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segunda-feira, 1 de abril de 2024

Macron fez Lula avançar um pouco mais do que gostaria na questão das eleições venezuelanas - Lourival Sant'Ana (Estadão)

A visita de Macron e o tímido afastamento de Lula da ditadura venezuelana 

Política externa brasileira teve um reencontro com o Iluminismo com a visita do presidente francês. É cedo para dizer se foi o despertar de um longo e profundo sono dogmático 

Foto do author Lourival Sant'Anna

Por Lourival Sant'Anna ( ESTADAO / 31mar24)

A política externa brasileira teve um reencontro com o Iluminismo. Se foi o despertar de um longo e profundo sono dogmático ou apenas um breve clarão em meio às trevas, é cedo para dizer. Em três dias de visita, Emmanuel Macron percorreu sorridentemente com Lula os eixos estratégicos das relações Brasil-França. O presidente brasileiro aproveitou o instante de lucidez até para se desmarcar, ainda que timidamente, da ditadura venezuelana.

Lula e Macron têm vários pontos em comum. Ambos enfrentam uma oposição autoritária, governam países amazônicos, recusam-se a se alinhar com os EUA e detestam Jair Bolsonaro.

Eles se comprometeram em Belém a investir 1 bilhão de euros em iniciativas de conservação e desenvolvimento sustentável nos próximos quatro anos na Amazônia brasileira e na Guiana Francesa. Isso é quase três vezes todo o Fundo Amazônia.

No fórum empresarial Brasil-França, em São Paulo, com ênfase na transição energética, Macron celebrou aumento de 26% nos investimentos franceses no Brasil, ultrapassando estoque de 40 bilhões de euros. Mais de 1.100 filiais de empresas francesas atuam no Brasil. Com mais de meio milhão de contratados, os franceses são os maiores empregadores estrangeiros aqui.

Até mesmo em um ponto prejudicial aos interesses do Brasil, a implosão do acordo Mercosul-União Europeia, os dois presidentes estão alinhados. Macron acredita no livre comércio, mas não encontra condições políticas para fazer frente ao protecionismo agrícola francês, explorado por sua rival Marine Le Pen.

Lula não acredita em livre comércio. Há mais de 20 anos ele protege os setores da indústria e dos serviços da competição externa. Em seu primeiro mandato, torpedeou a criação da Área de Livre Comércio das Américas.

Lula respondeu ao banimento europeu às importações de commodities associadas ao desmatamento com outro obstáculo: a proteção das compras governamentais. Assim, os dois amigos podem culpar um ao outro pelo sepultamento do acordo.

No Rio, ambos viram a Marinha brasileira lançar ao mar o submarino Tonelero, o terceiro construído com tecnologia francesa. Macron afirmou que a França não transferiu tanta tecnologia de defesa a nenhum outro país. A parceria envolve a construção de cinco submarinos, o último deles com propulsão nuclear.

O Brasil tem outros cinco submarinos, fruto de parceria com a Alemanha, que também compartilhou tecnologia. É o único país do Hemisfério Sul com capacidade de construir submarinos. Essas armas são estratégicas para a proteção da vasta e rica costa brasileira. A propulsão nuclear eleva sua autonomia e reforça seu maior ativo: a invisibilidade.

Noutro lampejo, o presidente brasileiro abandonou o discurso contra a aquisição de armas, que o levou no passado recente a acusar Estados Unidos e Europa de terem interesse em fomentar a agressão russa contra a Ucrânia. “Queremos ter conhecimento para garantir a todos os países que querem paz que saibam que o Brasil estará ao lado de todos porque a guerra não constrói, a guerra destrói”, discursou.

É o poder de dissuasão, e não a retórica pacifista, que previne guerras. O escritor romano Flávio Vegécio já sabia disso no século 4: “Aquele que deseja a paz precisa se preparar para a guerra”.

Macron afirmou que potências pacíficas como França e Brasil têm de “falar com firmeza e força”, caso não queiram ser “lacaios” de outras nações: “Nós temos a mesma visão de mundo. Rejeitamos um mundo que seja prisioneiro da conflitualidade entre duas grandes potências. E temos de defender nossa independência, nossa soberania e o direito internacional”.

Macron é herdeiro de uma antiga tradição francesa, que preconiza um sistema de defesa europeu robusto e independente dos EUA. A França não faz parte da estrutura militar da Otan, mesmo sendo aliada. Esse propósito se tornou mais crítico para a Europa com a ascensão de Donald Trump, que ameaça violar as alianças de defesa dos EUA.

Ao mesmo tempo, Macron é um dos líderes da ajuda militar à Ucrânia, e tem afirmado que a Rússia precisa ser derrotada. Mas não se espera que Lula entenda isso. O Brasil não é relevante nessa questão.

Na região em que o Brasil pode exercer um papel, a América Latina, Lula parece ter entendido algo. “Não tem explicação jurídica, política, você proibir um adversário de ser candidato”, disse ele sobre a exclusão da candidata da oposição venezuelana, Corina Yoris, por sua vez substituta da verdadeira candidata impedida de disputar a eleição presidencial, María Corina Machado.

