Mais um desses textos que ficou perdido nas brumas dos inéditos, ou relativamente inédito. Feito para atender à demanda de um estudante para concluir seu trabalho de graduação, ele acabou ficando grande demais, e por isso impublicável nesse formato. Partes do texto podem ter sido aproveitadas em outros trabalhos, divulgados parcialmente ou episodicamente, mas não, certamente, o conjunto, tal como figura aqui. Suprimo o nome do aluno por sequer saber se e como meus argumentos foram efetivamente usados no seu trabalho de conclusão de curso.
A situação evoluiu, certamente, no que se refere ao tema principal, e o Brasil pode ter deixado de liderar, nos anos recentes, para ser liderado por países bolivarianos, o que também certamente veio a término com o fim do governo dos lulopetistas. Em todo caso, vale registrar o que eu pensava sobre a questão em 2011.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 5 de junho de 2016.
A questão da
liderança regional do Brasil:
um
posicionamento analítico-diplomático
Paulo Roberto de Almeida
Entrevista concedida em 19/09/2011,
a estudante de RI de universidade brasileira.
(versão corrigida por PRA, 22/10/2011)
Transcrição
de entrevista com Paulo Roberto de Almeida, ministro da carreira diplomática,
professor de Economia Política no programa de mestrado e de doutoramento em Direito
do UniCeub, realizada pelo aluno Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx, da Universidade Xxxxxxxxxxx, em 19 de setembro de 2011, para seu trabalho de conclusão
de curso. O tema central é a liderança do Brasil na América do Sul, e as
respostas foram dadas a perguntas previamente formuladas pelo entrevistador. A
transcrição é feita com base na releitura das perguntas, sistematicamente respondidas
pelo entrevistado, uma após a outra, segundo percepções pessoais, sem notas ou sem
preparação especial. O que segue é uma correção apenas formal da gravação
transcrita, sem acréscimos ou reduções, apenas correções ortográficas ou de
construção de frases.
Primeira pergunta: O que é
liderança?
Liderança,
em meu conceito, é o exercício natural da capacidade de liderar outras pessoas.
Ou seja, ser reconhecido como líder por possuir qualidades de diferentes tipos:
econômicos, de inovação, de capacidade política, de organização. A liderança é
algo não imposto, e sim reconhecido e naturalmente exercido por alguém que tem
condições de comandar, de organizar, ou de se fazer seguir. Nesse sentido é
algo que pode ser construído naturalmente, por iniciativas próprias, de
construção de poder econômico, de liderança política, de abertura de mercados
ou até a capacidade de intervenção militar, mas que não é imposto, ou seja, é
assumido como algo natural.
Segunda pergunta: E o que
diferencia da hegemonia? Ou seja, em que medida a liderança se diferencia da
hegemonia?
Precisamente,
hegemonia é uma espécie de preeminência ou dominação que corresponde mais aos
atributos brutos ou físicos quase, militares, econômicos, tecnológicos de
alguém que pode exercer a liderança, mas não necessariamente de forma
consensual. Ou seja, a hegemonia se impõe, por vezes de forma brutal, por vezes
de forma mais “soft”, de forma mais natural, mas no plano da forma, ela é o
contrário da liderança: em lugar de ser reconhecida, ela é aceita ou tolerada,
na medida em que outros parceiros, outros países, vizinhos, correspondentes não
têm a mesma capacidade de se impor; ainda que não estejam dispostos a
reconhecer uma capacidade de liderança, aceitam a hegemonia por ser algo
incontornável. É um pouco como a posição da Rússia na Ásia Central, dos Estados
Unidos na América do Norte, um pouco como Roma na antiguidade clássica,
primeiro no Mediterrâneo, depois em toda a Europa, um pouco como a China na sua
imediata vizinhança, seja no Cazaquistão chinês, seja no Tibet, seja no antigo
Anam (hoje Vietnã), seja na península coreana. A China se impôs como hegemônica
em função de seu poderio próprio, o que não impediu que ela fosse invadida por
estrangeiros em determinadas épocas e também fosse dominada por mongóis ou por
manchus. Mas, justamente, liderança é algo que é aceito naturalmente e
hegemonia é algo que se impõe sobre outros.
Terceira pergunta: Quais são os
requisitos para o exercício da liderança?
Enfim,
existem requisitos primários que são os de dispor de capacidade, força,
recursos, seja para liderar outros países voluntariamente ou não, seja para
atrair outros países para o seu próprio centro econômico; grandes mercados,
países inovadores, países abertos a imigração, países com muitos recursos
financeiros, muita poupança, capazes de investir em outros países ou capazes de
receber produtos de outros países, capazes de receber material humano de outros
países, podem exercer a liderança com base nesses elementos primários. Mas
outros requisitos também existem e eles são mais intangíveis ou são mais
contingentes. Por exemplo, a capacidade de organizar: todo espaço econômico e todo
espaço político exigem certa ordem, certa estabilidade para que eles funcionem
de forma adequada, para que as pessoas se sintam seguras, façam investimentos,
transacionem, façam negócios, façam contratos. Tudo isso requer certa
estabilidade política, financeira, certa estabilidade democrática, ou pelo
menos institucional, isso também é um elemento importante para o exercício da
liderança. E uma terceira ordem de fatores importantes para o exercício da
liderança é a capacidade de um país, de uma economia, de um líder, ou de um
hegemon, enfim, fornecer bens públicos. Bens públicos são aqueles espaços de
políticas que precisam ser organizados por uma força, por uma liderança, por
uma capacidade impositiva até. Se a gente partir do princípio de que toda ordem
política ou de que toda ordem social é baseada em certa medida em regimes
coercitivos, ou seja, regimes de manutenção da ordem, de defesa, de segurança,
de estabilidade, de paz, proteção contra bandidos, piratas, ladrões, proteção
contra invasores, estrangeiros, proteção contra ataques militares, alguém tem
de ser capaz de fornecer bens públicos desse tipo. Ou seja, alguém precisa ter
capacidade de sanção interna e externa para que haja segurança, estabilidade e
tranqüilidade.
Esse
bem público não é facilmente entregue; se formos examinar a experiência
histórica dos últimos anos, o que que tivemos? Nós tivemos o primeiro choque do
petróleo, em 1973, que foi causado por problemas econômicos, a desvinculação do
dólar em ouro, em 1971, que por sua vez motivou a queda do dólar e, portanto,
perda de renda para os exportadores de petróleo; ocorreu, por outro lado, o
conflito no Oriente Médio, entre Israel e países árabes, o que levou os países
da OPEP, mais exatamente os países da OPAEP, países da organização dos países
árabes exportadores do petróleo, a se organizarem para defender o poder de
compra das suas exportações, e portanto elevar o preço do petróleo, e por outro
lado punir as potências ocidentais que apoiavam Israel. O primeiro choque do
petróleo representou uma imensa transferência de renda dos países importadores
de petróleo para os países exportadores e também quebra de contratos,
interrupções de fornecimentos.
Países
europeus e mesmo Estados Unidos ficaram ameaçados de não ter petróleo. Em um
determinado momento os Estados Unidos ameaçaram invadir os campos do petróleo
da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes, do Kuwait para eles próprios retirarem
o petróleo. Henry Kissinger chegou a planejar uma operação militar, mas foi
dissuadido por outros europeus; na verdade, o que se criou foi uma agência
internacional de energia, com sede em Paris, destinada a organizar estoques de
petróleo. Mas, 20 anos depois, Saddam Hussein invadiu o Kuwait, ameaçando
monopolizar parte das fontes de petróleo, não apenas o seu Iraque, um
importante produtor e exportador de petróleo, mas também o Kuwait, um
importante produtor, mas ameaçando também se apossar dos campos de petróleo da
Arábia Saudita, que ficam numa região próxima ao Kuwait. Houve novamente a
ameaça de corte de fornecimento de petróleo para os países importadores. Os
Estados Unidos assumiram uma posição de liderança, e até de hegemonia, e se
instalaram na Arábia Saudita; pode-se dizer que retiraram Saddam Hussein do Kuwait
a tapas e restabeleceram certo equilíbrio.
Liderança
representa também a capacidade de prover a humanidade de bens públicos, ou
seja, de garantir o livre acesso a bens estratégicos como o petróleo.
Novamente, quando a Europa ficou convulsionada na ex-Iugoslávia, quando os Balcãs
foram fragmentados pela guerra civil, os europeus se mostraram incapazes de
resolver o problema do conflito dos Bálcãs, seja na Croácia, seja na Bósnia-Herzegovina,
seja depois no Kosovo, mais uma vez se fez apelo aos Estados Unidos para
resolver o problema, com bombardeios aéreos contra os sérvios. Algo poderia ter
sido feito em Ruanda, para evitar o massacre de 500 mil pessoas. Algo ocorreu
na Somália, os Estados Unidos interviram na Somália, como interviram no passado
no Líbano, sempre a propósito de guerras civis que não ameaçavam absolutamente
em nada a segurança americana, mas havia uma demanda da opinião pública
mundial, tanto no caso dos Bálcãs, como no caso da Somália, como no caso do
Líbano, demanda para cessar a matança, o que não ocorreu em Ruanda, ou foi feito
muito tardiamente.
