Demétrio Magnoli
Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Dez perguntas para dois chanceleres
Proponho questões para esclarecer a posição oficial do Brasil sobre a invasão russa
Lula tem dois chanceleres: Mauro Vieira, que comanda o Itamaraty, e Celso Amorim, assessor presidencial. O primeiro representa a política institucional, que definiu o voto brasileiro na resolução da ONU exigindo a retirada das forças russas de ocupação da Ucrânia. O segundo representa a política ideológica, lulista e petista, que renegou aquele voto.
Proponho dez perguntas a eles, destinadas a esclarecer a posição oficial do Brasil sobre a invasão russa:
1) A Carta da ONU e a Constituição brasileira consagram os princípios da soberania nacional e do respeito à integridade territorial das nações. É nesses princípios que o Brasil apoia sua pretensão de ajudar a mediar negociações entre Rússia e Ucrânia?
2) O encontro de Amorim com Putin, em Moscou, seguido pelas declarações de Lula na visita à China e pela recepção de Serguei Lavrov em Brasília, paralelamente à ausência de visitas à Ucrânia, indicam que o Brasil escolheu o lado russo. Ou existe explicação diferente para o desequilíbrio diplomático?
3) O Tribunal Penal Internacional (TPI), do qual o Brasil participa, emitiu ordem de prisão contra Vladimir Putin, pelo crime de deportação forçada de crianças ucranianas para a Rússia. O Itamaraty não se pronunciou sobre o tema e Amorim visitou Putin pouco depois do gesto do TPI. O governo brasileiro decidiu ignorar o TPI?
4) Lavrov declarou, em Brasília, que Rússia e Brasil compartilham "posição similar" sobre a "gênese" da guerra na Ucrânia. Lula afirmou, repetidamente, que a raiz da invasão russa é o alargamento da Otan –e, ainda, que os EUA e seus aliados europeus estimulam a continuidade da guerra. Deve-se concluir disso que, de fato, o governo brasileiro concorda com a declaração do chanceler russo?
5) Segundo Lula, a responsabilidade pela guerra cabe, igualmente, a Putin e Zelenski. O governo brasileiro não distingue o país agressor do país agredido, o invasor do invadido?
6) A Casa Branca classificou as afirmações de Lula como um alinhamento com a propaganda de guerra russa. Vieira reagiu, negando a interpretação do governo dos EUA –mas não negou a veracidade da declaração de Lavrov sobre a similaridade entre as visões russa e brasileira. Quem cala consente?
7) Tradicionalmente, Amorim abusa do conceito de soberania, usando-o para evitar qualquer crítica a ditadores amigos que violam os direitos humanos. Contudo, nega solidariedade à nação cuja soberania é destruída por uma guerra de agressão destinada a promover anexações territoriais. Na política externa do governo, soberania é um princípio com validade geral ou mero álibi utilizado para justificar alinhamentos ideológicos?
8) A Crimeia é território ucraniano internacionalmente reconhecido. A própria Rússia reconheceu as fronteiras ucranianas em tratado firmado em 1994 –pelo qual, aliás, a Ucrânia entregou suas armas nucleares à Rússia. Com que direito Lula sugere a cessão da Crimeia à Rússia como condição para futuras e hipotéticas negociações de paz?
9) A Carta da ONU suporta o princípio da "autodefesa coletiva", isto é, o direito de fornecer ajuda bélica a nações que resistem a uma invasão não provocada. Sem auxílio militar ocidental, a Ucrânia já não existiria como Estado independente. A "paz" pela rendição –é isso que deseja o governo ao criticar tal auxílio?
10) No seu pronunciamento sobre o diálogo com Lavrov, Vieira mencionou as "preocupações securitárias" russas e ucranianas mas não se referiu às anexações territoriais russas ou à soberania ucraniana. Lula pretende realmente ser aceito pela Ucrânia como mediador de negociações de paz ou simplesmente invoca a palavra paz para legitimar as narrativas imperiais russas?
O jornalismo adulatório faz, no máximo, as indagações fáceis. Haverá, ainda, jornalistas dispostos a confrontar os dois chanceleres com as perguntas difíceis?