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segunda-feira, 18 de abril de 2011
Histoire des Relations Internationales - Pierre Renouvin (3 volumes, 1994)
Transcrevo aqui, sem qualquer revisão ou adição, por se encontrar pouco disponível atualmente.
Paulo Roberto de Almeida
Contribuições à História Diplomática
Pierre Renouvin, ou a aspiração do total
Paulo Roberto de Almeida
Pierre RENOUVIN (ed):
Histoire des Relations Internationales
Nova edição, em 3 volumes
Apresentação do Prof. René Girault, Paris I
(Presidente do “Institut Pierre-Renouvin”)
Paris: Hachette, 1994
Volume I: Du Moyen Âge à 1789 (xxviii + 876 pp.)
Volume II: De 1789 à 1871 (706 pp.)
Volume III: De 1871 à 1945 (998 pp.)
A reedição, agora em três volumes de capa dura, da monumental coleção organizada na década de 50 por Pierre Renouvin é uma grande notícia para todos os estudiosos que, por simples curiosidade intelectual ou por obrigação professional, interessam-se ou são levados a ocupar-se da temática das relações internacionais. Com efeito, todos aqueles que se dedicam à pesquisa, ao ensino ou à mera leitura diletante nessa área, sempre souberam apreciar a riqueza analítica e fatual, a qualidade estilística, bem como a abundante aparelhagem bibliográfica e cartográfica dos oito volumes (encadernados nas edições precedentes) coordenados pelo grande mestre francês da história diplomática global.
Desde essa época, os oito tomos sequenciais – por quatro autores – da Histoire des Relations Internationales (publicados pela mesma editora entre 1953 e 1958) foram motivo de leitura obrigatória e objeto de referência indispensável de todo e qualquer estudioso das relações internacionais, de modo geral, e das políticas exteriores dos Estados modernos em particular, sobretudo a partir de uma perspectiva européia. Reeditados pela última vez em 1972, eles tinham se tornado praticamente inacessíveis, sobretudo do outro lado do Atlântico, constituindo-se em verdadeiras preciosidades de bibliófilos e colecionadores. Junto com outros trabalhos de história diplomática do mesmo mestre, falecido em 1974, assim como de Jean-Baptiste Duroselle, seu discípulo e sucessor na Sorbonne, essa obra coletiva (mas concebida por Renouvin em torno de 1950) marcou época na então nascente disciplina das relações internacionais e constitui, ainda hoje, um marco da pesquisa histórica, mesmo se aparentemente influenciada por uma “visão francesa” da política externa dos Estados.
Quarenta anos depois de seu lançamento original e tendo em conta não só a multiplicação de estudos nesse campo, mas também a diversidade de abordagens e o acesso ampliado a determinadas fontes documentais, como se sustenta o trabalho coordenado por Pierre Renouvin ?
Uma Totalgeschichte
O que distingue, antes de mais nada, os textos de François-L. Ganshof, Gaston Zeller, André Fugier e do próprio Pierre Renouvin é uma vontade de ultrapassar os limites da história política tradicional, na qual se comprazia ainda grande parte da história diplomática elaborada nas universidades e academias do velho mundo. Estamos bem longe da chamada histoire historisante, aquela feita de homens brilhantes e de momentos solenes, que aliás estava sendo cruelmente “massacrada” pelos partidários da histoire structurelle agrupados em torno da revista Annales, fundada nos final dos anos 20 por Lucien Febvre e Marc Bloch e retomada depois da guerra por Fernand Braudel.
Trabalhando de forma independente ou paralelamente aos esforços desses renovadores, Pierre Renouvin, recusando-se a deixar levar unicamente pelos documentos revelados pelos arquivos diplomáticos, decide desde muito cedo colocar sua produção sob o signo da “história global”. Na verdade, antes mesmo de vários representantes da école des Annales (com a qual ele nunca foi formalmente identificado, provavelmente por trabalhar num setor mais restrito), Renouvin já mantinha uma preocupação primordial com a história “totalisante”, ou seja, com uma pesquisa extremamente diversificada, capaz de integrar de forma harmônica os resultados e métodos das diversas áreas da disciplina.
Desde princípios dos anos 30, como explica o Prof. René Girault em sua apresentação à esta nova edição do Histoire des Relations Internationales, Renouvin sublinha o caráter relativo dos arquivos diplomáticos e faz apelo às “forças” morais e materiais que agitam o mundo, convertidas vinte anos depois em “forças profundas” (Volume I, p. vi). Consciente de que a análise dessas “forças profundas” levariam o seu trabalho um pouco além dos limites estritos da disciplina à qual iria dedicar toda sua vida, o próprio Renouvin diz nas conclusões gerais de sua obra: “A história das relações internacionais é (...) inseparável da história das civilizações” (Volume III, p. 913). Na mesma época, aliás, Maurice Crouzet dirigia os muitos volumes da Histoire Générale des Civilisations, vasto empreendimento editorial que serviria de inspiração para Sérgio Buarque de Holanda propor entre nós uma História Geral da Civilização Brasileira.