Nesse
sentido, o líder é aquele que consegue prover os demais países de bens
públicos. Bens públicos significa, em primeiro lugar, segurança. Quem assegura a
tranqüilidade dos mares no estreito das Molucas, no canal do Suez, nas linhas
de navegação do Atlântico ou do Pacífico senão as várias frotas americanas
espalhadas pelo mundo? Temos hoje um problema de piratas nas costas da Somália,
no Mar Vermelho, como já houve um problema de piratas um século e meio atrás,
no Mediterrâneo, com os chamados “piratas da Barbária”, nas costas do norte da
África, piratas nos sultanatos e em algumas possessões do império otomano no
norte da África, na Líbia, na Argélia; países ocidentais tiveram que se
organizar, os próprios fuzileiros navais americanos foram ao Mediterrâneo para combater
os piratas que ameaçavam os navios comerciais americanos.
Hoje em
dia temos o mesmo problema: alguém precisa combater os piratas da Somália que
estão assaltando pretoleiros, navios cargueiros, navios de turismo, sequestrando
pessoas, etc... Então, alguém precisa ser capaz de exercer a liderança e de
entregar esses bens públicos que são a segurança e a tranquilidade dos canais
de comércio. Os europeus, os japoneses, os russos, os chineses não parecem ser capazes
de fazê-lo. Os Estados Unidos se revelam o único país capaz da tarefa, e isso é
liderança. Roma exerceu um papel desse tipo na Antiguidade, ao pacificar a
Europa convulsionada por tribos bárbaros e, durante dois ou três séculos, o
império romano foi uma região de relativa paz, de estradas seguras, de
comércio, de prosperidade; isso continuou até que Roma, por erros fiscais,
tributários, econômicos, entrou em decadência e foi, por sua vez, dominada por
bárbaros invasores. Ou seja, a liderança sempre é ambígua: ou é algo aceito
naturalmente, ou de alguma forma imposto, mas que vai além da simples dominação
bruta e se exerce também no sentido de oferecer mercados, acolher imigrantes,
entregar bens públicos mundiais que não são fornecidos por outros, pelo chamado
sistema internacional. Coincidentemente, não foi a ONU que tirou Saddam Hussein
do Kuwait, não é a ONU que consegue eliminar genocídios em determinados países,
não é a ONU que consegue parar a matança que ditadores fazem contra a sua própria
população, seja na Líbia, seja na Síria; são, sim, países da OTAN, enfim, os
líderes militares mundiais, com os EUA à frente.
Quarta pergunta: O Brasil deve
buscar exercer uma liderança na América do Sul? Se sim, que tipo de liderança o
país deve tentar exercer?
Essa
questão, a do Brasil buscar uma liderança na América do Sul, tem sido colocada
em diferentes épocas. No que concerne a diplomacia brasileira, que eu conheço
melhor, nós diplomatas sempre evitamos pronunciar essa palavra, que é mais ou
menos tabu para a diplomacia brasileira; evitamos de sequer mencionar essa
expressão, porque a liderança pode ser confundida com hegemonia, justamente.
O
Brasil, por boas e más razões, não tem uma boa imagem entre os vizinhos; se
tratava de um território pequeno que cresceu: o espaço português na América do
Sul era menor do que ele se tornou depois de dois séculos, devido a penetração de
portugueses pela América do Sul, na Amazônia, no Sul; o território brasileiro
se expandiu e ficou o país mais importante em termos de território da América
do Sul, o que causa certas suspeitas nos vizinhos. Nessa época, o Brasil sempre
tinha problemas de acesso a suas províncias internas, no século XIX, no Mato Grosso,
em Goiás, regiões que só podiam ser acessadas pela bacia do Prata, dada a
inexistência de estradas interioranas; era essencial preservar a liberdade de
navegação no Prata e, em função disso, o Brasil se meteu em algumas aventuras
na região do Prata, no Uruguai, na Argentina, no Paraguai.
Por diferentes
motivos, havia uma clara visão portuguesa de fazer o Brasil chegar ao Prata e por
foi criada a Colônia do Sacramento, no atual Uruguai; depois Portugal negociou
a sua retirada, pelo Tratado de Madri, do que se chamava de banda oriental do
rio Uruguai, mas voltou, já com a corte portuguesa no Rio de Janeiro, anexou o
Uruguai, na passagem para a independência e o Império, se envolveu em uma guerra
contra a Argentina, por causa do Uruguai, que tampouco teve o favor dos países
hegemônicos, Inglaterra e França, porque elas também viam com suspeição essa
penetração do Brasil no Prata, esse agigantamento, podendo bloquear os acessos;
então, o Uruguai foi favorecido, tornando-se um país independente. Mas o Brasil
se envolveu em outras querelas no Prata, mais para se defender de uma eventual hegemonia
da Argentina, que queria reconstruir o vice-reinado do Prata, do que para ele
mesmo impor sua hegemonia nessa região; o Brasil atuou ou se envolveu em
conflitos locais, com o objetivo de manter livres as vias de navegação e para impedir
uma dominação argentina sobre as duas margens do Uruguai e do Paraná.
Desde
essa época, há certa desconfiança dos nossos vizinhos do Prata, certa
desconfiança dos nossos vizinhos amazônicos, quanto a nossa projeção amazônica,
a exemplo da compra do Acre, um pouco imposta aos bolivianos. Tudo isso deixou
a nossa diplomacia muito cautelosa em termos de qualquer pretensão à liderança
na América do Sul, conceito que sempre recusamos.
O
conceito ressurgiu mais recentemente no governo Lula, equivocadamente, pode-se
dizer. Ele foi mobilizado pela ideia de que o Brasil é grande, de que uma
liderança popular esquerdista, progressista, que tomou posse no Brasil em 2003,
com um discurso sul-americano, ou latino-americanista, ou em favor da união dos
povos na América do Sul, um pouco na concepção esquerdista do PT, que é uma
concepção equivocada, de afastar os Estados Unidos, como se os EUA representassem
uma ameaça real à nossa independência, à nossa soberania, seja na parte
econômica, seja na parte comercial, seja na parte militar. Dessa concepção se
passou à ideia de influência política do Brasil, que é uma proposta equivocada,
ao projeto de se fazer de uma organização sul-americana, que seria obviamente
anti-imperial, antiamericana, e que o Brasil seria então o organizador dessa resistência
anti-imperialista.
Trata-se
de uma concepção equivocada, mas os pequenos países, tipo Uruguai, Paraguai, Equador,
talvez Bolívia – vendo nessa disposição do Brasil de se voltar mais
enfaticamente, mais acentuadamente para a América do sul, não por via militar,
mas por via comercial, econômica, de investimentos, de ajuda, de cooperação –
viram aí uma oportunidade de extrair alguns recursos do Brasil, e passaram
então a proclamar a liderança brasileira. O primeiro exercício desse tipo foi
logo depois da posse de Lula, quando ele viajou para a posse do Lucho Gutiérrez,
no Equador, em janeiro de 2003, ocasião na qual o Brasil foi saudado como
líder. Considero que Lula se encheu de certa empáfia, um pouco de arrogância
também, e acreditou realmente, ou se convenceu, que os países sul-americanos
estavam aguardando, ou pedindo uma liderança do Brasil. Talvez fosse o caso dos
pequenos, que como disse, faziam uma espécie de chantagem para extrair recursos
do Brasil. O próprio presidente equatoriano na época, que depois foi expulso
por corrupção, Lucho Gutiérrez, tinha sido estudante da academia militar no Rio
de Janeiro, como militar de origem, e gostava do Brasil; foi ele quem proclamou
essa liderança do Brasil, junto com outros países pequenos também. O Paraguai,
por exemplo, possivelmente estava querendo vantagens econômicas, a Bolívia
também, o Uruguai talvez, todos eles se declararam dispostos a apoiar a posição
do Brasil, a candidatura do Brasil ao Conselho de Segurança e outras
iniciativas brasileiras.
Então,
ocorreu uma assunção equivocada, ao meu ver, dessa liderança brasileira na
América do sul. Lula traçou todo um projeto diplomático, aliás muito mal
desenhado, que foi mais improvisado do que sistematizado, que ele chamou de “diplomacia
da generosidade”, ou seja, de desviar importações que o Brasil fazia de outros
mercados para a América do sul. Lula chegou até mesmo a conclamar os
empresários a importar dos vizinhos, ainda que fosse mais caro, porque seria um
favor que o Brasil estaria fazendo a países mais pobres, isso equivocadamente,
já que muitos deles têm renda per capita até superior à do Brasil. O Brasil, na
verdade, tem mais desigualdades internas, mais pobreza interna, do que muitos
desses países.
