O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

Meu Twitter: https://twitter.com/PauloAlmeida53

Facebook: https://www.facebook.com/paulobooks

Mostrando postagens com marcador Ligia Fonseca Ferreira. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Ligia Fonseca Ferreira. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Luiz Gama: um abolicionista avant la lettre

 Eu tenho uma camiseta, oferecida pelo Livres, com a efígie do grande Luiz Gama.

Paulo Roberto de Almeida 

LUIZ GAMA: ESCRITOS INÉDITOS E FILME AJUDAM A RECUPERAR A IMPORTÂNCIA DO ADVOGADO NA LUTA ANTIRRACISTA!

Bolívar Torres
O Globo, 05/08/2021

Especialista em Luiz Gama (1830-1882), o pesquisador Bruno Rodrigues de Lima já trocou ideias com admiradores do abolicionista baiano em diversas áreas. Do cantor Jorge Benjor ao jurista alemão Thomas Duve (diretor do prestigioso Instituto Max Planck), passando por líderes religiosos como a ialorixá Mãe Stella, não foram poucos os que revelaram, em conversas informais com o doutorando em História do Direito pela Universidade de Frankfurt, um profundo interesse e respeito por Gama.

Nascido livre e vendido pelo pai como escravo aos 10 anos de idade, o advogado, poeta, orador e jornalista estudou Direito por conta própria e foi responsável por libertar centenas de escravizados. Mas, após sua morte, o seu legado acabou apagado pela História oficial do abolicionismo, em detrimento de personalidades hoje mais conhecidas, como Joaquim Nabuco. Por isso, Lima defende a ideia de que o reconhecimento de Gama ainda é “underground” — ou seja, acontece fora de universidades, museus, monumentos e outros espaços institucionais.

Graças ao trabalho de diversos artistas e pesquisadores (incluindo Lima), Gama vem gradualmente reconquistando o lugar que merece, incluindo títulos importantes. O mais recente deles é o de Doutor Honoris Causa da Escola de Comunicações e Artes da USP, recebido mês passado. Nos cinemas, sua vida é retratada na cinebiografia “Doutor Gama”, dirigida por Jeferson, de que estreia hoje. E seus escritos ganham uma primeira edição de “Obras completas”, com nada menos do que 600 textos até então desconhecidos (80% do total). Descobertos pelo próprio Lima em veículos como o jornal Democracia, os inéditos revelam perspectivas novas sobre Gama.

—A História oficial cuspiu em Gama, mas os movimentos populares guardaram sua memória, principalmente as lideranças mais velhas nas comunidades negras de Salvador —diz Lima, responsável pela organização e pelas mais de 7 mil notas da publicação das obras completas. —É uma gratidão que passou de pai para filho. Já vi muita gente que não leu uma página sequer de Gama e ainda assim sabe que ele deixou um modelo de resistência a ser seguido.

A amplitude do pensamento de Gama ficou mais evidente nos últimos anos, graças ao garimpo de pesquisadores dedicados. Umas das grandes responsáveis por sua ressurgência, Ligia Fonseca Ferreira, professora da Unifesp, revelou a verve literária do abolicionista, idealizando livros como “Com a palavra, Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas” (2011). Já as cinco mil páginas das “Obras completas” (Hedra) organizadas por Lima serão publicadas em dez volumes até julho de 2022, mas não em ordem cronológica. Os primeiros a chegar foram o 4 (“Democracia”) e o 8 (“Liberdade”), ambas no mês passado.

Pesquisando em arquivos públicos durante nove anos, Lima descobriu textos que, garante, podem mudar as interpretações sobre Gama. Um documento original, redigido de próprio punho, dá a entender que o abolicionista seria responsável pela criação de uma biblioteca comunitária com 5 mil títulos — feito até então atribuído exclusivamente à loja maçônica da qual ele fazia parte. Além disso, manifestos no jornal Democracia, assinados sob o pseudônimo Afro, revelam o teórico comprometido com um projeto de escola laica e pública.


