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quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Mapa das capitanias hereditarias ganha nova cara - Revista de Historia da Biblioteca Nacional

Mapa das capitanias hereditárias ganha nova cara

Refeito recentemente, mapa das capitanias hereditárias ganha nova cara, 150 anos depois da publicação de sua versão mais conhecida
Por questões políticas, o rei Dom João III autorizou a colonização do Brasil 30 anos após a chegada de Pedro Álvares Cabral a este lado do Atlântico. Em 1533, a Coroa decidiu repartir as terras do além-mar entre 15 capitães donatários, gente que não tinha grande fortuna ou negócios na metrópole, mas que teria condições de administrar a nova colônia. Assim nasceram as capitanias hereditárias que, durante mais de cem anos, pareciam ser (geograficamente) “uma série de linhas paralelas ao equador que iam do litoral ao meridiano de Tordesilhas”, conforme explicou o historiador Boris Fausto em História do Brasil (1996). Um estudo publicado recentemente, no entanto, contesta a versão clássica do mapa das capitanias presente até hoje em livros didáticos, e mostra que a divisão de terras do norte do país, na verdade, seguia linhas verticais e não horizontais.
O engenheiro Jorge Cintra, professor titular de Informações Espaciais na Escola Politécnica da USP, é o autor da pesquisa que pode mudar a maneira como se visualiza a configuração do Brasil nos primeiros 50 anos de colonização. “Eu comecei a fazer um estudo sobre os limites da região Sul e encontrei alguns erros. Decidi conferir tudo e vi que o maior quebra-cabeça estava no norte”, conta.
Publicado pelo historiador Varnhagen no século XIX, mapa das capitanias hereditárias foi reproduzido e atualizado por cartógrafos ao longo das décadas. (Acervo da Biblioteca Guita e José Mindlin da Universidade de São Paulo, São Paulo)
Ao ter acesso a cópias de documentos originais, como a carta de doação a João de Barros (da capitania do Rio Grande), Cintra pôde perceber que se as linhas dos segmentos do norte seguissem para oeste, o rei estaria repassando pedaços de mar a alguns donatários. E, além disso, se mantivessem o ritmo, em paralelo, jamais se cruzariam, conforme sugere a seguinte declaração do rei de Portugal: “Léguas se estenderão e serão de largo ao longo da costa e entrarão na mesma largura pelo sertão e terra firme adentro tanto quanto puder entrar e for de minha conquista, que não sejam por mim providas a outro capitão”.
Temístocles Cézar, professor do Departamento de História da UFRGS, diz que o estudo de Cintra é “mais do que uma nova cartografia”, é uma “forma de entender o que já existe através de um exercício de desconstrução original, erudito e consistente, sem fechar a questão, mas colocando-a em um patamar mais sofisticado de argumentação”. Um tipo de estudo que não é muito realizado no Brasil.
O mapa com que Cintra dialoga – usado nos livros didáticos – foi feito no século XIX pelo historiador Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), responsável em grande parte pela construção de uma visão de Brasil que prevalece até hoje. Para desenhar aquele mapa Varnhagen teria recorrido a uma cartografia de Luis Teixeira, de 1586, quando a configuração do que viria a ser o território brasileiro já era diferente. Especialista nas publicações deste grande pioneiro da historiografia brasileira, Cézar comenta que, “no caso de Varnhagen, em que pesem o número de críticas que recebe desde a publicação da História geral do Brazil  [1854-1857] e sua peculiar tendência para a polêmica, ele pouco foi contestado em relação ao material iconográfico e cartográfico de suas produções”.
Cético em relação ao alcance que este estudo pode ter, o historiador Guilherme Pereira das Neves, da UFF, opina que talvez o redesenho leve muito tempo para ser conhecido pelo grande público. “O resultado do mapa é importantíssimo, mas acho que difícil que deem importância a isso. É um tipo de resultado que se tem na história que não representa uma nova teoria. É uma correção de rumo”. Para ele, existe “um problema específico de como o Brasil lida com sua história”. Exemplo disto seria “a pouca importância que se dá a essa história. Há exemplos de best-sellers que romanceiam personagens e eventos [do nosso passado], mas que repetem os grandes jargões. Não existe preocupação em provocar o leitor a pensar uma coisa diferente. Portanto, a história não tem função crítica no Brasil, é uma memória identitária”.Mapa redesenhado pelo engenheiro Jorge Cintra mostra que as capitanias do norte da colônia eram divididas de forma vertical e não horizontal, como se pensava.
