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segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Ainda Estou Aqui, de Marcelo Rubens Paiva; Eu já tinha partido: Paulo Roberto de Almeida

 


 Ainda Estou Aqui, Marcelo Rubens Paiva

Eu já tinha partido, Paulo Roberto de Almeida 

Acabo de assistir ao filme de Walter Salles, e ele representou algo especial para mim. Um pequeno mergulho nos horrores dos anos de chumbo da ditadura militar, quando muitos, centenas de oficiais das Forças Armadas se degradaram na repressão aos opositores do regime, o que eu era, desde a precoce politização de meados dos anos 1960 e um impulso a combatê-lo pela via de uma revolução de esquerda.

O deputado Rubens Paiva foi detido para interrogatório em janeiro de 1971, supostamente por poder estar envolvido no sequestro do embaixador suíço, no mês de dezembro anterior (mais tarde trocado por 70 prisioneiros políticos). O regime hesitou ao início, mas logo depois acelerou sua metodologia repressiva.

Quando o embaixador suíço foi sequestrado eu já não me encontrava mais no Brasil: havia decidido partir do Brasil, para evitar a sorte de alguns outros companheiros, e estava navegando no Atlântico, em direção à Europa. Só soube do sequestro em alto mar, informado por um telex de notícias recebido no meio do oceano. Naquele momento, senti que eu havia saído a tempo do Brasil, caso contrário eu também poderia ter sido preso, eventualmente sido torturado, havendo ainda a possibilidade de "desaparecer", como alguns dos quais se soube tarde demais.

Curiosamente, Rubens Paiva foi detido e interrogado – acredito que sua morte foi um "acidente de trabalho", pois ele não tinha envolvimento com a luta armada – pelo fato de ter sido intermediário de cartas vindas do Chile, de brasileiros exilados por lá, eventualmente ex-guerrilheiros no Brasil, enviadas a familiares no Brasil. Eu tinha ido ao Chile no ano anterior, também passando por Uruguai e Argentina, e feito contatos com companheiros de esquerda nos três países, tratando sobretudo de rotas de escape para aqueles que já se encontravam na clandestinidade. 

Eu estava na resistência à ditadura militar desde alguns anos antes, mas ainda não era, digamos, um quadro da resistência armada; era apenas do apoio logístico, conseguindo documentos para aqueles que precisavam mudar de identidade. Entre 1969 e 1970, senti que a repressão seguia aumentando – batidas nos transportes em vias públicas, por exemplo, como mostrado ao início do filme Ainda Estou Aqui – e vários companheiros "caindo" nas teias da repressão. Servia então ao Exército, como conscrito, e o "meu" quartel invadia a "minha" universidade, no caso a Cidade Universitária da USP, onde eu fazia Ciências Sociais. Um colega de classe, o frei dominicano Tito, que com outros fazia ponte com o movimento armado de Carlos Marighella, foi preso, e desapareceu nas catacumbas do regime, aliás defendidas, mais tarde, pelo ex-presidente que ousava elogiar torturadores e dizer que a ditadura havia "matado até de menos". 

Decidi então sair do Brasil, o que não foi o caso de Rubens Paiva, que continuou a fazer seu trabalho puramente humanitário de ajudar os perseguidos, quando poderia ter escolhido um novo exílio, como ocorreu com um dos outros personagens, amigos na mesma arriscada aventura.

Soube de sua prisão, alguns meses depois, ainda no primeiro semestre de 1971, ao me reincorporar ao trabalho de resistência à ditadura militar, já na Bélgica, retomando o meu curso de Ciências Sociais na Universidade Livre de Bruxelas. Passei a colaborar com o Front Brésilien d'Information, que divulgava, justamente, notícias sobre a repressão no Brasil e tentava mobilizar a opinião pública europeia contra o regime. Uma das iniciativas foi tentar fazer um Tribunal Russell – que havia sido feito por iniciativa direta do filósofo inglês contra a guerra dos Estados Unidos no Vietnã – sobre a ditadura brasileira; ele foi organizado, mas no meio do caminho uma ditadura aidna mais cruel tomou a frente do tribunal, a de Pinochet, no Chile. 

