Fronteiras transformadas
Eduardo Felipe Matias
https://www.eliasmatias.com/publicacao/fronteiras-transformadas/1057
Meu livro A humanidade e suas fronteiras, de 2005, começava com uma parábola futebolística. Um jogo que se desenrolava de forma inesperada, em que treinadores eram forçados a mexer no time por pressões externas incomuns, vindas até de fora do estádio, e regras deixavam de ser respeitadas em partes do campo invisíveis ao árbitro, cuja autoridade também era confrontada por atores diversos à beira do gramado – em uma época em que não havia VAR.
Naquele momento, o mundo passava por transformações que o afastavam da ordem internacional até então vigente. Assim como os técnicos e o juiz daquela estranha partida, Estados soberanos perdiam autonomia e viam sua capacidade de ação reduzida por dois fatores: a globalização econômica – com o fortalecimento das empresas transnacionais e a integração dos mercados financeiros – e a revolução tecnológica, marcada pela consolidação do então chamado “ciberespaço”.
A crescente interdependência vinha acompanhada por uma globalização jurídica, com organizações de cooperação internacional e blocos de integração regional afetando a soberania estatal. Dimensões transnacionais e supranacionais eram incorporadas por meio de novos ordenamentos e instituições que expandiam suas fronteiras, enquanto as fronteiras estatais se tornavam mais permeáveis. Um novo paradigma despontava no horizonte: o da sociedade global.
De lá para cá, muita coisa mudou. Se o avanço da globalização e do multilateralismo sinalizava uma soberania compartilhada, vinte anos depois o cenário se inverteu. Choques sucessivos reergueram barreiras e devolveram aos Estados um papel central.
A crise de 2008 foi o primeiro sinal dessa inflexão. O colapso dos mercados financeiros revelou como turbulências podiam se propagar rapidamente por sistemas interconectados. O comércio internacional recuou 12% em 2009. O G-20 ocupou o centro do palco e garantiu estímulos equivalentes a 1,8% do PIB global, mostrando que, quando a situação apertava, eram os cofres nacionais que pagavam a conta.
Depois, a pandemia de covid-19 expôs a vulnerabilidade das cadeias globais de valor. O PIB mundial caiu 3,5% em 2020. Máscaras cirúrgicas tornaram-se moeda diplomática e cargas de equipamentos médicos foram desviadas em aeroportos. O modelo just-in-time perdeu espaço, sendo substituído por estratégias de redundância, com conceitos como reshoring e friend-shoring orientando políticas industriais e comerciais. O custo aumentou, mas a prioridade passou a ser reduzir riscos e reforçar a resiliência.
A invasão da Ucrânia pela Rússia, em 2022, foi mais um golpe. Sanções coordenadas – como a exclusão de bancos russos do sistema SWIFT e limites ao preço do petróleo – mostraram que a interdependência pode ser usada como arma. O corte no fornecimento de gás à Europa evidenciou a facilidade com que laços econômicos se transformam em instrumentos de pressão geopolítica.
Nesse ambiente, organizações internacionais se enfraqueceram, e o multilateralismo recuou. A eleição de Donald Trump em 2016 desencadeou um populismo protecionista, caracterizado por barreiras alfandegárias e migratórias e pela revisão de acordos. Em seu segundo mandato, essas medidas têm se intensificado, com elevações tarifárias desordenadas que desorganizaram o comércio internacional, frearam investimentos, reacenderam a inflação e levaram a OCDE a prever o menor crescimento global desde a pandemia. A OMC, que poderia ajudar a reverter esse quadro, segue com seu órgão de apelação paralisado desde 2019.