Para além deste problema estrutural da relação do país com seu passado, se existe uma esperança de que a releitura chegue ao grande público, ela vai demorar ao menos três anos para se materializar, já que a seleção do MEC de material didático para a rede pública de ensino (refeita neste intervalo de tempo) acabou de ser concluída. Por enquanto, não há indícios de que editoras deste tipo de livro publicarão o estudo em suas páginas.

terça-feira, 16 de julho de 2013

Ciro Flamarion Cardoso: um grande historiador que se foi (Revista de Historia da BN)

Adeus a um gigante

Revista de História da Biblioteca Nacional, 1/07/2013

Morreu, no sábado, 29 de junho de 2013, o professor Ciro Flamarion Cardoso. O corpo do historiador foi velado no domingo, em Niterói. Em homenagem a ele, republicamos entrevista realizada em 2012, pouco antes de se aposentar.


Foto: Felipe Varanda
Foto: Felipe Varanda
Ele nunca fugiu de polêmicas. O professor Ciro Flamarion Cardoso plantou ventos na historiografia durante décadas. No último sábado (29), poucos meses após se tornar emérito da Universidade Federal Fluminense, Cardoso faleceu. O corpo foi velado no domingo, em Niterói. Em homenagem ao gigante da historiografia, republicamos uma entrevista realizada com ele, que saiu na Revista de História de setembro do ano passado. Além disso, também liberamos o artigo do professor Antônio Carlos Jucá, da UFRJ, que relata com carinho uma aula dada pelo professor que formou muitas gerações de historiadores.Mesmo aposentado, Ciro Cardoso continuava produzindo. Em fevereiro deste ano, por exemplo, assinou o texto Tempos espetaculares, publicado na seção Educação, da RHBN do mês de março.
No início da carreira, Flamarion Cardoso recusou-se a acreditar em teorias fatalistas sobre o passado brasileiro. Ao contrário do pensamento dominante nas décadas de 1960 e 1970, defendia que as sociedades americanas do período colonial não eram apenas uma extensão do sistema europeu, mas tinham lógicas próprias. Nos anos seguintes, viu a confirmação das suas suspeitas. Quando ninguém esperava, mudou de rumo: decidiu seguir uma antiga paixão e virar egiptólogo.
 Ele pesquisou, escreveu, orientou teses e ensinou por mais de 30 anos. Mas não abandonou os outros interesses: ao lado destes temas, a crítica ao marxismo – corrente à qual ele próprio era filiado. Remando contra a maré, combateu uma visão linear da História, pregada por partidos políticos e estudiosos de esquerda. Mas ainda não acabou: hoje vira suas baterias contra o pós-modernismo e uma das vedetes da historiografia mundial – a nova história cultural.
Pontual, claro e sem meias palavras, Ciro conversou com a Revista de História na Universidade Federal Fluminense, em Niterói. E, sem perder o hábito, disparou: “O que mais me incomoda é uma historiografia que não se mostra preocupada com o mundo ao qual pertence”. A julgar pelo histórico do nosso entrevistado, não é má ideia observar em que direção navega – mesmo que seja contra o vento.

 
Leia também
REVISTA DE HISTÓRIA Por que as pessoas estão, aparentemente, mais interessadas por História?
CIRO FLAMARION CARDOSO Não acho que seja algo novo. Desde que institucionalizaram a pós-graduação no país, na década de 1970, o número de cursos vem aumentando. Ainda assim, a História não é um curso dos mais populares. O curioso é que as pessoas têm buscado a História para estudar o século XX, o século XXI, períodos cada vez mais recentes, mais próximos de nós.
RH É a chamada História do tempo presente.
