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sábado, 20 de abril de 2024

Especialistas analisam conflito no Oriente Médio, pós-ataque do Irã - Paulo Roberto de Almeida e Heni Ozi Cukier (revista Exame, Instituto Millenium)

 Uma entrevista feita pelo Instituto Millenium, integrada a outra entrevista, com um amigo e distinguido professor, com quem partilho posições fundamentalmente similares com respeito à política internacional e à diplomacia brasileira.

Especialistas analisam conflito no Oriente Médio, pós-ataque do Irã

Instituto Millenium conversou com o diplomata Paulo Roberto de Almeida e o cientista político Heni Ozi Cukier

No fim de semana passado, o mundo assistiu a mais um capítulo do conflito no Oriente Médio: o envio de mísseis e drones no território israelense, pelo Irã. Para entender as implicações disso não apenas no Oriente Médio, mas em todo o mundo, e como o Brasil será afetado, conversamos com dois especialistas no assunto: os professores Heni Ozi Cukier (HOC) e Paulo Roberto de Almeida.

Paulo Roberto de Almeida é doutor em Ciências Sociais, foi diplomata de carreira, serviu em diversos postos no exterior e exerceu funções na Secretaria de Estado, nas áreas de comércio, integração, finanças e investimentos. Já HOC, é cientista político, mestre em Paz Internacional e Resolução de Conflitos, palestrante e dono de um canal com mais de um milhão de inscritos no Youtube. Ele também já foi deputado estadual em São Paulo.

Paulo Roberto de Almeida, diplomata exonerado por Ernesto Araújo

Os dois especialistas divergem em algumas leituras e previsões, como a possibilidade de uma terceira guerra, as chances de diplomacia no Oriente Médio e o posicionamento de Israel e Palestina/ Irã no atual cenário. Mas ambos são críticos ao governo brasileiro no campo da diplomacia. Confira abaixo as entrevistas:

Instituto Millenium: Como o recente ataque do Irã contra Israel influencia a dinâmica do conflito em Gaza, especialmente considerando as tensões pré-existentes e as negociações de cessar-fogo em curso?

Paulo Roberto de Almeida: O ataque introduz uma nova camada de complexidade ao conflito em Gaza, uma região já marcada por décadas de tensões desde a fundação do Estado de Israel em 1948, e as guerras subsequentes com países árabes vizinhos. A situação foi moldada inicialmente pela primeira guerra, logo após a partilha da Palestina pela ONU, que levou à expulsão de palestinos e à ocupação de territórios durante conflitos como a Guerra dos Seis Dias, em 1967. Este conflito prolongado tem sido caracterizado por uma série de retaliações e violências que persistem até hoje.

Desde a revolução iraniana de 1979, que alinhou o Irã contra Israel, o Oriente Médio tem visto um aumento no apoio iraniano a grupos como o Hezbollah e o Hamas. Estes grupos têm mantido uma resistência armada que frequentemente resulta em retaliações israelenses. A violência escalou significativamente, exemplificada pelo ataque de outubro do Hamas, que levou a uma intensa resposta militar de Israel. As violações de direitos humanos nos dois lados são inéditas pela sua intensidade e extensão, refletindo a severidade do atual estado de hostilidades.

Nos anos 80 e 90, tentativas de normalização entre Israel e alguns de seus vizinhos trouxeram esperanças temporárias de paz. Contudo, as intifadas palestinas e as invasões israelenses do Líbano contra o Hezbollah durante esses anos demonstraram que a paz duradoura ainda estava fora de alcance. Esses conflitos sublinharam a contínua instabilidade e a dificuldade de se chegar a um acordo de paz estável.

No século XXI, apesar de Israel ter encerrado sua ocupação em Gaza e concedido autonomia limitada à Autoridade Palestina na Cisjordânia, a vitória eleitoral do Hamas em Gaza, em 2006, e o contínuo controle do Fatah na Cisjordânia refletem a divisão política interna palestina. Estas divisões são agravadas pelas políticas internas israelenses e pela mudança nas políticas dos Estados Unidos, que juntas complicam ainda mais as negociações de paz.

A situação atual, exacerbada pelo recente ataque do Irã e pela contínua pressão interna sobre o governo de Benjamin Netanyahu em Israel, ilustra a complexa teia de desafios políticos e militares que impedem a resolução do conflito. A resposta de Israel aos ataques recentes e as violações de direitos humanos nos dois lados, inéditas pela sua intensidade e extensão, sublinham a urgência de buscar uma solução diplomática que possa finalmente trazer paz a uma região desesperadamente necessitada de estabilidade.

Heni Ozi Cukier: O confronto entre Israel e o Irã pode afetar Gaza dentro de um contexto de negociações ou pressão por parte dos EUA para Israel não atacar, não retaliar ao Irã, e Israel querer extrair algum tipo de concessão dos americanos, algum tipo de apoio para a sua ofensiva em Rafah. Do mesmo jeito, também tira um pouco da tensão de Israel com Gaza e coloca a preocupação com o Irã também.

De muitas maneiras, um conflito não estava separado do outro, porque o Hamas só conseguiu obter tamanho sucesso nesse ataque, com a ajuda do Irã. E a guerra no Oriente Médio já era uma guerra regional. Ela começa com o ataque do Hamas contra Israel, mas nós já tínhamos uma guerra regional antes. De baixa intensidade, mas era uma guerra regional, porque já tinha Houthis atacando do Iêmen, milícias xiitas no Iraque e na Síria atacando bases americanas, Hezbollah no Líbano atacando Israel, Hamas em Gaza atacando. Todos fazem parte do eixo da resistência do Irã e todos já estavam trabalhando contra Israel.

Então a guerra de Gaza já estava relacionada com o Irã em muitos níveis. A maneira mais decisiva é, talvez, outros países, como os Estados Unidos, colocarem mais pressão para que o Hamas ceda, uma vez que estão preocupados que Israel pode estar levando a guerra para um outro nível. E, como eles não querem que a guerra chegue nesse outro nível, então eles iriam trabalhar para colocar mais pressão no Hamas.

Não me parece que o Hamas é suscetível a nenhuma dessas pressões, então no final das contas, eu não vejo muita alteração no que está acontecendo em Gaza, a não ser que o conflito entre Irã e Israel se torne uma coisa aberta, direta, numa escala muito maior. Aí Israel vai tirar o foco de Gaza e, nesse sentido, o conflito em Gaza não seria resolvido, mas seria colocado em segundo plano.

IM: De que maneira esse ataque pode alterar a relação entre a comunidade internacional e Israel? Existem sinais de mudanças na posição de aliados tradicionais ou na abordagem de organizações internacionais como as Nações Unidas?

HOC: O ataque do Irã à Israel não faz a comunidade internacional ficar contra Israel. Ao contrário, aproximou a comunidade internacional de Israel. As organizações internacionais não, porque elas são organizações universais, e a grande maioria da comunidade internacional é composta por ditaduras. As ditaduras usam Israel como um grande bode expiatório, dedicam todo foco de investigação, de pressão em Israel para não sofrerem as consequências, ou não serem alvos de investigações desses órgãos internacionais.

Então é do interesse dos países direcionar a ação desses órgãos internacionais contra Israel, para que não tenham esses órgãos focados nos problemas internos que a maioria desses países têm, sendo que a maioria são ditaduras violadoras de direitos humanos e violadoras de uma série de outras coisas.

Certamente a maior parte do mundo é pró-Palestina, e isso faz parte dessa lógica anti-Ocidente, anti-capitalista, anti-democrática. Israel simboliza tudo isso e é natural que se você tem ideologia envolvida, a narrativa vem de que a Palestina é a vítima, é o mais fraco, é o mais pobre, é o explorado, o dominado… e que Israel, com o apoio dos Estados Unidos, são os poderosos, os colonizadores, os dominadores. E essa narrativa tem uma aceitação muito grande no mundo por questões ideológicas, questões políticas, questões diversas.