Lula proclamou
uma série de iniciativas sul-americanas, na linha da “generosidade”, com
financiamentos no BNDES, investimentos brasileiros, e passou a organizar a
América do Sul supostamente para resistir ao império. Em primeiro lugar, organizou
uma ofensiva contra a ALCA, como se a ALCA fosse algo absolutamente negativo;
os países da região, na verdade, buscavam investimentos americanos, buscavam o
mercado americano, e estavam negociando a ALCA. O PT sempre teve uma postura
anti-ALCA, posição ideológica, principista, não necessariamente derivada de uma
análise econômica, ainda que a ALCA apresentasse, evidentemente, grandes
desafios. Mas o Brasil de Lula mobilizou a Argentina e a Venezuela e os três conseguiram
implodir a ALCA. O resultado foi que vários desses países buscaram concluir acordos
bilaterais de livre comércio com os Estados Unidos, como Colômbia e Peru;
outros teriam feito, também, se pudessem. O Equador e a Venezuela certamente
estariam nessa mesma dimensão, se não tivessem mudado de orientação, com governos
anti-imperialistas, esquerdistas. Os Estados Unidos negociaram vários acordos
de livre comércio com países sul-americanos, menos com o Brasil e o MERCOSUL.
O
Brasil então propôs a CASA, Comunidade Sul-Americana de Nações, projeto que já
era um exercício de liderança sul-americana, mas que não foi muito bem recebido
pelos demais: no lançamento da CASA que foi feita em dezembro de 2004, no Peru,
em Cusco, nenhum presidente do MERCOSUL compareceu a não ser o próprio Lula.
Depois, no decorrer de 2005, quando o Brasil ofereceu o Rio de Janeiro para
sediar o secretariado da CASA, a proposta foi recusada pelos outros países
sul-americanos; mais adiante, por manobras de Chávez, a CASA até deixou de ter
esse nome. Ela virou a Unasul, numa reunião em Isla Margarita, na Venezuela, em
2007. Transformada em Unasul, a sede, ou o seu secretariado, se instalou em
Quito, no Equador, um país aliado de Chávez e da política de Chávez.
A autoproclamada
liderança do Brasil na América do Sul rendeu talvez alguns poucos benefícios
entre os países menores, mas os países maiores resistiram, Colômbia, Argentina,
Venezuela, certamente, porque não gostariam de ver o Brasil como sendo o grande
hegemon na América do Sul. Se algum tipo de liderança devesse ser exercido pelo Brasil na América do Sul,
seria justamente uma liderança de tipo benigno. Em que sentido? O Brasil é um
grande mercado, uma grande economia, pode ser, sim, o centro de um espaço
econômico e oferecer os seus mercados aos produtos dos países vizinhos. O
Brasil poderia ser aquilo que a Inglaterra foi, durante certo momento, no
século XIX, praticar o chamado livre cambismo universal, ou seja, abrir os seus
mercados aos países vizinhos sem qualquer tipo de defesa tarifária, de barreira,
tarifas altas ou proteção; ele não faz e não pode fazer isso porque o MERCOSUL constitui
uma união aduaneira, o que impede o Brasil de, livremente, conceder esse tipo de
benefício aos países vizinhos.
Em todo
caso, essa seria um tipo de liderança que o Brasil poderia tentar exercer. Se o
Brasil quiser ser líder, ele deveria prover alguns bens públicos. Vejamos:
quais são, basicamente, os problemas da América do Sul? Infraestrutura,
logística, problemas similares. O Brasil deveria ser o grande investidor na
região nesse tipo de empreendimento, vinculações físicas, o que o presidente
Fernando Henrique Cardoso tentou fazer com a criação da IIRSA, a Iniciativa de
Integração da América do Sul, em 2000. Esse projeto ficou parado no governo Lula,
porque Lula recusava todas as coisas que tinham sido feitas no governo Fernando
Henrique Cardoso. Na verdade, ele aproveitou os mesmos projetos com outros
nomes, com outros rótulos, mas as mesmas políticas. A IIRSA ficou parada
durante muito tempo, todos os projetos de ligação física ficaram parados
durante muito tempo e, mesmo assim, o Brasil é um país que não tem recursos
sequer para investimentos públicos em seu próprio território, quanto mais para
investimento físico em outros países. Isso deveria ser feito em cooperação com
o BID, com o Banco Mundial, com a CAF (Corporación Andina de Fomento), com o Fonplata,
com investimentos privados. Mas tanto o Brasil, quanto os países
latino-americanos, ou mais especificamente os sul-americanos, não conseguem se
organizar, justamente para oferecer um ambiente seguro de negócios para os investimentos
privados e para grandes projetos de infraestrutura financiados em regime de
consórcio. Isso ocorre seja porque os projetos não são elaborados
concretamente, seja porque os países têm diferentes regimes de concessão de
serviços públicos, seja porque têm monopólios, problemas burocráticos de organização,
e nada se faz.
Por
outro lado, além dos problemas de ligações físicas, quais são os grandes
problemas da América do sul? Segurança! Não tanto contra ameaças externas, que
não existem, mas sim ameaças internas. O continente tem problemas de
narcoguerrilha –aqui basicamente na Colômbia, vinculado a um problema de
narcotráfico – e de uma extensa criminalidade, também vinculada ao tráfico ou a
práticas criminosas, problemas de contrabando de armas, de pessoas, lavagem de
dinheiro, muita corrupção e fronteiras porosas onde se faz todo tipo de
pequenos e grandes tráficos. Ou seja, se o Brasil quisesse exercer algum tipo
de liderança ele deveria ajudar a Colômbia a combater um grupo absolutamente
nefasto identificado como terrorista pelo governo colombiano e pelo governo
americano. Trata-se de uma guerrilha anacrônica, já que ninguém mais pensa,
hoje em dia, em instaurar o socialismo, do tipo soviético, do tipo chinês ou
cubano na América do sul, um grupo que surgiu no contexto nos anos 60 e se
perpetua até hoje na industria de seqüestros e, sobretudo, no narcotráfico, ou
seja, um bando de criminosos comuns, um problema que deveria ter uma solução
política ou militar.
Como o
PT é um partido vinculado a esse tipo de movimento guerrilheiro, esquerdista,
de liberação nacional ou de contestação ao capitalismo, ao imperialismo, e como
as FARCs faziam parte do “Fórum de São Paulo”, liderado pelo PT, o Brasil
deixou justamente de oferecer uma liderança do tipo positiva para se oferecer
como intermediário num tipo de conflito no qual se considerava a as FARCs como
parte legítima. O assessor especial da Presidência para assuntos internacionais
chegou a oferecer os bons serviços do Brasil para mediar o conflito entre o
governo colombiano e as FARC, no que foi imediatamente rebatido pelo governo
colombiano, que afirmou que não estava pedindo nenhuma mediação, que se tratava
de um grupo ilegal, de criminosos, traficantes, terroristas, que eram contra
uma democracia legítima, que tinha eleições a cada 4 anos, se alternavam os
partidos no poder e que o grupo das FARC estava à margem da lei, da legalidade;
não era, portanto, o caso de mediar nenhum conflito, porque não se reconhecia o
status de grupo combatente, mas sim que eles deviam se render e passar a um
tipo de luta política que outros grupos guerrilheiros na América fizeram, como em
El Salvador. Então, o Brasil deixou de exercer uma liderança que era justamente
para acabar com o foco de narcotráfico, que prejudica o Brasil, inclusive.
O mesmo
problema ocorre em relação à Bolívia, em virtude de uma identificação errada da
diplomacia brasileira liderada pelo PT com respeito a partidos políticos. Em
primeiro lugar há uma interferência nos assuntos internos dos outros países. O
fato de Lula, por exemplo, nas eleições presidenciais de 2003, na Argentina, quando
Lula decidiu apoiar Nestor Kirchner, e ignorar os demais candidatos; uma
postura errada, já que nenhum governo tem o direito de intervir nas questões
internas de outros países. Imaginemos que ganhasse uma outra liderança, como é
que ficaria a postura do Brasil? Ao ter apoiado um dos candidatos e não ter se
mantido neutro como seria a postura correta – e Lula apoiou Kirchner na Argentina
–, Lula correu um grande risco; ganhou, certo, mas se não tivesse ganho Kirchner,
seria muito ruim: como teriam ficado as relações do Brasil com a Argentina. Da
mesma forma, Lula apoiou Evo Morales na Bolívia, quando não deveria ter
apoiado; ganhou novamente, tudo bem, mas poderia ter perdido, e o Brasil
ficaria mal com um governo de outra vertente política. Apoiou o Chávez, várias
vezes, na Venezuela, mais uma vez não deveria ter apoiado, não deveria sequer
ter interferido nos conflitos internos da Venezuela, e sim defendido a
democracia assim como a Carta Democrática da OEA.
Lula
teve uma sorte extraordinária, mas de toda forma é errado tentar exercer esse
tipo de liderança que distingue partidos porque um é progressista, um é de
esquerda, eu apoio, o outro é de direita, eu não apoio, então saúda as
lideranças de esquerda quando isso é absolutamente equivocado no plano
diplomático, de um Estado responsável. Então, isso não é exercer liderança,
isso é exercer partidarismo, preferências ideológicas, preferências políticas,
absolutamente contrárias a qualquer tipo de liderança, que deve ser neutra nas
disputas políticas internas de quaisquer países. Portanto, o tipo de liderança
que o Brasil deveria exercer é justamente aquele que ele não exerceu, ou que exerceu
mal, durante toda a gestão de Lula, que se refere às posições políticas
internas dos países vizinhos. Hoje, esse tipo de postura, felizmente, está
sendo superado, parcialmente ao menos.
