Trailer (da série documental sobre a realidade social de Israel):
https://www.youtube.com/watch?v=6MvRa1yPGrs, https://www.youtube.com/watch?v=XfJ_gTGhl2E
Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas. Ver também minha página: www.pralmeida.net (em construção).
Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Meus livros podem ser vistos nas páginas da Amazon. Outras opiniões rápidas podem ser encontradas no Facebook ou no Threads. Grande parte de meus ensaios e artigos, inclusive livros inteiros, estão disponíveis em Academia.edu: https://unb.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida
Site pessoal: www.pralmeida.net.Trailer (da série documental sobre a realidade social de Israel):
https://www.youtube.com/watch?v=6MvRa1yPGrs, https://www.youtube.com/watch?v=XfJ_gTGhl2E
Brasília, 23/03/2025
Amado Luís Cervo e O Espírito das Relações Internacionais
“O Governo dos Idiotas” na destruição do império Americano
Chris Hedges
(Carlos Russo Jr)
Uma análise extremamente interessante é a base deste artigo. O norte-americano Chris Hedges, escritor e jornalista vencedor do Prêmio Pulitzer, correspondente internacional do The New York Times durante quinze anos, descreveu com perfeição o significado, o “ideário”, a essência do governo Trump, um caminho que a direita fascista busca imitar e reproduzir por todos os cantos da Terra.
O Espaço Literário não poderia deixar de reproduzi-lo, praticamente em sua íntegra.
Chris Hedges:
A estupidez é a “perda da realidade”, já disse um filósofo. Na promessa de recuperarem a glória e poder perdidos, líderes de impérios moribundos nada criam – apenas aceleram o colapso. Trump, o piromaníaco, entretém a sociedade enquanto a conduz ao abismo
Os últimos dias de impérios moribundos são dominados por idiotas. As dinastias romanas, maia, francesa, Habsburgo, otomana, Romanoff, iraniana ruíram sob a estupidez de seus governantes decadentes, que se ausentaram da realidade, saquearam suas nações e se refugiaram em câmaras de eco onde fato e ficção eram indistinguíveis.
Donald Trump e os bufões bajuladores de sua administração são versões atualizadas dos reinados do imperador romano Nero, que destinou vastos gastos estatais para obter poderes mágicos; do imperador chinês Qin Shi Huang, que financiou repetidas expedições a uma ilha mítica de imortais para trazer de volta uma poção que lhe daria a vida eterna ( a poção era mercúrio); e uma corte czarista irresponsável que se sentava lendo cartas de tarô e participando de sessões espíritas enquanto a Rússia era dizimada por uma guerra que consumiu mais de dois milhões de vidas ( contra o Japão) e a revolução se desenvolvia nas ruas.
Em “Hitler e os Alemães”, o filósofo político Eric Voegelin descarta a ideia de que Hitler — talentoso em oratória e oportunismo político, mas mal educado e vulgar — tenha hipnotizado e seduzido o povo alemão. Os alemães, escreve ele, apoiavam Hitler e as “figuras grotescas e marginais” que o cercavam porque ele personificava as patologias de uma sociedade doente, assolada pelo colapso econômico e pela desesperança.
Voegelin define estupidez como uma “perda da realidade”. A perda da realidade significa que uma pessoa “estúpida” não consegue “orientar corretamente suas ações no mundo em que vive”. O demagogo, que é sempre um idiota, não é uma aberração ou mutação social. O demagogo expressa o sentimento da sociedade, seu afastamento coletivo de um mundo racional de fatos verificáveis.
Esses idiotas, que prometem recapturar a glória e o poder perdidos, não criam. Eles apenas destroem. Eles aceleram o colapso.
Limitados em capacidade intelectual, desprovidos de qualquer bússola moral, grosseiramente incompetentes e cheios de raiva das elites estabelecidas que consideram tê-los menosprezado e rejeitado, eles transformam o mundo em um playground para vigaristas e megalomaníacos. Eles declaram guerra às universidades, banem a pesquisa científica, propagam teorias charlatanescas sobre vacinas como pretexto para expandir a vigilância em massa e o compartilhamento de dados, retiram os direitos dos residentes legais e empoderam exércitos de capangas, que é o que o Serviço de Imigração e Alfândega dos EUA (ICE) se tornou, para espalhar o medo e garantir a passividade. A realidade, seja a crise climática ou a miséria da classe trabalhadora, não interfere em suas fantasias. Quanto pior fica, mais idiotas eles se tornam.
Hannah Arendt culpa uma sociedade que abraça voluntariamente o mal radical por essa “irreflexão” coletiva. Desesperada para escapar da estagnação, onde eles e seus filhos estão presos, sem esperança e em desespero, uma população traída é condicionada a explorar todos ao seu redor em uma luta desesperada para progredir. Pessoas são objetos a serem usados, espelhando a crueldade infligida pela classe dominante.
Uma sociedade convulsionada pela desordem e pelo caos, como Voegelin aponta, celebra os moralmente degenerados, aqueles que são astutos, manipuladores, enganadores e violentos. Em uma sociedade aberta e democrática, esses atributos são desprezados e criminalizados. Aqueles que os exibem são condenados como estúpidos; “um homem [ou mulher] que se comporta dessa maneira”, observa Voegelin, “será socialmente boicotado”. Mas as normas sociais, culturais e morais em uma sociedade doente são invertidas. Os atributos que sustentam uma sociedade aberta — a preocupação com o bem comum, a honestidade, a confiança e o autossacrifício — são ridicularizados. Eles são prejudiciais à existência em uma sociedade doente.
A única coisa que esses regimes moribundos fazem bem é espetáculo. Esses números de pão e circo — como o desfile de US$ 40 milhões do Exército de Trump, realizado em seu aniversário, em 14 de junho — mantêm uma população aflita entretida.
A Disneyficação da América, a terra dos pensamentos eternamente felizes e das atitudes positivas, a terra onde tudo é possível, é propagada para mascarar a crueldade da estagnação econômica e da desigualdade social. A população é condicionada pela cultura de massa, dominada pela mercantilização sexual, pelo entretenimento banal e irracional e pelas representações gráficas de violência, a se culpar pelo fracasso.