—Isso significa que ele tinha uma obra sobre o tema pelo menos 30 anos antes dos primeiros debates sobre educação popular — diz Lima. — Outros textos inéditos mostram que Gama finalizou sua luta política sem fazer qual- quer concessão a liberais e conservadores, até mesmo republicanos. Segundo ele, nenhuma dessas três forças políticas representaria o abolicionismo de verdade. Acredito que isso explica porque Gama foi apagado após sua morte.

Alfabetizado ainda como escravo, Gama conquistou sua própria liberdade. Atuou voluntariamente em processos de alforria, mas também teve clientes ricos, tornando-se um dos três advogados mais bem pagos de São Paulo. Este itinerário excepcional é contado por Jeferson De em “Doutor Gama”. Três atores vivem o abolicionista em diferentes fases: Pedro Guilherme (infância), Angelo Fernandes (adolescência) e Cesar Mello (maturidade). Sem deixar de lado o aspecto romanesco de sua vida, o cineasta queria que o longa servisse como uma janela para a obra do autor e mostrasse suas ideias. Uma das liberdades tomadas pelo roteiro foi juntar diferentes processos protagonizados por Gama em um só. Para Jeferson de lançar o longa no momento em que a sociedade ainda repercute o assassinato de George Floyd e a chacina do Jacarezinho tem um significado especial.

— Quando trabalhamos o roteiro, em muitos momentos parecia que íamos rodar um filme sobre 2021, e não sobre o século XIX — diz o cineasta, que em 2019 dirigiu a minissérie de ficção “A revolta dos Malês”, baseada no levante de escravizados em Salvador. —As pautas de Gama são contemporâneas e mostram que nossas lutas vêm de longe.

Para manter o máximo de fidelidade aos fatos históricos, a produção recorreu aos conhecimentos de Ligia Fonseca Ferreira, que atuou como consultora. A professora lançou em 2020 o livro “Lições de resistência”, que reúne artigos jornalísticos de Gama.

—As homenagens são justas e importantes, mas o legado de Luiz Gama é sua escrita diz Ferreira. —Através da sua faceta de jornalista, ele era ouvido como um influenciador. É importante resgatá-lo não só como um precursor do abolicionismo, mas também como uma encarnação da prática completa da luta antirracista.

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

A oportunidade de conhecer o pensamento de Luiz Gama - Ligia Fonseca Ferreira, Leila Kiyomura (Jornal da USP)

A oportunidade de conhecer o pensamento de Luiz Gama

Coletânea recém-lançada reúne textos essenciais do negro ex-escravizado que rompeu barreiras, liderou luta abolicionisa e teve enorme influência no debate intelectual do fim do século XIX. Visão do racismo institucional tem enorme atualidade

Por Leila Kiyomura, no Jornal da USP

“Qual é verdadeiramente e onde encontrar a obra de Luiz Gama? O que ela nos diz sobre seu espantoso letramento e sólida cultura, sobre as estratégias mobilizadas por um negro e ex-escravizado que se torna uma liderança num mundo de brancos?” Foi esse questionamento que levou Ligia Fonseca Ferreira a fazer uma pesquisa de doutorado, iniciada no final dos anos 1990 na Biblioteca Brasiliana que, na época, ficava na residência do bibliófilo José Mindlin. Também foi esse questionamento que, duas décadas depois, a professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) lembrou em seu discurso, no início desta primavera, ao ser homenageada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). A pesquisadora, doutora pela Universidade de Paris 3, na França, foi condecorada com a medalha Luiz Gama, na primeira vez que uma não jurista a recebe.

A professora Ligia Fonseca Ferreira – Foto: acervo pessoal

“Difícil dizer da minha honra, alegria e emoção de receber esta medalha, plena de simbolismos, resumidos no magnífico desenho de Oscar Niemeyer, especialmente neste ano de 2020 em que se celebram os 190 anos de Luiz Gama, cujo pensamento, exemplo e valores ainda mantêm seu frescor”, continuou Ligia para os integrantes da OAB. Emocionada, ressaltou: “Confesso, igualmente, ter ficado surpresa com a notícia desta recompensa inimaginável, sendo eu professora da área de letras”.