Quinta pergunta: O Brasil
possui os requisitos necessários para exercer uma liderança na América do sul?
Quais as potencialidades e as limitações de uma liderança brasileira?
O que
significa exatamente “requisitos necessários para exercer uma liderança”? Como
já dito, é preciso, em primeiro lugar, se ter um país que seja admirado e que
os outros desejem imitar. Por que? Porque teve sucesso, construiu uma economia
pujante, tem uma sociedade próspera, uma institucionalidade estável e
democrática, respeitadora dos direitos humanos, e isso é um pouco do que as
democracias europeias construíram ao longo do tempo, com algum sofrimento,
algumas guerras, algumas crises, guerras civis e outras, mas construíram
sociedades caracterizadas pela tolerância religiosa, pela estabilidade
democrática, pela prosperidade econômica, pelo bem estar, com bons indicadores
de desenvolvimento humano. Ou seja, países assim, exercem simpatia, exercem
atração; todos os pobres do mundo querem emigrar para esses países.
Então, a
primeira condição para exercer uma liderança é ser admirado, querer ser imitado
porque se obteve sucesso. Ninguém quer imitar um fracasso, ninguém quer seguir um
modelo africano de guerra civil, isso seria uma incongruência. Por outro lado,
por mais que se admire o crescimento da China, ninguém quer ser uma ditadura
autocrática como a China; todos querem viver num país livre, em que você possa
ler o que você quiser, votar em quem quiser, ter direito de opinião, direito de
religião, liberdade de movimento. Isso é algo que é construído pelo próprio
país e passa então a ser admirado e imitado por outros.
O
Brasil, pode-se dizer que teve sucesso em algumas áreas de desenvolvimento
econômico e social, mas não muito, é um país caracterizado por muita miséria,
por desigualdade, por muita corrupção, por muita violência, muita delinqüência.
Não são atributos, digamos, que as pessoas queiram imitar, ou são atributos
justamente que as pessoas querem evitar. Ninguém quer morar em um país em que
você pode ser assaltado à noite ou em plena luz do dia, em que você pode ser
morto por um bandido na sua casa ou na rua, em que você vê o seu dinheiro de
impostos arrecadado duramente ser dilapidado em roubalheiras, em corrupção, ninguém
quer ter baixo crescimento, ou seja, progredir muito lentamente, todo mundo
quer ficar rico, todo mundo quer ter renda, todo mundo quer viajar, todo mundo
quer comprar bens. E o Brasil não é exatamente um país exemplar nesse plano.
Ainda que ele tenha construído uma economia industrial, o Brasil tem muita
miséria, muita corrupção. Em primeiro lugar, o Brasil precisaria ter vencido as
próprias mazelas, os próprios problemas para então ter condições de exercer
liderança.
Em
segundo lugar, muito se repete uma frase um pouco ambígua, mas se diz que o
Brasil não tem excedentes de poder, pode até ter mais do que outros países, mas
não tem, assim, excessos. Excedentes de poder querer dizer o que? Tendo
resolvido todos os teus problemas internos, pelo menos o básico, o essencial, e
tendo certo nível de prosperidade média, você passa a ter condições, recursos,
capacitação para transmitir um pouco daquilo que você fez de bem para outros
países, seja em financiamento, em cooperação, em investimento, ao aceitar imigrantes
em seu próprio país, como bolsistas, ou como imigrante mesmo; você pode também investir
em outros países, dar bons exemplos, sobretudo, ter disponibilidade de recursos
para ajudar outros países em caso de catástrofes. Quando se tem uma catástrofe
em qualquer lugar do mundo, um tsunami, terremoto, seca, inundação, guerra
civil, você vê países chegando com aviões, homens, comida, remédios, tendas, e
tudo mais para ajudar. A capacidade do Brasil de fazer tudo isso é muito
pequena, não temos capacidade de projeção externa para fazer “bondades
internacionais”, muito menos do que os europeus, americanos, que os japoneses
têm. Por que? Porque são sociedades prósperas. Então, o excedente de poder significa
ter, em primeiro lugar, capacidade econômica.
Em
terceiro lugar, existe aquilo que se chama de capacidade de impor a paz. Não é
só manter a paz quando todo mundo já se matou em uma guerra civil e chega a ONU
para colocar forças de interposição, de peacekeeping. É também impor a paz, ou
seja, quando está havendo um conflito, poder interromper antes que se matem
todos; isso o Brasil tem muito pouca capacidade de exercer. Ou seja, é
basicamente ter duas coisas: soldado e talão de cheque. Ter soldado e ter talão
de cheque para, seja exercer o bem público que se chama segurança, pacificação,
ordem, estabilidade, combate ao crime, violência; seja talão de cheque para
pagar cooperação, investimentos que se possa fazer.
Desse ponto
de vista, o Brasil ainda não tem todos os requisitos necessários, inclusive
porque ele não faz para o seu próprio povo, quando tem inundação, desastres
ambientais etc. No Brasil, o Estado é incapaz de assegurar uma assistência
rápida, e quando existe alguma assistência você vê o dinheiro sendo desviado.
Não é exatamente um modelo de eficiência, de organização para exercer uma
liderança.
A segunda
parte dessa quinta pergunta refere-se às potencialidades e as limitações de uma
liderança brasileira. Sendo um grande país, quase a metade da América do Sul em
termos de população e território, mesmo com todas as desigualdades, injustiças
e desequilíbrios existentes, o Brasil é um grande mercado, pela massa crítica,
assim como a China. Mesmo se esta tem um décimo da renda per capita americana,
é um enorme mercado, é a segunda economia mundial, então há um certo peso
derivado da massa atômica, digamos assim, que faz com que o país tenha
potencialidade, tenha condições de exercer liderança. Então o mercado brasileiro,
sendo grande, ele acomoda fornecimento de outros países. Se formos considerar o
Brasil em relação ao Uruguai, o que é o Uruguai senão um bairro de São Paulo? 4
milhões de habitantes, ou menos, cabem em uma parte da cidade de São Paulo. O
que isto quer dizer? Uma fábrica brasileira com a produção de um dia abastece o
Uruguai praticamente durante todo o ano, enquanto que a produção de um ano do
Uruguai não conseguiria, por mais que desejasse, abastecer o Brasil. Então,
essa desproporção faz com que seja fácil ao Brasil se abrir a países menores,
mesmo países médios, oferecer uma parte do seu mercado, o que ele não faz por
um protecionismo inerente à mentalidade brasileira.
O
Brasil não é um país tão atrasado no plano material, ele é até relativamente desenvolvido,
mas é um país atrasado no plano mental. As pessoas, as lideranças políticas, e
mesmo certos economistas e empresários do Brasil são muito mercantilistas: são
a favor da exportação, mas são contra a importação, acham que se deve proteger
o mercado interno. A começar por esse absurdo que está na Constituição, que abriga
um artigo 219 que define o mercado interno como fazendo parte do patrimônio
nacional; isso é uma bobagem monumental: mercado é uma coisa abstrata, mercado
são milhares de relações que se passam cada vez que uma pessoa faz uma compra,
faz uma venda, vende a sua mão de obra e compra um objeto, isso é mercado.
Mercado ser considerado um patrimônio é uma bobagem monumental. Isso reflete
muito essa mentalidade mercantilista que distingue o mercado interno do mercado
externo e considera uma ameaça a entrada de produtos concorrentes do exterior.
Esse atraso mental está plenamente confirmado pelas políticas recentes, relativas
à indústria automotiva; o ministro da área econômica fala em “concorrência
predatória do exterior” o que é uma bobagem monumental.
Então, o
país não tem condições de exercer liderança nenhuma reclamando da “concorrência
predatória do exterior” porque, no sentido inverso, se pode ter outros países
reclamando da “concorrência predatória” de produtos brasileiros em seus
mercados, se por acaso eles entrarem mais barato nesses países. É inacreditável
como essa mentalidade ainda se exerce no Brasil. Então, as potencialidades materiais
são enormes, mas as limitações são basicamente de ordem mental na incapacidade
de conceder um sistema aberto, cooperativo, de livre comércio, de integração
real com os outros países, no livre jogo da economia, em vez de perseguir o mercantilismo
e o protecionismo mais tacanho, mais mesquinho, que muitas vezes se exerce
aqui.
Sexta pergunta: por vezes o
brasil é descrito como Soft Power country. Na região o país busca exercer uma
soft leadership?
