A nova política externa do governo Temer
No momento em que escrevo (final de maio
de 2016), não foram definidas ainda, com maior grau de detalhe, as
principais características da política externa do governo Temer. Na
verdade, não se sabe se serão efetivamente: (a) escolhas específicas do
próprio presidente, que parece apreciar a política externa e o próprio
Itamaraty, mas não se tem pronunciado muito a esse respeito; (b)
escolhas do seu governo, que não parece conformar um conjunto
harmonioso, ao contrário; ou, (c) se corresponderão a ideias próprias do
novo chanceler, o senador por São Paulo José Serra, duas vezes
candidato derrotado à presidência da República (em 2002 contra Lula, em
2010 contra Dilma, que agora foi objeto de impeachment, por crimes
fiscais). Essas definições emergirão gradualmente nas próximas semanas e
meses, embora algumas já tenham sido oferecidas pelo novo titular, em
seu pronunciamento inaugural no dia 18 de maio, ao receber o cargo do
chanceler anterior.
O Senador José Serra afirmou então que o
seu “Delineamento da Nova Política Externa Brasileira”, organizado em
torno de dez diretivas, tinha sido lido, revisto e aprovado pelo
presidente Temer, o que já configura uma postura oficial do governo.
Quais são essas diretivas? Resumidamente, elas se referem aos seguintes
pontos:
- A política externa será regida pelos valores do Estado e da nação, não do governo e jamais de um partido.
- O Brasil se empenhará na defesa da democracia, das liberdades e dos
direitos humanos em qualquer país, em qualquer regime político.
- O Brasil assumirá plenas responsabilidades em matéria ambiental e no que se refere a uma matriz energética renovável.
- Ação multilateral construtiva em favor de soluções pacíficas e
negociadas para os conflitos internacionais e busca de uma adequação das
estruturas das organizações internacionais às novas realidades e
desafios internacionais.
- No comércio internacional, complementação das negociações multilaterais, hoje estancadas, por um ativo bilateralismo.
- Abertura de negociações imediatas para abrir mercados para as
exportações e criar empregos no país, utilizando pragmaticamente a
vantagem do acesso ao grande mercado interno como instrumento de
obtenção de concessões negociadas na base da reciprocidade equilibrada.
- Reafirmação da parceria com a Argentina, para renovar o Mercosul,
resolvendo seus problemas de livre comércio, e engajamento reforçado com
parceiros da região, como os membros da Aliança do Pacífico.
- Ampliação do intercâmbio comercial com parceiros tradicionais, troca
de concessões entre o Mercosul e a União Europeia, e exame de
facilitação do comércio com os Estados Unidos.
- Prioridade para parceiros asiáticos, como China e Índia; com a
África, a cooperação será pragmática, assim como com países árabes.
- Ênfase na redução do custo Brasil, para aumentar competitividade e
produtividade da produção brasileira e para atrair investimentos
estrangeiros.
Uma outra diretriz foi apresentada,
no sentido de se realizar a coordenação com órgãos de proteção das
fronteiras (Justiça, Defesa, Fazenda-Receita Federal) para combater o
crime organizado, em cooperação com os países vizinhos. O ministro se
comprometeu igualmente a resolver os difíceis problemas orçamentários do
Itamaraty, tanto no apoio ao pessoal do serviço exterior servindo em
postos da rede mundial, quanto para regularizar o pagamento devido a
organismos internacionais. Tratou-se, como evidenciado, de uma
plataforma concisa, mas focado em objetivos concretos no terreno
econômico e comercial.
O argumento inicial quanto aos valores e
princípios da diplomacia brasileira, como sendo os da nação, nunca de
um partido, é uma crítica direta à diplomacia partidária do anterior
governo do Partido dos Trabalhadores, e pode ser visto como um alerta
aos antigos aliados do PT no plano regional e internacional, no sentido
em que o Brasil não mais favorecerá e privilegiará relações políticas
especiais com os chamados países bolivarianos (ou seja, os membros da
Alba, a Aliança Bolivariana dos Povos da América, criada pelo falecido
líder da Venezuela Hugo Chávez, em aliança com os dirigentes comunistas
de Cuba, e progressivamente incorporando outros países, como Bolívia,
Equador, Nicarágua, El Salvador). Trata-se de uma importante mudança,
tanto no plano estritamente regional, ou seja, das relações bilaterais
do Brasil com esses países, mas também bastante significativa do ponto
de vista das posturas políticas assumidas pela diplomacia brasileira no
contexto mais vasto da política internacional.