Abrindo o empreendimento, em princípios dos anos 50, Renouvin afirmava que a obra então iniciada não era um “grande manual” de história da política internacional, mas pretendia ser un essai de synthèse (Volume I, p. 7). Deve-se reconhecer que ela realizou plenamente seu objetivo, tendo sido completada, dez anos depois, por outra obra de síntese metodológica, escrita em colaboração com Jean-Baptiste Duroselle, Introduction à l’histoire des relations internationales (Paris: Armand Colin, 1964).
As bases da história global
O conceito que mais popularizou a obra de Pierre Renouvin é, sem dúvida alguma, o de “forças profundas”. No vasto e ambicioso panorama traçado pelo historiador francês, não são apenas os Estados que estão em causa, mas também os povos e os interesses dos agentes econômicos, enfim o conjunto das circunstâncias históricas em um momento dado. Ao introduzir o primeiro volume de sua monumental série de história das relações internacionais, assim se exprimiu o historiador francês:
“Nós tentamos, portanto, ‘situar’ as relações internacionais no quadro da história geral – história econômica e social, história das idéias e das instituições. Papel das condições geográficas, dos interesses econômicos ou financeiros e da técnica dos armamentos, das estruturas sociais, dos movimentos demográficos; impulsão dada pelas grandes correntes de pensamento e pelas forças religiosas; influências exercidas pelo comportamento de um povo, seu temperamento, sua coesão moral: estes são os pontos de vista que nós sempre tivemos em mente. Nós não negligenciamos, contudo, o papel dos homens de governo que foram, de forma mais ou menos consciente, influenciados por essas forças, ou que tentaram controlá-las e que por vezes o conseguiram; mas sua ação pessoal nos interessa sobretudo na medida em que ela modifica o curso das relações internacionais. Nós também achamos necessário estudar as condições do trabalho diplomático onde esse estudo (é o caso da Idade Média) jamais tinha sido empreendido. (...) Mas, nós não quisemos que esta busca de explicações estivesse destacada do estudo dos fatos... Era indispensável colocar na base de nosso relato o ‘quadro fatual’ [‘cadre événementiel’], retraçando en conseqüência o desenvolvimento das rivalidades e dos conflitos e mostrando sua trama. Estudar as influências que se exercem sobre as relações internacionais deixando de lado o conjunto de circunstâncias de um momento ou de uma época, seria falsear a perspectiva histórica” (Volume I, p. 12).
Esse método, que tinha sido traçado por Pierre Renouvin antes mesmo de conceber sua coleção mais famosa, seria seguido à risca no desenvolvimento dos diversos textos que se ocuparam das relações entre os Estados e da evolução do sistema internacional desde a Idade Média até 1945. Com efeito, como se encarrega de lembrar Girault, desde 1931 Renouvin buscava escapar ao ponto de vista “trop étroit” da documentação diplomática. Apresentando na Revue historique um balanço dos trabalhos de uma comissão sobre a história da guerra de 14-18 que ele integrava, dizia o professor de história diplomática da Sorbonne:
“Despachos, notas, telegramas nos permitem perceber os atos; é mais raro que eles permitam entrever as intenções dos homens de Estado, mais raro ainda que eles tragam o reflexo das forças que agitam o mundo: movimentos nacionais, interesses econômicos. Não porque os agentes diplomáticos negligenciem inteiramente essas essas forças morais e materiais; mas, eles têm tendência a atribuir maior importância à atitude das chancelarias e dos ministros, a analisar a influência do fator pessoal. É em corrigir esse erro de ótica que os historiadores poderão e deverão se aplicar” (“La publication des documents diplomatiques français, 1871-1914”, Revue historique, tome CLXVI, 1931, p. 10; citado na Apresentação do Prof. René Girault, Volume I, p. v).
Vinte anos mais tarde, na introdução geral do Histoire des Relations Internationales, Renouvin confirmaria essa recusa do curto prazo e sua visão mais ampla do processo histórico:
“Não é portanto o objeto da história diplomática que está aberto a contestações; é o seu método, tal como o praticam muito frequentemente seus adeptos. (...) Ora, as instruções [das chancelarias] se aplicam muitas vezes a nada dizer de essencial, e os relatórios, que dão informações dia a dia, omitem também frequentemente a busca das causas: mesmo no século XIX, a correspondência de muitos embaixadores atribui apenas uma função restrita, muitas vezes derrisória, às questões econômicas e ao problema das nacionalidades – a todas as ‘forças profundas’ – porque, para o diplomata de então, a ‘grande política’ plana muito acima dessas contingências” (Volume I, p. 10).
Ele não pretende, no entanto, descartar o estudo do papel dos homens de Estado – retendo apenas os “movimentos profundos” da história econômica e social, ao estilo da “história estrutural” – mas, tão somente, recolocá-lo numa perspectiva mais ampla: “na origem desses conflitos, as condições econômicas desempenharam o seu papel; mas, a crise só apareceu quando as paixões entraram em jogo” (Idem, p. 11). Em todos os seus cursos dados na Sorbonne (na qual ele se aposenta em 1964) ou alhures, Renouvin dava a seus alunos uma orientação ilustrada por notas deste tipo: “Nunca fazer unicamente história diplomática, mas procurar ver o pano de fundo ec. financ. pol. int., em seus diversos aspectos, preocupações pessoais H. de Estado, estado dos armamentos e estado op. pública” (segundo papéis de curso depositados no Institut Pierre Renouvin, citados na Apresentação do Prof. René Girault, op. cit., p. vii).