PRA: A relação da comunidade internacional com Israel já estava em processo de mudança, devido à percebida intransigência do governo israelense, que rejeita a solução de dois estados e parece empenhado em restaurar o 'grande Israel', dominando completamente os territórios palestinos. Apesar de haver uma população árabe ou palestina com cidadania israelense, o governo atual tem intensificado a ocupação, especialmente na Cisjordânia e na Faixa de Gaza.

Recentemente, mesmo líderes como Joe Biden se declararam a favor da solução de dois estados, uma posição que os Estados Unidos nunca tinham adotado formalmente antes. A brutalidade e a destruição desumana perpetrada pelas forças israelenses em Gaza, que devastaram a região e levaram a população à fome, marcaram um ponto de inflexão na percepção global.

Esta nova realidade tem causado divisões na opinião pública mundial, incluindo na Europa e nos Estados Unidos, entre apoiadores de Israel, e uma maioria expressiva pró-palestina, que, embora crítica ao Hamas, reconhece a gravidade da situação. No Brasil, por exemplo, há quem compare as ações israelenses a um genocídio, embora isso seja uma analogia controversa e não comparável ao Holocausto.

Por fim, essa mudança de percepção também se reflete nas organizações internacionais. A Corte Internacional de Justiça, por exemplo, recebeu petições para examinar se Israel está cometendo crimes de guerra e crimes contra a humanidade sob a convenção sobre genocídio. Ainda que não haja uma decisão final, a disposição da Corte em considerar estas questões indica uma mudança significativa na abordagem internacional em relação a Israel e suas políticas.

IM: Com o recente agravamento das tensões no Oriente Médio, especialmente após o ataque do Irã a Israel, quais seriam os impactos diretos para a economia brasileira, considerando aspectos como exportações, preço do petróleo e segurança energética? Além disso, como esse cenário pode influenciar a postura diplomática do Brasil nos fóruns internacionais?

PRA: Em um cenário de guerra continuada entre Israel e o Irã, ou Israel e o Hezbollah, acredito que o setor da energia não é o mais relevante. Mesmo com a escalada do conflito, o Brasil não enfrentaria problemas significativos de abastecimento de petróleo, mas sentiria impactos mais no aspecto inflacionário. O aumento do preço do petróleo importado e seus derivados afetaria diferentes vertentes do comércio internacional, influenciando a economia brasileira, principalmente através de pressões inflacionárias.

No campo da diplomacia, a situação é mais complicada. As simpatias históricas do PT e de governos liderados por Lula por movimentos anti-americanos complicam as relações com Israel, visto como um aliado fiel dos Estados Unidos. Desde a sua fundação, o PT adotou uma postura tipicamente esquerdista latino-americana, caracterizada pelo anti-americanismo e anti-imperialismo, que não passou pelas reformas ideológicas que muitos partidos social-democratas e socialistas no mundo adotaram no final do século XX.

O PT não seguiu o exemplo de partidos como o SPD alemão, o partido socialista francês sob Mitterrand ou o New Labour de Tony Blair, que moderaram suas posições marxistas originais para adotar posturas pró-democráticas e pró-capitalistas reformistas. Em vez disso, o PT manteve uma orientação pró-cubana, pró-socialista e fortemente anti-americana, o que continua a influenciar sua política externa.

Essa orientação se refletiu nas políticas diplomáticas do Brasil durante os mandatos de Lula e menos durante o governo de Dilma, que não priorizou tanto a política externa. Com a volta de Lula ao poder, essa tendência se acentuou, com um apoio mais explícito a movimentos que desafiam a ordem global dominada pelo Ocidente e promovem uma alternativa ao sistema de Bretton Woods.

Portanto, nas arenas internacionais, é provável que o Brasil mantenha uma postura que privilegie alianças e posições anti-americanas, seguindo a linha de uma política externa que busca promover uma ordem global mais multipolar, em contraste com a preeminência americana tradicional.

IM: Considerando as alegações de que o Irã teria sinalizado previamente sobre o ataque, qual poderia ser a estratégia por trás dessa comunicação? Isso reflete uma tentativa de manter o controle da narrativa sem escalar o conflito para uma guerra aberta?

PRA: O Irã, ao sinalizar previamente sobre seu ataque a Israel, demonstra uma estratégia de manter controle sobre a narrativa sem escalar para uma guerra aberta. O Irã não tem interesse em uma guerra aberta contra Israel, que poderia expandir-se para envolver vários outros países ocidentais, especialmente considerando a continuidade de seu programa de enriquecimento de urânio e seu programa nuclear. Este último foi significativamente impactado quando Trump encerrou o acordo de 2015 estabelecido por Obama, o acordo de Genebra, que havia colocado o programa nuclear iraniano sob supervisão da Agência Internacional de Energia Atômica, com envolvimento do P5+1 — os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança mais a Alemanha.

O Irã já possui capacitação nuclear em termos de capital humano e precisa apenas enriquecer urânio suficientemente para produzir um dispositivo nuclear, contando com mísseis e capacidades de lançamento. No entanto, o Irã opta por uma postura cautelosa e não busca um confronto direto; enfrentou uma guerra de oito anos com o Iraque nos anos 80 e continua a enfrentar sanções internacionais severas — sendo o estado mais sancionado do mundo até a Rússia assumir esse lugar após sua invasão da Ucrânia.

O Irã também atua por meio de proxies, como o Hezbollah na região do Oriente Médio, algumas brigadas islâmicas a partir da Síria, o Hamas na Faixa de Gaza, e os houthis do Iêmen do norte, além de grupos terroristas em todo o mundo, incluindo aqueles envolvidos nos atentados na AMIA nos anos 90. O Irã foi formalmente acusado pela justiça argentina, acusações que foram evitadas durante os governos peronistas de Cristina Kirchner.

Israel, por sua vez, pode retaliar com sabotagem eletrônica e ataques cibernéticos contra alvos iranianos, especialmente seu programa nuclear, e através da eliminação de generais e cientistas da Guarda Revolucionária Islâmica. Israel realiza essas ações provavelmente sem o apoio explícito de nenhum país ocidental, especialmente sem o apoio declarado dos Estados Unidos, que defendem Israel mas não apoiam um ataque externo. As reuniões do conselho de segurança de Israel estão focadas em decidir qual tipo de resposta será dada, que provavelmente envolverá diferentes estratégias para atingir os interesses iranianos sem provocar uma escalada aberta ou espetacular.

IM: Dado o contexto atual e as capacidades militares demonstradas, qual é a sua visão sobre os próximos passos tanto para o Irã quanto para Israel? Há espaço para diplomacia ou devemos esperar mais confrontos militares? 

HOC: Me parece muito difícil que a diplomacia vá ser efetiva, uma vez que o Irã cruzou uma linha que até então nunca havia cruzado. Nós nunca tivemos uma guerra Israel-Irã. Nós nunca tivemos o Irã atacando Israel diretamente, lançando mísseis e drones do seu território direto a Israel. Essa linha que foi cruzada pelo Irã era um sinal claro que diplomacia não tem nenhuma capacidade de lidar com os objetivos e estratégias e desenrolar de tudo que está acontecendo no Oriente Médio.

Nós estamos assistindo uma escalada crescente, consistente e bem sólida. E a diplomacia dificilmente terá a capacidade de desescalar essa situação. Não só porque o problema está alcançando níveis maiores dentro do Oriente Médio, mas porque o contexto geral do mundo é de mais conflito.

Guerra na Ucrânia, os movimentos da China em direção à Taiwan, e outros posicionamentos ao redor do mundo, uma série de conflitos na África, a Venezuela em relação à Guiana, Azerbaijão na Armênia…

A ordem internacional foi abalada e, com isso, a desestruturação traz muito mais instabilidade, e a diplomacia se torna muito ineficaz em conseguir conter o que está acontecendo no Oriente Médio e no mundo. As divisões entre blocos do mundo também contribuem para a dificuldade da diplomacia funcionar.