Foram justamente estes países que
emitiram fortes críticas ao processo de impeachment no Brasil, que
redundou no afastamento da presidente eleita em 2014 (sendo que dois,
Venezuela e El Salvador, chegaram a chamar seus embaixadores), o que
motivou o primeiro gesto público da nova diplomacia brasileira, que
divulgou notas bastante contundentes de crítica às “mentiras” assacadas
por esses governos contra um processo estritamente constitucional e
respeitador dos princípios democráticos do país. No entanto, críticas
continuaram a ser veiculadas na imprensa internacional e por iniciativa
de alguns partidos políticos de esquerda ou progressistas, geralmente a
partir de impulsos emitidos pela própria equipe derrocada no processo de
impeachment, usando canais partidários e outras vias passando por
movimentos identificados com o espectro político da esquerda. O
Itamaraty se viu obrigado a expedir circulares a todos os postos no
exterior expressando a necessidade de se responder a cada vez que o novo
governo fosse acusado de ilegítimo ou de que o processo teria sido um
“golpe”, como se esforçam de defender essa tese os personagens afastados
do poder.
A primeira articulação diplomática do
novo chanceler foi, como seria de se esperar, com a Argentina, o mais
importante vizinho do Brasil no Cone Sul, e membro do Mercosul,
justamente uma das questões mais relevantes na agenda de política
econômica externa do Brasil. O Senador Serra, quando candidato à
presidência, em 2002 e em 2010, ficou conhecido por veicular críticas ao
bloco comercial em sua modalidade de união aduaneira, expressando a
ideia de que caberia, talvez, fazer o acordo de integração retornar a um
formato de zona de livre comércio. Não se sabe exatamente o que foi
tratado nessa visita do chanceler a Buenos Aires, realizada em 23 de
maio, mas a imprensa argentina refletiu algumas das dificuldades
surgidas nessa primeira discussão sobre o futuro do Mercosul. Segundo a
agência Telam, a titular da diplomacia argentina, Susana Malcorra, teria
pedido prudência ao colega brasileiro, porque levar o Mercosul a um
simples acordo de livre comércio poderia ser prejudicial nas negociações
em curso com a União Europeia para a liberalização do intercâmbio entre
os dois blocos (ver:
http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/05/mercosul-de-uniao-aduaneira-zona-de.html).
Confirmando a retomada de relações mais
relevantes com países desenvolvidos, o chanceler Serra pretende
dirigir-se aos membros da OCDE, em visita próxima a Paris, o que não o
impediu de fazer uma escala em Cabo Verde, para também reafirmar o
compromisso do Brasil com a cooperação técnica dirigida a países
africanos lusófonos. No governo anterior, o ministro da Fazenda Joaquim
Levy havia assinado um acordo-quadro de cooperação entre o Brasil e a
organização do Palais de la Muette com o objetivo de intensificar as
interfaces do país com o chamado “clube dos ricos”, mas esse processo
parece ter ficado relativamente interrompido com a saída do ministro do
governo, em dezembro de 2015, e o agravamento da crise política desde
então. Vários outros temas continuam na pauta do governo atual, entre
eles diversos deixados pelo governo anterior, como por exemplo os foros
de coordenação com os chamados “parceiros estratégicos”, no IBAS (com
Índia e África do Sul) e no BRICS (juntando estes à China e à Rússia),
no âmbito do qual já foi constituído um banco de fomento a projetos em
países em desenvolvimento e um acordo de reservas contingentes para
eventual suporte financeiro, em caso de crises de balanço de pagamentos.
As grandes questões da política econômica e seus principais desafios
A primeira tarefa foi a identificação
precisa do tamanho dos desafios a serem enfrentados este ano e nos
próximos, a começar pelo déficit orçamentário, estimado pelo novo
ministro da Fazenda, ex-presidente do Banco Central nos governos Lula
Henrique Meirelles, em R$ 170 bilhões, praticamente 2,6 % do PIB: esta
foi a meta fiscal fixada para o déficit orçamentário em 2016. A primeira
medida anunciada foi o envio de uma emenda constitucional, ainda não
informada, sobre a limitação dos gastos públicos em função do
comportamento da inflação, o que pode, eventualmente, não revelar-se a
melhor fórmula (uma vez que governos futuros podem ser tentados em
tolerar uma inflação mais elevada para permitir gastos mais altos). Na
frente externa, em compensação, não existe um perigo iminente, uma vez
que, além das reservas em divisas relativamente elevadas (estimadas em
quase US$ 380 bilhões), a balança comercial tem permitido a provisão de
saldos positivos, por força tanto da desvalorização do real, quanto da
diminuição dramática das importações. Essa pequena melhora pode não
impedir uma nova desvalorização do real, para R$ 3,60 por dólar,
aproximadamente, se os juros americanos voltarem a subir nos próximos
meses por decisão do Federal Reserve.