Os historiadores engajados e a divisão intelectual do trabalho
Para realizar a vasta síntese que ele pretendia (que deveria comportar apenas cinco volumes), Renouvin convida profissionais que, como ele, tinham uma visão global da história das relações internacionais: o professor belga François Ganshof, especialista em história medieval; seu colega na Sorbonne, Gaston Zeller, autor de diversos trabalhos sobre a diplomacia de Luis XIV; André Fugier, professor da Universidade de Lyon, autor de uma tese sobre Napoleão e a Esspanha publicada nos anos 30. Ele próprio, finalmente, se encarregaria dos séculos XIX e XX.
Ganshof trabalha portanto no primeiro tomo da coleção, não sem algumas reticências metodológicas, pois que ele era inovadoramente dedicado ao estudo das técnicas de relações internacionais na Idade Média (Tome premier: Le Moyen Âge, publicado em janeiro de 1953). O trabalho de Gaston Zeller, cobrindo a idade moderna, estendeu-se perigosamente, num sentido “narrativo” e “cronológico” (o que Renouvin reprovava em parte), tendo então de ser dividido em dois volumes (Tome second: Les Temps modernes, I. De Christophe Colomb à Cromwell, junho de 1953; Tome troisième: Les Temps modernes, II. De Louis XVI à 1789, outubro de 1954). André Fugier terminou por sua vez a redação de seu texto sobre o período napoleônico desde fevereiro de 1952, cuja publicação antecipou-se portanto ao volume precedente a cargo de Zeller (Tome quatrième: La Révolution française et l’Empire napoléonien, fevereiro de 1954).
Quanto a Renouvin, seus dois volumes dedicados respectivamente aos séculos XIX e XX estenderam-se desmesuradamente: o primeiro volume tinha não menos de 692 páginas, o que obrigou à sua divisão em dois tomos, o mesmo acontecendo em relação ao século XX. Entre novembro de 1954 e novembro de 1958 são portanto publicados os quatro outros volumes da coleção: Tome cinquième: Le XIXe siècle, I. De 1815 à 1871. L’Europe des nationalités et l’éveil de nouveaux mondes; Tome sixième: Le XIXe siècle, II. De 1871 à 1914. L’apogée de l’Europe; Tome septième: Les Crises du XXe siècle, I. De 1914 à 1929; Tome huitième: Les Crises du XXe siècle, II. De 1929 à 1945.
A nova edição, em três volumes, introduzida pelo Professor René Girault, atual presidente do Institut Pierre Renouvin e eminente herdeiro da noção “renouviana” de “história dos tempos presentes”, reproduz fielmente o texto da última edição dos oito tomos da série, com apenas duas modificações: a bibliografia de cada um dos capítulos foi suprimida, conservando-se a bibliografia geral de cada tomo, e os fac-símiles das cartas geográficas foram reagrupadas no final de cada volume. Dessa forma, a introdução geral a cargo de Renouvin e os três primeiros tomos de Ganshof e de Zeller estão contidos no primeiro volume, que vai portanto da Idade Média a 1789. O trabalho sobre as relações internacionais na época da Revolução francesa, a cargo de Fugier, e o primeiro tomo sobre o século XIX da responsabilidade de Renouvin ocupam o segundo volume, indo portanto de 1789 a 1871. Finalmente, o terceiro volume cobre os três últimos tomos, tratando da época 1971 a 1945, escritos inteiramentes por Renouvin.
O sucesso da obra, desde a primeira edição foi rápido, justificando reimpressões em princípios dos anos 60 e traduções imediatas em italiano e em espanhol (não sem problemas de censura franquista, que recusava o termo “guerra civil” ou o conceito de “fascista” em relação à guerra espanhola de 1936-1939). A obra tornou-se um “clássico”, portanto, da história das relações internacionais, o que se explicava plenamente pelo caráter inovador do método ou a vastidão de propósitos, mas também pela fama já consagrada do seu autor principal.
O impacto fora das fronteiras francesas, e propriamente internacional, deveu-se também ao fato de que, no imediato pós-guerra, a escola histórica francesa estava na vanguarda da renovação metodológica então empreendida em vasta escala. Se assistia então a uma rejeição clara do “positivismo esclarecido”, praticado pelos mestres de princípios do século,como também à incorporação de conceitos e métodologias marxistas na pesquisa histórica, como revelado nos trabalhos de Ernest Labrousse, de Pierre Villar e, mais tarde, de Jean Bouvier.