O mundo está claramente dividido em dois blocos, o que eu chamo de eixo das ditaduras, que é Rússia, Irã, China, Coreia do Norte, Venezuela -  e do outro lado, as democracias. O Conselho de Segurança, por exemplo, jamais vai chegar em algum consenso, dada essa divisão do contexto geopolítico da atualidade. Alguns anos atrás, o Conselho de Segurança chegou em decisões unânimes, pressionando o Irã pelo seu programa nuclear. Hoje, isso jamais aconteceria.

PRA: Sim, há espaço para diplomacia, mesmo em meio a conflitos armados. Sempre existe a possibilidade de negociação, seja diretamente entre Irã e Israel ou por meio de mediadores internacionais como os Estados Unidos. Surpreendentemente, os EUA têm desempenhado um papel crucial como mediadores, com o Secretário de Estado, António Blinken, realizando várias visitas ao Oriente Médio e dialogando tanto com aliados quanto com adversários, incluindo Rússia e China. Enquanto a Rússia pode ter interesse em complicar a situação para os EUA, a China mostra pouco interesse em envolver-se no conflito.

Apesar das possibilidades diplomáticas, as operações de inteligência e contra-espionagem, assim como as atividades de milícias e forças paramilitares, continuam a ocorrer. Essas ações sub-reptícias ou abertas são parte do jogo de poder na região. Por exemplo, enquanto o Irã realizou ataques com foguetes, mísseis e drones, sabendo que não seriam eficazes em termos militares, essas ações serviram para satisfazer uma demanda interna por uma resposta visível ao seu público e à Guarda Revolucionária.

Além disso, a diplomacia é acompanhada de retórica nos fóruns internacionais. Recentemente, o representante do Irã no Conselho de Segurança adotou um tom moderado, apelando ao direito internacional e à Carta das Nações Unidas, destacando que Israel havia violado essa carta ao atacar uma instalação diplomática na Síria. De fato, ambas as grandes potências e Israel têm histórico de violações do direito internacional, mas o discurso iraniano apontou essas questões em um contexto diplomático.

No entanto, Israel também usou o direito internacional em sua defesa, visando mais a audiência internacional do que a doméstica, que se concentra mais nas demonstrações de força, como o lançamento de projetos contra o Irã. No final das contas, a diplomacia ainda é predominante, com os Estados Unidos desempenhando um papel chave na moderação do conflito, mantendo diálogo tanto com aliados quanto com inimigos de Israel e do Irã.

IM: Considerando os conflitos em andamento, como a guerra entre Rússia e Ucrânia e as tensões no Oriente Médio, como você avalia o risco de uma escalada para uma guerra de proporções globais, especialmente se a China decidir avançar sobre Taiwan e os Estados Unidos se envolverem diretamente?

PRA: Não acredito que o mundo esteja 'pronto' para um enfrentamento direto entre as três grandes potências militares — Estados Unidos, China e Rússia —, além da União Europeia, que considero um 'meio império'. Estamos assistindo a um aumento na preparação militar, especialmente da China, que está construindo uma marinha significativa e desenvolvendo novas armas aéreas. No entanto, a China não aspira a ser uma potência hegemônica; seu objetivo é ser respeitada internacionalmente e evitar a humilhação histórica que sofreu no passado.

Taiwan é um ponto focal nas tensões regionais. Historicamente, nunca pertenceu à República Popular da China. A ilha emergiu como um refúgio para as forças de Chiang Kai-shek após a vitória comunista no continente em 1949, representando a China na ONU até 1971. Xi Jinping, que recentemente assegurou um terceiro mandato, tem interesse em resolver a 'questão de Taiwan', possivelmente até o fim de seu mandato, da mesma forma autoritária que lidou com Xinjiang e Hong Kong.

A aliança declarada entre Xi e Putin antes da invasão da Ucrânia sugere que a China poderia ter considerado ações mais assertivas se não houvesse uma forte resposta ocidental. No entanto, a cautela chinesa em seu apoio à Rússia reflete a complexidade de suas ambições, sabendo que um conflito aberto seria desastroso em vários níveis, inclusive econômicos e tecnológicos.

Enfrentar Taiwan diretamente seria complicado para a China, que poderia optar por uma abordagem econômica e tecnológica para integrar a ilha gradualmente. Em termos de geopolítica global, é mais provável que vejamos guerras por procuração e 'golpes baixos' ao invés de um confronto militar direto. Esta postura é agravada pelo fato de que a ameaça nuclear, frequentemente levantada por Putin, é vista mais como uma chantagem do que uma intenção real, pois um conflito nuclear é impensável para as lideranças militares envolvidas.

Portanto, embora a tensão continue, a probabilidade de uma guerra global é baixa. Em vez disso, podemos esperar um aumento nos gastos militares e uma desaceleração na cooperação internacional e globalização, refletindo-se em divisões ideológicas que impactarão futuras conferências internacionais como o G20 ou a ONU. Este cenário sugere que o mundo enfrentará uma era de incertezas sem precedentes, com foco mais em preparação militar do que em soluções produtivas ou sociais para problemas globais.

IM: HOC, Você tem falado em suas palestras, vídeos e entrevistas que vê o cenário geopolítico se desenhando para uma terceira guerra mundial. Dadas as declarações pouco incisivas do governo brasileiro, quando se refere a condenar o terrorismo, e o conhecido antiamericanismo que é uma marca do PT e do atual presidente, de que lado acredita que o Brasil vai ficar, se uma terceira guerra realmente eclodir?

HOC: O Brasil tem demonstrado que quer estar do lado do eixo das ditaduras. É claro que o governo e seus simpatizantes acreditam que esse é o lado certo a estar. Acreditam que esse será o lado vitorioso. É uma aposta. A gente não sabe quem realmente vai sair vitorioso, caso tenhamos um conflito desse tamanho, dessa magnitude.

Eu entendo que esse é o lado errado para estar. Mas muita gente acredita que o Ocidente, o Mundo Livre, sairá perdedor. E não é impossível de imaginar que o Ocidente possa perder, uma vez que está dividido, polarizado, e não está trabalhando unido, da mesma forma que o eixo das ditaduras trabalha.

Então, existe um argumento para o PT e para os seus aliados, uma justificativa de por que o Brasil tem que estar do lado do eixo das ditaduras. Porque eles acreditam que quem vai vencer o conflito, ou esse choque, ou essa grande transição, serão esses outros países, serão as ditaduras.

Eu não acredito nisso, mas eu entendo que tem gente que aposta, e é plausível essa aposta. Não acho que é óbvio que as democracias irão vencer, dados esses problemas.

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Divulgado na plataforma Academia.edu, link:

https://www.academia.edu/117805447/3632_Especialistas_analisam_conflito_no_Oriente_Médio_2024_



quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Revista Exame discute a segunda metade do mandato de Bolsonaro - Alessandra Azevedo, Carla Aranha

 

A segunda metade do mandato de Bolsonaro será melhor?

  • O país voltará a crescer na segunda metade do governo Bolsonaro?

Pelo menos uma vez por semana o presidente Jair Bolsonaro costuma viajar pelo país. No dia 11, ele participou da cerimônia do Dia do Marinheiro, em Itaguaí, no Rio de Janeiro. No final de novembro, partiu para Flores de Goiás, uma pequena cidade goiana, para entregar títulos de regularização de posse de propriedades rurais. A despeito da pandemia de covid-19 que já vitimou 181.000 brasileiros, invariavelmente a comitiva de Bolsonaro é aplaudida por onde passa — e o presidente não se furta a tomar um pingado na padaria local e a posar para fotos. Mas, além de elogios de aguerridos apoiadores, o presidente tem recebido pedidos para que o país volte a ter mais empregos e a crescer. A crise econômica gerada pela covid-19 impôs uma contração de 4,4% no produto interno bruto e criou uma massa de quase 14 milhões de desempregados, o que levou a uma taxa recorde de 13,6% de pessoas sem trabalho. Junto veio a perda da renda do trabalhador, que caiu 20%, e o custo de vida encareceu — só a inflação dos alimentos subiu 11% em 2020. Bolsonaro, portanto, inicia a segunda metade de seu mandato diante de um desafio único: arrumar a economia brasileira enquanto precisa vacinar grande parte dos 210 milhões de habitantes.