Søren Kierkegaard, em “A Era Presente”, alerta que o Estado moderno busca erradicar a consciência e moldar e manipular os indivíduos, transformando-os em um “público” maleável e doutrinado. Esse público não é real. É, como escreve Kierkegaard, uma “abstração monstruosa, algo abrangente que não é nada, uma miragem”. Em suma, nos tornamos parte de um rebanho, “indivíduos irreais que nunca estão e nunca podem estar unidos em uma situação ou organização real — e, ainda assim, se mantêm unidos como um todo”.
Aqueles que questionam o público, aqueles que denunciam a corrupção da classe dominante, são descartados como sonhadores, aberrações ou traidores. Mas somente eles, de acordo com a definição grega de pólis, podem ser considerados cidadãos.
Thomas Paine escreve que um governo despótico é um fungo que cresce a partir de uma sociedade civil corrupta. Foi o que aconteceu com as sociedades do passado. Foi o que aconteceu conosco.
É tentador personalizar a decadência, como se nos livrarmos de Trump nos trouxesse de volta à sanidade e à sobriedade. Mas a podridão e a corrupção arruinaram todas as nossas instituições democráticas, que funcionam na forma, não no conteúdo. O consentimento dos governados é uma piada cruel. O Congresso é um clube que recebe propina de bilionários e corporações. Os tribunais são apêndices das corporações e dos ricos. A imprensa é uma câmara de eco das elites, algumas das quais não gostam de Trump, mas nenhuma das quais defende as reformas sociais e políticas que poderiam nos salvar do despotismo. Trata-se de como disfarçamos o despotismo, não o despotismo em si.
O historiador Ramsay MacMullen, em “Corruption and the Decline of Rome” (Corrupção e o Declínio de Roma), escreve que o que destruiu o Império Romano foi “o desvio da força governamental, sua má orientação”. O poder passou a ser uma questão de enriquecer interesses privados. Essa má orientação torna o governo impotente, pelo menos como uma instituição que pode atender às necessidades e proteger os direitos dos cidadãos. Nosso governo, nesse sentido, é impotente. É uma ferramenta de corporações, bancos, indústria bélica e oligarcas. Canibaliza-se para canalizar riqueza para o alto.
“O declínio de Roma foi o efeito natural e inevitável da grandeza desmedida”, escreve Edward Gibbon. “A prosperidade amadureceu o princípio da decadência; a causa da destruição multiplicou-se com a extensão da conquista; e, assim que o tempo ou o acidente removeram os suportes artificiais, a estrutura estupenda cedeu à pressão do seu próprio peso. A história da ruína é simples e óbvia: e em vez de indagar por que o Império Romano foi destruído, deveríamos nos surpreender por ele ter subsistido por tanto tempo. ”
O imperador romano Cômodo, assim como Trump, era fascinado pela própria vaidade. Encomendou estátuas de si mesmo como Hércules e tinha pouco interesse em governança. Imaginava-se uma estrela da arena, organizando lutas de gladiadores nas quais era coroado vencedor e matando leões com arco e flecha. O império — que ele renomeou Roma como Colônia Commodiana (Colônia de Cômodo) — era um veículo para saciar seu narcisismo insaciável e sua sede por riqueza. Ele vendia cargos públicos da mesma forma que Trump vende perdões e favores para aqueles que investem em suas criptomoedas ou doam para seu comitê de posse ou para a biblioteca presidencial.
Finalmente, os conselheiros do imperador providenciaram que ele fosse estrangulado até a morte em seu banho por um lutador profissional, depois que ele anunciou que assumiria o consulado vestido de gladiador. Mas seu assassinato não fez nada para deter o declínio. Cômodo foi substituído pelo reformador Pertinax, assassinado três meses depois. A Guarda Pretoriana leiloou o cargo de imperador. O imperador seguinte, Dídio Juliano, durou 66 dias. Haveria cinco imperadores em 193 d.C., o ano seguinte ao assassinato de Cômodo.
Como o antigo Império Romano, nossa república está morta.
Nossos direitos constitucionais — devido processo legal, habeas corpus, privacidade, liberdade de exploração, eleições justas e dissidência — nos foram retirados por decreto judicial e legislativo. Esses direitos existem apenas nominalmente. A enorme desconexão entre os supostos valores de nossa falsa democracia e a realidade significa que nosso discurso político, as palavras que usamos para descrever a nós mesmos e nosso sistema político, são absurdas.
Walter Benjamin escreveu em 1940, em meio à ascensão do fascismo europeu e à iminente guerra mundial:
“Uma pintura de Klee intitulada Angelus Novus mostra um anjo com a aparência de quem está prestes a se afastar de algo que contempla fixamente. Seus olhos estão fixos, sua boca está aberta, suas asas estão abertas. É assim que se imagina o anjo da história. Seu rosto está voltado para o passado. Onde percebemos uma cadeia de eventos, ele vê uma única catástrofe, que continua a empilhar destroços sobre destroços e os arremessa aos seus pés. O anjo gostaria de ficar, despertar os mortos e restaurar o que foi destruído. Mas uma tempestade sopra do Paraíso; ela se prendeu em suas asas com tanta violência que o anjo não consegue mais fechá-las. A tempestade o impulsiona irresistivelmente para o futuro, para o qual ele está de costas, enquanto a pilha de destroços à sua frente cresce em direção ao céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso”.
Nossa decadência, nosso analfabetismo e nosso afastamento coletivo da realidade já vinham se formando há muito tempo. A erosão constante dos nossos direitos, especialmente dos nossos direitos como eleitores, a transformação dos órgãos do Estado em ferramentas de exploração, a miséria dos trabalhadores pobres e da classe média, as mentiras que saturam as nossas ondas de rádio, a degradação da educação pública, as guerras intermináveis e fúteis, a dívida pública alarmante, o colapso da nossa infraestrutura física refletem os últimos dias de todos os impérios.