Múltiplas causalidades, relações complexas entre atores
Mas, não se pode dizer que os autores da Histoire des relations internationales tenham rejeitado a história diplomática tradicional (ou seja, política) em favor de uma nova determinação “materialista” do processo, com causas econômicas “dominantes” das crises ou dos conflitos entre Estados. A concepção é mais complexa, colocando em relevo o jogo de causalidades diversas e as diversas teias de relações entre fatos econômicos e financeiros, ação das personalidades e influência das mentalidades. O historiador italiano Federico Chabod, cuja Storia della politica estera italiana del 1870 ao 1896 havia impressionado Renouvin, era aliás um dos promotores do estudo do papel da psicologia coletiva nas relações internacionais.
Não só as perspectivas analíticas são múltiplas, mas o campo geográfico é vasto, cobrindo praticamente o mundo inteiro, com uma ênfase lógica na Europa, afinal de contas, o centro das relações internacionais até praticamente o final da segunda guerra mundial. Os desafios eram, portanto, imensos. Como advertiu o Prof. Girault, havia o duplo perigo de se reduzir a multiplicidade dos fatos a algumas idéias simplificadoras ou de deixar esses fatos heterogêneos sem nenhum ordenamento em função de algumas explicações globais. “Para evitar esses dois obstáculos, apenas os aspectos gerais e os fatos significativos deveriam ser considerados. Em consequência, apesar da imensidade do campo coberto por essa história englobando o mundo inteiro, desde a alta Idade Média até 1945, o leitor tem a impressão de estar sendo conduzido com simplicidade e naturalidade até o essencial, saltando, no caminho, da Europa ao resto do mundo, das querelas dinásticas às rivalidades mercantis, dos grandes diplomatas aos homens de negócios, das nacionalidades às Internacionais, etc” (Apresentação, Volume I, p. xiv).
O mesmo historiador sublinha o fato de que, apesar de terem renovado os dados e a própria maneira de escrever a história diplomática, convertendo-a verdadeiramente numa reflexão sobre as relações internacionais contemporâneas, terreno antes exclusivamente ocupado pelo direito ou pelos cientistas políticos, os aportes da “escola” de Renouvin e seguidores (a expressão não é de Girault) deixaram de suscitar a atenção que mereceriam por parte dos partidários da escola dos Annales, sempre tímidos em face da história política. Também aqui parece ter se operado uma espécie de divisão intelectual do trabalho, que deixou a estes últimos uma espécie de monopólio, para não dizer o exercício de uma certa “ditadura conceitual”, sobre a história econômica e social.
Fazendo o balanço dos ensinamentos de Renouvin, Girault renova a visão de uma história das relações internacionais concebida de maneira não-linear e sem fatores dominantes invariáveis, como o peso das guerras ou das relações inter-estatais. Para ele, “as relações internacionais conheceram estágios diferentes porque elas são descendentes das civilizações que as cercam” (Apresentação, op. cit., p. xxvi, ênfase no original). No século XIX, predominaram as relações entre Estados, sobretudo na Europa. Um segundo tipo de civilização se desenvolve entre 1914 e meados dos anos 50, estendido ao mundo inteiro pela crise da dominação colonial e imperialista a partir de 1945. Nessa fase, as relações entre Estados permanecem dominantes, mas dois processos mudam a civilização: por um lado, a mundialização real da economia e das técnicas (transportes e comunicações) reforça o papel das relações econômicas; de outro, as relações internacionais são transformadas pela intervenção das ideologias (fascismos, racismo hitlerista, comunismo e anti-comunismo). Uma terceira geração de civilizações aparece a partir do final dos anos 50, com o término da guerra fria “quente”. De um lado, sob o sistema capitalista, desenvolveu-se uma sociedade transnacional, na qual o Estado-nação perdeu peso em face das novas organizações internacionais e interregionais: esse sistema privilegia as relações econômicas obedecendo às leis do mercado e à potência nuclear, verdadeiro critério de poder. De outro, o sistema dito comunista faz da ideologia sua alavanca mais importante e do centralismo ditatorial um meio de conduzir as relações internacionais. Em posição à parte, os Terceiros Mundos hesitam na busca de uma via autônoma, na verdade submetida às pressões contraditórias dos dois outros contendores (pp. xxvi-xxvii).
Teria a queda do mundo comunista gerado um novo período das relações internacionais, através do estabelecimento de uma nova civilização mundial ?, pergunta Girault. O transnacional tornou-se dominante e, mesmo se atores em alguns Estados continuam a acreditar em sua capacidade de atuar isoladamente, as ideologias parecem ter morrido, pelos menos as que se pretendiam globais. Mas, segundo Girault, ainda é muito cedo para pretender descrever as formas e a externsão geográfica dessa civilização, podendo ela mesmo ser composta de civilizações regionais (mundo islâmico, chinês, africano), cuja natureza particular deve levar em conta as situações geográficas e humanas.
O extraordinário crescimento das instituições regionais de cooperação política e econômica é talvez indicativo de uma nova era histórica. Em todo caso, os diversos níveis interdependentes de análise – política, econômica, social, cultural – no estudo das relações internacionais desses vastos conjuntos regionais de civilizações ou de “sistemas” (para empregar o conceito dos cientistas políticos), nos traz de volta, como sublinha Girault, à fórmula de Pierre Renouvin: “A história das relações internacionais é inseparavel da história das civilizações”.