Como tantos outros países, o Brasil sofreu um revés sem precedentes em 2020 por causa da pandemia. Neste ano, os gastos para socorrer a população e as empresas devem somar 605 bilhões de reais, o que representa quase 9% do PIB. Junto com outras despesas, o déficit fiscal deverá somar 912 bilhões de reais, um recorde. A dívida pública alcançou cerca de 95% do PIB, o que pressiona ainda mais as contas. Do ponto de vista econômico, 2021 deverá ser um ano de passagem entre uma crise profunda e uma expectativa de uma economia mais azeitada apenas em 2022, quando Bolsonaro entrará na reta final de seu mandato, e suas ambições eleitorais estarão mais latentes do que nunca. A expectativa é que o país cresça 2,9% em 2021, segundo estimativas do banco Santander. Num mundo sem pandemia, seria um desempenho bom para a economia brasileira, mas esse número não dá conta de compensar as perdas da crise. “Para o país conti­nuar crescendo, será preciso levar adiante as reformas e trabalhar intensamente para que outras pautas econômicas que ficaram paradas comecem a andar”, diz o analista político Lucas de Aragão, sócio diretor da consultoria Arko Advice.

Os primeiros dois anos de mandato do presidente Bolsonaro tiveram momentos muito distintos. No primeiro ano de governo, em 2019, a maior vitória foi a aprovação da reforma da Previdência, que deverá entregar uma economia de 26,1 bilhões de reais aos cofres públicos já em 2021. Mas a conquista superlativa do presidente foi ofuscada por polêmicas acessórias, como a tentativa de emplacar seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), como embaixador nos Estados Unidos. Já o segundo ano do mandato foi engolido pela pandemia e todos os reveses inerentes à crise sanitária. Da aposta na cloroquina ao menosprezo da gravidade da covid-19, o presidente se colocou ora como adversário, ora como coadjuvante no enfrentamento da pandemia. É verdade também que o governo Bolsonaro teve um êxito incontestável: a aprovação do auxílio emergencial que beneficiou 66 milhões de pessoas e se tornou um dos mais ambiciosos programas de alívio dos efeitos da crise no mundo. Ainda que o mérito da aprovação de um valor mais robusto da ajuda seja do Congresso, e não do Executivo, o presidente tem sido recompensado com uma alta aprovação de seu governo — segundo a pesquisa EXAME/IDEIA do início de dezembro, 35% dos brasileiros avaliavam o governo como ótimo ou bom.

interlocução entre o Congresso e o governo na primeira metade do mandato. 

Membros da equipe econômica, como o ministro Paulo Guedes, e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), não se furtaram a levar a público discussões sobre temas essenciais para o país, como a proposta de reforma tributária do governo e a PEC Emergencial, que define regras para o controle de despesas e o cumprimento do teto de gastos. No fim, quase nada andou. No dia 15 de dezembro, no fechamento desta edição, Maia ainda cogitava suspender o recesso de fim de ano do Congresso para tentar votar a PEC Emergencial, apresentada originalmente no final de 2019. Já as reformas tributária e administrativa (o objetivo desta última é diminuir o tamanho do Estado brasileiro reduzindo o custo do funcionalismo público) ficaram para 2021. Ambas são consideradas medidas essenciais para a retomada no pós-pandemia.


quarta-feira, 18 de novembro de 2020

RCEP: como o mega-acordo comercial do Pacífico pode afetar o Brasil - Revista Exame

 Como o “maior acordo comercial do mundo” fechado pela China afeta o Brasil

A China e 14 países do Pacífico fecharam nesta semana um mega-acordo comercial que engloba um terço do PIB global. Como ficam o Brasil e a América Latina?
Por Carolina Riveira
Exame, 17/11/2020 às 14h10
https://exame.com/mundo/como-o-maior-acordo-comercial-do-mundo-fechado-pela-china-afeta-o-brasil/

A China e outros 14 países da região do Pacífico asiático fecharam neste domingo, 15, o que é até agora o maior acordo comercial do mundo. O acordo de livre comércio foi batizado de Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP na sigla em inglês). O bloco comercial abrange um mercado de 2,2 bilhões de pessoas e 26 trilhões de dólares, ou um terço do PIB global.

Ainda deve demorar anos para que a aliança altere amplamente o comércio global, e parte dos signatários também já tinha acordos entre si. Mas o simbolismo do tratado é grande, sobretudo na guerra comercial entre Estados Unidos e China.

O Peterson Institute for International Economics (PIIE), nos EUA, estimou em relatório de junho (e com números de antes da covid-19), que o acordo aumentaria o comércio entre os membros em até 428 bilhões de dólares em 2030. Do outro lado, reduziria o comércio em até 48 bilhões de dólares para os não-membros. Em cenário de guerra comercial, o RCEP se torna “especialmente valioso” e “fortalece a independência do Leste Asiático”, escrevem os economistas do PIIE.

Para o Brasil, do qual a China é a maior parceira comercial, qualquer movimentação na Ásia é sinal de atenção, diz o professor Luís Antonio Paulino, do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da Unesp. Mas, a princípio, a maior integração entre a China e os vizinhos não afete as exportações tradicionais e pode até beneficiar indiretamente o Brasil diante do aumento do comércio global. 

Até outubro, a Ásia comprou quase metade das exportações brasileiras, ou 84 bilhões de dólares, em demanda liderada pela China.

“Os principais produtos que exportamos são commodities minerais e agrícolas, cujas exportações não serão afetadas por esse acordo”, diz Paulino. “Mas esse amplo acordo regional de comércio tende a reforçar as cadeias regionais de suprimento da Ásia, o que pode dificultar, em perspectiva futura, o desejo do Brasil de diversificar sua pauta de exportação”.

O acordo agora inclui não só os tradicionais aliados chineses (10 países já faziam parte do ASEAN, acordo asiático liderado pela China), mas países até então fora da órbita direta de influência da China e grandes parceiros americanos, como Austrália, Coreia do Sul, Nova Zelândia e Japão. A Índia, outro país importante na região e o segundo mais populoso do mundo, saiu das negociações antes do fim. 

“Estados Unidos, China e América Latina formam um triângulo no qual mudanças nas relações entre dois dos vértices necessariamente afetarão o terceiro”

Luís Antonio Paulino, professor da Unesp e especialista em economia global

A forma como o acordo pode impactar as relações entre China e EUA, em plena guerra comercial, também afeta o Brasil, que fica no meio da disputa geopolítica.

Para o ano que vem, Paulino aponta que temas como o leilão do 5G (e a exclusão ou não da Huawei pelo Brasil) e a relação brasileira com o presidente americano eleito, Joe Biden, serão cruciais para o papel do Brasil na disputa entre as duas potências. Veja abaixo os principais trechos da entrevista.

EXAME — A China é a maior compradora dos produtos do Brasil e de vários países da América Latina. Esse acordo, agora abrangendo países como Austrália, Japão e Coreia do Sul, impacta de alguma forma as exportações brasileiras, ou são alvos diferentes? 

Professor Luís Paulino — Não creio que haverá impactos, pelo menos a curto prazo e médio prazo. De janeiro a setembro de 2020 os principais produtos exportados para a Ásia foram: soja, minério de ferro, petróleo, carne congelada bovina, pastas químicas de madeira, açúcar e carnes e miudezas de aves. Nenhum desses produtos enfrenta concorrência local que poderia ser afetada por esse acordo.

É preciso levar em conta, contudo, que assistimos hoje, em grande parte devido aos efeitos econômicos da pandemia da covid-19, uma tendência ao encurtamento e regionalização das cadeias globais e suprimentos. Nesse sentido esse amplo acordo regional de comércio tende a reforçar as cadeias regionais de suprimento da Ásia, o que pode dificultar, em perspectiva futura, o desejo do Brasil de diversificar sua pauta de exportação para a região, incluindo produtos industrializados de maior valor agregado.