“Trump, o piromaníaco, entretém-nos enquanto descemos”.
Recomendo ler, com atenção. O que eu fiz e não hesitei em encontrar ou inventar um novo título ou qualificação para este diagnóstico cruel de uma realidade com a qual os brasileiros nos defrontamos:
Brasil: uma cleptocracia pouco republicana, aberta aos oportunistas espertos e às oligarquias predatórias
Paulo Roberto de Almeida
Congresso Nacional: da constituição cidadã à degradação republicana
* Paulo Baía
Era uma vez um país que ousou sonhar com uma república viva. Ouvia-se, nos corredores de seu Parlamento, os ecos de um tempo fundante, tempo de reescrita, tempo de refundação. O ano era 1987. O povo ainda fermentava nas ruas, ainda sangrava de uma ditadura que não havia sido completamente sepultada, ainda desejava dizer: agora somos nós. Dali emergiu a Constituição de 1988, chamada com reverência de Constituição Cidadã, como se nela pulsassem os corações silenciados por duas décadas de chumbo. O Congresso Nacional era então um lugar de possibilidades, de fricções criativas, de esperanças germinando entre artigos e incisos. Havia contradições, havia limites, havia vícios. Mas havia também coragem. Havia decência institucional. Havia desejo de país.
O que se vê hoje, no entanto, é um outro cenário. É a lenta, ruidosa e devastadora degradação republicana. A casa que um dia aspirou representar a pluralidade do Brasil se converteu numa cidadela fechada. A arquitetura monumental que abriga os plenários virou teatro de um drama infame, onde cada cena é encenada não para o bem comum, mas para a manutenção de privilégios. O Congresso abandonou seu papel de representação popular e federativa, entregou-se ao patrimonialismo sem disfarces, ao clientelismo blindado por mecanismos técnicos de difícil decifração, ao poder quase litúrgico das emendas parlamentares, que são hoje a moeda com que se compram silêncios e se vendem consciências.
O país que ergueu sua Constituição com a promessa de um federalismo cooperativo assiste agora à sua própria fragmentação. A república foi desfigurada pelo avanço de quatro forças que ocupam o centro da cena legislativa: a bancada da bala, a do boi, a dos bancos e a bancada teocrática. Essas forças não apenas impõem sua agenda. Elas dominam o cotidiano do Parlamento. Ditam as pautas. Vetam o dissenso. Subjugam as demais bancadas como senhores de um latifúndio simbólico. A política brasileira, sob seu domínio, deixou de ser campo de disputa democrática para se tornar trincheira de exclusão, zona franca de interesses elitistas, lugar onde o povo só entra como espectro, como ausência, como retórica vazia.
Os teocratas atuais que se alastram pelo Parlamento, com suas indumentárias cívicas e dogmas disfarçados de moral pública, desempenham papéis com tal desenvoltura que fariam inveja aos aiatolás. Suas performances são meticulosamente teatrais, envoltas em uma retórica de salvação nacional, mas orientadas pela ânsia de poder absoluto. Não mais bastam-lhes púlpitos, templos e crenças: exigem microfones, comissões, gabinetes, verbas. Exigem influência sobre a educação, a cultura, os costumes, a vida íntima dos cidadãos. A cruz e a Constituição tornaram-se para eles armas de um mesmo arsenal. Legisladores de dogmas, gestores da fé como política de Estado, seus discursos se impõem não como opinião, mas como ordem. Como fé inquestionável transformada em norma jurídica. E assim as fronteiras da república laica vão se estreitando, sufocadas sob a imposição de valores que deveriam pertencer à esfera privada.
Esse domínio não é apenas conservador. É anti-republicano. É uma recusa ativa ao projeto de um Brasil plural, socialmente justo, economicamente solidário, eticamente público. O que se vê é a substituição do pacto coletivo por um condomínio de corporações. As leis brotam do asfalto quente do privilégio. As votações obedecem a mapas secretos de interesses. As comissões parlamentares são convertidas em quartéis administrativos de guerra contra qualquer tentativa de redistribuição. E quem ousa tocar nas estruturas de desigualdade é reduzido a inimigo.
O presidencialismo brasileiro, duas vezes ratificado pelas urnas em plebiscitos contundentes, tornou-se uma ficção governável apenas à custa de chantagens. O presidente, seja qual for sua coloração ideológica, é hoje um refém. Governar exige genuflexão. Exige concessões orçamentárias, nomeações milimetricamente negociadas, silêncio cúmplice diante de aberrações legislativas. A soberania do Executivo foi dissolvida por um parlamentarismo de fato, não previsto na Constituição, rejeitado pela sociedade, mas operado com vigor por um Legislativo que ocupa os espaços vazios da política com métodos de domínio. Métodos que fazem do orçamento público um campo de caça permanente. Métodos que substituem a democracia pelo conchavo, o pacto pela chantagem, a política pela clientela.
No meio desse desequilíbrio, o Judiciário se vê compelido a agir. Tenta proteger a Constituição, tenta manter alguma ordem, mas o faz do alto de um protagonismo que se descola da realidade social. Um protagonismo aristocrático, que transforma o juiz em oráculo, o tribunal em torre, a sentença em escudo. Em vez de mediar, confronta. Em vez de equilibrar, projeta-se como ator político. A tensão entre os poderes, que deveria ser sinal de vitalidade democrática, tornou-se dissonância crônica. Um campo minado onde a desarmonia não gera controle, mas ameaça.
O Congresso já não reflete o país. Suas entranhas são ocupadas por dinastias familiares, por homens brancos, empresários, grandes proprietários, teocratas com sede de poder. Não há ali ecos das fábricas que se reduzem, fábricas robotizadas em que a presença do trabalhador é dispensada, nem das salas de aula pública, nem do ambulatório do SUS, nem do campo desassistido, nem da favela cercada de tiro e esgoto. O poder ali não circula. Reproduz-se. De pai para filho, de padrinho para afilhado, de teocratas para discípulos igualmente teocratas. É uma lógica de hereditariedade travestida de democracia representativa. Os invisíveis da política são os mesmos invisíveis das estatísticas, das filas do INSS, das UTIs que colapsam, dos trens lotados. Não há espaço para eles. Não há voz para eles. Não há tempo para eles.