O Brasil chez Renouvin
Uma tão larga perspectiva e um tratamento inevitavelmente centrado sobre as relações inter-estatais e internacionais européias ofereceria, como parece óbvio, pouco espaço a grandes digressões históricas ou políticas voltadas para um país como o Brasil, economicamente periférico, dependente politicamente, pois que, durante a maior parte de sua história, colônia de um país que era por sua vez essencialmente periférico e dependente. De resto, sem nunca ter constituído um centro de poder político, econômico ou militar próprio, o Brasil sempre foi relativa ou absolutamente marginal do ponto de vista das relações internacionais globais.
Não obstante, o Brasil comparece nas páginas dos vários volumes da Histoire des relations internationales, a partir da idade moderna evidentemente, sendo que metade das 35 citações se referem à sua condição de colônia ou ao movimento de independência, cabendo o resto ao próprio Renouvin dentro do período independente. Seria excesso de otimismo esperar encontrar, nos diversos textos, desenvolvimentos minuciosos sobre as relações exteriores ou a posição internacional do Brasil, pois que a coleção tem um compromisso básico com o seu objeto próprio, as relações internacionais, no mais amplo sentido geopolítico da palavra. Mas, uma verificação rápida permitirá algumas constatações interessantes.
As primeiras referências se encontram no texto escrito por Gaston Zeller para cobrir as relações internacionais na alvorada da idade moderna, tomo segundo da obra (Les Temps Modernes, I. De Christophe Colomb à Cromwell), tratando basicamente das consequências dos descobrimentos para as relações recíprocas entre Portugal e Espanha e destes com as demais potências européias (em especial, como seria de se esperar, com a França, de certo modo o centro do primeiro concerto europeu, antes e depois de Westfália). Uma atenção particular é dada aos interesses mercantis do comerciantes bretões na exploração dos parcos recursos florestais da maior e mais recente colonia portuguesa (vide Volume I, pp. 280 e 283).
Outras menções são feitas a propósito da substituição de hegemonias que se opera na Europa do século XVII, quando comerciantes e soldados mais agressivos, vindos da Holanda, Inglaterra e França, começam a dominar os principais circuitos de bens e metais, em detrimento dos antigos monopólios espanhóis e portugueses (vide o capítulo VIII do tomo segundo: “L’Océan: les politiques d’expansion coloniale”, Volume I, pp. 411-419, esp. 413 e 415, bem como o capítulo X, “La guerre de trente ans et la fin de la prépondérance espagnole”, pp. 438-464, cf. p. 448). A ascenção da potência inglesa terá, a partir de então, consequências decisivas não só para Portugal como para o próprio Brasil.
O mesmo Zeller oferece, no tomo terceiro (Les Temps Modernes, II. De Louis XIV à 1789), um panorama dessas mudanças hegemônicas, que consolidam ao mesmo tempo a dominação terrestre da França sobre o continente e a marítima da Inglaterra sobre quase todos os mares. Portugal, pressionado a escolher, mas procurando conservar sua autonomia, torna-se um mero pião nessas disputas, mesmo se ele consegue preservar o essencial de suas colônias, com destaque para o Brasil e Angola (Volume I, p. 513). Novamente, um grande atenção é dada à França e à política de Luís XIV (em um grande capítulo I: “La puissance française au temps de Louis XIV”, pp. 499-578), com uma breve referência à expedição de Duguay-Trouin de 1710-1711 ao Rio de Janeiro (vide pp. 567-8 desse volume).
Essa história de conflitos entre imperialismos rivais será retomada por André Fugier no quarto tomo do Histoire des relations internationales, sobretudo nos capítulos tratando das lutas entre a Espanha, de um lado, e os interesses respectivos de ingleses e franceses, de outro. A “vassalagem” política e militar de Portugal em relação à Inglaterra se faz cada vez mais presente, enquanto sua vida econômica passa a depender, cada vez mais estreitamente da “produção de ouro brasileiro, [da] frutuosa redistribuição de açúcar, café e algodão, compra de mercadorias inglesas...” (p. 66 do Volume II).
No momento do grande enfrentamento entre a “pérfida Albion” e o consul Bonaparte, Portugal se vê, no dizer de seus próprios diplomatas “entre l’enclume et le marteau”, mas continua seus proveitosos negócios com o “immense Brésil” (capítulo IV, “Pacifications (1801-1802)”, pp. 105-133; cf. 119-120). As contradições da política portuguesa eram também de alcova, pois que o Príncipe Regente João tinha casado com Carlota, filha dos soberanos espanhóis, que no momento eram aliados de Napoleão. Essa situação iria prolongar-se até novos desenvolvimentos em 1807, quando uma vez mais, em razão da política de bloqueio continental e do jogo de pressões militares, Portugal tem de submeter-se ou enfrentar a ira de Bonaparte. A “economia política” dos bloqueios inglês e francês são objeto de duas seções bastante instrutivas no capítulo VII do tomo a cargo de Fugier (II. “Économie de blocus britanique”, pp. 187-190, III. “La stratégie napoléonienne du blocus”, pp. 190-196), nas quais se insere precisamente a circulação de mercadorias brasileiras (sobretudo algodão e produtos tropicais) em direção de um ou outro beligerante (pp. 190 e 194).