Ligia trava o desafio de “trazer a história e a obra de Luiz Gama para o campo da literatura, da história do abolicionismo, da república, das ideias jurídicas e do jornalismo”. Um trabalho que resultou em livros, artigos, no pós-doutorado no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, nos grupos de pesquisa do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP e no recém-lançado Lições de Resistência: Artigos de Luiz Gama na Imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro, publicado pelas Edições Sesc São Paulo, obra que reúne textos de um dos principais ativistas do movimento abolicionista e republicano.

O livro enfoca, segundo Ligia, o poeta e advogado autodidata Luiz Gama, mas destaca seu principal legado, que são seus escritos, que ainda permanecem pouco conhecidos. “São 61 artigos integrais, dos quais 42 inéditos, publicados em nove jornais paulistas e cariocas entre 1864 e 1882, data em que falece, no auge de seu prestígio, um dos mais notáveis pensadores negros do século 19”, explica. “Os leitores de hoje podem acompanhar a carreira de um jornalista negro que rompeu barreiras, conquistou o saber e se tornou figura de destaque no meio letrado, em sua época exclusivo de brancos. Luiz Gama fazia questão de demonstrar, através de seu exemplo, a falácia das crenças pseudocientíficas em voga numa sociedade escravocrata convencida da incapacidade intelectual e inferioridade moral dos africanos e seus descendentes, base da ideologia racista que ainda persiste entre nós.”

Baiano de Salvador, Luiz Gonzaga Pinto da Gama nasceu no dia 21 de junho de 1830. “Filho de uma africana livre, Luiza Mahin, foi vendido como escravo aos 10 anos de idade pelo pai branco, aparentemente arruinado pelo jogo, e permaneceu assim até os 17, quando conquistou a sua própria liberdade”, conta Ligia.

Busto de Luiz Gama instalado no Largo do Arouche, em São Paulo – Foto: Mube Virtual

Na introdução de Lições de Resistência, a pesquisadora narra detalhes da vida de Luiz Gama e apresenta trechos de seus artigos, oferecendo ao leitor reflexões para compor fatos ignorados da história do Brasil. “É preciso lembrar que, no contexto em que viveu, um negro que pensa, escreve e através da escrita questiona e desafia o status quo escravista representa uma façanha histórica, um gesto político, uma mensagem para a posteridade, um exemplo que todos os brasileiros deveriam conhecer”, comenta Ligia. “Luiz Gama dissecou igualmente, em narrativas destinadas a comover o público, como funcionava a justiça para negros e a justiça para brancos. Enquanto nos jornais se anunciavam fugas e ‘crimes’ cometidos pelos escravizados, o jornalista que conheceu o cativeiro mostrava o outro lado da moeda, ou seja, o crime dos senhores que dispunham do corpo, da alma e da vida de seus escravos a seu bel-prazer.”

A leitura de seus escritos, segundo a professora, é de surpreendente atualidade. “Há 150 anos, denunciou o racismo institucional, pregando valores antirracistas pelos quais hoje boa parte do mundo inteiro se mobiliza”, afirma. Ligia acredita que, aos poucos, Luiz Gama começa a encontrar um lugar na historiografia literária e nas ideias jurídicas no Brasil. “Agora parece-me fundamental dar visibilidade à sua atuação num campo ao qual se dedicou com ardor e paixão, e estruturador de uma identidade profunda, e preencher, assim, uma lacuna na história da imprensa brasileira. É a contribuição que espera dar este novo livro, dedicado a Luiz Gama que, pouco depois de sua morte, foi saudado por seus pares como um trabalhador incansável do jornalismo.”

Lições de Resistência: Artigos de Luiz Gama na Imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro é uma referência para a reflexão dos movimentos contra o racismo que estão acontecendo em diversos países. Mas a sua publicação não previu estar no contexto da realidade atual.

