O silêncio do Brasil sobre a derrocada da democracia na Guiné-Bissau País que busca liderança no Sul Global está omisso diante de virtual ditadura
Vanicleia Silva Santos, Professora na Universidade da Pensilvânia (EUA); Marcos Leitão de Almeida, Professor na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) Abdulai Silá, Escritor guineense
Folha de S. Paulo,
A Guiné-Bissau é lembrada pelos brasileiros por sua conexão ancestral com as populações afrodescendentes, especialmente na região amazônica. Após uma longa história de escravidão, colonialismo português e independência conquistada em 1973, o país africano enfrentou desafios políticos e sociais. A guerra civil de 1998-99 deixou marcas duradouras. Desde então, a democracia tem sido instável, com frequentes mudanças de governo. Em 2020, o general Umaro Sissoco Embaló, conhecido como o "Bolsonaro da África", ganhou as eleições com um discurso religioso e étnico, voltado para as populações muçulmanas do país. Seu governo é marcado por tensões com a Assembleia Nacional Popular e o Judiciário, além de uma crise econômica persistente.
Em fevereiro de 2022, ocorreu uma suposta tentativa de golpe de Estado, seguida por tensões políticas. Em junho de 2023, a oposição obteve maioria absoluta nas eleições parlamentares, mas o presidente se recusou a indicar o líder do partido vencedor como primeiro-ministro. Com a finalidade de buscar a conciliação, a coligação vencedora indicou outro nome, que foi aceito e, então, formou-se o novo governo. No entanto, em dezembro de 2023, alegando outra "tentativa" de golpe, Sissoco dissolveu o Parlamento, sem respeitar a constituição. Para piorar, ele escolheu e nomeou um novo governo, sem consulta, e não estabeleceu data para novas eleições para o Congresso, indicando que poderão ser realizadas somente no final deste ano.
Diante das intenções ditatoriais do presidente, a oposição convocou uma manifestação pela democracia em 8 de janeiro último, mas a polícia dispersou os manifestantes antes mesmo de o ato começar. Portanto, está caracterizado o caráter ditatorial do golpe institucional e a violação da Constituição da Guiné-Bissau. Durante os dois primeiros governos Lula, o Brasil passou a ter uma presença na Guiné-Bissau com alguns programas de cooperação na área de segurança e da massiva vinda de estudantes guineenses para estudar nas universidades brasileiras.
Isso gerou um saldo muito positivo, como a formação de milhares de quadros qualificados para a Guiné-Bissau, que possui precária estrutura de ensino superior. O impeachment de Dilma Rousseff (PT) em 2016 e os governos seguintes mudaram as prioridades diplomáticas brasileiras para a África. O governo Lula 3 representa uma esperança na retomada das relações Brasil-África. Porém, o país está omisso diante desta ditadura virtualmente instaurada na Guiné.
O Itamaraty emitiu apenas uma nota curta na qual declara que "acompanha com preocupação a corrente situação na Guiné-Bissau, no âmbito da qual foi recentemente dissolvida a Assembleia Nacional Popular, eleita em julho passado. O Brasil insta ao diálogo entre as partes e conclama as autoridades ao respeito dos direitos fundamentais". Esta fraquíssima nota pública contrasta com o enorme esforço diplomático do governo para dialogar nos conflitos na Ucrânia, Venezuela e em Gaza, por exemplo. Apesar de haver muitos países envolvidos nos casos citados, o Brasil buscou se apresentar como mediador.
No entanto, no caso da Guiné-Bissau, onde há uma enorme conexão com o Brasil, o governo segue se omitindo, deixando os diálogos com Portugal e até mesmo com os EUA. Esse episódio nos lembra que, em 1974, Samora Machel questionou a ausência do Brasil durante a luta contra o colonialismo e recusou a presença brasileira na celebração da independência de Moçambique e a abertura de uma embaixada em Maputo. Portanto, o Brasil não pode negligenciar essa grave ameaça à democracia em um momento em que busca a liderança do Sul Global.
O país deve dialogar ativamente entre as diferentes partes para defender a democracia e os direitos humanos também na Guiné-Bissau. A valorização dos laços com a África deve ir além da celebração das ancestralidades africanas em nossa sociedade e se efetivar em uma verdadeira cooperação.
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