aparentemente) dividido em blocos comerciais, presumivelmente excludentes, ou
protecionistas. Vamos tratar das duas questões separadamente, pois assim
determina sua natureza respectiva.
Teorias de Relações Internacionais e partidos políticos
Existe aqui interpretação
puramente acadêmica do papel dos partidos políticos em relação aos temas de
relações internacionais. Os partidos políticos podem ter, pela postura de seus
dirigentes, por suas opções programáticas fundamentais, pelas tomadas de
posição nos debates parlamentares ou por suas responsabilidades ministeriais
nos executivos, posições mais ou menos nítidas, ou fluídas, em relação aos
principais temas da agenda internacional de um país. Mas raramente eles o fazem
em função de teorias de RI que são simplesmente escolas de pensamento acadêmico
que possuem escassa influência, se alguma, nos programas partidários e em suas
posturas práticas, que se guiam mais pelas questões objetivas que se colocam ao
país no cenário internacional do que por princípios teóricos, que são sempre
vagos com respeito aos problemas reais. Em geral, partidos não se guiam por esses
conceitos que dividem as escolas de pensamento em RI, ainda que os partidos
possam ter posturas bem claras e definidas na área da política externa e em
relação às principais questões da agenda internacional.
Assim, é possível afirmar,
por exemplo, que um partido liberal adotaria, em princípio, uma postura aberta
relativamente ao comércio internacional e aos movimentos de capitais, sendo
potencialmente favorável a acordos de livre comércio, ao câmbio flutuante, à
abertura econômica, aos investimentos estrangeiros, e a uma liberalização maior
no que respeito a fluxos financeiros transfronteiriços. Um partido mais
identificado com os pressupostos práticos do keynesianismo provavelmente
recomendaria controles de capitais, intervenções do Estado nos mercados cambiais
e certas restrições aos capitais estrangeiros. Um partido socialista clássico
poderia ser, ainda teoricamente, totalmente favorável ao controle pelo Estado
do comércio exterior, dos movimentos de capitais e das paridades cambiais. Mas
tudo isso tem pouco a ver, e provavelmente nada a ver, com as escolas de
pensamento em RI, que só encontram um suporte claro no âmbito das academias,
que não são o terreno de atuação dos partidos.
A afirmação de uma suposta
identidade [minha] com o marxismo, por uma alegada postura comum em relação ao
Estado, tampouco encontra suporte na realidade.
[Eu] certamente privilegio um Estado menos ativo no plano econômico
produtivo, mas não deixo de reconhecer o papel central dos Estados nas relações
internacionais contemporâneas, qualquer que seja a escola teórica a que [eu] possa
aderir (...). Não se trata de uma questão de escolas teóricas e isso não tem
nada a ver com o marxismo, com o liberalismo, ou qualquer outra corrente de
opinião ou movimento político. Os Estados são os atores principais das relações
internacionais, ponto. Essa é uma realidade a que (...) não [se] pode escapar,
por mais que [alguém] prefira um mundo de livres mercados, de intercâmbios não
administrados por governos, de livre circulação de capitais e de mais liberdade
para os investimentos estrangeiros.
Em conclusão para essa
questão: se [eu] for convidado para um debate na academia sobre escolas de
pensamento em RI, (...) não teria nenhuma preferência de princípio, pois se
trata de [uma] questão que escapa às [minhas] preocupações práticas. [Acredito
que possa], e deva ter, posicionamentos claros sobre questões internacionais em
geral, sobre a política externa brasileira em particular, e sobre como a
diplomacia pode e deve ser potencializada para melhor servir aos interesses do
Brasil no plano externo e no das principais questões inscritas na agenda
internacional quanto aos grandes temas: comércio, meio ambiente, segurança,
cooperação, etc. Nenhum desses temas práticos [me] obriga (...) adotar qualquer
escola de pensamento em RI, tanto porque essas escolas se referem a um debate
conceitual que não é [o meu] terreno de atuação (...), já que [eu me] posiciono
no terreno da prática, da ação externa governamental neste caso. Acredito que
as diferenças tenham ficado claras.
