O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

Meu Twitter: https://twitter.com/PauloAlmeida53

Facebook: https://www.facebook.com/paulobooks

Mostrando postagens com marcador Fernando Pessoa. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Fernando Pessoa. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Fernando Pessoa (ou seria Ricardo Reis, ou Alberto Caieiro?) sobre a vida...

Recebido do grande amigo Mauricio David:

Tenho tanto sentimento
 Fernando Pessoa
 
Tenho tanto sentimento
Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.

Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é a verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.

=========
Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Fernando Pessoa: Tabacaria

Grato ao Maurício David, por esta transcrição

Tabacaria
 Fernando Pessoa:
 

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo.
que ninguém sabe quem é
( E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes
e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.

sábado, 6 de outubro de 2012

Pausa para... Fernando Pessoa (na tabacaria...)

Tabacaria
Fernando Pessoa

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...

Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.

Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

Álvaro de Campos, 15-1-1928

sexta-feira, 27 de maio de 2011

A frase do dia: Fernando Pessoa

Agradeço à Mariana Corá por ter me dado a oportunidade de conhecer esta frase do poeta inefável... (seja lá o que isso queira dizer).

"Tenho uma espécie de dever de sonhar sempre, pois não sendo mais que um espectador de mim mesmo, tenho que ter o melhor espetáculo que posso."

Fernando Pessoa

segunda-feira, 25 de abril de 2011

O poeta enterra a Coca-Cola (ou quase): Fernando Pessoa

Nem sempre poetas são bons publicitários. Fernando Pessoa, por exemplo, foi um desastre para a Coca-Cola...
Descubram...

Fernando Pessoa, empregado de escritório
Por Adelto Gonçalves, de Santos, São Paulo
Via Política, 17/04/2011

Fernando Pessoa, de Almada Negreiros
Canonizado no altar dos pais da pátria portuguesa, em vida ninguém dedicou muita atenção a ele. Mas como era o poeta além do mundo das letras? Como agia e pensava no campo dos negócios para ganhar a vida? Uma obra recém lançada na Itália trata de responder a estas questões sobre Fernando Pessoa.

I

Em janeiro de 1926, aos 38 anos de idade, com alguma experiência no campo econômico e comercial, o poeta Fernando Pessoa (1888-1935) entendeu que tinha conhecimentos suficientes para editar uma publicação mensal ligada a esses dois setores, a Revista de Comércio e Contabilidade, que fundou em Lisboa em parceria com seu cunhado Francisco Caetano Dias.

Mas, olhando sem parti pris, o currículo que o poeta carregava era o de empreendedor desastrado e de empregado de escritório, um guarda-livros, tal como o seu heterônimo Bernardo Soares, que, se experiência tinha, seria só para ensinar a arte do trabalho contábil. Na verdade, Pessoa ganhava a vida mais como tradutor de inglês para o português, o que lhe permitia desempenhar a atividade para várias casas comerciais, aproveitando-se da larga dependência de Portugal em relação à Inglaterra.

Como empreendedor, de fato, nunca teve êxito: a própria publicação dedicada ao comércio e à contabilidade teria vida efêmera, apenas seis números, assim como a editora e tipografia Íbis, que, instalada em 1907 no bairro da Glória, mal chegou a funcionar. Em 1921, fundou a Editora Olisipo, de ruinosa carreira comercial. Nela publicou os seus English Poems I e II e English Poems III, e A invenção do dia claro, de Almada Negreiros (1893-1970). Em 1923, a Olisipo lançou o folheto Sodoma divinizada, de Raul Leal (1886-1964), que foi alvo de um ataque moralizador da Liga dos Estudantes de Lisboa e apreendido por ordem do governo, junto com as Canções, de António Botto (1897-1959).

Pela Olisipo, Pessoa pretendia lançar uma série de livros importantes – a maioria traduzidos (ou com tradução prevista) por ele mesmo, talvez para evitar maiores custos. Na acanhada Lisboa de sua época, com meia dúzia de livrarias e editoras, esse também não seria um ramo muito promissor para quem não dispunha de maiores recursos para empreendimentos mais ousados num mercado restrito. E já ocupado por algumas casas tradicionais, que se acotovelavam no Chiado e na Baixa.