Acompanhei todo o manancial de informação sobre a ditadura miitar durante mais de seis anos, até o início de 1977, quando decidi voltar ao Brasil. Vários desaparecidos nunca mais foram encontrados, entre eles Rubens Paiva. Frei Tito, o "colega" de Ciências Sociais na USP, se suicidou na França, em meados da década, consequência provável das torturas bárbaras que sofreu na perseguição a Marighella.

O filme é extremamente realista – na descrição visual dos locais de tortura, por exemplo – e dramaticamente sensível, e aqui cabe louvar o desempenho excepcional das crianças atores, as filhas de Rubens Paiva. Impossível não se emocionar com a angústia de Eunice Paiva e das filhas do "desaparecido", covardemente assassinado, sem qualquer benefício para o regime, por pura sanha dos torturadores desprovidos de qualquer sentimento humano. 

Por isso, é abjetamente insuportável contemplar um militar medíocre como o que nos desgovernou por quatro anos - e ainda tentar se tornar ditador – dizer que está homenageando um dos piores torturadores do regime militar. Mais triste ainda constatar que tantos profissionais diplomados, supostamente liberais, ainda apoiam essas figuras execráveis, as mesmas, ou similares, que produziram tantas "Eunices" Paiva e "Zuzus" Angel. 

Um dia relatarei minha pequena participação no trabalho de resistência à ditadura militar, que pelo visto nos últimos tempos, ainda não cabe considerar terminado.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 25 de novembro de 2024





Ainda estou aqui, o filme, os livros de Marcelo Rubens Paiva

Ainda sobre "Ainda estou aqui", do diretor e produtor Walter Salles, uma obra magistral que retrata anos de chumbo na História brasileira.

Apesar de imensos esforços e da comissão da verdade, ninguém foi preso até hoje pelo assassinato de Rubens Paiva. Eunice morreu em 2018 após lutar 15 anos contra o Alzheimer...

 

Crítica de cinema

“Ainda estou aqui”: testemunho de uma história trágica

Filme baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva conta do desaparecimento e assassinato do ex-deputado e engenheiro Rubens Paiva pela ditadura militar e coloca Eunice, sua mãe, no centro da narrativa.

por Tais Zago

 

“Ainda Estou Aqui” do diretor e produtor Walter Salles – mais conhecido pelo filme Central Do Brasil de 1998 e que volta à ficção depois de um hiato de 12 anos – é uma adaptação do livro de mesmo nome de Marcelo Rubens Paiva de 2015, na época da publicação Marcelo tinha um filho pequeno de um ano e Eunice Paiva, sua mãe, já estava com 85 anos e com Alzheimer avançado. O livro é uma homenagem à luta de Eunice para tentar desvendar o desaparecimento de seu marido, o político cassado pela ditadura e engenheiro civil Rubens Paiva, em 1971. O fato ocorreu bem no auge da truculência da ditadura, com o exercício do AI 5. Marcelo Rubens Paiva se destacou como escritor em 1982 quando publicou Feliz Ano Velho, livro onde trabalha a sua traumática jornada como tetraplégico após um infeliz acidente em uma lagoa. Ele recuperou, com o tempo, parte dos movimentos de braços e pernas e seguiu com uma carreira literária de sucesso. O filme tem roteiro adaptado por Murilo Hauser, que escreveu A Vida Invisível (2019) e Heitor Lorega.

Para protagonizar essa linda obra, Salles escalou Fernanda Torres e Fernanda Montenegro para assumirem o papel de Eunice Paiva em diferentes momentos de sua vida. Mãe e filha representam a mesma pessoa, um deleite para os fãs das duas atrizes. Também temos no elenco um grupo interessante de jovens atores nos papéis dos 5 filhos de Eunice e Rubens: Valentina Herszage como Vera, Guilherme Silveira como Marcelo, Luiza Kosovski como Eliana, Barbara Luz como Nalu e Cora Mora como Maria Beatriz. Todos representam de forma acurada e comovente (pré)adolescentes que se encontram no fogo cruzado entre a opressão da ditadura e a resistência de parte da classe artística e intelectual da época.