As duas maiores rubricas de despesas do
governo são os juros da dívida pública e as transferências a título dos
mecanismos previdenciários (pensões e aposentadorias). Os juros podem
diminuir um pouco, mas dificilmente caminharão para um patamar mais
confortável, em vista das necessidades constantes de financiamento do
setor estatal (cronicamente deficitário). As regras de aposentadoria
precisam ser alteradas, mas o processo será lento e seus efeitos mais
lentos ainda. Daí a possibilidade de o governo voltar a propor aumento
dos impostos existentes, ou até a recriação da famigerada CPMF, um
imposto sobre transações financeiras, que grava cumulativamente todo o
processo produtivo. Ambas medidas requerem emendas constitucionais, o
que representa o apoio de 3/5 do Congresso, o que é ainda mais exigente
do que a própria confirmação do impeachment no Senado, que requer 2/3
dos votos dos senadores.
Outras mudanças – como a desvinculação
da previdência oficial do salario mínimo – podem ser igualmente
difíceis, razão pela qual não se espera uma retomada do crescimento
econômico antes de vários anos (a renda per capita, em 2021, tal como
estimada pelo FMI, será a mesma de uma década atrás). Para tentar paliar
a vários desses desafios, as autoridades econômicas estão buscando
recursos onde eles podem existir: o BNDES terá de devolver R$ 100
bilhões ao Tesouro, uma pequena parte das transferências efetuadas pelo
governo derrocado ao arrepio das boas normas contábeis da administração
público. Em outra iniciativa, o novo governo resolver liquidar o Fundo
Soberano do Brasil, uma figura que nunca deveria ter existindo, uma vez
que o Brasil não reunia, justamente, nenhum dos requerimentos para
possuir um, quais seja, um excedente fiscal e saldos estruturais nas
transações correntes; em todo caso, dos R$ 14 bilhões repassados pelo
governo ao Fundo, e aplicados em ações da Petrobras e do Banco do
Brasil, apenas R$ 2,2 bilhões puderam ser apurados.
A batalha dos próximos meses: diplomacia e economia
Poucos protagonistas do jogo político
atual no Brasil acreditam que seja possível uma reversão do processo de
impeachment, inclusive porque as investigações e os julgamentos
derivados da Operação Lava Jato continuarão a produzir perdas nas hostes
das antigas forças que controlavam o executivo ou influenciavam suas
políticas. Para todos os efeitos, o PT e os partidos a ele associados,
tendem a se concentrar numa oposição tão negativa quanto inócua. Os
grandes desafios para o governo até 2018 são portanto representados pela
recomposição das bases do crescimento sustentado e a reinserção do
Brasil na economia mundial, da qual ele tinha sido afastado por práticas
econômicas introvertidas e protecionistas.
A atuação do Itamaraty nesse quadro se
afigura essencial, não apenas em termos de negociações de novos acordos
comerciais – o que se afigura difícil, embora alguns avanços possam ser
feitos na própria região, notadamente em direção da Aliança do Pacífico –
mas também porque o novo chanceler, economista de formação, sabe que
essa inserção passa pela reforma de muitas políticas internas vinculadas
a ganhos de produtividade e de reconquista da competitividade externa. A
vinculação da Agência de Promoção de Exportações-Apex e da Câmara de
Comércio Exterior-Camex ao Itamaraty (ainda que esta última formalmente
subordinada à Presidência da República) são bons indicativos nesse
sentido, mas muitas das novas tarefas também passam pelo ministério da
Fazenda, na diminuição do chamado “custo Brasil”, que tem na horrorosa
estrutura tributária o centro dos maiores problemas.
Se as áreas econômica e diplomática
lograrem trabalhar em perfeita coordenação de intenções e de mecanismos
nos próximos dois anos, o Brasil poderá estar alterando
significativamente sua postura internacional, tal como observada nos
últimos treze anos, quando a diplomacia partidária do PT subordinou a
política externa a preferências ideológicas claramente perceptíveis, e
praticou uma enviesada diplomacia Sul-Sul que não produziu quase nada
como resultados efetivos. O Brasil abandonará o universo restrito desses
alinhamentos políticos a regimes de esquerda na América Latina para
retomar sua antiga vocação universalista e pragmática, com foco
principal em metas e objetivos econômicos e comerciais. Grande parte
desse esforço será conduzido no próprio Cone Sul, agora reconfigurado
também pela mudança de orientação política na Argentina, com a qual o
Brasil precisará se coordenar para impulsionar um novo cenário
geopolítico em escala continental e até mundial.
A situação da América Latina até aqui
estava mais ou menos fragmentada entre forças globalizadores – como as
dos países da Aliança do Pacífico – e um grupo de países identificados
com o chamado bolivarianos, sendo que no meio desses polos opostos se
situavam alguns reticentes, como poderiam ser o próprio Brasil e a
Argentina (situação descrita em meu artigo: “A América Latina na
geopolítica mundial: perspectivas históricas e situação contemporânea do
Cone Sul”,
Revista Eletrônica de Direito Internacional, CEDIN; link:
http://www.cedin.com.br/publicacoes/revista-eletronica/#Volume_17). Ainda é cedo para prefigurar os cenários emergentes, mas eles são alvissareiros e prometem ser duradouros.
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