CFC Pois é.Ou História imediata. Eu me pergunto: por que esse tipo de pessoa não vai fazer, por exemplo, Sociologia? Acho que há várias respostas. As pessoas acreditam que a História oferece uma informação talvez mais articulada. Por mais que se afirme que ela acabou, a História ainda tem uma dialética: passado, presente, futuro.
RH E a Antropologia?
CFC Eu tenho a impressão de que a Antropologia se renovou mais do que a Sociologia. Ambas surgiram mais ou menos na mesma época, mas, ao longo do tempo, a Sociologia ficou presa a certos parâmetros e bases que não mudaram tanto. A Antropologia nos apresentou novidades muito importantes. Talvez a mais interessante tenha a ver com o conjunto de tendências interacionistas também conhecidas como individualismo metodológico. Estou me referindo a nomes como Jon Elster e Pierre Bourdieu, que encabeçaram a tendência de se concentrar não somente nas ações e interações individuais, mas também na institucionalização de uma parte do resultado delas, que constitui, afinal de contas, o social. Se assim não fosse, como explicar fenômenos de longa duração como o da guerra entre os Dâni da Nova Guiné, com um longo ciclo “ritual” pouco mortífero e um curto ciclo “secular” ou “mundano” marcado por grandes carnificinas? Se as ações e interações individuais só criassem fenômenos evanescentes, não seria de se esperar exemplos desse tipo. E as pessoas não teriam de “aprender”, mediante processos de socialização, a sociedade em que nascem, como acontece. Isso é uma maneira de ver mais interessante que a da Sociologia, que na sua origem tendeu a criar um fato social separado das interações individuais, nunca ficando muito claro o que seria tal “fato social”.
Foto: Felipe Varanda
Foto: Felipe Varanda
RH Quais são os principais problemas nessa aproximação com outras áreas?
CFC Ao se apossar da Antropologia, o historiador deve ficar ciente de que não está fazendo Antropologia. O que ele está fazendo é uma história “antropologizante”, mais voltada para interações sociais vistas no detalhe. Outro problema é a confusão entre temas e estratégias. Por exemplo, a micro-história não é um tema, é uma estratégia, uma forma de recortar o objeto. História comparada também não é um tema, é um recorte: trabalhar com mais de um caso ao mesmo tempo e comparar parâmetros.
RH Mesmo alterando o foco, não se perde a noção do todo.
CFC Isso é o mais interessante: o diálogo entre micro e macro, como na escola italiana, com Carlo Ginzburg e Giovanni Levi. Essa aproximação com a Antropologia já dura várias décadas e talvez seja o aspecto mais novo e mais interessante da História nos últimos tempos, desde que feita adequadamente. Meu último curso na UFF, de extensão, chamou-se “Antropologia para Historiadores”. Não acredito na interdisciplinaridade, e sim na transdisciplinaridade. Ou seja: trazer conteúdo de uma disciplina para outra, segundo as lógicas desta outra que recebe.
RH E qual é a lógica do historiador?
CFC O historiador é profundamente empirista. Ele tem preocupação com a fonte, com o dado, com o fato, com o processo. Quando você pergunta a alguém o que está estudando em História, recebe uma resposta do tipo: “Ah, eu estou estudando a Revolta da Vacina”. Uma coisa bastante definida no tempo, um processo delimitado. O antropólogo pode se interessar, por exemplo, por campesinato ou religião de modo geral, seja na Nova Guiné, na América Latina ou no Caribe. Um historiador só se sente seguro se o que ele disser for apoiado em grande quantidade de documentação. Por isso tem dificuldade em generalizar.
RH O discurso historiográfico se transformou nas últimas décadas?