O festejado Walter Salles já tem na sua estante de troféus um globo de ouro, um BAFTA e um urso de ouro de Berlin por Central do Brasil e um Bafta por “Diários de Motocicleta” de 2004, que tem Gael Garcia Bernal no papel de Che Guevara. Salles também fez com Fernanda Torres o lindíssimo filme Terra Estrangeira, de 1996, uma produção luso brasileira toda em preto e branco. Os filmes do diretor sempre nos trazem a temática do exílio, da perseguição e da busca por si e a própria identidade. Walter já acumula mais de 50 premiações nacionais e internacionais por suas obras e é, sem dúvida alguma, um dos diretores brasileiros mais festejados e respeitados no exterior e nacionalmente. Ele inclusive já chegou a ser considerado um dos 40 melhores diretores do mundo pelo The Guardian em 2003. Em 2012, ainda fez a adaptação do livro On The Road de Jack Kerouac para o cinema, com Kristen Stewart no elenco e produção de Coppola. Salles atua também como produtor e coprodutor de trabalhos de jovens diretores brasileiros. Como no filme “Aquarius” de 2016 de Kleber Mendonça Filho (Bacurau – 2019), com Sonia Braga no elenco, foi produtor executivo de Cidade de Deus (2002) de Fernando Meirelles.

Em “Ainda Estou Aqui” a trilha sonora impressiona e é uma das belas ilustrações de todo o contexto, nos fornecendo um panorama atmosférico perfeito da época. Com muitos gênios da MPB na trilha – Caetano Veloso, Gal Costa, Tom Zé, Mutantes, Juca Chaves, Roberto Carlos e um Erasmo Carlos liberto da jovem guarda – e até Serge Gainsbourg e Jane Birkin com a infame “Je T’Aime Moi Non Plus”, vemos 1971 como época de censura e violência imposta aos artistas. A obra, que caminha da luz à completa escuridão, tem música original composta por Warren Ellis – ex-colega de banda do Nick Cave na banda Bad Seeds – pontuando com instrumentais fortes a tensão que se acumula.

No papel de Rubens Paiva, temos o ator Selton Mello, que nos impressiona com uma atuação de pai brincalhão e presente, que faz de tudo para proteger seus filhos, mas que, ao mesmo tempo, atua auxiliando a resistência e compartilhando cartas e informações de exilados para suas famílias e amigos. A semelhança física entre Mello e Paiva é impressionante. Fernanda Torres, dispensa apresentações, é conhecidamente uma das melhores atrizes brasileiras, seguindo os passos de sua mãe Fernanda Montenegro. Ela incorpora Eunice com dor, mas também com nobreza, orgulho e muita força. Eunice é uma mulher que não desiste e não se entrega, e quando se encontra sozinha com cinco filhos para criar, se reinventa em um contexto de machismo onde mulheres não tinham ainda direito de ter contas em banco e dependiam para tudo do aval de seu marido. Mas o que fazer quando esse marido desaparece e todos seus bens ficam bloqueados? A sobrevivência é apenas mais uma batalha entre tantas que Eunice precisa enfrentar diariamente, sob o olhar de delatores, cupinchas e repressores.

“Ainda Estou Aqui” é um filme sobre memórias (boas ou ruins) e sobre o combate à ditadura. Figurinos e cenários são extremamente acurados. A casa de Rubens Paiva no Leblon, que sempre tinha suas portas abertas para todos os amigos, é o coração do convívio familiar e foi recriada com a ajuda e a recordação de seus filhos para a realização do filme. Salles também nos poupa de flashbacks e imagens documentais da época. Ele usa a estética para contextualizar a história, com as imagens feitas com câmera super 8 e que registram o dia a dia dos Paiva em suas aventuras cotidianas, viagens e festas.