“Foi uma coincidência o livro sair exatamente neste momento”, diz Ligia Ferreira. “Acredito que, se estivesse vivo hoje, o jornalista e ativista Luiz Gama estaria na linha de frente de movimentos como Vidas Negras Importam e Vidas Importam, da defesa dos direitos humanos e, como filho de uma ‘estrangeira’ que foi deportada, sua atenção se voltaria igualmente para a situação de imigrantes e refugiados no Brasil.”

Importante também destacar que o jornalista dedicou um cuidado especial ao trabalho e à honra das mulheres negras. “Certamente tocado pela lembrança da figura materna, o filho da quitandeira africana Luiza Mahin defendeu quitandeiras libertas que, expulsas do centro da cidade onde exerciam tradicionalmente seu ofício, reivindicavam o direito de para lá retornar e poder trabalhar.” Ligia conta que o advogado moveu processos para obter alforria de mulheres escravas que os senhores obrigavam a se prostituir.

Luiz Gama viveu em São Paulo por 42 anos, onde morreu no dia 24 de agosto de 1882. “Nenhuma situação irregular relativa à vida dos negros parece ter escapado a Luiz Gama. Membro da maçonaria, na qual teve posições de liderança, ele contou com a aliança de muitos companheiros brancos que, ao seu lado, abraçavam suas lutas e, juntos, pregavam os valores antirracistas.”

Ilustração publicada no livro Lições de Resistência – Foto: Reprodução

Lições de Resistência é prefaciado pelo historiador Luiz Felipe Alencastro. “É uma grande honra para mim, pois o professor Alencastro ocupava a cadeira de História do Brasil na Universidade de Paris 4, e nessa qualidade foi membro da banca de defesa de meu doutorado.”

Luiz Gama, como ele costumava comentar, deixa uma esperança no horizonte. “Cem anos antes de Martin Luther King, ele dizia ter um sonho sublime: as terras do Cruzeiro, sem reis e sem escravos”, afirma Ligia Fonseca Ferreira.

   

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Luis Gama, o maior abolicionista do Brasil - Ligia Fonseca Ferreira (Conjur)

"Lições de Resistência"

Obra de Luiz Gama é tão fascinante quanto a vida do abolicionista, diz pesquisadora

 

Nascido em 1830, de pai branco e mãe livre, foi vendido como escravo aos 10 anos de idade. Depois de se alforriar, aos 17 anos, aprendeu a ler e passou a estudar Direito por conta própria, frequentando a biblioteca e assistindo aulas no Largo São Francisco como ouvinte. Advogou pela libertação de mais de 500 escravos, sem cobrar honorários. Se sustentava trabalhando como jornalista. Aos 29, já era considerado "o maior abolicionista do Brasil", mas só recebeu o título de advogado 130 anos após sua morte.

A biografia de Luiz Gama, resumida acima, é conhecida. Mas um aspecto essencial da contribuição do intelectual parece ter sido relegado, injustamente, ao esquecimento: seu legado, a obra escrita que produziu em vida. É essa inquietação que motiva Ligia Fonseca Ferreira, professora de letras da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

"Sabemos que  Luiz Gama foi escravizado menino em Salvador, chegou em Santos, subiu a Serra do Mar até um mercado de escravos em Campinas e de lá foi para São Paulo. Ele mesmo contou, outros repetiram. Nos livros que organizei, procuro mostrar que a obra de Luiz Gama é tão importante quanto a sua vida. Ele foi um grande ativista, escritor e pensador, mas não teve seu devido registro na história da literatura, do abolicionismo, das ideias jurídicas e da imprensa."

Figura notável no século XIX e único intelectual negro brasileiro a ter sofrido a escravidão, o advogado, abolicionista e escritor, nascido em Salvador em 21/7/1830, valeu-se da imprensa como principal meio para difundir suas ideias. Publicou, com uma constância surpreendente, em jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro, tais como o Correio PaulistanoO Ipiranga, Radical Paulistano, A República, Gazeta da Tarde, Gazeta do Povo, entre outros. 

Ainda assim, diz Ligia, os escritos de Gama acabaram caindo no esquecimento. Pensando nisso, ela organizou o recém lançado Lições de resistência — Artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro (Edições Sesc, 2020).