O Brasil, o comércio internacional e os blocos regionais
Não parece correto dizer
que “todo o mundo está
se organizando em blocos econômicos”, ou pelo menos não absolutamente. Países
específicos – primeiro na Europa, depois nas Américas – começaram a estabelecer
zonas de livre comércio (como é o caso do Nafta, ou de dezenas de outros
acordos de tipo no mundo, geralmente bilaterais ou plurilaterais), ou uniões
aduaneiras (que é o caso da União Europeia, que já chegou ao estágio do mercado
comum, e do Mercosul, ainda em formação), ou quaisquer outros arranjos, em
grande medida de simples áreas de preferências tarifárias, ou seja, derrogação
parcial e negociada de algumas tarifas, mas não todas. Todos esses arranjos são
regulados pelo GATT, o Acordo Geral de Tarifas Aduaneiras e Comércio,
atualmente administrado pela OMC, a Organização Mundial de Comércio, que hoje
conta com quase 160 países membros.
Ocorre que é difícil negociar, nesse âmbito e com essa amplitude,
acordos comerciais multilaterais – ou seja, abrangendo todos os membros – pois
os países possuem interesses muito diversos, devido a seus níveis muito
diferentes de desenvolvimento e de capacitação industrial (e, portanto, de
competitividade). Daí a tendência de alguns poucos países, mais interligados
por fluxos de comércio, de negociarem em escala restrita, acordos comerciais de
liberalização, o que acaba discriminando contra os não membros. É o caso, por
exemplo, da União Europeia, que protege seus mercados agrícolas, por meio de
subsídios e tarifas altas, discriminando contra exportações brasileiras nessa
área. O mesmo ocorre, com variações, no caso dos Estados Unidos, que também
possuem certa proteção à sua agricultura e diversos mecanismos de subsídios
internos à produção, e, em alguns casos, até à exportação de bens agrícolas.
Tudo isso prejudica o Brasil, que possui uma pujante economia agrária, altamente
competitiva e não subsidiada; mas é preciso igualmente afirmar que outros
países em desenvolvimento, supostamente “aliados” do Brasil na luta contra os
subsídios e mecanismos de proteção dos países ricos, como a China ou Índia, por
exemplo, também possuem seus próprios instrumentos de proteção, de subsídios, e
também defendem o mercado interno contra maiores exportações brasileiras.
O Brasil, junto com outros países, exportadores agrícolas não
subvencionistas – como Austrália, Nova Zelândia, Argentina, Chile, e vários
outros – vem tentando, no âmbito da OMC e em acordos comerciais bilaterais ou
plurilaterais, desmantelar esses mecanismos de proteção e de subvenções, para
abrir os mercados agrícolas à livre competição (embora o Brasil seja um grande
protecionista industrial, por exemplo). Trata-se de um processo lento e
difícil, que avança muito gradualmente, pois muitos países – inclusive o Brasil
– colocam como critério essencial de suas posturas negociadoras a chamada
segurança alimentar e o abastecimento do mercado interno preferencialmente pela
produção doméstica. Os avanços são e serão muito lentos.
Aqui justamente se coloca a barganha possível: os países ricos pedem
que, em contrapartida da abertura de seus mercados internos a maiores
importações agrícolas, os países em desenvolvimento e grandes produtores
agrícolas abram seus mercados aos produtos manufaturados, permitam maior
liberdade de investimentos estrangeiros, concedam maior proteção à propriedade
intelectual – inclusive, por exemplo, o fato de se chamar de Champagne
exclusivamente o vinho espumante dessa região da França, e coisas do gênero. Toda
barganha comercial é um jogo de ofertas e concessões, contra acesso a mercados
para bens e serviços nos quais os países se julgam mais competitivos
(geralmente nos mercados agrícolas, mas não todos, e nos bens industriais). Nem
todos os países produzem banana, por exemplo, mas a maior parte deles pretende
ter suas indústrias domésticas cobrindo o essencial da demanda interna.
[Acredito] – tanto porque essa é a experiência concreta dos países mais
ricos, que são igualmente os maiores comerciantes do planeta – que um mundo
aberto às trocas internacionais irrestritas, mercados livros, competição aberta
(sem subsídios ou mecanismos de proteção) é mais suscetível de criar riquezas
para todos. Existe uma correlação muito clara entre grau de abertura comercial
e nível de renda per capita: quanto mais aberto ao comércio internacional é um
país, mais rico ele se torna. O Brasil é um país especialmente fechado ao
comércio internacional, tendo apenas 25% do seu PIB formado no comércio
exterior, para uma média internacional que é quase o dobro disso; os países
mais ricos, em geral, possuem um coeficiente superior a 60% do PIB.
As questões ficaram claras assim?
Paulo Roberto de Almeida
[Brasília, 4 junho 2016, com base no trabalho feito em
Hartford, 3 de outubro de 2015]
Nenhum comentário:
Postar um comentário