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sábado, 11 de fevereiro de 2017

Diplomatas que pensam: qual é a nossa função? - Paulo Roberto de Almeida


Diplomatas que pensam: qual é a nossa função?

Paulo Roberto de Almeida (org.)
 [Reflexão sobre uma suposta “missão”; finalidade: auto-esclarecimento]

A pergunta da segunda parte do título, depois dos dois pontos, está obviamente relacionada à primeira parte: diplomatas que pensam. Como isso? Existem diplomatas que não pensam? Todo ser humano pensa, por definição cartesiana. Minha categoria dos “que pensam” tem, no entanto, sua razão de ser: como em toda carreira, profissão, ocupação, trabalho ou emprego, existem aqueles que desempenham mecanicamente suas funções, por necessidades, digamos assim, alimentares e de sobrevivência, que levam a vida como ela é, acompanhando pachorrentamente o ritmo das atividades gerais de sua comunidade de inserção, e existem aqueles que, ademais de se desincumbirem das tarefas às quais estão assignados (para ganharem um salário, para sustentarem a família, para satisfação e consumo próprios), também pensam um pouco além de sua profissão ou ocupação imediata. Eles pensam no significado de suas atividades, para si mesmos e para os outros, e concebem novas formas de desempenharem essas mesmas atividades, ou de introduzir novos métodos de trabalho que representam, de modo geral, um progresso (material ou intelectual) sobre o estado da arte existente.
Pois bem, este meu texto está voltado unicamente para esta segunda categoria, que se enquadra no conceito geral de “produtividade do trabalho humano”, na qual eu mesmo espero estar enquadrado. Produtividade, sendo muito rudimentar, é tudo aquilo que melhora, ou aumenta, a oferta da produção existente, com os mesmos recursos ou volume de insumos disponíveis, ou que produz a mesma quantidade de produtos com um volume menor de trabalho mecânico. A isso se dá também o nome de inteligência.
As funções dos diplomatas todo mundo sabe quais são. Grosseiramente, são três, resumidas em três verbos: informar, representar, negociar. Mas tudo isso pode ser feito de maneira mecânica: lendo os jornais do dia, se informando pelos canais disponíveis, e resumindo tudo isso para os chefes ou para a instituição, em bases correntes, ou seja, conjunturais; fazendo o trabalho de intermediação entre duas chancelarias, pelos meios burocráticos normais, os mais costumeiros e frequentes, ou outros informais (coquetéis, jantares, encontros); e comparecendo a reuniões formais, ali defendendo as instruções recebidas de sua secretaria de Estado. Estes são os diplomatas normais; os “anormais” (ou diferentes) são aqueles que, além disso, vão um pouco à frente, ao lado, ou mais adiante do que normalmente se espera deles: saem do conjuntural para o sistêmico, e buscam os fundamentos de suas ações; não informam apenas o que está se passando, mas se permitem explorar novas vias de conhecimento, inclusive em direção do passado, das memórias de tempos pretéritos, ou em novos caminhos ainda ignotos da maior parte dos colegas; sugerem, ou até criam, novas instruções, para resolver alguns problemas mais complexos do que o trivial costumeiro. Inovar tem o seu preço, que é o de romper hábitos arraigados e a segurança do déjà vu, a que estão acostumados a maioria das pessoas, talvez 99% da humanidade (exagero?).
Pois bem, uma segunda vez: meu texto está unicamente voltado para esta categoria de diplomatas, que pode ser (e costuma ser) uma minoria, e portanto sujeita à chamada “tirania da maioria”, de que falava Tocqueville (em outro sentido). Não importa muito: isso vale não só para os diplomatas, mas para todo mundo. Progressos da comunidade humana são impulsionados por aqueles que passam as noites nos laboratórios, lendo livros, imaginando coisas fora do comum, refletindo sobre como desempenhar suas atividades correntes de outra forma, mais cômoda, mais produtiva, mais imaginativa, fácil ou agradável; ou para responder a desafios terríveis: epidemias, catástrofes, trabalho penoso, carência de bens ou serviços para necessidades especiais, o que seja. Na vida diplomática, significa fazer com que seu país se adapte à dinâmica absolutamente impessoal, incontrolável, anárquica, com efeitos positivos e negativos ao mesmo tempo, decorrente do fluxo contínuo de interações humanas, sociais, “naturais”.
Vou ser mais claro: globalização não é de hoje, sempre existiu, sob diferentes formas. Ela geralmente se processa no plano micro: micro-social, microeconômico, micro-político, ou seja, no das relações humanas, em pequenas ou grandes sociedades. Ninguém controla esse conjunto de fluxos, que se processam espontaneamente, ou de modo deliberado, mas que respondem a necessidades naturais, a desejos humanos, à vontade das pessoas de terem segurança, bem-estar, riqueza, importância ou prestígio. São os governos os que tentam colocar em “ordem” essas interações e, ao fazê-lo, geralmente colocam um freio, ou impõem custos, a essas interações: por meio de impostos, tarifas, regulações, que dizem (ou pelo menos tentam dizer) o que os indivíduos ou as empresas podem, ou não, fazer. Governos, estados, são inerentemente antiglobalizadores, restritivos, cerceadores das liberdades humanas. Mas, num mundo babélico, entregue a nacionalismos estéreis, redutores, e até destruidores, se entende que elites dirigentes, governantes ou dominantes tentem colocar ordem em certos fluxos ou interações que podem se revelar temporariamente perturbadores da ordem existente.
