Eu tenho uma camiseta, oferecida pelo Livres, com a efígie do grande Luiz Gama.
Paulo Roberto de Almeida
LUIZ GAMA: ESCRITOS INÉDITOS E FILME AJUDAM A RECUPERAR A IMPORTÂNCIA DO ADVOGADO NA LUTA ANTIRRACISTA! Bolívar Torres O Globo, 05/08/2021 Especialista em Luiz Gama (1830-1882), o pesquisador Bruno Rodrigues de Lima já trocou ideias com admiradores do abolicionista baiano em diversas áreas. Do cantor Jorge Benjor ao jurista alemão Thomas Duve (diretor do prestigioso Instituto Max Planck), passando por líderes religiosos como a ialorixá Mãe Stella, não foram poucos os que revelaram, em conversas informais com o doutorando em História do Direito pela Universidade de Frankfurt, um profundo interesse e respeito por Gama. Nascido livre e vendido pelo pai como escravo aos 10 anos de idade, o advogado, poeta, orador e jornalista estudou Direito por conta própria e foi responsável por libertar centenas de escravizados. Mas, após sua morte, o seu legado acabou apagado pela História oficial do abolicionismo, em detrimento de personalidades hoje mais conhecidas, como Joaquim Nabuco. Por isso, Lima defende a ideia de que o reconhecimento de Gama ainda é “underground” — ou seja, acontece fora de universidades, museus, monumentos e outros espaços institucionais. Graças ao trabalho de diversos artistas e pesquisadores (incluindo Lima), Gama vem gradualmente reconquistando o lugar que merece, incluindo títulos importantes. O mais recente deles é o de Doutor Honoris Causa da Escola de Comunicações e Artes da USP, recebido mês passado. Nos cinemas, sua vida é retratada na cinebiografia “Doutor Gama”, dirigida por Jeferson, de que estreia hoje. E seus escritos ganham uma primeira edição de “Obras completas”, com nada menos do que 600 textos até então desconhecidos (80% do total). Descobertos pelo próprio Lima em veículos como o jornal Democracia, os inéditos revelam perspectivas novas sobre Gama. —A História oficial cuspiu em Gama, mas os movimentos populares guardaram sua memória, principalmente as lideranças mais velhas nas comunidades negras de Salvador —diz Lima, responsável pela organização e pelas mais de 7 mil notas da publicação das obras completas. —É uma gratidão que passou de pai para filho. Já vi muita gente que não leu uma página sequer de Gama e ainda assim sabe que ele deixou um modelo de resistência a ser seguido. A amplitude do pensamento de Gama ficou mais evidente nos últimos anos, graças ao garimpo de pesquisadores dedicados. Umas das grandes responsáveis por sua ressurgência, Ligia Fonseca Ferreira, professora da Unifesp, revelou a verve literária do abolicionista, idealizando livros como “Com a palavra, Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas” (2011). Já as cinco mil páginas das “Obras completas” (Hedra) organizadas por Lima serão publicadas em dez volumes até julho de 2022, mas não em ordem cronológica. Os primeiros a chegar foram o 4 (“Democracia”) e o 8 (“Liberdade”), ambas no mês passado. Pesquisando em arquivos públicos durante nove anos, Lima descobriu textos que, garante, podem mudar as interpretações sobre Gama. Um documento original, redigido de próprio punho, dá a entender que o abolicionista seria responsável pela criação de uma biblioteca comunitária com 5 mil títulos — feito até então atribuído exclusivamente à loja maçônica da qual ele fazia parte. Além disso, manifestos no jornal Democracia, assinados sob o pseudônimo Afro, revelam o teórico comprometido com um projeto de escola laica e pública. —Isso significa que ele tinha uma obra sobre o tema pelo menos 30 anos antes dos primeiros debates sobre educação popular — diz Lima. — Outros textos inéditos mostram que Gama finalizou sua luta política sem fazer qual- quer concessão a liberais e conservadores, até mesmo republicanos. Segundo ele, nenhuma dessas três forças políticas representaria o abolicionismo de verdade. Acredito que isso explica porque Gama foi apagado após sua morte. Alfabetizado ainda como escravo, Gama conquistou sua própria liberdade. Atuou voluntariamente em processos de alforria, mas também teve clientes ricos, tornando-se um dos três advogados mais bem pagos de São Paulo. Este itinerário excepcional é contado por Jeferson De em “Doutor Gama”. Três atores vivem o abolicionista em diferentes fases: Pedro Guilherme (infância), Angelo Fernandes (adolescência) e Cesar Mello (maturidade). Sem deixar de lado o aspecto romanesco de sua vida, o cineasta queria que o longa servisse como uma janela para a obra do autor e mostrasse suas ideias. Uma das liberdades tomadas pelo roteiro foi juntar diferentes processos protagonizados por Gama em um só. Para Jeferson de lançar o longa no momento em que a sociedade ainda repercute o assassinato de George Floyd e a chacina do Jacarezinho tem um significado especial. — Quando trabalhamos o roteiro, em muitos momentos parecia que íamos rodar um filme sobre 2021, e não sobre o século XIX — diz o cineasta, que em 2019 dirigiu a minissérie de ficção “A revolta dos Malês”, baseada no levante de escravizados em Salvador. —As pautas de Gama são contemporâneas e mostram que nossas lutas vêm de longe. Para manter o máximo de fidelidade aos fatos históricos, a produção recorreu aos conhecimentos de Ligia Fonseca Ferreira, que atuou como consultora. A professora lançou em 2020 o livro “Lições de resistência”, que reúne artigos jornalísticos de Gama. —As homenagens são justas e importantes, mas o legado de Luiz Gama é sua escrita diz Ferreira. —Através da sua faceta de jornalista, ele era ouvido como um influenciador. É importante resgatá-lo não só como um precursor do abolicionismo, mas também como uma encarnação da prática completa da luta antirracista. |