"O que eu proponho é que o Luiz Gama seja lembrado como um ator importante do jornalismo. Em sua morte, foi saudado por seus pares como um 'trabalhador incansável do jornalismo'. Mas isso ficou apagado. Ele tem uma ampla produção, a escrita é algo de extrema relevância e está no cerne de sua vida profissional e atuação política. Sua atividade jornalística não era esporádica. O livro Lições de resistência pretende resgatar essa dimensão, além de trazer o pensamento do advogado apaixonado pela ciência do Direito", afirmou Ligia em entrevista concedida à ConJur por telefone. 

A obra é vendida pela Livraria ConJur (adquira clicando aqui). São mais de 40 textos inéditos, publicados entre 1864 e 1882, tendo como eixos temáticos a escravidão, a abolição, as ideias republicanas e os direitos humanos.

O livro dá continuidade a uma outra empreitada da professora. Em 2011 ela já havia organizado o Com a Palavra, Luiz Gama — Poemas, artigos, cartas, máximas  (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, R$ 55), obra que reúne vários textos e ilustrações inéditas. 

Confira os principais trechos da entrevista:

ConJur — Luiz Gama é geralmente lembrado pela pauta abolicionista. Como o tema aparece em sua obra e o que mais ele defendia?
Ligia Fonseca Ferreira —
 O abolicionismo era uma tema crucial e, no contexto daquela época, ser abolicionista para ele significava também ser republicano. Ou seja, para Luiz Gama, a pauta abolicionista acompanhava-se do combate ao regime imperial vigente na época. É preciso lembrar que ele foi uma figura proeminente das ideias republicanas. Naquele momento, o Brasil tinha uma posição singular como o único país das Américas que conservava uma monarquia e era escravocrata. A maioria dos países do continente, depois de independentes, proclamaram a república, sem necessariamente abolir a escravidão. 

Luiz Gama definia-se, nos jornais, como "extremo democrata", palavra que, naquele momento, era quase um sinônimo de republicano. Ele dizia ter "um sonho sublime" de um país "sem reis e sem escravos", que se chamasse Estados Unidos do Brasil, olhando para o modelo federativo do país norte-americano. A nação deveria se organizar politicamente, com estados federados, o que nós, bem ou mal, somos hoje. E o primeiro nome do nosso país, durante o regime republicano, foi "Estados Unidos do Brasil". Muitos historiadores afirmam ter sido Luiz Gama um dos primeiros a empregar essa expressão.

ConJur — Essas ideias eram bem aceitas?
Ligia Fonseca Ferreira —
 Essas ideias não eram só dele, mas sim de todo um grupo de abolicionistas e republicanos maçons de São Paulo. Um evento vai desferir um golpe fatal na monarquia e disseminar a ideia abolicionista: a Guerra do Paraguai [1864 a 1870] e o seu desfecho, que evidenciaram os limites do trabalho escravo e da condição dos africanos. A partir desse ponto começa a crise do regime imperial e do sistema escravista, que perdurariam por cerca de vinte anos até a Abolição e Proclamação da República. 

Enquanto isso, Luiz Gama desenterra uma lei de 7 de novembro de 1831, que declara livre todos os escravos vindos de fora do império e, teoricamente, impõe penas severas aos traficantes. Quando Gama relembra a vigência dessa lei, querendo fazer a previsão valer, ele balança as instituições do país e igualmente a moral pública. É preciso lembrar que, depois da lei de 1831, cerca de 700 mil africanos foram contrabandeados para Brasil. Basta fazer as contas de quantos, além destes e dos seus descendentes, sofreram, como diria Luiz Gama, "escravidão indébita".