Quando pensamos na linguagem, Salles e os roteiristas fugiram de algumas situações do livro de Marcelo Rubens Paiva e substituíram por outras imagens mais eficazes como, por exemplo, a inclusão, logo no início do filme, da cena (fictícia) do dente de Babiu (Beatriz) enterrado na areia da praia. Uma simbologia que remete ao suposto descarte desumano do real do corpo de Rubens Paiva – nunca encontrado – nas areias de treino da marinha na Restinga da Marambaia.  Mesmo assim, o filme é muito fiel ao livro. O que não é surpresa já que os textos de Marcelo Rubens Paiva têm uma característica dramatúrgica muito forte. Marcelo tinha apenas 12 anos quando o pai foi levado pelos torturadores.

Após a prisão de Rubens, a filha Eliana, de 15 anos, e Eunice são levadas para depor 1 dia após Rubens ser preso. Era dia 21 de janeiro de 1971. O dia que também seria o da morte de Rubens Paiva. Enquanto encarcerada, as cenas de Eunice são incrivelmente intensas e dolorosas. A dor da incerteza, o medo da morte, a ausência total da mais simples forma de justiça. Tudo isso vemos no corpo, no rosto e nos movimentos de Fernanda Torres. O ritmo às vezes lento do filme é um artifício necessário para conseguirmos digerir – ou pelo menos lidar – com tudo que nos é mostrado. Em certo momento, Eunice nos fala: “A tática do desaparecimento é a mais cruel, eles somem com uma pessoa e trazem sofrimento sem fim para todos que a amam.”

Eunice Paiva enfrentou problemas reais de dinheiro por não receber um atestado de óbito de Rubens até 1996 durante o governo de FHC (que precisou ser pressionado para reconhecer os desaparecimentos como morte). Somente aí, 25 anos depois do assassinato de Rubens Paiva, é que Eunice pode ter acesso aos bens do marido, como pensão, investimentos, seguro de vida e fazer o inventário do marido. A essa altura, Eunice já era uma advogada prestigiada, advogava em prol das causas indígenas e tinha criado os 5 filhos sem apoio do Estado. Apesar de imensos esforços e da comissão da verdade, ninguém foi preso até hoje pelo assassinato de Rubens Paiva. Eunice morreu em 2018 após lutar 15 anos contra o Alzheimer.

Atuação de Fernanda Torres é uma das melhores de sua carreira. 

“Ainda estou aqui” em está em campanha para se tornar o indicado brasileiro ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Depois do sucesso de sua exibição em Cannes, o filme também brilhou no festival de Toronto. O Hollywood Reporter colocou o filme como forte candidato à premiação americana, e não apenas na categoria de melhor filme internacional. O filme já está na short-list de diversos veículos de imprensa tradicionais de cinema, como a VarietyIndieWireVanity Fair The Guardian para a categoria de filme estrangeiro. Fernanda Torres também tem chances na categoria de Melhor Atriz. A pré-seleção do Oscar será divulgada em dezembro e a lista dos indicados, em janeiro. “Ainda Estou Aqui” ganhou em setembro o prêmio de melhor roteiro no festival de Veneza.  A obra é uma coprodução, entre vários participantes, do canal franco alemão Arte e da produtora Globoplay. Lançado na última quinta-feira, 7, o longa se tornou a segunda maior bilheteria de estreia do Brasil em 2024.

“Ainda Estou Aqui” é um filme maravilhoso, que precisa ser visto por todos os brasileiros. Uma produção lindíssima de uma história trágica. Uma sacudida necessária naqueles que teimam em achar que ditaduras e tortura são coisas do passado, isso quando assumem que realmente existiram. Termino essa resenha com um trecho da página 96 do livro de Marcelo Rubens Paiva que deve sempre nos servir de alerta:

“A tortura é a ferramenta de um poder instável, autoritário, que precisa da violência limítrofe para se firmar, e uma, e uma aliança sádica entre facínoras, estadistas psicopatas, lideranças de regimes que se mantém pelo terror e seus comandados. Não é ação de um grupo isolado. A tortura é patrocinada pelo Estado. A tortura é um regime, um Estado. Não é o agente fulano, o oficial sicrano, quem perde a mão. É a instituição e sua rede de comando hierárquica que torturam. A nação que patrocina, o poder, emanado pelo povo ou não, suja as mãos.”