Existe
muito equívoco quanto a essa questão do soft
power, ou soft leadership. Por um
lado, isso quer dizer que países que são admirados, seguidos, ou que lideram
naturalmente não podem ser apenas hard
power, ou seja, se impor pela força bruta. Eles teriam também que exercer liderança
intelectual, a disposição de se abrir, de acolher os estrangeiros, abrir os
seus mercados. Tudo isso é válido, mas é um pouco para dizer que os EUA não são
apenas hegemônicos, mas também são também admirados pelos seus produtos: iPod, iPhone,
McDonalds, pelos filmes de Hollywood, pela música, por tudo aquilo que a
cultura americana representa, para o mal ou para o bem, seja de merchandising e
de marketing, seja de consumo de qualidade, o soft power são esses bens
intangíveis, que fazem com que um país seja admirado pelas suas qualidades, e
não temido pela sua capacidade de se impor brutalmente.
Esse
tipo de conceito não se aplica ao Brasil. E se fosse aplicado, seria muito
equivocado. Muita gente diz que o soft
power por parte do Brasil é, em parte, uma frustração, pelo fato do país
não poder ser hegemônico. Países que são poderosos, são poderosos, ponto, e não
precisam pedir desculpas a ninguém para serem poderosos. Quem não tem poder
costuma recorrer ao Direito Internacional, à solidariedade, à legalidade.
Então, como não se tem poder, então tudo fica no diálogo, ao tentar dizer: “Não
à força, sim ao direito, aos tratados, à cooperação, o diálogo, a solução
pacífica”. Tudo bem, a solução pacífica é muito boa, o diálogo é muito bom, a
democracia é muito boa. Mas em alguns casos você tem que ser malvado. Frente a
um ditador como Saddam Hussein, frente a déspotas como os do Khmer Rouge, no
Camboja, o massacre dos sérvios nos Balcãs, na Bósnia, ou no Kosovo; o massacre
dos Tutsis pelos Hutus em Ruanda, o massacre da população na Somália por
senhores da guerra; ou a morte de pessoas manifestando pacificamente na Líbia
ou na Síria.
Tudo
isso é muito complicado, e às vezes não se resolvem problemas apenas com
palavras; se tem que chegar lá e baixar o cacete no ditador, como se fez na
Líbia, para garantir a vida das pessoas, ainda que isso traga desgaste de algum
tipo. O soft power então funciona
quando você tem um regime reconhecido por todos, de estabilidade; então, em lugar
de se impor pela força, a imposição se dá pelo exemplo, pela capacidade de fazer
o bem, como fazem os canadeneses, os escandinavos, que são bondosos com todo o
mundo, mas isso funciona até certo limite.
O Brasil
pode talvez ser descrito como soft power
porque talvez ele não tenha um exército capaz de impor a sua vontade sobre o
resto da região. Se ele pudesse, talvez ele pudesse dizer para a Colômbia:
“Olha, nós vamos resolver o problema da FARC, acabando com as zonas liberadas
pela guerrilha e colocar ordem no país”. A Colômbia voltará a ser um país
tranquilo, inclusive porque está afetando o Brasil pelo tráfico de armas,
tráfico de cocaína, lavagem de dinheiro etc. Como ele não pode fazer isso por
não ter capacidade, então ele fica no diálogo, soluções de negociação, etc.
Então ele é um soft power às vezes porque não pode ser outra coisa.
Digamos
que, claramente, é muito melhor ser soft
power do que ser um hard power.
Ninguém gosta do grandalhão, que na escola bate nos pequenos. Você prefere que
todos sejam amigos, iguais e façam as coisas de forma consensual. Tudo bem, nem
sempre é possível fazer isso e as vezes você precisa ser um hard power também. Se o Brasil busca
exercer uma soft leadership,
certamente, já que a gente não tem condições de fazer outra coisa, a gente fica
proclamando a cooperação, o diálogo, as transferências de recursos para países
menores, a diplomacia da generosidade etc.
Mas na
verdade o que você deve fazer é estimular os negócios. Ninguém gosta de receber
esmola, ou de receber bondade. Você gosta é de ter uma relação de igual para
igual, mesmo um sendo pequeno e outro sendo grande. Relação de igual para igual
é ter oportunidades iguais ou ter chances de disputar um mercado com base no
seu próprio mérito, na sua própria capacidade. Então, na verdade, o Brasil deveria
- como já disse várias vezes – abrir os seus mercados e buscar exercer um papel
positivo na formação de um ambiente favorável aos negócios no país, que é
investimentos em logística, infraestrutura física, abertura de mercados,
democracia, cooperação, tudo isso.
América do Sul
Sétima pergunta: Há objetivos
em comum que justifiquem uma liderança na região:
Certamente,
a América do Sul não é diferente de qualquer outro povo, de qualquer outro
lugar quanto a aspirações e desejos. Quais são essas aspirações? Em primeiro
lugar, viver em paz, sem guerra sem ameaça, viver em segurança. Em segundo
lugar, prosperidade, ou seja crescimento econômico, aumento da renda,
disponibilidade de bens. Em terceiro lugar, mas sem uma ordem específica,
liberdade: liberdade de movimento, liberdade de opinião, de expressão,
democracia, transparência, não corrupção. Governos accountables, como dizem os americanos; governos responsáveis e que
prestam contas aos seus cidadãos. Eu acho que toda pessoa sensata deseja isso.
Mas a
América Latina, em geral, e a América do Sul não são isso. Se trata de uma
região com muita corrupção, com muita desigualdade, com muita pobreza, muita
miséria, muita violência urbana, pouco desenvolvimento, pouca infraestrutura
física, imensos problemas, baixa educação. Ou seja, a América Latina ainda é,
em grande medida, subdesenvolvida. O primeiro objetivo da América Latina seria
se tornar um continente mais rico, com países mais ricos do que eles são. Não é
por causa da exploração por potências coloniais, coisa que já acabou há
duzentos anos, ou pela exploração de imperialismos atuais nos últimos cem ou
cento e cinquenta anos, que a América Latina é subdesenvolvida. Não! Ela é
subdesenvolvida por deficiências próprias, porque o imperialismo pode ou não
existir, mas pelo menos na sua versão americana ele vem fazer negócios. O
imperialismo norte-americano é um imperialismo dos investimentos, do comércio,
da abertura de mercado, dos negócios basicamente, que em teoria beneficia todo
mundo. Os EUA não tem nenhum interesse em manter a América do Sul pobre, porque
seria justamente o contrário do que o capitalismo pretende. O capitalismo quer
consumidores, para ter consumidores tem que ter renda, para ter renda, precisa
ter economias prósperas. Então é uma grande bobagem essas teorias do Eduardo
Galeano e outras falam das “veias abertas da América Latina”, que nós somos
pobres porque eles nos exploraram e eles são ricos porque nós somos pobres.
Tudo isso isso é uma bobagem monumental.
Então o
objetivo comum seriam este: trazer prosperidade a todos. Como é que se traz
prosperidade? Bem, olhando o mundo, e vendo os países que hoje são ricos, mas
que já foram pobres no passado – economias agrículas do passado que se tornaram
economias industriais e economias avançadas, sociedades do conhecimento – você
tem algumas receitas: baixa capacidade de extração fiscal do Estado, iniciativa
privada, liberdade de contratos, garantias de propriedade, judiciário
funcionando, Estados menos corruptos, e sobretudo competição.
Se ouso
resumir os requerimentos para um sucesso na vida econômica eles são muito
simples. Eles são uma macroeconomia estável, de baixa extração fiscal, de
responsabilidade orçamentária, inflação reduzida e controlada, moeda estável
defendendo seu poder de compra, liberdade de iniciativas por um lado. Em
segundo lugar, uma microeconomia competitiva, ou seja, empresas que competem
entre si, e não monopolios estatais ou até monopolios privados setoriais,
carteis. A competição é o melhor regime possível, porque você consegue fornecer
bens mais baratos e de melhor qualidade para as pessoas. Na ausência de
competição você tem as porcarias que sempre tivemos aqui no Brasil. A ausência
de telefone, ausência de transporte, comunicação, coisas caras e de má
qualidade. A terceira condição é ter instituições de governança de qualidade.
Um judiciário que funcione, não que demore 8 anos para entregar um laudo ou uma
decisão. Um Estado eficiente que não seja invasivo, mas que funcione, o que não
é bem o caso atualmente; saúde, educação, infraestrutura funcionando, o que
também não é o caso do Brasil. O quarto requerimento é ter alta qualidade de
recursos humanos, o que depende de educação de qualidade, o que também é uma
falha tremenda na América do Sul. E quinta, a abertura ao comércio
internacional, aos investimentos que atraem alta tecnologia, atrai know how, e
faz com que você se desenvolva no plano da capacitação tecnológica mundial.
Tudo
isso deveriam ser objetivos dos países da América do Sul, e não são porque
temos lideranças falhas, pessoas de baixa educação acabam elegendo demagogos,
populistas, salvacionistas e visionários que prometem mundos e fundos e acabam
dilapidando recursos públicos em políticas erradas e processos inflacionários,
um Estado muito invasivo, o que provoca fuga de capitais, inflação, e ai você
não tem desenvolvimento e prosperidade. Então o objetivo principal, em primeiro
lugar, seria esse: dispor de regimes estáveis, economicamente e politicamente,
com a prosperidade pela via da iniciativa privada, porque se fosse para
construir pela via da iniciativa estatal, eu acho que a experiência dos 70 anos
do socialismo mostrou que não é o caminho. Se o controle estatal fosse sinômico
de prosperidade, os países socialistas seriam hoje potências incomensuráveis, e
não a miséria que foram e que por isso mesmo impludiram em ineficiência e em total
descalabro econômico.