ConJur — Há algo de curioso e de atual nos textos. Os artigos sobre liberdade de imprensa, por exemplo, poderiam facilmente ser publicados hoje. Luiz Gama também citava nominalmente os juízes que tentavam censurar jornais ou que proferiam decisões para ele ilegais. Isso gerava discussões nos jornais e no Judiciário e fazia com que Gama tivesse muitos inimigos?
Ligia Fonseca Ferreira —
 Gerava muito mais que discussões. Ele colocava o dedo em uma ferida imensa e chegou a ser processado e ameaçado. Não só tinha muitos inimigos como os nomeava, confrontava-se com eles por meio da imprensa. Teve, inclusive, uma briga pública com Rafael Tobias de Aguiar, filho da marquesa de Santos e de um dos homens mais ricos de São Paulo, o brigadeiro Tobias de Aguiar, que hoje dá nome à Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar). 

Luiz Gama expunha sentenças de que discordava, apontando erros cometidos por juízes. Em alguns casos, convidava seus leitores a se dirigirem à redação do Correio Paulistano, um dos principais jornais paulistanos no qual era colaborador assíduo, para verificarem com seus próprios olhos os despachos que, segundo ele, demonstravam a "maneira extravagante como se administra a justiça no Brasil".

Ele também denunciou em artigos as ameaças que recebia. No texto "Ao Público" (Correio Paulistano, 24 de setembro de 1870), diz: "Mais de uma vez amigos íntimos e importantes, residentes no interior da província, hão me dado aviso para acautelar-me, com segurança, contra planos de atentados sérios, projetados contra minha humilde pessoa". Há uma grande ironia no que ele escreve, algo que ainda hoje nos faz rir. Por que ameaçar uma "humilde" pessoa, que não faz nada de mais, a não ser atacar poderosos fazendeiros e proprietários de escravos? Ele também era muito corajoso, chamando os escravagistas de "salteadores" [assaltantes]. O que eles assaltavam? A liberdade de milhares de pessoas, os africanos e seus descendentes, que eram escravizadas ao arrepio da lei. 

ConJur — A senhora costuma dizer que enquanto jornalista, enquanto pensador que difundia suas ideias em jornais, Luiz Gama é mais reconhecido do que lembrado. O que isso significa?
Ligia Fonseca Ferreira —
 Que ele é muito citado, mas a sua obra é pouco conhecida. Sabemos que o abolicionista e ativista foi presença constante em importante órgãos de imprensa de sua época. Portanto, o que eu proponho é que o Luiz Gama seja igualmente lembrado como um ator importante do jornalismo. Ele se fez presente como colaborador do jornalismo e como notícia. Em sua morte, foi saudado por seus pares como um "trabalhador incansável do jornalismo". Mas isso ficou apagado. Ele tem uma ampla produção, a escrita é algo de extrema relevância e está no cerne de sua vida profissional e atuação política. Sua atividade jornalística não era esporádica. O livro Lições de resistência pretende resgatar essa dimensão, além de trazer o pensamento do advogado apaixonado pela ciência do Direito. 

ConJur — Luiz Gama, enquanto personagem, teve uma vida muito particular. Isso acabou por esconder sua obra? 
Ligia Fonseca Ferreira —
  Luiz Gama teve uma vida fabulosa. Ele foi escravizado, mas se tornou letrado, poeta, advogado e jornalista. Foi um abolicionista grandioso. Quase nunca perdia suas causas. Teve uma voz muito atuante e foi ouvido. Ele é filho da "africana livre" Luiza Mahin, hoje um ícone do feminismo negro no Brasil. Foi vendido pelo próprio pai, mas conseguiu libertar-se e, mais do que isso, ter as "provas" judiciais, seguramente, de ter nascido livre. Isso tudo é grandioso. 

No entanto, não devemos nos fascinar pela biografia de Luiz Gama a ponto de esquecermos a sua obra, o que ele escreveu, como, com que intenção. O Luiz Gama era sobretudo um advogado, se anunciava na imprensa. Em paralelo, o ativismo abolicionista e republicano se dá nas páginas dos jornais, o que colaborou para que se tornasse uma figura popularíssima na capital paulista. 

O que as pessoas sabem, por exemplo, sobre a vida do Machado de Assis? Ele teve filhos, teve esposa? Quem eram seus pais? Não se sabe muito sobre ele. O que a gente conhece do Machado de Assis é a sua obra.

