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quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Por que ainda se discute a possibilidade de uma moeda comum sul-americana? - Natan Cauduro (Beta Redação)

Por que ainda se discute a possibilidade de uma moeda comum sul-americana?

Interessante na teoria, criação da moeda comum encontra fortes barreiras na realidade econômica e política da América do Sul

Natan Cauduro
Nov 25 · 8 min read

Em junho de 2019, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e o ministro da Economia, Paulo Guedes, marcaram presença nas manchetes de vários jornais brasileiros e estrangeiros com declarações sobre a possibilidade de criação de uma moeda comum com a Argentina. Um ano depois, a  decidiu revisitar o tema e descobrir se, afinal, há chances de uma moeda comum nascer na América do Sul.

Sonho x realidade

Ex-secretário de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior no governo Lula (2007–2011), Welber Barral comenta que, em teoria, a chance de se criar a moeda comum existe, mas a realidade econômica e política do continente inviabiliza a oportunidade. Ele também reforça que, para considerar tal moeda, faz-se necessário compreender sua equivalência na Europa: o euro.

O processo de criação do euro foi longo e apresentou uma série de complicações. Welber pontua algumas ações dos países europeus que foram essenciais para o nascimento da moeda: alinhamento macroeconômico; acordos sobre endividamento; e bases monetárias fortes (era o caso da Alemanha) que atuavam como geradoras de credibilidade para a moeda, tornando-a conversível (que pode ser trocada por outras moedas, como o dólar). “Não há nenhuma dessas coisas na América do Sul”, pontua o ex-secretário.

Em terras sul-americanas, Welber cita as taxas de endividamento altas e distintas de cada país como um dos grandes empecilhos, além de problemas na coordenação de políticas macroeconômicas entre as nações vizinhas. O continente não conta com uma moeda conversível, ao contrário da Alemanha e de sua moeda da época, o marco alemão. Outra dificuldade são as divergências de dados sobre a inflação de cada país. “Como se compara ou equipara o real brasileiro com o peso argentino sendo que eles [argentinos] estão com 50% de inflação?”, comenta.

Diplomata de carreira com atuação nas embaixadas de Paris e Washington, e ex-diretor do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IPRI), Paulo Roberto de Almeida concorda que a América do Sul não está preparada para uma moeda comum. “Poucos países no mundo renunciam a suas moedas nacionais. Eu não conheço nenhum grande país que o tenha feito, a não ser como parte de um projeto mais amplo de mercado comum totalmente unificado, como é o caso da União Europeia”, conta.

“Se você tem um mercado unificado, não faz sentido manter moedas distintas para um mercado totalmente livre”, acrescenta Paulo Roberto.

O diplomata reforça que os países da América do Sul são díspares, divergentes e contraditórios, o que dificulta ainda mais a implementação de uma moeda comum. “Essa é a razão básica pela qual eu não acredito que nossos países estejam preparados para uma moeda comum, não única. Única é uma loucura, nem a Europa tem.”

Welber também destaca a importância dos Bancos Centrais na implementação de uma moeda comum. “Você ter uma moeda conversível não é porque você quer, mas é porque ela é aceita no mercado internacional.” Isso resulta, segundo o ex-secretário, em uma moeda com credibilidade, lastro, usada em operações com terceiros e que tenha fluxo livre aqui e no exterior. “A moeda brasileira não tem isso, então os bancos centrais teriam de regulamentar”, destaca Welber. Outra entidade importante nesse processo é o Conselho Monetário Nacional.

E se…

Num exercício de futurologia, o ex-secretário Welber Barral reflete sobre quais benefícios o Brasil teria caso uma moeda comum fosse implementada. Um deles seria o custo de câmbio, pois o mesmo não seria necessário, uma vez que todos os países utilizariam uma mesma moeda. Outro estaria em evitar a imprevisibilidade das moedas, como dólar e real, pois a variação de inflação é uma só, o que auxilia nas importações e exportações. Welber também pontua a percepção popular como sendo impactada positivamente quando viaja para outro país. “Ele (indivíduo) não quer fazer cálculo para saber quanto custa, se é mais caro ou mais barato. Já existe uma previsibilidade de custo”, comenta.

“É preciso ressaltar que uma moeda comum pode ser uma boa coisa em mercados comuns, o que está longe de ser o caso do Mercosul”, aponta o diplomata Paulo Roberto. “Quando e se o Mercosul chegar nessa fase, talvez seja interessante uma moeda comum”, mas ele ainda se mostra cético, em especial porque numa união entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, o Brasil, sozinho, detém mais de 70% do mercado consumidor, o que inviabiliza a renúncia da soberania nacional sobre a moeda e o próprio mercado. “Você se prender a uma política comum para atender a um mercado secundário não é uma boa coisa”, analisa.