Eu
acredito que esses objetivos deveriam se privilegiados por todas as pessoas
sensatas na região, e ainda não é o caso. Temos lideranças que ainda estão
construindo o socialismo do século XXI, que na verdade é uma bobagem monumental,
que é uma estatização absolutamente irracional da atividade privada que só
redunda em perdas, fuga de capitais, evasão de pessoas e de recursos humanos
etc. Então eu acho que esses objetivos deveriam ser de todos os sul-americanos.
Infelizmente não são. O continente ainda é muito atrasado mentalmente, como eu
digo.
Oitava
pergunta: As
divergências políticas dos governos sul-americanos dificultam o surgimento de
uma liderança regional? De que forma o Brasil deve lidar com isso?
Bom, eu
não acredito que isso seja uma colocação válida. Não é a divergência política
entre os governos que dificulta o surgimento de uma liderança regional. Em
primeiro lugar porque os países podem ter, e têm, divergências políticas. A Europa
é um exemplo de um mosaico de povos que tem governos de esquerda, de direita e
de centro, nos mais diferentes cantos da Europa; no entanto, existe um projeto
unificador. Mas mesmo que não houvesse uma União Européia, que a Europa não fosse
um continente com um projeto político comum, poderia ser uma região de paz – o
que ela não foi até a Segunda Guerra Mundial – se os governos fossem tolerantes
entre si. Mas na verdade houve momentos de paz na Europa. No século XIX, pelo menos,
quase não houve guerras na Europa, a não ser em algums momentos determinados, e
por desejo justamente de impor uma liderança alemã, combatida pelos franceses e
ingleses.
De
forma similar, no caso da América do Sul, divergência política sempre haverá. As
sociedades humanas são divididas em linhas religiosas, linhas políticas, linhas
econômicas e crenças diversas. Alguns acreditam mais no Estado, outros
acreditam mais na iniciativa privada; outros acham que a distribuição de renda
tem que ser feita pelo mercado, outros acham que tem que ser feita pelo Estado.
Isso vai estar conosco durante muito tempo, então haverá espaço para divergências
políticas.
Mas
isso, na verdade, não quer dizer dificuldade para o surgimento de uma liderança
regional. Liderança, como eu digo, se exerce naturalmente. Se um país é
prospero, pujante, grande, estável o suficiente para causar admiração e querer
ser imitado, e se acima disso ele tiver recursos para fazer “bondades”,
investimentos, abrir seus mercados, e prover seus vizinhos de bens públicos,
como segurança e estabilidade, ele será uma liderança regional. O Brasil talvez
consiga fazer isso no futuro. E poderá fazê-lo independentemente de
divergências políticas entre os governos. Alguns poderão ser mais estatizantes,
alguns poderão ser mais liberais, mas a liderança depende de um conjunto de
requisitos que não tem tanto a ver com divergências superficiais, mas tem a ver
com requerimentos mais tangíveis, mais estruturais de uma economia.
Então,
de que forma o Brasil deve lidar com isso? Sendo um país que, em primeiro lugar,
resolva os seus próprios problemas internos e que consiga ter os chamados
excedentes de poder, para que consiga fazer com os outros aquilo que ele
gostaria de fazer para si mesmo. Ou seja, um povo próspero, alimentado, bem vestido,
provisto de bens, com boa educação, instituições estáveis, e fazer com que toda
a região seja assim. Seria muito melhor. A Europa certamente é um lugar muito
melhor para se morar, hoje em dia, e nas últimas cinco décadas, do que nos
séculos de guerra; melhor, em todo caso, do que a África atualmente. Não são os
europeus que estão emigrando para a África. São os africanos que estão migrando
para a Europa e para os Estados Unidos. Alguma razão deve haver. O Brasil já
atrai muitos imigrantes, mas poderia atrair muito mais se ele fosse ainda mais
próspero, como são Europa e EUA. Talvez ele venha a ser um dia, se ele resolver
seus próprios problemas.
Nona
pergunta: Uma
liderança brasileira na região teria legitimidade? Como os países
sul-americanos enxergam essa pretensão?
Sim e não! Nenhum país deveria colocar a
liderança como meta própria. Ninguém é lider porque quer. As pessoas são lideres
porque podem ser líderes, e também porque os outros aceitam a sua liderança. Se
voltam para o líder e perguntam: “Qual é a sua opinião? Qual é a sua proposta?
Qual é a sua solução para um determinado problema?”. Então a legitimidade não é
algo de que se dispõe porque se tem vontade, e sim porque se pode. Você tem uma
liderança legítima quando você é solicitado pelos outros a fazer algo que eles
mesmos não podem fazer. Segurança, estabilidade, crescimento, investimento,
bens públicos, etc. Então, a liderança brasileira teria legitimidade quando ela
fosse construida naturalmente e não autodefinida, ou estabelecida pelo próprio
Brasil.
Como os países sul-americanos enxergam essa
pretensão? Eu diria que muito mal. Pelo menos enquanto o
Brasil for visto como um país que quer tirar vantagem de seu tamanho. Então,
penetrar nos países sul-americanos para obter lucro e exercer dominação, será
muito mal visto. Quando os países naturalmente tiverem vontade de vir ao
Brasil, de importar produtos brasileiros, ou de “consumir o Brasil” – como hoje
você “consume” a Disney World, os filmes de Hollywood, ou Nova York, Califórnia
ou Flórida –, então os países sul-americanos verão essa pretensão brasileira à
liderança muito naturalmente. Hoje em dia são, os turistas sul-americanos que
vão aos EUA, porque gostam de passear num país seguro, com menos criminalidade,
em ordem, limpinho, com coisas boas a oferecer, com produtos baratos. Acredito
que quando o Brasil for mais parecido com os EUA, ele será um pouco mais bem
visto pelos sul-americanos do que ele é hoje, em função de um passado imperial
ou hegemônico que não deixou muito boas lembranças.
Décima
pergunta: Como o
discurso integracionista se relaciona com a aspiração de liderança brasileira?
Eu diria que o discurso integracionista não
deveria ser correlacionado, ou colocado no mesmo plano que a aspiração
brasileira à liderança. Quando dois ou mais países decidem se integrar, ou
seja, derrubar fronteiras e barreiras, e outras barreiras não fronteriças, mas a
regulação econômica em geral, decidem integrar suas economias, eles o fazem com
vistas a vantagens recíprocas, equivalentes, mútuas. Ou seja, o país se integra
porque acha que estará melhor com ganhos de escala, com economias de escala,
com mercados ampliados, com mais competição, como ocorre num processo de
integração, por uma redução de custos etc. Então, isso é bom para todos.
Dificilmente um processo de integração se
faz por imposição, como ocorreria se um grande país dissesse para um pequeno :
“Vamos nos integrar”. O pequeno pode até querer se integrar ao grande para ter
vantagens, ter investimentos e tecnologia. Mas não é algo que você possa
correlacionar com liderança. O próprio processo de integração europeu, que é
único, exclusivo, original, absolutamente irrepetível, é um processo que se deu
ao cabo de muitos conflitos. Praticamente, ocorreram três grandes conflitos
entre a França e a Alemanha - 1870, 1914 e 1939 – até que os países se cansaram
de se massacrar, de invadir, e resolveram se unir. Mas precisou de lideranças
políticas esclarecidas, como Jean Monnet, Robert Schumann, e outros para propor
essa integração que foi vista como boa para as duas partes. E na verdade, quando
a integração foi feita, ela não foi feita com nenhuma liderança de um país
sobre o outro, mas sim com igualdade. Eles começaram integrando a produção de
carvão e do aço no primeiro tratado de Paris, em 1951. A CECA (Comunidade
Europeia do Carvão e do Aço) significou a desnacionalização dos dois fatores
mais elementares da guerra, a produção de armas – que se faz com aço e com
carvão – e os dois países aceitaram que a produção de carvão e aço fugisse ao
controle dos governos nacionais e ficasse entregue a uma alta autoridade,
supranacional, desnacionalizada; isso, portanto evitaria a triste repetição dos
eventos passados, as guerras. Com isso se começou a construir a integração
europeia, sem nenhuma liderança de um país sobre o outro, ao menos nos dois grandes.
França e Alemanha foram consideradas iguais, como Brasil e a Argentina na
América do Sul, sem mesmo haver guerra por aqui. Os pequenos países se uniram a
um processo igualitário, mas ainda assim com diferenças. É claro que França e
Alemanha exercem a liderança do processo europeu, mas um não exerce a liderança
sobre o outro. Eles tem que se colocar de acordo para que o processo avance.