Pois bem, uma terceira vez: o que os diplomatas que pensam têm a ver com tudo isso? Venho agora à segunda parte do título. Qual seria a nossa missão (já que estou me colocando entre os diplomatas que pensam)? Penso (ah, Descartes) que elas são de duas naturezas: uma didática, a outra facilitadora das interações humanas, sociais, ou seja, da globalização (que para mim é algo como a força dos ventos ou os fluxos das marés: eles existem, independentemente da nossa vontade, ou do cerceamento dos governos).
A didática é a de explicar para nossos concidadãos (mas não só eles) a natureza exata de nossa atividade, numa esfera que foge à compreensão e ao alcance da maioria das pessoas (que costuma viver em seu ambiente natural, local ou nacional). Mas ela é também dirigida aos nossos dirigentes, às elites que nos governam, que não são, longe disso, as mais esclarecidas possíveis. Políticos, em geral, são seres que vivem num mundo à parte, feito da reprodução de sua própria esfera de atividade: se eleger, se reeleger, e assim continuamente, constituindo uma classe em si e para si, no sentido hegeliano do conceito. Eles não têm tempo, disposição ou interesse para se informar sobre realidades mais complexas, e todas as realidades internacionais são sempre mais complexas do que as locais ou nacionais, nas quais vivem as pessoas, usualmente.
O diplomata que pensa precisa desfazer preconceitos (ideias pré-concebidas, geralmente erradas, ou limitadas), insuficiência de conhecimento, desconhecimento de línguas, falta de expertise no tratamento de realidades externas que povoam as mentes dos políticos que nos governam. Sua primeira tarefa é a de instruir, educar, o chefe da chancelaria, que pode não ser (geralmente não é) um ser semelhante, ou seja, um diplomata já instruído, formado, treinado para justamente tratar de questões que estão acima, ou ao lado, das preocupações imediatas dos dirigentes (que é o seu eleitorado, digamos assim). Essa é uma função importante: não se dobrar, de modo submisso, à ignorância, preconceitos e interesses imediatos dos políticos que podem pretender dominar também a esfera das relações exteriores da nação.
Junto com isso vem a função didática mais ampla, mais geral, que é (ou seria) a de explicar à sociedade, inclusive à comunidade dos acadêmicos, não só a natureza das ações do Estado a que servem, mas de justificar a tomada de certas posições e não de outras, que podem eventualmente desfrutar de maior apelo popular. Por exemplo: todo economista sensato, racional, deveria ser a favor do livre comércio, pois é a única forma eficiente de trazer mais prosperidade para o conjunto da humanidade, qualquer que seja ela, da tribo mais primitiva às sociedades mais avançadas. Que alguns economistas não o sejam, não importa, pois estes não são racionais, ou eles não conseguem explicar, com evidências empíricas, como o livre comércio seria prejudicial à sua própria sociedade.  Pois bem (uma quarta vez), todo político sensato diz que é favor do livre comércio, mas de fato persegue formas diversas de protecionismo, por simples razão de sobrevivência no voto dos seus “constituintes”, aqueles que podem perder o emprego pela competição da produção estrangeira. A concorrência, em qualquer plano no qual ela se dê, é sempre uma ameaça aos espíritos acomodados, aos hábitos arraigados, aos conservadores.
Sendo perfeitamente (em duplo sentido) didáticos, em nossa primeira função, poderemos viabilizar igualmente a segunda função, que seria a de facilitar, estimular as interações humanas e sociais, contribuir para a prosperidade do seu próprio povo e a de todos os demais. Todo os diplomatas – ou os que pensam – estão de acordo com minha definição de funções, que me parece ser também uma obrigação dos que pensam? Pois bem: o que estamos esperando para fazer aquilo que é a obrigação dos que pensam: ensinar e facilitar ações de maior volume possível de interações sociais, internacionais?
Digo isto, porque tenho encontrado mais burocracia do que didatismo entre os diplomatas, e pouco sentido de missão (acima do trivial costumeiro) no trabalho que desempenhamos. Tenho encontrado mais submissão do que inovação, mais repetição mecânica do déjà vu do que propostas em ruptura com o costumeiro, mais conformismo do que rebeldia (que é a base de todo progresso humano e social). Por falta de didatismo (que significa primeiro aprender por si mesmo, antes de ensinar aos outros) temos talvez incorrido em equívocos fundamentais, que perpetuam o atraso relativo do país, nossa fraca inserção internacional (que considero um erro extremamente grave, prejudicial ao nosso futuro), e que podem até ter feito o país retroceder no conjunto de comunidades humanas que se arrastam (por vezes penosamente) em direção a mais prosperidade e bem-estar, a despeito de todos os entraves colocados pelas burocracias nacionais (e seus políticos respectivos) a maiores fluxos livres de interações de todos os tipos entre os indivíduos e as comunidades que compõem a humanidade.
Por conformismo, temos colaborado muito pouco com as marés da globalização, com os ventos incontroláveis das interações humanas, lutando em primeiro lugar contra a mentalidade tacanha dos introvertidos, dos protecionistas, dos regulacionistas puros, daqueles que pretendem nos levar aos extremos do corporatismo sob o qual já vivemos (que também significa um pouco de fascismo mental). Os diplomatas que pensam poderiam, ao menos, pensar um pouco nisso, nessa nossa missão...

Brasília, 11 de fevereiro de 2017

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