O povo é ruído. É despesa. É obstáculo. E é assim que legislam: contra a vida que dói, contra a juventude periférica que morre cedo ou enlouquece tentando sobreviver. Contra os motoboys que arriscam a existência por poucos trocados. Contra os idosos que veem sua aposentadoria corroída pela inflação e pela crueldade institucional. Contra as mulheres que sustentam seus filhos sozinhas. Contra os pretos, os indígenas, os LGBTQIA+, os corpos indesejados. Contra a própria ideia de justiça.
A representação federativa, que deveria equilibrar as vozes dos estados e territórios, virou instrumento de distorção. Os votos têm pesos desiguais. Os estados mais populosos têm menos representação proporcional. Os menos populosos, mais poder de veto. Essa assimetria é mantida não por inércia, mas por escolha. Uma escolha cínica que favorece o poder acumulado de elites locais, de feudos eternizados, de castas que se alimentam do desequilíbrio. E, em vez de discutir e deliberar pela representatividade efetiva e real da população com base em suas dinâmicas demográficas, o que se tem feito é simplesmente aumentar aritmeticamente o número de deputados federais para atender demandas localizadas. Uma manobra que, longe de corrigir os desequilíbrios estruturais, amplia e aprofunda as distorções da representação política da população brasileira, que em tese se faz presente na Câmara dos Deputados, mas na prática é diluída, ignorada e neutralizada por esse inchaço artificial da estrutura legislativa.
A reforma política, necessária e urgente, permanece trancada a sete chaves. Porque corrigir distorções significaria redistribuir o poder. E isso, no Brasil, ainda é considerado crime de lesa-majestade.
A república sangra. Não de uma ferida aberta, mas de mil cortes silenciosos. Cada emenda secreta. Cada CPI abortada. Cada veto derrubado. Cada projeto aprovado em favor do capital. Cada silêncio diante da dor coletiva. Cada escárnio contra a solidariedade. A confiança da população desmorona. O desprezo é palpável. Mais de 80% dos brasileiros não confiam no Congresso Nacional. Isso não é uma opinião. É um diagnóstico. É um atestado da falência moral de uma instituição que deveria representar todos, mas que se especializou em representar poucos.
Como dizia Santo Agostinho: na ausência de justiça, o que é o poder senão uma forma de saque institucionalizado. O Congresso brasileiro, hoje, é a síntese desse saque. Seus rituais são legais. Seus procedimentos são formais. Suas decisões, amparadas pelo regimento. Mas o que ali se opera é a manutenção de um Brasil excludente. Um Brasil que agride quem trabalha e protege quem explora. Um Brasil que reveste a desigualdade com o manto da técnica. Um Brasil onde a legalidade virou o álibi da injustiça.
Romper esse ciclo exige mais do que bons discursos. Exige ruptura. Exige reforma política. Exige mobilização cidadã. Exige coragem institucional para confrontar os interesses estabelecidos. Exige rever o financiamento de campanhas, rediscutir o sistema eleitoral, colocar a paridade de gênero e raça como princípio e não como concessão. Exige reumanizar a política. Fazer dela um lugar de projeto coletivo, e não de sobrevivência individual. Fazer dela ponte, e não trincheira. Fazer dela ato de cuidado, e não ritual de poder.
O Brasil precisa reaprender a sonhar. E sonhar exige recusar. Recusar a naturalização do privilégio. Recusar a obscenidade do orçamento capturado. Recusar o cinismo como método. Recusar o poder como herança. Recusar a política como farsa. Recusar o Congresso como fortaleza de poucos. Recusar o medo como regra. Recusar a república como escombro.
Só assim, quem sabe, um dia, o Congresso Nacional volte a ser o que prometeu ser. A casa de todos. A voz dos que não têm vez. O lugar onde a justiça não seja exceção, mas fundamento. Onde o povo não seja massa de manobra, mas sujeito da história. Onde a política não seja técnica de dominação, mas prática de emancipação. Onde o país possa, enfim, se reconhecer. E respirar. E florescer.
Paulo Baia
* Sociólogo, cientista político e professor da UFRJ
Congresso Nacional: da constituição cidadã à degradação republicana https://agendadopoder.com.br/congresso-nacional-da-constituicao-cidada-a-degradacao-republicana/
Pensando em coisas inúteis e mal sabidas ou percebidas
Paulo Roberto de Almeida
Tem gente que vem ao mundo, não para consertar o que andava meio capenga, mas para estragar o que estava bem, ou razoável, e só para atrapalhar a vida dos outros e destruir muito do que se havia penosamente construído em duas ou três gerações antes do infausto aparecimento desses insanos demolidores da vida civilizada. Só consigo pensar em três ou quatro personagens maléficos que ainda estão por aí e que continuam tentando transformar o mundo, nosso planetinha redondo (que eles querem transformar em quadrado, cheio de buracos aterradores e precipícios inescapáveis), e que prometem fazer ainda muitos estragos adicionais, antes de desaparecem nas fímbrias (eu preferiria nas trevas) da História, sem deixar qualquer traço das suas malignidades excepcionais (ninguém antes conseguiu ser tão malvado quanto eles, salvo talvez o Hitler, o Stalin, o Mao e o Pol Pot, tirando da linha até o Gengis Khan e o Drácula, que nem sei se existiu de verdade ou se só foi algum filme ainda por fazer do Woody Allen).
Pois bem, vamos às minhas propostas (que podem ser complementadas por gente ainda mais daninha que essas ervas que insistem em atrapalhar o verdinho da nossa grama sempre tão bem cuidada por alguns estadistas que ainda insistem em aparecer) e que submeto à consideração dos meus dezoito leitores (alguns apenas passantes distraídos):
Eu colocaria em primeiro lugar o Putin, que veio para transformar o mundo num imenso KGB, e que ainda vai ter o seu Gulag, se ainda não conseguu fazer da antiga prisão dos povos o modelo ideal de despotismo oriental (coisa que o Max Weber acreditava que era representada pelo antigo Império do Meio, mas que anda muito bem e renascendo, sob os cuidados de um novo imperador).