Levando em conta, porém, a boa formação que Pessoa recebera na África do Sul, de 1896 a 1905, seria de esperar que tivesse tido uma carreira profissional de maior sucesso – a vida que podia ter sido, e que não foi, como diria o poeta Manuel Bandeira (1886-1968) –, e não a obscura vida de empregado de escritório, o que lhe permitiu apenas viver em quartinhos em casas de familiares ou alugados na rua da Glória, no largo do Carmo, nas ruas Passos Manuel, Pascoal de Melo, D. Estefania e Almirante Barroso, entre outros locais, até que se transferiu de vez para a casa da família na rua Coelho da Rocha, 16, onde viveu os últimos 15 anos de sua vida e hoje está a fundação que leva o seu nome.

Para aqueles que hoje medem a importância de um homem pelo saldo de sua conta bancária, decididamente, Fernando Pessoa não teria sido alguém que pudesse dar lições de empreendedorismo ou organização comercial. Nem mesmo ânimo – ou, quem sabe, maiores recursos financeiros – teve para estudar na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, quando retornou de sua temporada africana, como pretendia. Talvez tivesse tido uma boa carreira como professor, se houvesse primeiro superado a timidez, o que nunca fez.

Fernando Pessoa, de Almada Negreiros


Ao passar os anos de sua formação em Durban, na África do Sul, à época colônia britânica, em companhia da mãe e do padrasto, o jovem Pessoa teve a oportunidade de estudar na Convent School, uma escola privada (liceu) e, depois, na Commercial Schoool, de 1902 a 1903, e na Durban High School, sob a orientação de Mr. W.H. Nicholas, homem de personalidade notável que, possivelmente, serviu de modelo para o seu heterônimo Ricardo Reis.

Na Durban High School, fez um curso de contabilidade e comércio, depois de ter sido um aluno brilhante no liceu nas disciplinas de Humanidades, como se pode constatar no livro Fernando Pessoa na África do Sul: a formação inglesa de Fernando Pessoa, de Alexandre E. Severino (Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1983). Se a sua educação havia sido essencialmente humanista até àquela altura, o que o teria levado à mudança tão brusca? Provavelmente, porque sua família entendia que um curso comercial lhe daria conhecimentos mais práticos para ganhar a vida. Até porque na colônia britânica não havia, àquela altura, escolas superiores, o que se deu só a partir de 1918. Se quisesse (e pudesse), teria de fazer o curso superior em Londres.

II

Fosse como fosse, foi em seu arsenal de conhecimentos comerciais que Fernando Pessoa se baseou quando decidiu escrever textos para a Revista de Comércio e Contabilidade. São textos um tanto ingênuos, do ponto de vista comercial, que incluem uma visão do mundo da publicidade, mas que trazem a marca inconfundível do literato que os produziu. Tanto que levou o ficcionista, poeta e jornalista português António Mega Ferreira, ex-editor do Jornal de Letras, a recolhê-los em Fernando Pessoa em O comércio e a publicidade (Lisboa, Cinevoz/Lusomedia, 1986).

São estes textos que agora ganham versão em italiano em Fernando Pessoa: Economia & commercio: impresa, monopólio, libertà (Perugia, Edizioni dell´Urogallo, 2011), traduzidos pelo professor Brunello De Cusatis, da Faculdade de Letras e Filosofia da Universidade de Perugia, autor de uma esclarecedora introdução. O volume inclui ainda o iluminado ensaio-posfácio “O evolucionismo comercial de Fernando Pessoa”, do poeta, tradutor e ensaísta Alfredo Margarido (1928-2010), recentemente falecido, a cuja memória o livro é dedicado.

Tudo o que se disse linhas acima se pode constatar neste trecho: “Um comerciante, qualquer que seja, não é mais do que um servidor do público, ou de um público; e recebe uma paga, a que chama o seu “lucro”, pela prestação desse serviço. Ora toda gente que serve deve, parece-nos, buscar a agradar a quem serve. Para isso é preciso estudar a quem se serve (...); partindo não do princípio de que os outros pensam como nós, ou devem pensar como nós (...), mas do princípio de que, se queremos servir os outros (para lucrar com isso ou não), nós é que devemos pensar como eles” (FERREIRA, 1986, p. 46).

Pode-se a partir deste texto concluir que Pessoa pensava um pouco longe para o seu tempo. Afinal, naqueles anos em que a publicidade ainda começava a se impor, poucos fabricantes levavam em conta pesquisa de mercado antes de lançar qualquer produto. Funcionavam como senhores todo-poderosos que seguiam só a própria intuição e gosto – o público que tratasse de consumir o que ofereciam. Até porque a concorrência era mínima. E Pessoa já advogava que se devia consultar o gosto do consumidor antes de colocar qualquer novidade no mercado. Era um pensamento revolucionário.