CFC O mundo deu uma guinada no período de 1955 a 1965. Uma série de transformações se tornou visível nessa década, a começar pela reconfiguração do mercado de trabalho e por uma urbanização muito radical. A História não dava mais conta da vida que as pessoas de fato viviam. As relações sociais tradicionais e os pontos de referência, como casamento, família, sindicato, partido e nação estavam se desgastando muito rapidamente. O movimento francês ocorrido em maio de 1968 e outros ocorridos no mesmo ano em várias partes do mundo eram a manifestação de um mal-estar diferente. Mudaram as relações pessoais, e havia certa insegurança em matéria ética também. As pessoas talvez não soubessem muito bem o que andava mal, o que as incomodava. Nas últimas décadas, a sociedade não mudou só de etapa; ela se tornou radicalmente outra. Por isso é que hoje em dia se procuram novas maneiras de chamá-la. “Sociedade da informação”, não é isso? Ou coisas assim. Porque, de fato, os parâmetros antigos se aplicam mal. Daí a tal “História em migalhas”, dividida em um número muito grande de perspectivas, de planos, de objetos, de maneiras de trabalhar. As respostas ainda são parciais. Há muitas lacunas.
RH Alguma solução à vista?
CFC Edgard Morin tem um livro chamado Para sair do século XX, em que defende a ideia de juntar todas as perspectivas já propostas em uma só. O que é impossível, não é? E não é desejado. Eu acredito que a gente tenha mais perguntas do que respostas. Os grandes objetos construídos nos paradigmas de antes vão perdendo força, fossem eles quais fossem: marxista, weberiano ou o que quiserem, simplesmente porque o objeto mesmo – as sociedades humanas – mudou.
RH Como surgiu seu interesse pela História?
CFC Eu comecei gostando de História Antiga, mais exatamente de egiptologia. Era adolescente, tinha 13 anos, e estava fascinado pelo Egito Antigo. Devo dizer que naquela mesma época eu também gostava muito de Astronomia e de insetos, especialmente as formigas. Além disso, fui músico profissional, tocava piano. Só abandonei a música como algo central quando já estava na faculdade, porque não aguentei levar as duas coisas. Tive que fazer uma opção.
Foto: Felipe Varanda
Foto: Felipe Varanda
RH Chegou a se arrepender em algum momento?
CFC  Não. Foi a opção certa. Eu era bom no piano, mas nunca seria de primeira linha. Em História, acho que pelo menos fui mais original.  Mas tive de convencer primeiro a minha família. Meu pai era filho de um farmacêutico do interior de Minas. Ele queria muito, com muita força, que eu fosse médico. Mas eu não tinha a menor vocação. A resistência de meu pai só cedeu às vésperas do vestibular, feito em 1962.
RH Como foi o período na universidade?
CFC Meu interesse era por História Antiga. No entanto, o catedrático de História Antiga, na atual UFRJ, era o Eremildo Luiz Vianna, o maior dedo-duro do Rio. Ele teria um papel direto naquela caça às bruxas de 1968, quando vários professores foram aposentados. Então, não havia a mínima condição de trabalhar com ele. Eu acabei sendo atraído pela História Moderna e Contemporânea e pela professora Maria Yedda Linhares. Trabalhei com ela até ir para a França no doutorado. Foi Maria Yedda quem me conseguiu a bolsa francesa, aliás, baixíssima. Vivi muito pobremente durante os quatro anos em que fiz o doutorado na França. Mas, é claro, havia a cidade universitária, excelentes bibliotecas e muitas atividades culturais gratuitas. Além disso, cheguei a Paris poucos meses antes de maio de 1968. Portanto, vivi o episódio lá, o que para um historiador foi uma experiência muito interessante. Isso, por um lado, confirmou por um tempo minha orientação para História Moderna. Minha tese foi sobre a Guiana Francesa no século XVIII.
RH E voltou logo ao Brasil?
CFC Queria voltar quando acabasse o doutorado, mas o mar não estava pra peixe. As pessoas diziam: “Não volte, fique por aí. Você foi arrolado em três Inquéritos Policiais Militares (IPMs) e será preso ao chegar aqui”. Usei esse período para cobrir o que eu via como uma deficiência muito grande, minha e em geral do Brasil, que era a falta de conhecimento de teoria e metodologia. Não é por acaso que o primeiro livro mais ou menos de importância que eu fiz foi sobre metodologia [Los métodos de la Historia, 1974], quando fui trabalhar na Costa Rica. Uma colaboração com Héctor Pérez Brignoli, que tinha sido meu colega na França. Voltei para o Brasil com a Anistia, em 1979, depois de ter trabalhado na Costa Rica e no México.
RH Voltou como professor de História da América?