André Fugier trata igualmente das razões estruturais da dominação européia sobre o resto do mundo, com um excelente capítulo sobre seus fundamentos espirituais, intelectuais, demográficos, militares, científicos e econômicos (capítulo X, “Courants d’Europe”, pp. 269-294), onde se insere a questão das “transferências demográficas”, ou seja a emigração européia para o novo mundo, e a própria partida de toda a elite e administração portuguesa para o Brasil, em 1807 (p. 284). O capítulo seguinte, sobre a independência das colônias americanas (XI, “Émancipation du Nouveau Monde”, pp. 295-312), não trata exatamente do processo brasileiro de autonomia, mas das iniciativas de Carlota Joaquina no Prata, a partir de 1808 (pp. 306-7), e da sustentação econômica e financeira da Inglaterra pela Coroa portuguesa, com as relações privilegiadas (e desiguais) que são então estabelecidas pelos tratados comerciais de 1809 e 1810. Data dessa época, igualmente, o estabelecimento de novas correntes de comércio entre o Brasil e seus parceiros do continente, a começar pelos Estados Unidos (p. 311).
O próprio Pierre Renouvin tratará da independência brasileira, no quinto tomo de sua coleção, todo ele dedicado ao século XIX. Depois de quatro capítulos iniciais sobre as “forças profundas”, sobre os “homens de Estado e as políticas nacionais”, as “ameaças à ordem européia” e os “movimentos revolucionários” no velho continente, Renouvin dedica todo o capítulo V à independência da América Latina. O tratamento é bastante sumário e os autonomistas brasileiros são chamados de “créoles portugais”, que seguem o exemplo dado pelos “créoles espagnols” nos demais países (p. 401). Mas, os eventos são enquadrados por Renouvin num panorama mais vasto:
“Nas relações internacionais, o lugar desses dois eventos é bastante desigual. A independência do Brasil só chama a atenção da Grã-Bretanha: o governo inglês que, em 1810, tinha defendido Portugal contra a França, aproveitou para se ver atribuída, no Brasil, uma tarifa alfandegária bastante favorável à importação dos seus produtos manufaturados; em 1822, frente ao ‘fait accompli’, ele se preocupa em manter essa vantagem; à medida em que Pedro consente, a política inglesa faz pressão sobre o governo português para levá-lo a reconhecer a independência do Brasil. Mas, a independência das colônias espanholas é uma questão de grande impacto para os Estados Unidos e as potências européias” (segundo volume, p. 401).
Ele ainda faz uma pequena referência ao Brasil, no contexto dos primeiros esforços de “solidariedade pan-americana”, com o convite bolivariano ao congresso do Panamá, de 1825, que deveria reunir os novos Estados do continente. Nem os Estados Unidos, que já tinha proclamado sua “doutrina Monroe” (1823), nem o Brasil ou a Argentina participarão da conferência (p. 412). A derrota do esforço de cooperação política dá lugar ao começo da preponderância britânica sobre o continente, hegemonia que vai durar cerca de um século.
Uma última menção ao Brasil nesse texto intervem nas conclusões gerais do tomo sob sua responsabilidade, quando Renouvin se contenta em apontar o papel dos fluxos migratórios europeus no crescimento de países como os Estados Unidos, a Argentina ou o “Brasil meridional” (segundo volume, p. 653), questão repetidamente levantada em diversas passagens ulteriores e mesmo na conclusão geral da obra (vide p. 910 do terceiro volume). Não há, em contrapartida, para o período em que as jovens nações sul-americanas já se tinham completamente desvencilhado da tutela metropolitana, qualquer referência às lutas entre caudilhos na própria região, como os conflitos do Prata ou a guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai: o equilíbrio de poderes, numa região tão excêntrica para a política mundial como a América do Sul, não entra certamente nos esquemas conceituais das relações internacionais vistas da Europa.
O terceiro e último volume da nova edição dessa obra clássica, traz os três tomos finais do Histoire des relations internationales, todos redigidos pessoalmente por Pierre Renouvin e cobrindo o período de 1871 a 1945. Em cada um deles, as referências ao Brasil são, para dizer o mínimo, reduzidas e, em geral, insatisfatórias do nosso ponto de vista: as relações internacionais do continente sul-americano são sempre consideradas a partir de uma perspectiva européia ou norte-americana. É o caso, por exemplo, do capítulo XVI do sexto tomo, “Les Influences Européennes en Amérique Latine” (pp. 237-244), onde Renouvin começa por afirmar:
“O campo de predileção para a expansão européia, não apenas do ponto de vista demográfico ou do ponto de vista econômico e financeiro, mas no terreno da vida intelectual, é a América do Sul. A influência demográfica é importante sobretudo na Argentina e no Brasil” (p. 237).