Na integração regional, os resultados são variados. O NAFTA foi substituído pelo USMCA em 2020, mas as tarifas impostas pelos EUA ao México e Canadá causam instabilidade. O Brexit mostrou em 2016 que nem a União Europeia está imune a abalos. Antes disso, a crise da zona do euro entre 2010 e 2012 – com resgates de € 750 bilhões a Grécia, Irlanda, Portugal e Espanha – havia revelado a fragilidade de uma união monetária sem união fiscal. Poucos blocos surgiram, destacando-se o Acordo Abrangente e Progressivo para a Parceria Transpacífico (CPTPP) – assim rebatizado em 2018 após a saída dos EUA do pacto original – e a Área Continental Africana de Livre-Comércio (AfCFTA), em operação desde 2021. O Mercosul pouco progrediu.
A sustentabilidade ganhou destaque, e o Acordo de Paris, de 2015, tornou-se um marco no combate às mudanças climáticas, ao alinhar 195 países ao objetivo de limitar o aquecimento global a 1,5°C. Ainda assim, permanecemos distantes de metas compatíveis com essa ambição – contexto agravado pela segunda retirada dos EUA do acordo, anunciada no começo do ano.
Outro vetor central foi a ascensão da China, cujo PIB nominal saltou de US$ 2,3 trilhões em 2005 para mais de US$ 19 trilhões em 2025, a posicionando como segunda economia mundial. A iniciativa Cinturão e Rota, com mais de US$ 1 trilhão destinados a projetos de infraestrutura, amplia a presença chinesa em diversas regiões do planeta.
As previsões do livro sobre o aumento do protagonismo das empresas transnacionais e o impacto da internet se confirmaram, com as gigantes da tecnologia agora no topo do mercado. A economia migrou dos ativos tangíveis para os intangíveis, que em 2020 já representavam 90% do valor do S&P 500. O lançamento do iPhone, em 2007, popularizou os computadores de bolso. Com 5G, computação em nuvem e big data, emergiram plataformas digitais que intermedeiam informação, consumo e trabalho em escala global. Desde 2022, a IA generativa foi incorporada à vida das pessoas e vem reformulando modelos de negócios em ritmo acelerado.
As disputas geopolíticas passaram a envolver dados e algoritmos. Leis de residência de dados e a corrida por datacenters revelam as novas fronteiras da soberania digital. A concentração de poder nas big techs gerou respostas dos Estados. A União Europeia aprovou legislações como o Digital Markets Act e o AI Act, impondo regras de transparência algorítmica e gestão de riscos. Nos EUA, o Departamento de Justiça obteve vitórias em ações antitruste. Governos também reagem à expansão dos criptoativos – que pressionam a lógica da soberania monetária – por meio do desenvolvimento de moedas digitais próprias, testadas em mais de 130 jurisdições.
As fronteiras da humanidade continuam em transformação. O Estado procura mostrar que ainda é o dono da bola, e ameaça colocá-la debaixo do braço e acabar com o jogo se os outros não se comportarem. É a soberania nacional, que persiste e resiste. A interdependência, no entanto, segue incontornável. Nos últimos vinte anos, sua importância foi renovada pela necessidade de enfrentar questões como as mudanças climáticas e a inteligência artificial – que, por seu caráter transfronteiriço, exigem mais governança global, não menos. Daqui a duas décadas – ou quem sabe antes disso – saberemos se estivemos à altura desses desafios.
Eduardo Felipe Matias é autor dos livros A humanidade e suas fronteiras e A humanidade contra as cordas, ganhadores do Prêmio Jabuti. Doutor em Direito Internacional pela USP, foi visiting scholar nas universidades de Columbia, em NY, e Berkeley e Stanford, na California, e é sócio de Elias, Matias Advogados
Artigo originalmente publicado na edição de agosto de 2025 da revista Exame.
Acesse a imagem do artigo original aqui: PDF
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comentários são sempre bem-vindos, desde que se refiram ao objeto mesmo da postagem, de preferência identificados. Propagandas ou mensagens agressivas serão sumariamente eliminadas. Outras questões podem ser encaminhadas através de meu site (www.pralmeida.org). Formule seus comentários em linguagem concisa, objetiva, em um Português aceitável para os padrões da língua coloquial.
A confirmação manual dos comentários é necessária, tendo em vista o grande número de junks e spams recebidos.