CFC Sim, fui contratado para trabalhar na pós-graduação da UFF, que na época tinha as áreas de Brasil e América, então fiquei com História da América.Isso é outra concepção equivocada: separar a História em fatias.Diferenciar HistóriaGeral de História do Brasil. O que é “História Geral”? Ainda hoje, certos programas de pós-graduação separam História da América e História dos Estados Unidos. Os Estados Unidos estão onde? Em Marte? Misturam o critério cronológico com o geográfico de uma maneira absurda. Tem uma coisa meio moralista também de achar que o Brasil precisa ser prioritário de maneira absoluta e a História Geral só deve se envolver naquilo que for útil à História do Brasil. A maioria das pessoas pensa que essa é uma posição de esquerda, mas não: isso nasceu com o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Nasceu de uma concepção nacionalista romântica de século XIX. Então, Idade Média tudo bem, mas só o final dela. Portugal no século XIV e XV, sim. Alta Idade Média, não. Não estou negando a importância da História do Brasil; acho correto esse compromisso. O problema é o exclusivismo. A história humana é uma coisa só.
RH Sua escolha da História Antiga, então, deve ter causado estranheza.
CFC Desde a época de estudante, havia certo tipo de pessoa que dizia que era um absurdo fazer Antiga e Medieval no Brasil: “Não houve aqui História Antiga, nem houve Medieval, portanto, não há museus importantes, não há sítios arqueológicos, não há uma vivência desse tipo de passado”. Em 1981, dois anos depois que voltei ao Brasil, houve uma lei que permitia às pessoas entrarem para o quadro universitário sem concurso. Os que, como eu, já estivessem lá por contrato, poderiam escolher a área. Eu escolhi Antiga e Medieval. As pessoas ficaram estarrecidas. Não conheciam minha trajetória.
RH Como se encontra o Egito Antigo em nossos museus e universidades?
CFC  A melhor coleção da América Latina é a do Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Mas não é lá grandes coisas. É uma coleção em boa parte descontextualizada. A maioria das peças não tem indicação de procedência; nem sempre há uma cronologia bem estabelecida. E, para meus próprios interesses de pesquisa, tem pouco a oferecer, porque predominam as peças de períodos muito tardios. Outro problema para quem atua na área é a aprendizagem da língua. Nos Estados Unidos e na Europa ainda é possível estudar latim ou grego com certa facilidade. No Brasil, é difícil. Imagine egípcio.
RH O senhor chegou a ensinar o idioma?
CFC Ensinei durante muitos anos, de 1989 até me aposentar, este ano. Fui o único a dar esse curso durante muito tempo. Atualmente, ele também é dado no Museu Nacional. Este é um problema que não existe somente no Brasil. O interesse pela egiptologia caiu bastante, ou, mais exatamente, a decisão, de parte dos governos, de subvencionar adequadamente o setor: na França, por exemplo, o número de cátedras de egiptologia foi sendo cortado, e hoje é a metade do que chegou a ser. A novidade é que o campo tem crescido muito no próprio Egito: antes, os egiptólogos egípcios eram todos formados na Europa; agora, muitos são formados lá mesmo.
RH Eles também têm controlado mais os seus sítios arqueológicos?
CFC  Sim. Os egípcios têm evitado as saídas de peças.  Hoje é muito mais difícil exportar peças do Egito. Mas a reivindicação do retorno de algumas obras que estão nos Estados Unidos ou na Europa ainda não foi atendida. E dificilmente será. Ou vocês acham mesmo que Berlim vai devolver o busto de Nefertiti? Ou, analogamente, que o Museu Britânico vai abrir mão dos mármores do Paternon para a Grécia?
RH Como o senhor se inseriu na historiografia brasileira na década de 1970?
CFC Os modelos usados no Rio eram diferentes dos de São Paulo. O professor Nelson Werneck Sodré, por exemplo, nunca teve grande influência em São Paulo, embora no Rio ele tenha sido uma figura destacada. Aquelas noções de um marxismo que via etapas universais, a ideia de uma unilinearidade dos modos de produção que levariam ao comunismo... Naturalmente, isto não me convencia, já que acreditava na multilinearidade da evolução. Eu me inseri nas discussões sobre os modos de produção na América Latina da época colonial por esse viés, como crítica de um marxismo quadrado, stalinista, fechado e unilinear.