Macron precisa voltar mais vezes.

domingo, 24 de março de 2024

Putin e os gays terroristas - Lourival Sant'Ana (Estadão)

Putin cobra caro em seu papel de herói 

Lourival Sant’Ana

O Estado de S. Paulo, 24/03/2024

 

O atentado contra o principal centro de convenções de Moscou, na sexta-feira, coincidiu com a inclusão, pelo governo russo, dos defensores dos direitos dos homossexuais na lista de terroristas.

Os sacrifícios dos russos sob a autocracia de Vladimir Putin se agravam e, paradoxalmente, sua dependência dele.

Ao menos 133 pessoas morreram.

O Estado Islâmico Khorasan (Isis-K), filial do grupo no Afeganistão, reivindicou a autoria. A mídia estatal russa anunciou que os quatro suspeitos são do Tajiquistão, ex-república soviética de maioria muçulmana.

Em discurso à nação, Putin afirmou que os quatro autores do atentado foram detidos.

"Eles tentaram se esconder e se deslocaram rumo à Ucrânia, onde, de acordo com dados preliminares, uma janela estava preparada para eles do lado ucraniano para cruzarem a fronteira." Prevendo que o Kremlin tentaria envolvê-lo, o governo ucraniano negou participação logo depois do atentado. A Ucrânia tem feito ataques com mísseis e drones aéreos e marítimos contra alvos russos.

Milícias russas contrárias ao regime atacam áreas na Rússia.

São ações militares convencionais, não terroristas.

Em contrapartida, o Isis-K atacou a Embaixada da Rússia em Cabul, em 2022, e distribui propaganda antirrussa no Afeganistão.

O apoio militar russo à ditadura de Bashar Assad foi decisivo para a derrota do Estado Islâmico na Síria. No dia 7, o FSB, serviço secreto russo, anunciou ter prevenido um ataque de uma célula do EI contra uma sinagoga em Moscou.

Os 24 anos de Putin no poder são marcados pelo uso político do terrorismo. Em setembro de 1999, explosões em quatro prédios residenciais nas cidades de Moscou, Buynaksk e Volgodonska deixaram 307 mortos e mil feridos. O quinto atentado, em Ryazan, foi frustrado: um casal foi flagrado de madrugada por um morador colocando sacos de explosivos no porão do prédio.

A polícia constatou que os explosivos, detonadores, e sua instalação no porão seguiam o padrão dos outros atentados.

A testemunha anotou a placa do carro. O casal e o motorista foram detidos e identificados como agentes do FSB. O caso foi abafado.

Na época, Putin era primeiro-ministro, depois de ter sido diretor do FSB e secretário do Conselho de Segurança, no governo de Boris Yeltsin. Putin atribuiu os atentados a separatistas da Chechênia, república russa de maioria muçulmana.

Centenas de chechenos foram presos sem provas.

Putin lançou a segunda guerra da Chechênia, tornou-se herói nacional e se elegeu presidente em março de 2000, em eleição antecipada pela renúncia de Yeltsin. A Chechênia foi arrasada pelas Forças Armadas russas, que pela lei não poderiam atuar dentro da Rússia.

As táticas seriam repetidas em Geórgia, Síria e Ucrânia.


Em 2002, 40 terroristas chechenos invadiram um teatro de Moscou durante a apresentação de um musical, tomaram 850 reféns e plantaram bombas no local. Eles exigiam a retirada das forças russas da Chechênia.

Voluntários foram ao local negociar com os terroristas. O diálogo foi interrompido no quarto dia pela invasão de agentes russos. Eles injetaram gás nervoso no sistema de ventilação do teatro, mataram os terroristas e 132 reféns.

Em 2004, separatistas chechenos invadiram uma escola em Beslan, tomando 1.100 reféns.

No segundo dia, houve uma explosão, seguida da invasão de forças russas. A intervenção deixou 334 mortos, dos quais 186 crianças, além de 31 terroristas.


Esses e outros episódios foram utilizados para convencer os russos de que estão sob ameaça de inimigos desumanos, e só Putin pode protegê-los. A mesma estratégia é usada em relação à homossexualidade.

Em 2011, milhares de russos foram às ruas depois de constatarem que Putin não deixaria o poder. Ele se aliou à Igreja Ortodoxa e passou a perseguir os homossexuais e transgêneros, impedidos de casar, adotar filhos ou mudar de sexo.

Em seu discurso ao Parlamento em fevereiro de 2023, um ano depois de invadir a Ucrânia, Putin afirmou: 

"O Ocidente não para de distorcer fatos históricos, atacar a cultura e a Igreja Ortodoxa russas. O Ocidente está pervertendo a família, a identidade nacional. Estão tornando a pedofilia a norma em sua vida. Padres incentivam casamentos do mesmo sexo.

A Igreja Anglicana estuda a ideia de um Deus de gênero neutro. Perdoem, Pai, eles não sabem o que fazem"
.

Diante das mortes na Ucrânia, dos retrocessos e do terrorismo, boa parte dos russos se torna mais leal a Putin. A alternativa seria concluir que a dor é em vão. Isso a tornaria insuportável.



É COLUNISTA DO ESTADÃO E ANALISTA DE ASSUNTOS INTERNACIONAIS