Seguem, nas páginas seguintes, comentários e informações sobre esses imigrantes, sobre os investimentos estrangeiros ou sobre infraestrutura ferroviária no Brasil que, lidos na ótica da historiografia contemporânea, seriam considerados ingênuos ou, enquanto dados parciais, mesmo irrelevantes, mas que podem ser provavelmente explicados pelo estado da bibliografia disponível sobre o Brasil à época da elaboração do trabalho: velhas monografias de Pierre Denis sobre o café, alguns outros estudos de Roger Bastide (sobre raças ou a dualidade da geografia humana), de Pierre Monbeig (sobre os pioneiros e fazendeiros de São Paulo) ou de Charles Morazé (sobre a evolução política do Brasil), por exemplo.
Da mesma forma, seus argumentos sobre a influência cultural francesa nas repúblicas sul-americanas – marcadas por um “latinisme de sentiments, de pensée et d’action, avec tous ses avantages primesautiers et ses défauts de méthode”, segundo Georges Clemenceau, que voltava de viagem (pp. 243-244) – e sobre as lacunas de sua prática efetiva, beiram o ridículo, tanto o amalgama e o julgamento superficial caracterizam o discurso: “Vassales de l’Europe au point de vue économique et financier, ces Républiques en restent profondement séparées para l’esprit de la vie politique” (p. 244).
No tomo seguinte, sobre as crises do século XX entre 1914 e 1929, Renouvin retoma o argumento sobre a influência cultural e econômica da Europa, agora contestada pela influência dominante dos Estados Unidos em ascenção. O capítulo XIV, especificamente dedicado à posição internacional da América Latina, não agrega nenhum dado significativo sobre o Brasil e o amalgama com outras repbúlicas sul-americanas continua a ser praticado com o agravante da visão política eurocêntrica: o conflito entre o Chile e o Peru a propósito de Tacna e Arica, por exemplo, é pensado em termos de “Alsace-Lorraine”.
Segundo a interpretação de Renouvin, a existência da Sociedade das Nações poderia dar a esses Estados “plus de courage” para enfrentar a hegemonia dos Estados Unidos: “não podem eles esperar que o organismo genebrino lhes dará apoio e lhes fornecerá talvez um meio de escapar ao sistema pan-americano ?” (p. 575). Na mesma linha, Pierre Renouvin parece lamentar que, tendo assinado o “tratado Gondra”, de 1923, os Estados latino-americanos se comprometem em resolver seus litígios no quadro pan-americano (“dominé par les États-Unis”), em lugar de entregá-los à Sociedades das Nações. Em todo caso, Renouvin nota o apoio apenas discreto (“nuancé”), em contraste com a vigorosa tomada de posição argentina, que o Brasil concede, na conferência de Havana em 1928, ao projeto de declaração da Comissão de juristas inter-americanos – Comissão do Rio – sobre os princípios da “não-intervenção” (dos Estados Unidos, entenda-se) e da igualdade de direito entre os Estados americanos, como normas consagradas do direito internacional americano (p. 578).
No último tomo, finalmente, Les Crises du XXe siècle de 1929 à 1945, o Brasil e a América Latina comparecem muito pouco, apenas a título de figurantes secundários num ou noutro episódio ligado à guerra mundial (p. 820) ou como fornecedores de matérias-primas (p. 883), ou seja, numa posição confirmadamente marginal do ponto de vista das relações internacionais. Durante o conflito mundial, ele reconhece, por exemplo, que a América Latina contraiu em relação aos Estados Unidos “des liens de dépendance” que se desdobram numa hegemonia financeira a partir de 1947. (p. 884).
A Permanência de Renouvin
Profundamente marcado, como todos os homens de sua geração, pelas tragédias guerreiras que, de 1871 a 1945, retiram todo peso político ou econômico e toda influência internacional à Europa e à França, Pierre Renouvin consegue ainda assim produzir uma obra de referência que traz como fundamento metodológico e como premissa filosófica básica a essencialidade das relações inter-estatais européias para as relações internacionais. Esse tipo de perspectiva pode ser considerado como fundamentalmento correto para a maior parte do período coberto, mas um historiador do novo mundo, eventualmente chamado a preparar um trabalho equivalente de síntese, provavelmente produziria uma obra com maior ênfase no peso relativo dos Estados Unidos ou nos fundamentos materiais e políticos da bipolaridade que passaria a dividir o mundo do pós-segunda guerra.
Caberia entretanto observar que as relações internacionais, numa determinada era do desenvolvimento das civilizações, devem ser apreciadas em seu próprio contexto histórico, e não em função do devenir. Aplica-se aqui a famosa frase de Marx em seu 18 Brumário de Luís Bonaparte, segundo a qual a tradição das gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos.
Em sua “Conclusion Générale” (Volume III, pp. 907-918), Renouvin retém os dois elementos que lhe parecem essenciais ao cabo de uma vista de conjunto sobre o desenvolvimento das relações internacionais no curso de dez séculos: “um, o mais destacado sem dúvida, é a permanência das rivalidades e dos conflitos entre os grandes Estados, é o espetáculo das mudanças incorridas na hierarquia desses Estados; o outro é, por iniciativa dos europeus, o progresso das relações entre os continentes, ao ritmo dos progressos técnicos que facilitaram os deslocamentos dos homens, o transporte das mercadorias e o intercâmbio das idéias. A história das relações internacionais deve procurar identificar como esses dois aspectos de completam e se penetram; ela estende seu olhar sobre o mundo inteiro” (p. 907).
