Bibliomaníaco: uma vida através dos livros, 1949
Paulo Roberto de Almeida
Diplomata, professor
(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)
1949:
Eu nasci no final do ano de 1949, mais exatamente no dia da Bandeira, em 19 de novembro. Não daria, assim, para falar dos livros que foram publicados no decorrer do ano, pois que eles não me “alcançariam” sequer na maternidade. Ainda assim, fica difícil não falar de dois que apareceram nesse ano, na quase exata metade do século XX. Desde quando me conheço por gente, pelo menos depois que aprendi a ler, na tardia idade de 7 anos, comecei a prestar atenção nos livros, primeiro os infantis, depois os de adolescente, mais tarde os de adulto, já precocemente. Mas nada me impede de falar de livros que “acompanharam”, se ouso dizer, minha primeira infância, pois este é o sentido de registro “livresco” de minha vida, como pretendo fazer nestas notas, ano a ano.
O mais importante deles, 1984, de George Orwell, veio a público nesse ano, mas tinha sido terminado no ano anterior, 1948 (daí a inversão futurista dos dois dígitos finais), ano do nascimento de meu irmão Luiz Flávio, em agosto. O romance, vindo pouco depois do Animal Farm (A Revolução dos Bichos), foi logo identificado pela direita, especialmente pelos americanos engajados na chamada Guerra Fria contra a União Soviética, como sendo um manifesto anticomunista, mais exatamente uma condenação do totalitarismo brutal do regime stalinista na pátria do socialismo. Orwell não concebia que essa obra distópica reproduzisse os gulags – praticamente campos de escravidão, pura e simples – da União Soviética, pois o enredo se situa mais no plano de um totalitarismo tecnocrático, estilo Aldous Huxley, do que no ambiente sombrio dos campos de trabalho forçado, como ressaltado na produção de um dos primeiros dissidentes do universo stalinista, Arthur Koestler. Mas isso eu só vim a descobrir muito mais tarde, quando passei a ler a literatura socialista, e a anticomunista também, e um dos primeiros nessa vertente foi o de Alexander Soljenitsin: Um dia na vida de Ivan Denisovitch, no ínicio dos anos 1960, livro rapidamente traduzido com a ajuda da CIA e distribuído no resto do mundo, como tinha sido feito com o Animal Farm, do próprio Orwell nos anos 1950.
O outro, não exatamente um livro, apenas um ensaio, “Why Socialism?”, publicado no número inaugural da Monthly Review (maio 1949), uma revista de esquerda, era de ninguém menos do que Albert Einstein, no auge da sua glória. Também só vim a tomar conhecimento dessa obra, que achei um pouco ingênua, muito tempo depois, já na idade adulta, quando tinha realizado minha conversão completa, da crença inicial nas virtudes do socialismo, e aderido a uma visão liberal do mundo. Em todo caso, Einstein refletia as reações mais comuns às desigualdades inerentes ao capitalismo, suas motivações egoístas, falta de cooperação, concorrência acirrada e propensão a crises e ao desemprego. O grande físico nuclear era naturalmente inclinado a um sistema de planejamento que pudesse evitar esse lado menos brilhante dos sistemas capitalistas, mas também temia o lado burocrático e o cerceamento das liberdades, que sabia existir nos socialismos de tipo soviético.
Outros livros que foram publicados no ano de meu nascimento, e que vim a ler muitos anos depois, foram o clássico de Victor Nunes Leal, Coronelismo, Enxada e Voto, sobre o chamado voto de cabresto do coronelismo do interior, e aquele que se converteu num dos meus preferidos, da primeira adolescência: C. W. Ceram: Deuses, túmulos e sábios: a história da arqueologia; essa obra me converteu em “arqueólogo amador”, pois foi por ele que eu comecei a decorar as dinastias do antigo Egito e a alimentar o desejo de aprofundar o conhecimento das escrituras dos povos do Oriente Médio. Em 1949, o historiador José Honório Rodrigues, publicava o seu Teoria da História do Brasil, que junto com os demais livros de historiografia brasileira, foi essencial no meu aperfeiçoamento na disciplina histórica, ao lado de minha formação em ciências sociais, ao longo da graduação e dos estudos especializados.
Ao sair da maternidade poucos dias depois do nascimento, não imagino como devem ter sido as primeiras semanas e meses numa família muito pobre, praticamente sem livros ou outros materiais de leitura. As primeiras lembranças que tenho de minha primeira infância se referem ao quarto centenário da cidade de São Paulo, quando fui visitar o recém-inaugurado Parque Ibirapuera, levado pelas mãos do meu pai. Nessa altura, 1954, eu já devia estar frequentando o Parque Infantil, nas proximidades de minha casa, no modesto bairro do Itaim Bibi, ao sul da cidade, perto do rio Pinheiros.
Relatei um pouco dessa fase inicial num pequeno texto que deve entrar ao início desta série que estou planejando para seguir, ano a ano, as publicações anuais, de livros que eu fui lendo gradualmente já na fase adulta. Chamo a atenção para estes dois primeiros, que apresentam alguma coincidência com partes de alguns parágrafos acima:
3913. “De um século a outro: dos livros para o mundo (uma trajetória intelectual)”, Brasília, 14 maio 2021, 4 p. Introdução, ou prefácio, preliminar a livro que pretendo escrever gradualmente enfocando cada novo capítulo como se fosse um ano completo de aprendizado, experiências e leituras ao longo da vida; escrito em algum momento entre 2020 e 2021, divulgado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/05/uma-vida-atraves-dos-livros-1.html).
3914. “Uma Vida Através dos Livros: 1949”, Brasília, 15 maio 2021, 2 p. Primeiro capítulo do projeto de livro, focando, de maneira preliminar sobre o ano de meu nascimento. Divulgado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/05/uma-vida-atraves-dos-livros-1949-paulo.html).
Darei continuidade a esta série nos anos seguintes, sempre entremeando pequenos relatos de meu itinerário pessoal, com as edições anuais que marcaram minha trajetória intelectual, ainda que de modo bastante defasado no tempo.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 3897: 25 setembro 2021, 3 p.