Economista, foi presidente do Banco Central do Brasil por seis anos. É vice-chairman do Nubank e mestre em economia pela universidade UCLA
Desafios de uma nova ordem global
Vislumbramos uma equação insustentável: mais dívida, juros mais elevados, alta da desigualdade, maior necessidade de recursos e pouca capacidade de elevar impostos
O mundo está em transformação. Como observador atento, ocupando uma posição privilegiada no Banco Central do Brasil ao longo dos últimos seis anos, identifiquei tendências que moldarão o equilíbrio global e que, frequentemente, escapam a debates mais aprofundados. Nos perdemos no debate de curto prazo: tarifas, dólar, polarização política etc. Mas o problema é mais profundo: uma equação econômica e social insustentável. Neste artigo, mais generalista, abordo algumas dessas forças. Nos próximos, mergulharemos em mais detalhes.
Durante muito tempo, nos acostumamos à ideia de que dívida pública crescente não era um problema. O fiscal seria um tema para outras gerações. A narrativa dominante sustentava que o crescimento econômico seria estruturalmente baixo, os juros baixos por muito tempo, e a inflação, controlada.
A pandemia, no entanto, alterou drasticamente esse panorama. Assistimos à maior coordenação global de políticas fiscal e monetária já registrada, com a dívida mundial em relação ao PIB crescendo aproximadamente 15 p.p. (pontos percentuais). Desde 2019, a dívida das economias emergentes cresceu 20 p.p.. A inflação global, por sua vez, disparou e, na maioria dos países, não apresenta sinais de retorno aos níveis pré-pandêmicos. Essa percepção é reforçada quando se analisa as taxas de juros de longo prazo.
Aproximadamente 65% da dívida soberana global —concentrada em Japão, Estados Unidos e Europa— enfrenta hoje custos de rolagem muito maiores, devido ao aumento combinado do estoque de dívida e das taxas de juros. Esse movimento drena recursos de outras partes do mundo, especialmente de economias emergentes e pobres.
Embora tenhamos sido eficazes na coordenação de esforços fiscais e monetários durante a pandemia, a retirada dessas medidas revelou-se muito menos eficiente. Os programas de transferência de renda, por exemplo, aumentaram globalmente entre 1,5 e 2 p.p. do PIB durante a crise, e permanecem com volumes muito superiores aos níveis pré-pandêmicos. Recordo uma discussão entre banqueiros centrais numa tarde fria no FMI, onde se debateu que esses programas deveriam seguir a "regra dos 3 Ts": deveriam ser temporários, direcionados (targeted) e sob medida (tailored). Hoje, é evidente que a maioria desses princípios foi negligenciada.
Diante de tudo isso, o fiscal se tornou um tema premente. Virtualmente, todos os países apresentam atualmente déficits em suas contas públicas. Segundo o FMI, o grupo das economias avançadas apresenta uma média de déficit primário de 2% do PIB, enquanto as economias emergentes, de 3,8%. Gastos discricionários em diversos países, incluindo o Brasil, encontram-se severamente pressionados em orçamentos cada vez mais restritivos.
Diante da dificuldade de muitos países em equilibrar suas contas públicas, ajustes fiscais têm sido propostos e implementados, mas, na maioria dos casos, os ajustes priorizaram o aumento da receita em detrimento da contenção de despesas. Mais preocupante ainda, grande parte dos novos tributos incide sobre estoques de riqueza ou sobre empresas, sobrecarregando o capital e comprometendo a produtividade de longo prazo.
Outro fator crítico é o envelhecimento populacional, que pressiona os orçamentos de seguridade social, reduz a produtividade e afeta diversas áreas da economia. Projeções para os próximos 15 anos indicam que quase todo o crescimento populacional estará concentrado em nações mais pobres, enquanto a maioria dos países desenvolvidos enfrentará declínio populacional.
A esse cenário, soma-se a crescente instabilidade geopolítica, com impactos diretos nas cadeias globais de suprimento e nos gastos militares. Além disso, a transição energética, essencial para o futuro, enfrenta dificuldades para sair do papel. Todos esses elementos demandam enormes recursos.
Assim, vislumbramos um futuro com mais dívida, juros mais elevados, aumento da desigualdade, e maior necessidade de recursos para maiores despesas com defesa, investimentos robustos na transição energética, custos elevados para reestruturar cadeias de suprimento e encargos sociais crescentes devido ao envelhecimento populacional. A previsão do FMI é que a dívida global, que representava 84% do PIB em 2019, alcance 100% em 2030.
Essa equação é, claramente, insustentável. E o modelo atual começa a ser questionado. Teremos uma nova ordem global? As preocupações recentes com a trajetória da dívida pública nos Estados Unidos e as tensões observadas nas curvas de juros de longo prazo em alguns países levantam sérias indagações. Entre elas, destacam-se: o impacto do chamado "trumpenomics" no cenário global; a crescente vulnerabilidade dos países mais pobres e o agravamento da desigualdade; a necessidade de reinventar o modelo econômico europeu; os desafios da trajetória de dívida no Japão, com juros longos mais altos; e as implicações do crescente domínio da China em mercados estratégicos.
Como vemos, há mais perguntas do que respostas. Uma certeza, porém, emerge: o debate fiscal ganhará centralidade, e o modelo de Estado assistencialista em seu formato extremo terá que ser repensado. Será necessário equilibrar as demandas sociais com equilíbrio fiscal. Sem uma estratégia para equilibrar a dívida global e promover políticas que expandam a oferta e elevem a produtividade, caminhamos para uma crise global de dívida.
O recente orçamento aprovado nos Estados Unidos, longe de ser motivo de celebração, marca o primeiro capítulo dessa narrativa. Para as economias emergentes, como o Brasil, é imperativo adotar políticas de ajuste fiscal e preparar-se para um ambiente mais volátil. Qualquer semelhança com a realidade brasileira não é mera coincidência.
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