Em segundo lugar vem aquele palhaço do Trump, que quer transformar o mundo num imenso balcão de negócios, mas só para ele e para a sua família de semelhantes, vários deles imigrantes ilegais, e que só por raiva supremacista ele quer expulsar daquela nação de imigrantes bem sucedidos e que fizeram o sucesso de um império por acaso (e que tem vergonha de ser).
Em terceiro lugar, eu colocaria o Netanyahu, um vulgar arrivista e corrupto político, que conseguiu transformar a antiga “terra santa” num inferno a céu aberto, e até destruir a credibilidade humanista do povo supostamente escolhido por deus para o bem-estar de toda a humanidade (está conseguindo, ao que parece, com a ajuda do seu amigo trambiqueiro imobiliário, que quer transformar aquelas paragens num resort só para ricos, idiotas e exibicionistas como ele e o Bezos).
Em quarto, mas não último ou definitivo lugar (para não deixar o nosso Brazilzinho de fora), aquele covarde e incompetente milico, não por ter sido apenas um golpista fracassado, mas sobretudo por ter sido um negacionista vacinal (além de elogiador de torturadores), que conseguiu matar muita gente na pandemia (muitos dos seus próprios aliados, coitados deles), e que ainda não foi punido por mais esse crime contra os pobres brasileiros, e que conseguiu destruir a credibilidade diplomática deste Brasil ao qual eu servi durante minhas décadas de Serviço Exterior, bastante bem respeitado no mundo, até ele vir estragar tudo com seus aspones amestrados que implantaram uma miséria diplomática na política externa e que quase destruíram a inteligência no Itamaraty.
Pronto, fico com estes, mas quem quiser que fique livre para escolher e indicar seus malvados favoritos.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 29/06/2025
Podcasts and Essays on China WEF Work | How China Got Rich: a Deep Dive into China’s 40-Year History of Economic TransformationOriginally published for the World Economic ForumFor most of the last 25 years, I’ve worked as a writer for the World Economic Forum at various events. Recently, some of my work has been bylined, including this piece I wrote ahead of the recent Annual Meeting of the New Champions in Tianjin. The link to the original piece is here. How did the People’s Republic of China achieve its dramatic economic transformation? How did it go from an overwhelmingly rural, impoverished, and technologically backward nation to a technological superpower with cutting-edge technology companies, world-beating EV makers, an enviably extensive network of high-speed rail lines, and an expanding influence across the Global South in the course of only 40 years? In recent decades, that tale has most often been told, especially outside of China, as the story of escape from ruinous ideological excesses in the Mao era. In a time of neoliberal ascendancy, it’s perhaps unsurprising that China’s conspicuous success — average annual GDP growth exceeded 9% between 1980 and 2015 — would serve as Exhibit A in the case for market liberalization, trade, and deregulation. Even today, with these mainstays of the neoliberal gospel no longer viewed so widely as unalloyed positives, it’s still the case that an assertion that China had successfully lifted hundreds of millions out of poverty is likely to be challenged with the assertion that hundreds of millions of Chinese lifted themselves out of poverty. Mao’s Foundations: Setting the stage for reformTo be sure, the growth of the private sector, wage and price liberalization, the export sector, and openness to foreign investment each played a critical part in China’s rise. And growth really did take off once Deng Xiaoping’s signature policy of Reform and Opening kicked in. But the “conventional wisdom” ignores the fact that — even inclusive of the serious mistakes, lost lives and lost years that some insist define the early decades after 1949 — the foundations laid during Mao’s rule, including land reform and redistribution, substantial investments in heavy industry, public health, literacy, electrification, and transportation gave China a substantial leg up. These developments positioned China for takeoff well ahead of the official inauguration of Reform and Opening in 1978. While Deng’s reforms catalyzed China’s economic takeoff, they built upon critical foundations established during Mao’s era, which are often overlooked. As for the notion that the Chinese people lifted themselves out of poverty, this ignores skillful management on the part of Deng and others. It also doesn’t reckon with the touch-and-go politics that, at several points, could easily have seen more conservative leaders prevail over Deng and other champions of reform. It slights the critical role of the Party leadership — not only Deng Xiaoping but also Jiang Zemin, Hu Jintao, and Xi Jinping — in making far-sighted investments in infrastructure and post-secondary education. Just as importantly, it ignores the leadership’s role, during critical moments, in ensuring the orderly privatization of formerly state-owned assets. That preserved social stability, even amid the potentially disruptive process of shuttering inefficient state-owned enterprises, and helped create a private market in real estate that generated enormous wealth for ordinary Chinese citizens. Yes, the story of China’s meteoric rise from the ruins of a war-torn, impoverished, agrarian empire to a mostly urban, upper-middle-income superpower positioned to challenge even the U.S. for technological primacy is a story of pragmatism, experimentalism, and strategic vision — but not just on the part of private-sector entrepreneurs. Deng’s vision: Reform and opening and escaping shock therapyChina’s rapid transformation after 1978 owes not just to what China’s leaders decided to do — to their affirmative policy choices — but as is too often overlooked, also to what the nation’s leaders decided not to do. Isabella Weber has argued convincingly that its policy of selective price liberalization was key to its success: China avoided the “shock therapy” — sudden, across-the-board price liberalization — that she blames in large part for the relatively poor economic performance of other post-socialist states. China opted instead for a dual-track approach, described by the motto “grasp the heavy and release the light,” which meant that core, strategic sectors — steel, power, petrochemicals, transportation, and the like — would remain under the planned economy for the time being, enabling gradual adaptation to market mechanisms without abrupt disruptions. Liberalization would be allowed in certain light industries, especially those with promising export markets, and expand incrementally as the rest of the economy adjusted and began integrating market mechanisms in a gradual fashion. The sequence in which different sectors of the economy were allowed to experiment in market liberalization also proved key. Agricultural reforms — most famously, the Household Responsibility System, which allowed farmers to sell any crops they grew in excess of what they were obliged to sell to the state — first laid an important foundation, significantly boosting food production and ensuring ample reserves while managing to maintain price