Acho que algo similar vai ocorrer e deve
ocorrer na América do Sul. Brasil e Argentina, se quiserem construir uma integração
factível, eficiente e bem sucedida, devem evitar qualquer pretensão à
liderança, e discutir reciprocamente, com total igualdade, quais são as melhores
soluções para os seus países. Acho que a liderança não se casa bem com o
processo de integração.
Décima
primeira questão: As
ambições brasileiras em temas globais têm remetido a América do Sul a um
segundo plano em suas prioridades?
Talvez. O Brasil via a América do Sul como
um espaço próprio de crescimento, mas por acaso a América do Sul andou dando
uns trambolhões no passado recente, com exceção de Chile e Colômbia; outros
países tiveram enormes problemas. A Argentina vem crescendo agora, mas na
verdade está se recuperando de uma terrível crise no início da década passada e
não se pode dizer que Bolívia, Venezuela, Equador, e mesmo Paraguai sejam
exemplos de dinamismo e pujança. Então digamos que o Brasil cresceu, com todos
seus problemas ainda remanescentes e persistentes. Foi um país que realmente
deu um salto em termos de PIB, comércio, por ter corrigido as suas mazelas
passadas. Muito do progresso atual é devido ao que se fez anteriormente.
O governo Lula navegou no crescimento
econômico mundial e navegou na estabilidade econômica construida anteriormente,
porque se dependesse da política econômica do PT, antes, o Brasil teria ido, talvez,
pelo mesmo caminho da Venezuela ou da Argentina da crise, de descalabro
econômico etc. Houve uma estabilidade brasileira, tivemos crescimento, a
América Latina se tornou menos importante nesse processo, e o Brasil, então,
passou a projetar suas aspirações no cenário mundial. O que é natural devido ao
peso econômico.
Algo semelhantes ocorre com a China, apesar
de ser muito pobre e ter uma renda percapita ainda modesta. Mas, como país,
como massa atômica, a China tem um enorme peso econômico. O Brasil também tem
peso relativo. Sexta, sétima ou oitava economia mundial, isso faz alguma
diferença em termos de PIB, ainda que em termos de mercado é um mercado
limitado com uma renda per capita ainda pequena. Mas certamente O Brasil se
destacou da América do Sul. Basta dizer que, na construção da integração, o
Mercosul passou a representar um importante mercado para o Brasil. O Mercosul
saiu de 4% do comércio exterior brasileiro para 14% ou 15%. No entanto, nos últimos
anos, como a América Latina, a Argentina entrou em crise, outros países
estagnaram, o Brasil cresceu muito mais para fora do que para dentro da região.
Então o Mercosul teve seu peso diminuído na pauta exportadora brasileira.
Ou seja, nós não dependemos do Mercosul
como a Argentina depende do Brasil. Se o Brasil entrar em crise, a Argentina
vai sofrer, enquanto que se o Mercosul entrar em crise, o Brasil sofrerá relativamente
menos. Ainda que a gente exporte muita manufatura para a América do Sul, mais
do que commodities, ainda assim o peso é menor e a gente consegue diversificar
para outras regiões. O Brasil tem uma estrutura do comércio exterior muito mais
diversificada do que a América do Sul. Então naturalmente ele foi levado a
temas globais, em energia, em questões financeiras, questões de meio ambiente.
Tudo isso tem dado um certo peso ao Brasil.
Claro que isso teve muita transpiração
também. O presidente Lula saiu pelo mundo fazendo até mais do que deveria.
Abrindo embaixada em países africanos e perdoando dívida de países africanos, praticando
a “diplomacia da generosidade”, gastando muito dinheiro no Haiti, na África e
outros lugares, até mais do que deveria. O fato é que o Brasil ainda tem muitos
problemas internos, mas, enfim, ele passou a aparecer no cenário mundial.
Eu não diria que a América do Sul foi
remetida a segundo plano nas prioridades brasileiras. Continua a ser uma
prioridade, mas a agenda da América do Sul é uma agenda muito modesta, senão
medíocre. Qual é a agenda? Tráfico de drogas, corrupção, problemas de
infraestrutua que deviam ter sido resolvidos há muitos anos, imigrantes
ilegais, e toda a confusão de lideranças que não se entendem, toda essa
movimentação em torno da integração sul-americana. Na verdade, existe muita
retórica vazia, porque se há algo que não avançou na América Latina ,nos
últimos dez anos, foi a integração. Eu vejo o continente com muitas prioridades
divergentes, governos com objetivos muito diferentes entre si, menos focados na
integração.
Se tivesse havido integração real, teríamos
muito mais comércio intraregional e muito mais intensidade de vínculos físicos,
ligações físicas, intercâmbios energéticos do que existe. Se você ver a
estrutura do comércio exterior dos países, na região e para fora dela, e
comparar isso com a parte do comércio preferencial - ALADI, Mercosul – em
relação ao comércio global, você vai ver que os dados são absolutamente
medíocres. Por que isso? A Europa, que é um grande comerciante global, faz 60%
a 70% das trocas dentro da sua região. E nós aqui no Mercosul não fazemos mais
do que 15% das trocas. Ou seja, 85% das nossas trocas são externas. Então
significa que a integração não é grande coisa. Existe uma enorme diferença
entre a União Européia e o Nafta, que têm muito comércio intraregional – o Nafta
tem mais de 50%, a Europa 70% – e essas regiões tipo Mercosul, Aladi, ou a SADC,
ou a SAFTA, ou a ASEAN.
Então não há muita convergência
integracionista na América do Sul. Ao contrário, nos últimos dez anos as
divergências se aprofundaram. Não é por outra razão que tanto o Chile, quanto a
Colômbia e o Peru fizeram acordos de livre comércio com os EUA. Os EUA
finalmente aceitaram fazer porque são países que, de outra forma, poderiam ir
para a economia da droga, no caso da Colômbia e do Peru. O Chile é uma pequena
economia, então não faz muita diferença: eles tem muito mais vantagens de ter
um relacionamento consolidado com os EUA do que os EUA com eles. O que os EUA
teriam a ganhar, por exemplo, no Uruguai? Quase nada. No sentido oposto, o Uruguai
teria nos EUA um enorme mercado, e é por isso mesmo que o Uruguai queria ter um
acordo de livre comércio ou intensificar os vínculos com os EUA, no que foi
impedido pelo Brasil e pelo Mercosul. Então, existem, sim, muitas divergências
políticas entre os governos sul-americanos. O problema é que não se tem uma
convergência de opinião para construir uma América do Sul sólida e perseguir o
mesmo tipo de crescimento que a Ásia teve nos últimos 30 ou 40 anos.
EUA
Décima
segunda - Qual a percepção dos EUA sobre a América do Sul? A região é uma área
prioritária da política externa do país?
Não, claramente não. Passou do México, onde
os americanos vão de vez em quando para algumas férias em Acapulco ou agora em
Cancun, ou para algumas ilhazinhas do Caribe – depois que Cuba acabou, depois
que Fidel Castro tomou o poder eles sairam de Havana, dos cabarés –, eles
ignoram solenemente a América do Sul. A América do Sul para eles é terra de
imigrante ilegal, de cocaína, de ditadores. Enfim, eles não tem nenhuma percepção
concreta. A América do Sul não é absolutamente prioritária na política externa
dos EUA. A prioridade dos EUA desde sempre foi a Europa e o mundo norte
atlântico. Depois, com o surgimento da URSS, era justamente o equilibrio
estratégico no plano da Eurásia, da Europa central, da Ásia Pacífico. Essas eram
as prioridades americanas. E era também uma prioridade a sobrevivência do
capitalismo, da democracia, das liberdades, frente a um império soviético
agressivo, dizendo que ia enterrar o capitalismo.
Os EUA venceram a Guerra Fria, tanto
militarmente, economicamente e tecnologicamente. Mas as áreas prioritárias dos
EUA ainda são essas zonas mais relevantes no plano dos negócios, dos
investimentos e da tecnologia dos intercâmbios, que é o mundo atlântico até
agora. Isso está se deslocando para o Pacífico norte por conta do crescimento
econômico. Nos últimos cinco séculos o mundo dominante foi o mundo
euro-atlântico. É onde estão as riquezas, o comércio, as finanças, a tecnologia,
o conhecimento etc. E de onde viam os perigos militares, por conta do
comunismo: desafios hegemônicos na Europa. Essas eram, são e vão continuar
sendo as prioridades americanas. E também, do ponto de vista de não
proliferação nuclear, existem as potências nucleares que estão localizadas na
Europa e na Ásia.
A América Latina é, portanto, absolutamente
irrelevante para os EUA. Só se torna relevante quando apresenta algum problema
ou algum perigo. E quando foi isso? Foi quando teve foguete soviético em Cuba e
quando um bando de traficantes ameaça a segurança americana no plano da
família, das drogas etc. É uma zona excêntrica aos interesses geopolíticos
mundiais, que estão claramente no plano da Eurásia. No plano da economia,
tampouco é. A América Latina é modesta, ela é exportadora de commodities, tem
alguma energia, claro, petróleo e gás, mas isso existe também em outras
regiões. Então se a América Latina parasse de fornecer isso, ou se o Brasil parasse,
poderia haver uns tremores em alguns mercados de commodities, mas não seria um
drama mundial. Os grandes mercados de produtos sofisticados estão no hemisfério
norte.