No caso do Luiz Gama é o inverso. Todo mundo diz que a vida dele daria um filme, uma minissérie. E daria, até levando em conta todos esses fatos incríveis que mencionamos, da mãe africana que participou de insurreições de escravizados em Salvador, foi presa, possivelmente deportada; do pai, um homem branco que o vendeu, e também teria participado da Sabinada, revolta importante na Bahia em 1837. Sabemos que  Luiz Gama foi escravizado menino em Salvador, chegou em Santos, subiu a Serra do Mar até um mercado de escravos em Campinas e de lá para São Paulo. Ele mesmo contou, outros repetiram. Nos livros que organizei, procuro mostrar que a obra do Luiz Gama é tão importante quanto a sua vida. Ele foi um grande ativista, escritor e pensador, mas não teve seu devido registro na história da literatura, do abolicionismo, das ideias jurídicas e da imprensa.

Luiz Gama tinha um projeto de vida, de cunho humanista, voltado para a defesa do direito dos escravizados e pelas liberdades democráticas. O título do livro foi retirado de um de seus artigos e bem resume sua dedicação à causa dos escravizados e a obsessão por uma justiça que atuasse de forma idônea: "Se algum dia [...] os respeitáveis juízes do Brasil esquecidos do respeito que devem à lei, e dos imprescindíveis deveres, que contraíram perante a moral e a nação, corrompidos pela venalidade ou pela ação deletéria do poder, abandonando a causa sacrossanta do direito, e, por uma inexplicável aberração, faltarem com a devida justiça aos infelizes que sofrem escravidão indébita, eu, por minha própria conta, sem impetrar o auxílio de pessoa alguma, e sob minha única responsabilidade, aconselharei e promoverei, não a insurreição, que é um crime, mas a 'resistência', que é uma virtude cívica."

Prêmios, homenagens nos aniversários de nascimento e de morte, medalhas com seu nome são importantes, mas apenas reforçam a necessidade de ser lido e estudado por profissionais e estudantes de direito, de letras, de história, de jornalismo. 

ConJur — Antes de seus livros, quase todo o pensamento de Luiz Gama estava em jornais. Isso explica o desconhecimento a respeito da obra?
Ligia Fonseca Ferreira —
 Talvez a dificuldade para se ter acesso aos jornais explique um pouco esse desconhecimento. Mas também não houve muita preocupação em se resolver isso.

ConJur - A senhora organizou, em 2011, um outro livro, o Com a palavra Luiz Gama, uma antologia contendo, entre outros, cerca de 19 artigos jornalísticos inéditos. Agora, com Lições da resistência, são mais de 40 artigos inéditos publicados na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro, além de outros tantos pouco conhecidos. Como foi o trabalho para encontrar esse material?
Ligia Fonseca Ferreira — Boa parte da consulta foi feita na hemeroteca [acervo de periódicos] digital da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Esse material só ficou disponível em 2012. Antes disso, para o livro de 2011, eu buscava documentos em arquivos físicos, o que gerava um problema: às vezes você encontra o jornal, outras não, as coleções nem sempre eram completas. Às vezes o jornal está lá, mas ele não pode ser manipulado. Isso aconteceu, por exemplo, com a Gazeta do Povo, jornal que publicou muitos textos de Luiz Gama. Uma coisa que eu não tinha visualizado inicialmente era que grande parte do que saía na Gazeta do Povo, a partir de 1880, era posteriormente publicado na Gazeta da Tarde, importante folha abolicionista do Rio de Janeiro. Foi, portanto, mais fácil agora localizar os textos publicados no Rio com a busca na hemeroteca da Biblioteca Nacional. 

Mas, saindo um pouco da pergunta, descobri algo interessante. Havia anúncios frequentes do Luiz Gama advogado, oferecendo seus préstimos, dando o endereço de sua banca. Ele anunciava os seus serviços na Gazeta do Povo, em geral na primeira página e na primeira coluna, onde também anunciavam outros advogados. Então, é curioso observar que sua presença — como colaborador, como notícia, e também como anunciante — era constante nas páginas de diversos órgãos da imprensa.