controls on grains, food oils, and other staples. This helped the reformist faction gain the confidence not only of ordinary people but also of conservatives wary of social instability and less willing to depart from Marxist-Leninist orthodoxy. Eager to avoid the policy missteps of Russia, and worried that the Russian example and China’s own domestic unrest might empower conservative critics of marketization, Deng Xiaoping embarked in early 1992 on his now-famous “Southern Tour.” In conscious imitation of imperial rulers who occasionally held grand processions to the rich southern provinces, Deng used his Southern Tour to signal to the public, to allies (and rivals) in the Politburo, and to regional officials that he was doubling down on his commitment to economic reforms. He singled out the Special Economic Zones (SEZs) such as Shenzhen, which served as laboratories for market reform, and these attracted foreign investment and fostered export-oriented growth, especially after World Trade Organization (WTO) accession in 2001. These zones became, and in some cases remain, the engines of industrialization and integration into the global economy, setting the stage for China’s rise as a manufacturing powerhouse. By the late 1990s, they would become centres for contract manufacturing and, in Shenzhen’s case, the center for China’s booming tech hardware sector. Strategic state interventions: Infrastructure, FDI, and SOEsChina’s policies to attract Foreign Direct Investment (FDI) were also pivotal in its economic ascent. By providing incentives such as tax breaks and creating a favourable regulatory environment, China became a magnet for foreign capital, initially coming predominantly from Hong Kong SAR and diasporic communities in Asia and North America. This influx of FDI brought in not only capital but also advanced technology and managerial expertise. Through joint ventures and other forms of cooperation, China systematically absorbed and adapted foreign technologies, rapidly closing the technological gap with more developed economies. Massive investments in infrastructure further propelled China’s growth. Initially, especially in the 1970s, much of this investment came from Japan, which negotiated important infrastructure-for-resources deals to build state-of-the-art mines as well as the railways needed to transport ore to ports where it could then be shipped to Japan. Ownership reverted to China once the investment was paid off in kind — a pattern that worked very well for China and that, as the scholar Deborah Brautigam has noted, China went on to replicate with its own infrastructure-for-resources deals in much of the Global South. China’s now famous investment in infrastructure — it currently has the world’s largest expressway network, in addition to the largest high-speed rail network — reduced logistical costs and facilitated domestic and international trade. The expansion of telecommunications infrastructure supported the burgeoning digital economy and enhanced overall connectivity within the country: China now boasts more than 4.25 million 5G base stations, compared to less than 150,000 in the United States. Reforming state-owned enterprises was another critical component of China’s economic strategy. Gradual restructuring and partial privatization of SOEs, including the deliberate creation of competitors in key sectors like petroleum and telecoms, aimed to improve efficiency and competitiveness, allowing for a more dynamic industrial sector. Major Chinese SOEs even tapped into leading capital markets in the U.S., improving their corporate governance, becoming more transparent, and streamlining their operations to appeal to overseas investors. On balance, this whole process was managed well, resolving the tension between the benefits of market mechanisms with the need to maintain social stability. Despite the continuing importance of the state sector, by the mid-1990s — even before China acceded to the WTO in 2001 — job growth was coming primarily from the private sector. For three decades, urbanization brought large-scale migration from rural areas to China’s cities, providing a steady tailwind of relatively inexpensive labour. At the same time, a substantial middle class fueled domestic consumption, creating a significant internal market for goods and services. This was especially true after 1998. In that year, the implementation of housing reform policies initiated by then-Premier Zhu Rongji made the purchase of state-owned housing by residents at steeply discounted prices not only possible but ubiquitous. A commercial housing market came into being almost overnight and became the source of considerable urban wealth. China’s integration into the global economy was facilitated by geopolitical shifts following the Cold War and broader trends in globalization. A long period of interstate peace in the region, now exceeding 40 years, the creation of both bilateral and multilateral free trade agreements, and China’s push to join the WTO in 2001 significantly boosted China’s trade and investment flows, further embedding it into global supply chains. Though difficult to quantify, it’s hard to ignore cultural factors: a strong work ethic and the influence of Confucian values emphasizing education and social harmony have contributed to China’s economic success. When it came to education, Beijing put its money where its cultural predilections already were. China’s massive investments in human capital development proved instrumental in sustaining its growth. Significant investments in post-secondary education and vocational training created a more skilled and versatile workforce. In the course of only 20 years, from 1995 to 2015, China went from a country with only 8% of its college-age population enrolled in post-secondary institutions to one where over 50% of the population received a college education. As China moved up the value chain in manufacturing and services, the quality of its labour force became a key competitive advantage. China’s digital revolutionChina’s rapid adoption of digital technologies positioned it at the forefront of the digital economy early on. Beginning in 1997, with the internet still in its infancy in China, a wave of tech entrepreneurs, including many returnees from the U.S., founded companies that, within just a decade, would become some of the world’s biggest tech companies, broadening the information horizons of ordinary Chinese people, transforming the retail landscape, and driving further innovation. The widespread use of mobile payments and the rise of e-commerce giants like Alibaba catapulted China to the forefront of digital commerce. In parallel to the private sector-led growth of the consumer internet, the Chinese state recognized the transformative potential of technology and pushed enterprises to embrace tech. Through campaigns for “informatization” beginning in the early 2000s and for “Internet Plus” a decade later, Beijing incentivized businesses to embrace technologies. By the mid-2010s, foreign visitors to Chinese cities began remarking frequently on the hypermodern feel of the consumer experience in China. Meanwhile, through subsidies and the unambiguous