O acordo firmado ainda vai demorar um tempo até que efetivamente traga mudanças, e muitos dos países envolvidos já tinham acordos bilaterais ou multilaterais entre si. Nesse sentido, podemos afirmar que o impacto por ora é mais simbólico do que econômico?

Não creio que será apenas simbólico. Haverá efeitos reais, que poderão afetar os interesses sobretudo dos Estados Unidos e União Europeia na região. As cadeias globais de suprimento tendem a se estabelecer em áreas de livre comércio. Quanto maior a integração comercial entre os países da Ásia mais as cadeias globais de suprimentos centradas na China, Japão e Coreia do Sul tenderão a se regionalizar, em prejuízo de fornecedores de fora da área, cujas exportações podem estar sujeitas a tarifas de importação mais elevadas.

No caso específico do RCEP, serão eliminadas tarifas sobre 91% das mercadorias comercializadas entre os membros. No caso do Japão, por exemplo, o número de produtos não tarifados enviados para a Coreia do Sul aumentará de 19% para 92% e para a China de 8% para 86%. A indústria automobilista japonesa deverá ter grandes ganhos uma vez que acordo eliminará as tarifas sobre quase US$ 50 bilhões em peças automotivas enviadas para a China.

Também é preciso considerar que o aprofundamento dos laços comerciais entre a China e os outros países da Ásia e Sudeste Asiático que assinaram o acordo não deixa de ser ruim para os Estados Unidos que ficaram de fora. Certamente vai dificultar os esforços dos Estados Unidos de isolar a China na região. A Índia foi o único grande país a ficar fora do acordo, com receio de receber uma enxurrada de importações, mas pode vir a aderir no futuro.

Para os EUA, o simbolismo de ter esse acordo liderado pela China é forte. Há algum ponto em que a continuidade dessa guerra comercial sino-americana possa impactar o Brasil e a América Latina? Como o senhor vê esse cenário no governo eleito de Joe Biden?

Estados Unidos, China e América Latina formam um triângulo no qual mudanças nas relações entre dois dos vértices necessariamente afetarão o terceiro. Há aspectos nas relações Estados Unidos-China, Estados Unidos-Brasil e Brasil-China que tendem a não mudar substancialmente no governo Biden. Estados Unidos continuarão a ver e tratar a China como um competidor estratégico, o Brasil continuará a ter um papel importante para os Estados Unidos em sua relação com a América Latina e a China continuará a ser fundamental para o Brasil como seu principal parceiro comercial.

Mas há coisas que podem mudar e afetar essas relações. Caso haja uma normalização das relações comerciais entre China e Estados Unidos, isso pode afetar o Brasil, uma vez que os Estados Unidos são nosso maior competidor no fornecimento de commodities agrícolas para a China. Por outro lado, a derrota de Trump abre espaço para uma mudança da política externa brasileira uma vez que a adulação de Trump deixará de ter sentido na política externa brasileira.

Uma maior pressão dos Estados Unidos sobre o Brasil por causa da questão do meio-ambiente e direitos humanos pode obrigar o Brasil a se aproximar mais pragmaticamente da China para evitar o completo isolamento internacional. Não podemos nos esquecer que, em 2019, quando o Brasil virou alvo internacional de críticas por causa das queimadas na Amazônia, a China foi o único país a sair em defesa do Brasil. A decisão que o Brasil venha a tomar sobre a exclusão ou não da Huawei como fornecedor de equipamentos para a rede 5G brasileira será um divisor de águas nas relações Brasil-China em 2021. Nesse aspecto temos uma gama enorme de questões em aberto cujas respostas vão começar a se delinear nos próximos meses.

O Mercosul, como sabemos, está enfraquecido. Por outro lado, vemos as grandes potências globais fazendo acordos. Qual seria o papel do Mercosul nessa nova era? Seria um momento para uma unificação e fortalecimento interno da região, ou o futuro serão acordos separados entre os sul-americanos e o resto do mundo?

O principal dano da política de alinhamento automático do Brasil com os Estados Unidos implementada pelo governo do presidente Jair Bolsonaro e seu ministro das relações exteriores, Ernesto Araújo, foi ter destruído o papel de liderança regional do Brasil, sobretudo na América do Sul, e levado à fragmentação política da região, permitindo assim que a América do Sul se tornasse palco de disputa entre as grandes potências extrarregionais.

Não vejo como esse quadro possa ser revertido, pelo menos no atual governo. Nem mesmo o já assinado acordo Mercosul-União Europeia dá mostras de sair do papel.

Há alguns anos tínhamos o TPP [Tratado Transpacífico] liderado pelos EUA, que parou no governo Trump e do qual o Brasil já não fazia parte; agora, temos o RCEP liderado pela China. No geral, esses mega-acordos, inclusive envolvendo países latino-americanos (como México e Peru que estavam envolvidos no TPP), são ruins para o Mercosul e para o Brasil ou podem ser benéficos? 

Não creio que uma eventual participação de países sul-americanos banhados pelo Pacífico em uma acordo comercial envolvendo os países do chamado Pacific Rim [os “círculos do Pacífico”, área de países banhados pelo oceano, que não inclui o Brasil] pudesse ser prejudicial ao Brasil. Ao contrário, poderiam estimular uma maior integração regional com vistas a explorar novas oportunidades de comércio e investimento. Na área de infraestrutura, por exemplo, poderiam estimular a integração regional, sobretudo ferroviária, que poderiam criar rotas alternativas para a abastecimento da Ásia, principal destino de nossas exportações.


sexta-feira, 26 de junho de 2020

Joel Mokyr, historiador econômico - entrevista (Revista Exame)

“Não é o vírus que tira meu sono”

O historiador americano Joel Mokyr diz que a sociedade tem mais condições para enfrentar pandemias


O historiador econômico Joel Mokyr, professor na Universidade Northwestern, em Chicago, acredita que a sociedade hoje tenha muito mais ferramentas para enfrentar pandemias como a do novo coronavírus. E, por isso, crê que seus efeitos serão limitados. O que ele teme, porém, são as investidas de líderes populistas contra a democracia e as instituições  (Agence Opale/Alamy/Fotoarena)

O historiador econômico naturalizado americano Joel Mokyr costuma se diferenciar de seus pares por um olhar otimista sobre a capacidade da sociedade de enfrentar os desafios que os tempos atuais impõem. Um dos maiores especialistas do mundo em economias industriais modernas e professor na Universidade Northwestern, em Chicago, Mokyr acredita que os avanços científicos e tecnológicos tenham criado uma resiliência muito maior das economias perante as adversidades. São essas conquistas que o fazem pensar que o impacto do coronavírus deve ser limitado.
O historiador, porém, diz que tem se preocupado muito mais com retrocessos na democracia, nas instituições e nas liberdades individuais. “Essa é a vulnerabilidade da sociedade hoje. A prosperidade econômica exige um alto grau de liberdade, inconformismo e gente pensando fora da caixa”, afirma Mokyr. 

Leia a seguir a entrevista concedida à ­EXAME.