Depois de passar mais uma vez em revista o papel das condições econômicas, demográficas e psicológicas – as “forças profundas” – que influenciam essas relações internacionais, Renouvin volta a confirmar o papel essencial dos Estados nas relações internacionais. Ao mencionar “l’action déterminante des États”, sobretudo daqueles Estados que conseguiram salvaguardar, de século em século, seu poder, ele deveria certamente estar pensando na França, então ocupada em reconstruir seu poderio material e em recuperar seu antigo prestigio imperial. A mensagem de Renouvin é talvez um pouco voluntarista, mas o parti pris é digno de ser sublinhado: “O Estado impõe sua marca nas forças profundas, que ele acomoda ou utiliza em proveito do seu poder” (p. 915).
Essa mesma opção preferencial, de ordem metodológica e empírica, em favor do Estado comparece no conhecido manual, em co-autoria, de história das relações internacionais. Sua importância, para os estudantes da área, justificaria talvez uma longa citação:
“O estudo das relações internacionais está voltado sobretudo para a análise e a explicação das relações entre as comunidades políticas organizadas no quadro de um território, isto é, entre os Estados. Sem dúvida, ele deve levar em conta as relações estabelecidas entre os povos e entre os indivíduos que compõem esses povos – intercâmbio de produtos e de serviços, comunicações de idéias, jogo das influências recíprocas entre as formas de civilização, manifestações de simpatias ou de antipatias. Mas, ele constata que essas relações podem raramente ser dissociadas daquelas que são estabelecidas entre os Estados: os governos, frequentemente, não deixam a via livre a esses contatos entre os povos; eles lhes impõem regulamentos ou limitações, quer se trate do movimento de mercadorias ou de capitais, de movimentos migratórios, ou mesmo de circulação de idéias; eles podem também, por outros procedimentos, orientar as correntes sentimentais. Essas intervenções não têm somente como resultado mais frequente a restrição ou a atenuação das relações estabelecidas pelas iniciativas individuais; elas também lhes modificam o caráter. Deixadas a elas mesmas, essas relações entre os indivíduos poderiam constituir, algumas vezes, um fator de solidariedade; pelo menos, os antagonismos entre esses interesses individuais não acarretariam, na maior parte dos casos, consequências políticas diretas. Regulamentadas pelos Estados, elas se tornam elemento de negociações ou de contestações entre os governos. É portanto a ação dos Estados que se encontra no centro das relações internacionais” (Cf. Pierre Renouvin e Jean-Baptiste Duroselle: Introduction à l’histoire des relations internationales; Paris: Librairie Armand Colin, 1964, Introdução, p. 1).
Essa mensagem de história global e ao mesmo tempo de confirmação do papel primordial do Estado nas relações internacionais constitui, por assim dizer, a lição de Pierre Renouvin às gerações de nossa própria época histórica, um ensinamento que se pretende também um convite à modéstia de pretensões explicativas em sua disciplina. Com efeito, ele termina sua monumental Histoire des relations internationales por uma lição que é sobretudo uma advertência contra as pretendidas “lições da história”:
“A política exterior está ligada a toda a vida dos povos, a todas as condições materiais e espirituais dessa vida, ao mesmo tempo que à ação pessoal dos homens de Estado. Na busca de explicações, que permanece o objetivo essencial do trabalho histórico, o maior erro consistiria em isolar um desses fatores e atribuir-lhe uma primazia, ou mesmo em querer estabelecer uma hierarquia entre eles. As forças econômicas e demográficas, as correntes da psicologia coletiva e do sentimento nacional, as iniciativas governamentais se completam e se penetram; sua parte de influência respectiva varia segundo as épocas e segundo os Estados. A pesquisa histórica deve tentar determinar qual foi essa parte. Ela oferece assim oportunidade para necessárias reflexões; mas, ela não pretende dar receitas e muito menos ditar lições” (Volume III, p. 918)
Esta é a grande lição que mestre Pierre Renouvin deu em sua Histoire des relations internationales e na maior parte de suas obras: seu sentido e seus propósitos continuam plenamente válidos. Voilà !
[Paris, 08.08.94]
[Relação de Trabalhos n° 444]
Publicado na seção Livros da revista Política Externa
(São Paulo: vol 3, nº 3, dezembro-janeiro-fevereiro 1994/1995, pp. 183-194).
[Relação de Publicados n° 169]
444. “Contribuições à História Diplomática: Pierre Renouvin, ou a aspiração do total”, Paris, 8 agosto 1994, 16 pp. Resenha crítica de Pierre Renouvin (ed): Histoire des Relations Internationales (Paris: Hachette, 1994, 3 volumes: Volume I: Du Moyen Âge à 1789 (876 pp.) Volume II: De 1789 à 1871 (706 pp.) Volume III: De 1871 à 1945 (998 pp.). Publicado na seção Livros da revista Política Externa (São Paulo: vol 3, nº 3, dezembro-janeiro-fevereiro 1994/1995, pp. 183-194). Relação de Publicados n° 169.