telegraphing of its priorities to scientists, researchers, local officials, and entrepreneurs alike, the Chinese state signaled which specific technologies it identified as key: AI, advanced robotics, new equipment, advanced semiconductors, next-generation telecommunications standards, electric vehicles, photovoltaics, and wind energy, to name a few. Challenges ahead: Balancing growth and stabilityThe Chinese leadership under Xi Jinping has as its current focus the development of “new quality productive forces.” What this means is that innovation will, it is hoped, become the main driver of growth, with an emphasis on quality growth over quantity or rapid expansion. This translates more concretely into a renewed emphasis on basic science, “hard” tech like new materials and semiconductors, artificial intelligence, supply chain efficiency and rationalization, and green and sustainable development. Xi Jinping would like to see physicists doing physics, not designing sophisticated financial products or social media advertising algorithms. Whether these strategies will succeed in navigating China through its next phase of development remains an open question, but if China’s past record is any indication, one might reconsider betting against it. Other developing countries might look to China’s experience for lessons, but the unique combination of historical context, cultural factors, and policy decisions that shaped China’s rise may not be easily replicable. When its own rhetoric speaks so often of “Chinese characteristics,” it may be less likely that China will seek to push its own developmental model, though doubtless some of its features will prove attractive. As China continues to evolve, the world will be watching closely to see how it addresses these challenges and what new pathways it charts for future growth. Those challenges are numerous: Environmental degradation, rising labour costs, and an aging population pose significant hurdles. Maintaining the stability that has been so crucial for China thus far, while allowing for experimental approaches, improvisation, and creative thinking that will drive economic dynamism in the future will require careful balancing. © 2025 The Sinica Podcast |
Apenas transcrevendo o que recebi via e-mail:
De vez em quando a internet me traz um texto próprio, do qual eu já me havia esquecido. Talvez sirva para alguma coisa:
As grandes linhas da política externa brasileira
Paulo Roberto de Almeida *
Publicado, sob o título “Trajetória Coerente”, no suplemento “Pensar Brasil”, caderno especial “De Igual para Igual”, do jornal Estado de Minas (Belo Horizonte, Sábado, 9 de abril de 2011, p. 17-19).
Blog Diplomatizzando (05/06/2011; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2011/06/grandes-etapas-da-diplomacia-brasileira.html).
A diplomacia brasileira seguiu, ao longo do último meio século, uma trajetória relativamente uniforme e coerente, embora marcada por alguns desvios momentâneos e por orientações políticas contrastantes,segundo as conjunturas políticas e os grandes alinhamentos observados em cada uma das grandes etapas do cenário internacional. Com algumas poucas exceções – possivelmente no imediato seguimento do golpe militar de 1964 e agora, recentemente, durante o governo Lula – ela seguiu invariavelmente algumas orientações básicas, ainda que animadas por preocupações diversas, todas elas comprometidas com o desenvolvimento nacional, a defesa da soberania e o comprometimento com o direito internacional, consubstanciado na Carta da ONU e em alguns outros instrumentos básicos das relações internacionais.
A política externa foi, pode-se dizer com total segurança, persistentemente “desenvolvimentista”. Aexemplo da tendência dominante na política econômica, ela esteve engajada no processo de industrialização brasileira, embora atuando bem mais na política comercial (na qual o Itamaraty sempre conservou o “monopólio” negociador) do que na política industrial, onde ele foi ator coadjuvante. Essa foi a linha básica da diplomacia econômica brasileira desde a era Vargas até a atualidade: fazer com que as negociações comerciais externas –multilaterais ou regionais – não dificultassem o processo de industrialização, consumado com base em velhas receitas de substituição de importações e em forte protecionismo tarifário (que o Itamaraty se encarregou de defender junto ao Gatt, ao longo dos anos).
A outra grande vertente de atuação da diplomacia econômica consistiu na sustentação das dificuldades cambiais e de balanço de pagamentos, o que exigia do Itamaraty um bom trabalho junto aos principais credores, todos eles situados na América do Norte e na Europa ocidental. Empréstimos externos e atração de investimentos estrangeiros foram os dois elementos básicos nessa frente e pode-se dizer que o desempenho foi relativamente satisfatório, a despeito de crises desafiadoras no último terço do século XX (petróleo, dívida externa, crises financeiras nos mercados emergentes nos anos 1990). Mas esse tipo de negociação financeira estava mais bem afeta aos responsáveis econômicos e monetários do que aos funcionários do Itamaraty, que ainda assim ofereciam todo apoio nesse tipo de missão, quando não assumiram eles mesmos a responsabilidade pela condução do processo.
Outra área, entretanto, teve a colaboração crucial dos diplomatas para que ela pudesse se desenvolver, pelo menos até certo ponto: a capacitação do Brasil em matéria de enriquecimento nuclear e de domínio das tecnologias industriais ligadas à indústria nuclear para fins civis (energia), o que foi materializado no célebre acordo nuclear Brasil-Alemanha, de 1975 (depois descontinuado, a partir da crise dos anos 1980 e também por causa de fortes pressões contrárias dos Estados Unidos). Ocorreu, nesse setor, durante o governo militar, notável cooperação entre os militares e os diplomatas, inclusive porque ambas as corporações recusavam a adesão do Brasil ao Tratado de Não-Proliferação Nuclear (oferecido em 1968 à comunidade internacional pelas três potências nucleares signatárias, EUA, Reino Unido e União Soviética). Foi o momento de maior independência brasileira em relação aos EUA, depois de algumas décadas de alinhamento, no geral, coincidente com os grandes objetivos da maior potência ocidental, durante os anos da Guerra Fria.
De fato, o Brasil exibiu uma política externa razoavelmente alinhada com os EUA desde antes da Segunda Guerra Mundial, a começar pela renegociação das dívidas contraídas nos anos de entre-guerras e pela própria participação brasileira no conflito, a partir da qual os dirigentes diplomáticos e os líderes políticos brasileiros esperavam uma retribuição à altura, em especial a inclusão do País no seleto clube de grandes potências, experiência logo frustrada pela intransigência do Reino Unido e da União Soviética. Ainda assim, os anos do pós-guerra foram de colaboração e de quase pleno entendimento político, com a compreensão dos militares brasileiros e da grande maioria dos diplomatas em relação às prioridades e à grande estratégia dos EUA na era da Guerra Fria: a contenção da União Soviética e a luta contra a penetração e a influência comunistas em diversos países da periferia ou da própria Europa ocidental.