Do ponto de vista da história econômica, como o senhor dimensiona a pandemia do novo coronavírus?
>A pandemia vai trazer mudan­ças permanentes, mas, pensando num cenário mais amplo, não acho que mudará o curso da sociedade. Continua­remos a ter um crescimento econômico baseado em avanços cie­ntíficos e tecnológicos. É fato que não vivemos nada parecido com isso nos últimos 100 anos. Surgiram novos vírus, como o zika e o HIV. Pense na aids: quando surgiu, era asso­ciada a grupos como o de homossexuais e o de hemofí­licos. Não havia um medo co­­letivo de contrair aids. No caso da covid, sabe-se que os assintomáticos são capazes de transmitir a doença, mas não há segurança de como e quando isso ocorre, o que exigiu que tudo fosse fechado e as pessoas se recolhessem em casa.
Mas os impactos econômicos serão profundos…
Sim, os efeitos de longo prazo vão persistir. Talvez sejam necessários dois ou três anos para estarmos no patamar do PIB global anterior ao da pandemia. Mas os efeitos são dispersos e desiguais. Há setores que foram duramente atingidos, como o transporte aéreo. Um grande número de pequenas empresas, talvez 50%, não voltará a operar nos Estados Unidos. Negócios como restaurantes, oficinas, salões de beleza não vão sobreviver à crise. Mas é como ocorre depois de um incêndio florestal: o meio ambiente é tão favorável que outras árvores vão nascer naquele lugar. No caso de um restaurante, por exemplo, a demanda deve continuar lá, os profissionais permanecem disponíveis. Outros virão.
Mas quais mudanças a pandemia deverá trazer?
Haverá, obviamente, ajustes na economia. E nem todos serão ruins. Muitas pessoas descobriram que conseguem trabalhar produtivamente de casa, e o teletrabalho será cada vez mais comum. Vamos repensar a utilização dos espaços, que na prática são aproveitados somente 50% do tempo. Metade do tempo nós estamos em casa; e metade, no trabalho. É muito desperdício.
As pandemias do passado não nos prepararam para a atual?
Sempre soubemos do risco de novas pandemias. Os governos têm sido alertados para isso e sobre como deveriam responder adequadamente. Historicamente, o meio ambiente joga contra os seres humanos. Doenças antigas sofrem mutações e podem se tornar mais agressivas. Foi isso que aconteceu com a varíola. Era um vírus que sempre esteve por aí e, entre os séculos 16 e 17, uma mutação o tornou muito mais virulento. As pessoas ficaram apavoradas, pois era uma doen­ça terrível e mortal. Aí descobriu-se a vacina em 1796 e foram necessários 200 anos para que a doença fosse erradicada. Um processo parecido ocorreu com a pólio nos anos 1920 e 1930, quando surtos da doença provocaram pânico. E aí veio a vacina nos anos 1950. Essas coisas se repetem. É uma eterna guerra entre os humanos e os microrganismos que tentam nos matar.
Laboratório na Itália: “O sequenciamento genético do novo coronavírus levou semanas para ser feito” | Antonio Masiello/Getty Images
Laboratório na Itália: “O sequenciamento genético do novo coronavírus levou semanas para ser feito” | Antonio Masiello/Getty Images (Divulgação/)
Mas os avanços científicos não colocam a humanidade numa situação muito mais vantajosa hoje?
A humanidade tem hoje ferramentas que há 100 anos, quando emergiu a gripe espanhola, nem sequer poderiam ser imaginadas. Em 1918, as pessoas não sabiam que a gripe espanhola era causada por um vírus, que foi isolado apenas em 1933. Já o sequenciamento genético do coronavírus foi feito em semanas, em meio a uma crise sanitária que surgiu há seis meses. A gripe espanhola matou 50 milhões de pessoas no mundo. Nos Estados Unidos, as estimativas apontam que morreram aproximadamente 600.000 pessoas na época, numa população equivalente a um terço da atual. Se a covid-19 tivesse a mesma mortalidade da gripe espanhola, ela mataria 2 milhões de americanos. E isso não vai acontecer. Vamos derrotar o vírus e, no processo, vamos aprender mais e criar novas soluções que serão aplicadas a outras coisas. E na próxima pandemia seremos ainda mais rápidos.
A sociedade se tornou mais resiliente, portanto?
Somos mais resilientes a qualquer tipo de choque porque a prosperidade das nações hoje é construída com base em conhecimento e tecnologia. Isso é difícil de destruir. A pobreza no mundo vem caindo rapidamente nos últimos 20 anos, sobretudo por causa do crescimento econômico da China e da Índia. Esses fundamentos devem continuar os mesmos. Sendo muito franco, o que me tira o sono não é um vírus, mas os ataques à democracia e às instituições. Essa é a vulnerabilidade da sociedade hoje. O risco para a prosperidade futura não vem da natureza, de pandemias ou terremotos, mas, sim, dos seres humanos.
Quais riscos o senhor vê?
Nos últimos 20 anos, porém, houve um declínio acentuado na prevalência e na popularidade das democracias liberais. Isso faz parte de um “ciclo normal”. As democracias liberais são processos confusos e difíceis de manejar, geralmente repletos de corrupção. Então, as pessoas se cansam delas e escolhem populistas autoritários ou machos “lei e ordem”, como Rodrigo Du­terte, nas Filipinas, e Hugo Chávez, na Venezuela, somente para descobrir que são dez vezes piores, e depois querem os democratas de volta.
Por que isso ocorre?
O problema é que existe uma assimetria: é fácil votar em líderes democráticos inaptos ou desonestos — essa, afinal, é a ideia por trás da democracia. Mas os autoritários, em geral, exigem muito mais esforço para ser desalojados: veja o horrível Viktor Orbán, na Hungria, para não falar de Vladimir Putin, na Rússia, e Xi Jinping, na China. Foi preciso uma guerra para livrar o mundo de Mussolini e uma espera de 30 anos para fazer o mesmo com Franco, na Espanha. Eles compartilham entre si uma visão anti-intelectual e anticiência, sem compromisso com valores como a liberdade de expressão. Eles não são conservadores, mas criam uma mistura tóxica de ideologia nacionalista reacionária, criptofascista e raivosa.
O presidente Jair Bolsonaro já se envolveu em muitas polêmicas desde que foi eleito e agora tem minimizado os impactos da pandemia no Brasil. Como o senhor avalia o presidente brasileiro?
Bolsonaro representa uma tendência global em direção ao declínio da qualidade institucional e à corrupção da governança básica. O que a história nos conta é que, ao contrário da tecnologia que sempre melhora, isso não se aplica aos governos, que ora avançam, ora retrocedem. Mas a diferença entre esses novos líderes populistas está nas restrições institucionais que enfrentam: Duterte e Putin podem se safar de assassinatos, Xi é ainda pior, Trump não pode fazer da maneira que ele gostaria. Vamos torcer para que Bolsonaro acabe mais como Trump e menos como Putin. Mas não invejo os brasileiros.
A polarização foi ampliada pelas redes sociais?
Não estou convencido de que isso seja tão novo assim. Muito lixo já foi publicado nos jornais antes do surgimento do Twitter e do Facebook. Nos Estados Unidos, Joseph McCarthy liderou uma rede de notícias falsas em nome do combate ao comunismo na década de 1950. A vantagem da internet e das redes sociais é que o acesso é muito barato. As pessoas costumam ler basicamente o que confirma o que elas pensam. Se olharmos para os anos 1950 e 1960, não era tão diferente assim. Acho que o impacto atribuído às redes sociais é exagerado.
Mas qual é a diferença hoje?
A diferença está nas pessoas­ que têm poder e tomam as decisões. Trump acabou de cortar relações com a Organização Mundial da Saúde. Isso não é uma notícia falsa, é política. Existe um movimento de desmantelamento da cooperação global que pode resultar em políticas mais agressivas contra, por exemplo, a redução dos efeitos das mudanças climáticas. Isso não ocorre somente nos Estados Unidos. Veja o que acontece na China. Os chineses abandonaram o comunismo, abriram seu mercado e tornaram-se uma economia capitalista. Mas uma economia capitalista exige mais democracia, porque são coisas que andam juntas. E Xi Jinping, em particular, virou as costas à democracia, à proteção dos direitos individuais, à liberdade de expressão. É o que estamos vendo também nos protestos em Hong Kong. O filósofo e historiador alemão ­Friedrich ­Schiller [1759-1805] disse que “contra a estupidez até os deuses lutam em vão”.
Com a pandemia, temos visto muitos ataques às cadeias globais de produção, sobretudo as da China. Essa é uma preocupação legítima ou é uma desculpa para uma guerra comercial?
Diria que o fato de a pande­mia ter iniciado em Wu­han, na China, é nada mais do que um azar. E daí? É responsabilidade dos chineses? É verdade que sob a administração Trump há claros sinais de aumento da sinofobia, especialmente porque Peter Navarro [conselheiro econômico de Trump] tem alegado que a China está trapaceando, roubando a tecnologia e destruindo a indústria americana. Resumindo, para Navarro os chineses são pessoas terríveis. Obviamente, ele não menciona que a China é quem há anos fornece produtos baratos que foram incrivelmente favoráveis aos consumidores americanos. Provavelmente, 50% das coisas que tenho na minha casa foram feitas na China. Os chineses não são perfeitos, claro, mas também não são essa força do mal. Dito isso, a China ficou mais agressiva sob a liderança de Xi, o que explica o aumento dos ataques por parte do governo Trump.
Há riscos contra a globalização?
Ela não está morta, mas profundamente abalada. A globalização foi uma força para o bem. Fez muita gente enriquecer e tornou o mundo mais integrado. Não foi boa para todo mundo, como quase nada é, mas foi a principal responsável por tirar milhões de pessoas da pobreza. É só olhar para o que aconteceu em Bangladesh, um lugar absurdamente miserável. O setor têxtil lá passou a produzir para as grandes marcas globais, a um custo baixíssimo, em condições de trabalho horríveis. O que aconteceu com a pandemia? Todas as fábricas fecharam e o que era ruim ficou pior. E foi isto que a globalização fez: deu a pessoas muito pobres uma chance de sobreviver. Elas não vivem bem, certamente poderia ser melhor, mas tirar isso delas é tornar tudo pior — tanto que as fábricas de vestuário estavam reabertas em maio. A globalização fez muito pelas pessoas, mas pode colapsar muito rápido. Essa parte da economia é pouco resiliente.
Os países estão gastando trilhões de dólares no combate à crise. O papel dos governos vai mudar com a pandemia? 
As dívidas vão aumentar para todos os paí­ses do mundo, sem dúvida nenhuma. No entanto, pragmaticamente, o que muda num país em que o endividamento de 90% do produto interno bruto passa temporariamente para 120%? O que espero é que as pessoas percebam que riscos como as pandemias exigem mais intervenção dos governos. É algo que o livre mercado jamais será capaz de lidar sozinho. Questões fundamentais virão quando surgir a vacina. Qual será o preço dela? Como será sua distribuição? Quem tiver dinheiro vai se vacinar antes dos mais pobres? Não sou um grande fã do Estado como regulador, mas esse é um caso em que as forças do mercado não podem agir sozinhas.
O presidente americano, Donald Trump, anuncia corte para Organização Mundial da Saúde: “Não é fake news. Isso é política”, diz Mokyr | Alex Wong/Getty Images
O presidente americano, Donald Trump, anuncia corte para Organização Mundial da Saúde: “Não é fake news. Isso é política”, diz Mokyr | Alex Wong/Getty Images (/)
Em quais outras situações os governos deveriam ser mais atuantes?
Um assunto urgente é a questão das mudanças climáticas. Sem a intervenção dos governos, esse será de longe um desastre muito maior do que a pandemia de covid-19 terá sido. A diferença é o tempo do impacto. Os efeitos das mudanças climáticas levam anos para se manifestar. É apavorante o que pode acontecer e ninguém está fazendo nada a esse respeito. Já sabemos o que precisa ser feito e também como fazer, mas isso demanda recursos que os governos só passam a gastar se outros governos também estiverem desembolsando. E, ainda assim, os recursos não serão suficientes. O mundo atingiu uma sofisticação tecnológica capaz de solucionar muitos dos nossos problemas, porém seguimos tendo líderes idiotas. A prosperidade econômica exige um alto grau de liberdade, inconformismo e gente pensando fora da caixa.