No plano econômico mundial, há hoje um
claro deslocamento de placas tectônicas econômicas que se movem do mundo euro-atlântico
para o mundo do Pacífico norte, na verdade até um pouco do Pacífico sul. Mas na
verdade é o mundo da Califórnia, é o mundo da China, Japão, Coréia, Taiwan e de
Cingapura mas alguns tigres por ali espalhados. Ou seja, economias pequenas ou
grandes que estão integradas no comércio mundial de produtos manufaturados, que
importam commodities tanto da África quanto da América Latina – e commodities vêm
também do próprio EUA, da Austrália, do Canadá, produtos agrículas, minerais
etc. Mas o que é relevante não são as commodities, isto é um componente do comércio
internacional há séculos, mas sim a tecnologia. E isso não é produzido na
América Latina. Quando ela produzir produtos absolutamente essenciais e
necessários, ela pode se tornar relevante. Por enquanto não é. Existem também algumas
relevâncias absolutamente estranhas em outras regiõs: algumas ditaduras
petrolíferas, países miseráveis e corruptos, que são importantes porque tem
petróleo, que é um produto estratégico. Mas, no fundo, são países não muito
frequentáveis.
Décima
terceira: A presença dos Estados Unidos no continente obstaculiza a aspiração
de liderança do Brasil? Como influencia o comportamento dos países
sul-americanos?
Eu diria que não há uma contradição entre a
presença dos EUA no continente e a aspiração de liderança do Brasil. No caso os
EUA estão presentes na América Latina e na América do Sul nos últimos cem anos,
quando eles se tornaram a economia dominante, quando eles se tornaram
exportadores de capitais, investidores diretos, grandes importadores de
commodities, financeadores de bens tangíveis e intangíveis. Todo mundo quer
capitais americanos, os mercados americanos. Alguns até buscam a segurança dos
EUA. A Colômbia não teria condição de combater um grupo nefasto que são as FARC
se não fosse pela ajuda americana.
Tudo isso não deveria obstaculizar a
liderança do Brasil, se a liderança do Brasil tem objetivos convergentes com
essa presença americana. E a presença americana se dá em função do que? De
negócios basicamente. É uma presença de negócios. Os esquerdistas podem ver a
presença como hegemônica, de dominação imperialista, militar, de exploração...
Mas tudo isso é bobagem, os americanos estão aqui para ficar ricos. Nada impede
que os brasileiros também fiquem ricos fazendo negócios com os EUA. Ou seja, se
há uma convergência de interesses nessa presença recíproca, ela beneficia as
duas partes.
Liderança não quer dizer que seja bom ou
mau em função dessa presença. A liderança tem muitos significados. Pode ser uma
liderança não desejada. A URSS tinha uma “liderança” na Europa central e
oriental absolutamente indesejada para aqueles povos, porque era uma presença
ditadorial, maciça, contra as liberdades, a democracia, a autodeterminação
desses povos. Ela invadiu a Polônia, Checoslováquia, exercia sua dominação
sobre metade da Alemanha. Quando houve condições para sair dessa “liderança”,
na verdade hegemonia, todo mundo achou bom. Recuperaram a independência.
Não sei que tipo de liderança o Brasil quer
ter no continente, mas se for uma liderança de tipo americano, poderá ser mau
visto pelos esquerdistas, mas poderá ser bem visto pelos homens de negócio,
pelas pessoas que querem prosperidade. Se o Brasil é mais rico, mais forte,
economicamente mais dominante do que seus próprios países, os vizinhos o verão
com bons olhos. E não é por outra razão que você tem trabalhadores peruanos,
bolivianos em fábricas em São Paulo. Porque eles vem se beneficiar de algo que
eles não teriam nos seus países, que é oportunidade de emprego, renda, e poder
ficar um pouco rico.
Como isso influencia o comportamento dos
países sul-americano? Eu diria que depende. Alguns verão com bons olhos. Quando
houve o fim do império soviético e o fim do socialismo, todo mundo quis entrar
na Europa comunitária, porque é vista com bons olhos. Dinheiro alemão, dinheiro
francês, ajuda, investimentos... Então é isso. Quando o Brasil puder ser algo
semelhante a isso, ele vai poder ser muito bem visto.
Décima
quarta e décima quinta : Como os
EUA enxergaram a aspiração de liderança do Brasil na região ao longo do governo
Lula? E atualmente?
Não se trata apenas do governo Lula. Já na
época dos governos Clinton e FHC, os EUA queriam, sim, o Brasil mais envolvido
na América do Sul. Clinton, pessoalmente a FHC, chegou a fazer propostas ao
Brasil para exercer uma liderança benigna na América do Sul, para resolver os
problemas das drogas no Peru, na Colômbia, das FARC, segurança, integração. O
Brasil não se decidiu favoravelmente porque não tinha e não tem condições: não
tem capitais, não tem condições logísticas para exercer esse tipo de liderança.
Então o Brasil se eximiu de fazer.
O governo Lula, por sua vez, assumiu com
tonalidades anti-imperialistas, ainda que não de forma totalmente declarada,
mas evidentemente era anti-imperialista, contrário à presença americana na
região. Várias vezes protestou quanto à presença de tropas americanas na Colômbia,
ou em outras regiões. Se orgulha de ter implodido a ALCA. Então, certamente, o
Brasil quer afastar os EUA da região. Pelo menos o governo Lula quis fazer. Todos
os movimentos foram feitos nesse sentido. Tanto a CASA quanto a Unasul, ou a
CALC agora, é para ter algo sul-americano, ou exclusivamente latino-americano,
sem a presença americana, que é vista como nefasta ou prejudicial.
Isso é uma bobagem monumental, mas enfim: as
pessoas do PT e outras lideranças esquerdistas acreditam nesse tipo de bobagem.
Hoje eu acho que há uma diminuição desses ardores anti-imperialistas no Brasil,
e há também um certo cansaço americano, que já tem imensos problemas e menos
recursos para fazer aquilo que eles faziam no passado, que era ser generoso, distribuir
recursos etc. Eles têm que resolver seus problemas internos, e com isso, abrem
espaço para o Brasil exercer sua liderança; que, aliás, será muito bem vista
pelos americanos se entrar nesse molde americano, que é o molde dos negócios,
investimentos, abertura de mercado, regras muito claras para as empresas deles.
A liderança do Brasil é bem vinda pelos
EUA? Certamente, se a liderança do Brasil se exercer nesse sentido de propiciar
novos negócios e integração, estabilidade política e econômica, será muito bem
vinda, e eu não vejo como os americanos poderiam ser contrários a esse tipo de
liderança. Ainda que esse termo liderança seja muito capcioso, muito mal
interpretado e muito suspeito para ser usado em termos diplomáticos.
Décima
sexta pergunta: O Brasil exerceu uma
liderança na América do Sul ao longo do governo Lula? E atualmente o Brasil
exerce ou não uma liderança?
Possivelmente sim. Exerceu, sim, uma
liderança porque o governo Lula tomou várias iniciativas que foram finalmente
aceitas pelos sul-americanos. Primeiro a CASA, depois a Unasul, a CALC, o
FOCEM, a diplomacia da generosidade, investimentos etc. Tudo bem, isso é bom
que se faça. Havia certa vontade de que alguém desempenhasse essas funções.
Isso foi bom para o Brasil? Provavelmente foi
e é. Propiciou negócios para as empresas brasileiras e isso é bom. Se isso foi
bem visto pelos sul-americanos, ou não? Às vezes existem esses acusações de “imperialismo
brasileiro” justamente porque pessoas que não tem tanto sucesso são um pouco
ressentidas, buscam bodes espiatórios ou as razões do seu fracasso em face da
preminência de outros. Muitos sul-americanos têm raiva dos EUA, porque os
americanos foram bem sucedidos, são ricos e dominantes, e até arrogantes, e a
gente continua pobre, miserável, com corrupção e outros desequilíbrios enormes.
Então há uma certa inveja, e um certo despeito. Daí à tendência de atribuir os
seus males a outrem é muito fácil. Isso está muito evidente nessas explicações idiotas,
tipo Eduardo Galeano, “As Veias Abertas da América Latina”, e tem muita gente
que acredita nisso. Pode ser que isso se exerça contra o Brasil em algum
momento, e talvez já esteja se exercendo no Paraguai, Bolívia etc.
Se o Brasil exerce ou não uma liderança?
Isso deveria ser uma palavra tabu para a diplomacia brasileira, e se por acaso
a gente for aceito como líder natural, será uma boa coisa, e será talvez pelos
nossas boas qualidades, pela nossa simpatia, pelos nossos méritos, pelos nossos
mercados, pela nossa capacidade de cooperar do que propriamente pela imposição
de um projeto brasileiro para a região. É muito melhor fazer as coisas
consensualmente em cooperação do que impositivamente.
Brasília, n. 2332: 22 de outubro de 2011.
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