Os únicos pontos de desacordo se situavam justamente na cooperação econômica, com o Brasil e a maioria dos latino-americanos pedindo uma extensão ao continente da generosa ajuda para recuperação e reconstrução que os americanos prestavam à Europa no quadro do Plano Marshall. Os EUA nunca consentiram nessa extensão, inclusive porque consideravam, não sem razão, que os problemas da América Latina não eram exatamente de reconstrução, e sim de desenvolvimento, para o que recomendavam não ajuda estatal, mas reformas econômicas e abertura aos investimentos estrangeiros. A questão do financiamento ao desenvolvimento latino-americano foi resolvida mais adiante, com a criação do Banco Interamericano de Desenvolvimento, apenas depois de intensa pressão brasileira, notadamente através da Operação Pan-Americana, proposta pelo presidente Juscelino Kubitschek: tratou-se da primeira grande iniciativa brasileira em termos de liderança regional e de diplomacia multilateral, mesmo se limitada ao hemisférioamericano.
Ainda assim, ela serviu para formar os diplomatas brasileiros nos novos temas da diplomacia do desenvolvimento e do multilateralismo econômico, bem como nos seus procedimentos específicos (em relação, por exemplo, à velha escolha da diplomacia bilateral, de caráter essencialmente político), o que iria ser extremamente útil nas negociações do Gatt, com a nascente Comunidade Econômica Europeia e nos novos acordos em torno dos produtos de base (café, cacau, açúcar, etc.). O Brasil tornou-se um dos principais promotores do movimento em favor da reforma do Gatt desde o final dos anos 1950, num sentido de não-reciprocidade e de concessões sem contrapartida, assim como participou ativamente do processo que conduziu à criação da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), tornando-se um dos líderesdo grupo dos países em desenvolvimento (que veio a ficar conhecido como G77, do número de membros no momento de sua criação, em 1964).
O ponto alto dessa fase foi, evidentemente, a chamada “política externa independente”, quando o Brasil se liberta do estrito alinhamento aos cânones da Guerra Fria e passa a buscar oportunidades comerciais e de relacionamento político com os países socialistas e com as nações periféricas de modo geral. Entre os grandes temas debatidos nessa época esteve o de Cuba, cujo regime socialista foi considerado pela OEA como “incompatível com o sistema interamericano”, tese americana a que o Brasil se opôs por não haver, na Carta da OEA, nenhum caracterização quanto a regimes políticos. O Brasil, em todo caso, se absteve, quando a decisão foi votada, apoiado em argumentos essencialmente jurídicos esgrimidos pelo chanceler Santiago Dantas.
Ocorreu, então, a primeira ruptura, embora relativamente breve, nas linhas tradicionais da política externa brasileira, quando os militares, talvez para “agradecer” aos EUA a ajuda preventiva dada durante o golpe, concordam em sustentar a postura americana na região, participando da invasão da República Dominicana, contra uma revolução democrática em 1965. Foi, porém, um breve interlúdio, já que a partir de 1967, a diplomacia retomou sua postura desenvolvimentista e pela autonomia tecnológica (já dando início a um programa nuclear independente, que sofreria as referidas sanções americanas). Pelo resto do regime militar e também durante a fase de redemocratização, a diplomacia brasileira atuou com plena independência e profissionalismo, assumindo uma postura moderadamente terceiro-mundista e, certamente, desenvolvimentista. Conflitos pontuais se manifestam nas relações com os EUA, tanto no plano bilateral – fricções comerciais, política nuclear, justamente – como no plano multilateral – resoluções da ONU e temas da agenda do desenvolvimento nos quais os EUA geralmente se singularizavam pela postura oposicionista.
Desde essa época, e praticamente até hoje, a diplomacia brasileira vem construindo seu espaço próprio nos contextos regional e internacional, estimulando parcerias seletivas com alguns grandes países em desenvolvimento – em especial com a Índia, com a qual havia uma grande interface negociadora em temas comerciais – e colocando as bases de um grande espaço de integração econômica na América do Sul, primeiro via Alalc e Aladi, depois via Mercosul e outros esquemas sub-regionais. Ao promover a integração regional, a diplomacia brasileira sempre foi extremamente cautelosa em não proclamar qualquer veleidade de liderança brasileira no continente, muito facilmente confundida com pretensões hegemônicas e, portanto, recusada peremptoriamente pela maior parte dos vizinhos (com a possível exceção dos menores, interessados em algum tipo de barganha preferencial). Essa postura cuidadosa foi no entanto descurada pelo governo Lula, gerando resistências e contrariedades nos vizinhos mais importantes, que inclusive se mobilizaram contrariamente a um dos objetivos de alguns governos brasileiros: a conquista de uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU.
O governo Lula, justamente, representou uma ruptura nos antigos padrões profissionais da diplomacia, introduzindo uma agenda partidária e ideológica que redundou, em diversos casos, em um infeliz alinhamento com ditaduras e violadores dos direitos humanos em diversos continentes, numa demonstração de anti-americanismo infantil e, em última instância, prejudicial à credibilidade da política externa brasileira. Felizmente, o novo governo Dilma restabeleceu padrões de comportamento e de votação nos foros multilaterais bem mais conformes à tradição diplomática brasileira, condizentes inclusive com princípios constitucionais sobre valores democráticos e a defesa dos direitos humanos e com o espírito verdadeiro da Carta da ONU.
* Diplomata de carreira e professor universitário; autor de diversos livros de relações internacionais (www.pralmeida.org).
Chamada: Diplomacia brasileira sempre se caracterizou pelo profissionalismo e por uma diplomacia de caráter nacional; regime militar e governo Lula representaram exceções nessa linha cautelosa e guiada por interesses nacionais, não partidários.
[2554; Brasília, 11 de março de 2011; rev. 12/03/2011]