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Miséria das elites brasileiras (e do povao) - J. R. Guzzo

O povão é ignorante? Certamente, embora iss não seja desculpa.
A atitude das elites é que é indesculpável.
Paulo Roberto de Almeida

Elites sem nexo
O The Economist virou uma espécie de Almanaque Capivari para os empresários brasileiros da modalidade "civilizada-liberal-contemporânea". Mestre J. R. Guzzo, no alvo, em artigo publicado na edição impressa da revista Exame:

O que aconteceria num país que teve quase catorze anos seguidos da mais ruinosa administração econômica que se possa imaginar, com direito à maior recessão na história de sua economia? Além das repetidas tentativas de suicídio econômico, armou-se ao longo deste período o que provavelmente tenha sido o mais alucinante sistema de corrupção jamais visto na administração pública mundial. A máquina do Estado foi privatizada em favor dos partidos que apoiavam os governos, primeiro o do ex-presidente Lula e depois o de Dilma Rousseff. Milhares de cargos públicos foram entregues a militantes do PT e outros coletivos de esquerda. Bilhões de reais desapareceram do Tesouro Nacional e foram acabar nos bolsos de dirigentes de “movimentos sociais”, ONGs, governantes de países estrangeiros que não se submetem à lei internacional, ditadores africanos, filhos de ditadores africanos que são pegos na alfândega do Brasil com malas abarrotadas de dinheiro vivo. O ex-presidente está na cadeia, condenado a doze anos por corrupção e lavagem de dinheiro. Estão presos ex-ministros, diretores de estatais e outros barões do seu governo, quase todos réus confessos ─ e por aí afora. Muito bem. A única resposta possível para a pergunta feita no parágrafo inicial, dentro da lógica comum, é a seguinte: na primeira eleição que aparecesse, os responsáveis diretos pelas calamidades descritas acima receberiam da maioria dos eleitores uma ordem clara de cair fora do governo e ficar o mais longe possível dele, de preferência para sempre. Mas o país dessa história é o Brasil, e no Brasil as coisas raramente fazem nexo.

O problema não está tanto no comportamento do eleitorado, que segundo as “pesquisas de intenção de voto” põe numa situação privilegiada, quase de favorito, o candidato que promete abertamente ressuscitar a catástrofe dos governos Lula e Dilma. Num eleitorado em que a maioria dos 150 milhões de votantes não têm nenhum preparo para escolher nada, qualquer farsante bem treinado para mentir mais que os outros candidatos sempre terá chances excelentes de ganhar. O curioso, na atual eleição presidencial, é que grande parte da elite empresarial brasileira ─ aquela que se imagina mais avançada, vê a si própria como merecedora de uma cota de sócia no mundo civilizado, lê os jornais e revistas de Nova York ou Londres, etc., etc., etc. ─ esteja achando que o candidato que promete voltar ao governo passado é o mais adequado para ocupar o governo futuro. Não que Fernando Haddad seja o homem ideal, claro. Nossos mais distintos magnatas e seus guias espirituais prefeririam um Emmanuel Macron, digamos, ou coisa que o valha; mas Monsieur Macron não está disponível. A saída, então, é se arrumar com esse Haddad mesmo. É verdade que ele tem, entre todos os candidatos, o mais bem armado projeto de destruição do Brasil. O que se vai fazer, porém? A alternativa é eleger um homem de extrema direita ─ e isso deixa passando mal os nossos capitães de indústria, comércio e finanças ─ ou, pelo menos, é o que dizem. Haddad, imaginam, é uma pessoa com quem daria “para conversar”.

De mais a mais, é essa a instrução que recebem no momento do The Economist─ e nos últimos anos, por razões de ordem psicológica que talvez sejam melhor esclarecidas no futuro, o The Economist virou uma espécie de Almanaque Capivari para os empresários brasileiros da modalidade “civilizada-liberal-contemporânea”. Acreditam no que é publicado ali como se acredita na tábua de marés da Marinha Nacional ─ e ali estão dizendo que Haddad, além de ter sido um prefeito “de êxito” em São Paulo, poderia inclinar-se para uma abordagem mais liberal da economia. Quem pode levar a sério um disparate desses? Mais gente do que você pensa. Empreiteiros de obras públicas, banqueiros preocupados em manter o monopólio que tanto dinheiro lhe deu nos governos Lula-Dilma, fornecedores de sondas nacionais para a Petrobras, Joesleys, Eikes e todo o resto da turma estão prontos para assinar embaixo.