Não é a primeira vez

O governo Bolsonaro não foi o único a cogitar uma moeda comum sul-americana. O governo Lula (PT) também foi manchete por comentar tal possibilidade. O ex-secretário Welber lembra ainda de outras tentativas de unificação monetária. Uma delas foi nos anos 80 com o governo do ex-presidente José Sarney (MDB) com o uso do gaucho, uma moeda escritural entre Brasil e Argentina. Moeda escritural se equivale a depósitos bancários usados como forma de pagamento — cheques e cartões de crédito, por exemplo. De qualquer modo, nenhuma das tentativas foi efetivada.

Estando no governo Lula, Welber lembra que naquele período havia no Ministério alguns estudos e a possibilidade de criação de um Tribunal Arbitral para Investimentos, mas tudo era encabeçado pela União de Nações Sul-americanas (Unasul), não pelo Brasil. Com essa organização perdendo força, as ideias pararam no tempo.

Circula também a ideia de que, sendo o Brasil o maior dos países sul-americanos, é responsabilidade dele dar início a um programa político de criação de moeda única, mas Welber não vê o governo Bolsonaro interessado em tamanha empreitada. “Esse é um governo tipicamente isolacionista, então eu não espero nada positivo em geral, até por conta da pandemia e da crise (econômica). Ele (governo) está focado bastante numa agenda interna”, analisa.

“O Bolsonaro falou sobre criar a moeda do Mercosul ano passado. Eu não sei quem disse isso para ele, mas seguramente ele não tinha a menor ideia do que estava falando”, afirma Welber.

Paulo Roberto de Almeida tem uma opinião parecida sobre as manifestações do presidente e do ministro da Economia. Ele, inclusive, lembra de encontros com Paulo Guedes e, após ouvi-lo reclamar sobre o Mercosul, percebeu que o campo da política e economia internacional não era o forte do ministro. “O Paulo Guedes é um cara de mercado financeiro, de mercado de capitais, mercado de investimentos. Ele não entende de acordos internacionais, de economia política internacional, de tecnocracia, de estadismo, de diplomacia. Então o que o Bolsonaro e o Guedes falaram é uma bobagem monumental”, avalia.

Em junho de 2019, data das manifestações do presidente e do ministro, o chanceler Ernesto Araújo manifestou-se de forma esquiva, afirmando que “o Mercosul requer eficiência no comércio entre os membros, mas também que seja uma plataforma de abertura e de eficiência para o resto do mundo, como se vê em negociações estratégicas que estão perto de concluir, como a com a União Europeia”, segundo matéria da revista Veja.

Para Paulo Roberto de Almeida, um assunto como o de uma moeda comum “não pode ser política de governo, isso é uma política de Estado. Moeda é política de Estado”. Ele também afirma que o Itamaraty tem bons economistas, diplomatas e uma boa base de dados. “(a quantidade e qualidade de informações) do Itamaraty sobre o Mercosul e a União Europeia é perfeita”, destaca. O diplomata afirma que o chanceler Araújo deveria ser capaz de alertar ao presidente e ao ministro Guedes que a ideia de uma moeda comum é inviável. Paulo Roberto também recorda que Ernesto Araújo é um estudioso do Mercosul, inclusive com um livro sobre o tema publicado nos anos 90, e que o diplomata classifica como “muito bom”.

O livro mencionado chama-se Mercosul Hoje, publicado em 1998, pelos autores Sérgio Abreu, Lima Florêncio e Ernesto Henrique Fraga Araújo. O chanceler também possui sua tese, apresentada em 2008 no Instituto Rio Branco, intitulada O Mercosul: Negociações Extra-regionais.

Também em 2019, o Banco Central do Brasil emitiu nota sobre as declarações do presidente e do ministro da Economia. Na nota, é dito que “o Banco Central do Brasil não tem projetos ou estudos em andamento para uma união monetária com a Argentina. Há tão somente, como é natural na relação entre parceiros, diálogos sobre estabilidade macroeconômica, bem como debates acerca de redução de riscos e vulnerabilidades e fortalecimento institucional”.

 entrou em contato com o Banco Central do Brasil em busca de informações. Segundo a assessoria de imprensa do órgão, “o posicionamento do BC continua o mesmo”.

A nota oficial pode soar vaga, mas antigos dirigentes do BC já se manifestaram sobre a ideia de uma moeda única. Foi o caso de Alexandre Schwartsman, que, em entrevista à Folha de S. Paulo, afirmou tratar-se de uma proposta sem sentido. Outra manifestação veio do também ex-dirigente do BC José Júlio Senna, no mesmo jornal. Ele afirma não ser otimista quanto ao resultado final de uma integração de moedas.