III

Foi a partir de 1925 que Pessoa passou a trabalhar também na área de publicidade e propaganda, ao conhecer Manuel Martins da Hora, que seria o fundador da Empresa Nacional de Publicidade, a primeira agência de publicidade de Portugal. Mas a experiência não foi bem sucedida, como lembra De Cusatis na introdução. Foi por volta de 1926-1927 que o poeta imaginou um slogan para a Coca-Cola, que então estava sendo lançada em Portugal, representada pela firma Moitinho d´Almeida Lda., empresa para a qual o poeta prestou serviços como profissional autônomo.

O slogan dizia: “Primeiro estranha-se. Depois entranha-se”. Há um jogo de palavras que se pode chamar de inventivo ou genial, mas, por trás, havia certa sugestão que hoje nem mesmo um publicitário muito ousado seria capaz de formular, ainda mais pensando nas conveniências de seu cliente. Em outras palavras: o que se queria dizer com aquilo é que, primeiro, a bebida teria um gosto um tanto estranho para a época, mas que, depois, com a continuidade, poderia oferecer certo êxtase, obviamente em função de sua toxicidade.

O resultado foi óbvio: não durou muito para que a autoridade sanitária de Lisboa proibisse a distribuição do produto e determinasse o seu sequestro. Convenhamos: do ponto de vista comercial, foi um desastre. A tal ponto aquilo ficou marcado que a Coca-Cola só haveria de voltar ao mercado português quase meio século depois, ao final da ditadura fascista (1928-1974), cujo grande ícone foi o professor António de Oliveira Salazar (1889-1970).

Olhando com olhos comerciais, o slogan só poderia ter saído da cabeça de um inconsequente. Só mesmo um nefelibata seria capaz de imaginar que aquilo não poderia trazer consequências funestas para seu cliente, ainda mais na sociedade portuguesa de então em que as forças do fascismo começavam a cobrir a nação com suas asas funéreas. Isso não significa dizer que o slogan não tenha qualidades.

Pelo contrário. Preenche todos os requisitos modernos que se exigem de um bom slogan publicitário. Tanto que, recentemente, em Portugal, por ocasião do lançamento do Frize, uma água limão-cola, o slogan foi recriado para: “Primeiro prova-se; depois aprova-se”, como observou Andréia Galhardo, da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Fernando Pessoa (UFP), do Porto, no artigo “Sobre as práticas e reflexões publicitárias de Fernando Pessoa”.

IV

É claro que, ao que se saiba, até hoje, ninguém escreveu isto com todas as letras, até porque Pessoa foi canonizado e entronizado no altar dos pais da pátria portuguesa, ainda que, em vida, nunca ninguém lhe tenha dado muita importância. Até para publicar seus versos sempre encontrou dificuldades, o que o levou a acumular seus escritos numa arca, que foi o inestimável espólio que legou à Literatura Portuguesa.

Mas, seja como for, Pessoa não pode ser tomado como gênio das finanças ou da publicidade - até porque, nestes dois campos de negócios, a genialidade está diretamente ligada à capacidade de fazer os clientes obterem lucros e, obviamente, também lucrar muito com eles. Nem por isso se pode deixar de reconhecer em Pessoa, depois da leitura destes textos didáticos, um funcionário de boa formação comercial e econômica, mas daí a imaginá-lo um mago das finanças ou do mercado é ir além da conta.

Não se pode deixar de assinalar também que Pessoa sempre foi um antidemocrata pagão, antiliberal e anticatólico, mais propenso a aceitar as ideias da maçonaria, o que fez no artigo “As Associações Secretas: análise serena e minuciosa a um projeto de lei apresentado ao Parlamento", publicado em 1935 no Diário de Lisboa, e de certo esoterismo, características que De Cusatis ressaltou com sagacidade em Esoterismo, mitogenia e realismo político em Fernando Pessoa. Uma visão de conjunto (Porto, Edições Caixotim, 2005).

Era um homem um tanto contraditório, uma alma angustiada, o que, provavelmente, o levou à dependência alcoólica. Mas era, sobretudo, um excepcional poeta. Educado em escolas que seguiam as mais puras tradições britânicas, se tivesse ido para Londres, em 1905, em vez de Lisboa, como era de sua pretensão, para tornar-se um poeta inglês, é de imaginar que teria tido melhor sorte na vida, mas aqui de novo adentramos o perigoso terreno do imponderável: a vida que podia ter sido, e que não foi...