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Politica externa: o choro do Barao do Rio Branco - Fábio Pereira Ribeiro (Exame)

Um artigo que generosamente cita o meu último livro, menos generosamente recebido na Casa de Rio Branco...
Meus agradecimentos ao Fábio Pereira Ribeiro, jornalista e professor, que encontrou uma maneira de me promover, pelo menos virtualmente...
Paulo Roberto de Almeida 

O choro do Barão do Rio Branco

Fábio Pereira Ribeiro 
 
Nunca antes neste país o Itamaraty foi tão esculachado. Imagino que o Barão do Rio Branco, José Maria da Silva Paranhos Júnior, ainda chore em seu túmulo. Suas iniciativas, ideais, pragmatismos, políticas e defesa pela Nação brasileira no exterior foram relegadas a um plano de poder partidário. O Barão do Rio Branco sempre foi categórico, “a pasta de Relações Exteriores não é e não deve ser uma pasta de política interna”. Será que desaprendemos nos últimos anos? O que está acontecendo com o Itamaraty? O Ministério das Relações Exteriores sempre foi a ilha de excelência do serviço público brasileiro, e reconhecido como um dos melhores serviços exteriores do mundo. O Brasil sempre foi respeitado internacionalmente pelas ações de grandes diplomatas, mas o que acontece hoje? Até a palavra calote colou na imagem do Itamaraty.
Como diria o Embaixador Rubens Antônio Barbosa em seu prefácio da obra do Embaixador Paulo Roberto de Almeida, “Nunca antes na Diplomacia…”, “a marginalização do Itamaraty, sobretudo no tratamento de assuntos relacionados aos países vizinhos da América do Sul, certamente não estaria agradando ao Barão do Rio Branco...”. Por sinal, o próprio Embaixador Paulo Roberto de Almeida lembra em sua obra, “o Mercosul, como um instrumento de abertura de mercados, foi dos projetos que mais sofreu com a partidarização da política externa nos últimos doze anos”. Partidarização é um mal para a diplomacia, e para o Brasil uma tragédia na política externa.

Algumas agendas nacionais e internacionais devem estar totalmente conectadas com a sociedade. Política Externa, Defesa e Inteligência não podem sofrer do mal da partidarização. A partidarização está destruindo instituições de excelência no serviço público brasileiro, e ainda coloca em risco o futuro de um projeto consistente de país. O Embaixador Rubens Antônio Barbosa, que foi embaixador em Londres e em Washington, bem lembrou na obra do Embaixador Paulo Roberto de Almeida, “o Itamaraty continuou a fazer diplomacia, mas, a partir de 2003, passou a estar acompanhado – ou, melhor, controlado indevidamente – por aqueles que passaram a determinar a política externa do Brasil com base em critérios essencialmente partidários”. O projeto de partido que importa, a sociedade brasileira não.
Quando assistimos a vexatória posição do Itamaraty perante fornecedores no exterior, já dá para imaginar o quanto diplomatas e profissionais de carreiras e comissionados sofrem com o descaso das políticas públicas e partidárias inseridas no âmbito da Política Externa brasileira. Um diplomata, que vou respeitar a proteção da fonte, me disse em Paris que já se tornou rotina “o atraso de salários, aluguéis e despesas com manutenção dos equipamentos públicos brasileiros”. Nem biblioteca brasileira para pesquisadores foram poupadas. Praticamente todas estão fechadas e desestruturadas. Imagino o que se produz de inteligência através de uma embaixada? Como alguém pode pensar em inteligência se tem que se estressar com as despesas no final do mês? Literalmente o Itamaraty está vendendo o “almoço para ter a janta”.
Com certeza o Barão do Rio Branco está chorando em seu túmulo, e seu choro é ouvido em todos os rincões do mundo. Até que ponto chegaremos com esta política externa, onde um “ser desiluminado” ainda manda nas regras diplomáticas? Por que a Presidente Dilma Rousseff tanto se afasta das agendas de Política Externa, Defesa e Inteligência?
Barão do Rio Branco - Patrono das Relações Exteriores do Brasil
Barão do Rio Branco – Patrono das Relações Exteriores do Brasil
Os resultados estão aí, não precisa procurar muito para ver o tamanho do estrago. Gosto de lembrar do ensinamento do Embaixador Rubens Antônio Barbosa, “a partidarização da política externa trouxe consequências negativas para a ação do Itamaraty e, via de consequência, também para a política de comércio exterior. Esses desvios repercutiram amplamente nas negociações comerciais externas, nas quais simpatias políticas prevaleceram sobre obrigações contraídas no âmbito do Mercosul ou até sobre regras prevalecentes no sistema multilateral da OMC. A prioridade desequilibrada atribuída a uma mal designada “diplomacia Sul-Sul”e a vontade ingênua de inaugurar uma “nova geografia do comércio internacional” fizeram com que os exportadores brasileiros deixassem de abrir mercados em países desenvolvidos, resultando em déficit extraordinário com nossos maiores parceiros da Europa e com os EUA. Por outro lado, as ações na África e no Oriente Médio não produziram ganhos políticos significativos nem comerciais expressivos, já que, em termos percentuais, o crescimento do intercâmbio comercial com essas regiões foi bastante reduzido”. A verdade é uma só, as últimas escolhas da Política Externa atual são verdadeiros desastres. Trocamos seis por meia dúzia. Nem Mariel é este mar de flores como pregam.
O Diplomata e Diretor do Bric Lab da Columbia University, Marcos Troyjo, lembra em seu último artigo na Folha de São Paulo, “Iludindo-se com Cuba” o quanto nossa política externa atual tem uma bússola de uma só direção, pelo menos do erro. Troyjo afirma que “nos últimos 12 anos, o Brasil apostou numa América Latina de duas velocidades. Colocou fichas na coalização de regimes mais à esquerda. Privilegiamos o eixo socialista-bolivariano, baseado na onipresença do Estado na vida econômica e numa xenofobia seletiva centrada nos EUA. Venezuela, Bolívia, Equador e de alguma forma a Argentina integram esse grupo. Com a normalização de relações com seu grande vizinho, Cuba, epicentro histórico de tal agrupamento, voltará a ter em Washington, não Brasília ou Caracas, sua referencia geoeconômica. Da perspectiva diplomática, iniciativas apoiadas pelo Brasil na cooperação hemisférica sem a participação sem a participação dos EUA, como Unasul e a Celac, perdem força”. Nós brasileiros sofremos de uma cegueira internacional. Será que não conseguimos imaginar o que acontece na Venezuela de hoje lá com o Maduro, o homem que fala com a Pomba Rola achando que é o Hugo Chávez? Será que não conseguimos ver o que está acontecendo na América do Sul? E estou falando literalmente dos mais necessitados.
De uma forma geral, o Itamaraty não pode ser destruído com a nossa Política Externa. O Brasil não pode ser babá de ditaduras ou de países que preferem esculachar os mais pobres do que criar uma política consistente de desenvolvimento para o futuro. O Embaixador Paulo Roberto de Almeida é bem claro em relação aos métodos do “jogo diplomático”. Eu, particularmente, tenho dúvidas se o Brasil de hoje usa algumas regras fundamentais para o “jogo diplomático”:
“Clareza de intenções” – Será que no caso de Mariel existe clareza de intenções, ou pelo menos transparência nos projetos?
Interação entre a diplomacia e a economia– Algo muito distante, veja o esforço que médios empresários têm que fazer na África. Algo quase rastejante.
Aferição precisa quanto aos meios disponíveis”.
Flexibilidade e abertura às inovações” – neste ponto, literalmente estamos retrocedendo ao pré Barão do Rio Branco.
NuncaAntesDiplomaciaCapaFrente
O Brasil é um país continental, é uma potência internacional (por mais que muitos não acreditem nisso), tem grandes riquezas naturais, uma economia interna que salvaguarda crises internacionais, grandes potências querem fazer negócios (mas ficam desconfiadas do partidarismo na política externa), temos presença em praticamente todos os países (por mais que tenhamos problemas de custeio e orçamento), assim, não tem sentido o Itamaraty ser tão destituído de sua grande força e história nas Relações Internacionais. A história do Itamaraty é extremamente respeitada, só tenho medo que tudo fique só na história do passado e não do futuro.