17/4/2011
Fonte: ViaPolítica/o autor

ECONOMIA & COMMERCIO: IMPRESA, MONOPOLIO, LIBERTÁ, de Fernando Pessoa. Introdução, tradução e notas de Brunello De Cusatis, com posfácio de Alfredo Margarido. Perugia: Edizioni dell´Urogallo, 286 págs., 2011, 18 euros.
Site: www.urogallo.eu

Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003).
E-mail

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Pausa para uma Pessoa, na verdade um poeta, ou melhor, muitos...

Fernando Pessoa era uma pessoa complicada, a começar que não era uma só pessoa, mas várias, múltiplas, diversas, todas poetas, algumas sonhadoras, outras burocráticas, outras, enfim, quaisquer pessoas, sempre produtoras de ideias e conceitos, todos muito bem escritos.
Saiu uma biografia do poeta, e a Veja fez uma matéria, da qual reproduzo um trecho.

A solitária multidão de um só Pessoa
Reinaldo Azevedo
Revista Veja, 16/04/2011

Na VEJA desta semana, escrevo uma resenha do livro “Fernando Pessoa - Uma Quase Autobiografia”, escrito pelo brasileiro José Paulo Cavalcanti Filho e publicado pela Editora Record. Segue um trecho no texto. A íntegra vai na revista.

O poeta português Fernando Pessoa (1888-1935), que recusara uma cátedra de literatura inglesa em Coimbra, ganhava a vida traduzindo correspondência comercial para o inglês e o francês. Em 1928, a empresa em que trabalhava havia importado coca-cola e lhe encomendou o slogan de lançamento da bebida. Nos EUA, vendia-se “a pausa que refresca”. Ele tentou o que lhe pareceu menos frívolo: “Primeiro estranha-se; depois entranha-se”. Um dos maiores poetas da história ajudou a produzir um desastre comercial. A ditadura de Antônio Salazar, com a qual ele flertara, desancando-a depois, proibiu a venda. “Entranha-se?” Então é alucinógeno! A coca-cola só voltou ao país em 1977! Pessoa criou ainda um texto de inspiração metafísica para vender tinta para automóveis. Fiasco. “A vida prática sempre me pareceu o menos incômodo dos suicídios”, escreveu.

Essa é uma das histórias de “Fernando Pessoa - Uma Quase Autobiografia”, do escritor pernambucano José Paulo Cavalcanti Filho. Trata-se de um calhamaço de 734 páginas, de leitura agradável e fluente. É a mais completa e detalhada reconstituição que jamais se fez da vida do autor, talvez o poeta mais citado da língua portuguesa por aquilo que quase escreveu — “Tudo vale a pena quando a alma não é pequena” — e por aquilo que não escreveu: “Navegar é preciso, viver não é preciso”. No primeiro caso, é “se”, não “quando”. A segunda fala não é sua, mas do general romano Pompeu. Pessoa apenas a citou para criar a sua própria divisa: “Viver não é necessário; o que é necessário é criar.”

Grandeza e banalidade, ambições desmedidas e frustrações mortificantes, paixões visionárias e dificuldades para pagar as contas de uma existência modestíssima, tudo está relatado com rigor e obsessão documental, em especial o romance de muitos beijos e cartas, mas nenhum sexo, com Ophelia Queiroz. A moça teve de disputá-lo com os heterônimos, as personalidades poéticas em que escrevia. Incluindo os relativamente conhecidos Álvaro de Campos, Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Bernardo Soares e o próprio Pessoa, eram 127. Estudioso da astrologia, do ocultismo e do espiritismo, chegou a atribuir os seus escritos à mediunidade, embora considerasse que “o misticismo é apenas a forma mais complexa de ser efeminado e decadente”.

A solitária multidão de um só Pessoa criou um marco insuperado, talvez insuperável, na literatura de língua portuguesa ou, mais amplamente, na literatura moderna. No ensaio “O que é um clássico?”, o poeta e crítico inglês T.S. Eliot afirma que o latino Virgílio (70 a.C-19 a.C.) era o único a merecer essa classificação porque foi a expressão da maturidade de uma cultura. Não basta ter talento; é preciso representar a consolidação de um anseio coletivo. O clássico não é só um gênio no uso da língua, mas encarna o próprio gênio da língua. Nesse particular ao menos, Pessoa foi o Virgílio Português — o heterônimo Álvaro de Campos, a propósito, nasceu no dia 15 de outubro, data do aniversário do poeta latino. Experimentaram, no entanto, uma diferença de perspectiva. O autor de Eneida produziu para um império triunfante; Pessoa vive o esplendor da decadência portuguesa — e isso, curiosamente, o torna verdadeiramente grande:
“Ah, quanto mais ao povo a alma falta/
Mais a minha alma atlântica se exalta (…)”