 RH Era uma forma de superar a crítica às ideias de Caio Prado Jr. e Celso Furtado?
CFC Eles eram bastante influentes, defendiam a ideia de que o essencial na nossa trajetória foi a extração de excedente e as relações comercias com a Europa. A América Latina como quintal da Europa, o Brasil servindo a uma lógica europeia de acumulação. Eu sempre achei que na América Latina, mal ou bem, havia sociedades, e não quintais. A escravidão, para mim, não era um campo de concentração, em que escravos inermes estavam à mercê de senhores cruéis. Euvia aquilo como uma sociedade onde o negro se inseria, negociava. O mais importante era dizer: “Nós temos na América colonial sociedades com uma lógica própria e que não necessariamente dependem tanto assim ou tão totalmente do sistema atlântico de comércio”. Acho que minha maior contribuição neste sentido foi a tese sobre a Guiana Francesa. Quando comecei esses estudos, não havia tantos conhecimentos e pesquisas concretas sobre o tema.Nas notas, eu comparava sistematicamente a Guiana com o Brasil, com as Antilhas, com o sul dos Estados Unidos e com as outras sociedades escravistas da América. As pessoas tomavam muito ao pé da letra a questão do modo de produção escravista colonial como tal, e isso não era o mais importante para mim. As classes dominantes coloniais nem sempre perdiam nos embates com as metrópoles enfraquecidas dos séculos XVII e XVIII, não é? As classes dominantes daqui ganhavam certas coisas, conquistavam certas coisas.
RH Por que o senhor deixou a História da América de lado?
CFC  Ainda leio, tenho interesse pelo assunto, mas não participo mais dessa discussão. Eu posso ser uma exceção no sentido de que eu mudo muito de assunto. De vez em quando eu quero sair do assunto em que estou trabalhando e trabalhar em outra coisa.
RH Essa postura é malvista no meio?
CFC Não tenho a menor ideia, e também não me importa. Sem dúvida, eu sou minoritário em minhas posições hoje em dia. Continuo muito marxista em muitas coisas, e o marxismo está fora de moda há décadas, não é isso? Não me importa, porque não é por aí que vou escolher o que eu faço, o que eu acho.Eu sou uma pessoa de briga. Sempre procurei a polêmica [risos]. Alguns debates foram bastante árduos. Acabei criando inimigos, até porque na América Latina as pessoas têm o hábito de achar que ser criticado significa ser atacado pessoalmente. O debate acadêmico é necessário para que a ciência avance, mas no Brasil há uma personalização muito grande das críticas.
RH Quais são os seus combates atuais?
CFC Nossa historiografia está voltada para duas coisas que costumo combater: a nova história cultural e o pós-modernismo, nessa ordem. Até porque o pós-modernismo não é lá muito importante no Brasil, ao contrário dessa nova história cultural. Ela insiste na importância do cultural e no fato de que a cultura não é gerada diretamente pelo econômico ou pelas estruturas. Para mim, o cultural tem uma base social. Não faz sentido estudar a cultura sem ver essa base social. E tem o extremo do pós-modernismo: dizer que não há nenhuma verdade, apenas versões. O professor [Francisco José Calazans] Falcon escreveu várias vezes que o historiador, por mais vociferante que seja nessa afirmação da inexistência de verdades, sempre acha que o seu tema existe [risos]. Os pós-modernos não fazem desconstrução de si mesmos, só dos outros. Mas o que mais me incomoda é uma historiografia que não se mostra muito preocupada com o mundo ao qual pertence. Numa época de globalização, por exemplo, valorizam-se não a economia ou as estruturas sociais, como seria de se esperar, mas sim aspectos subjetivos e culturais.
Verbetes
Jon Elster
Filósofo norueguês, professor de Racionalidade e Ciências Sociais no Collège de France desde 2006. Para entender a política e a sociedade de uma determinada época, ele parte das motivações das ações individuais e suas relações.
Pierre Bourdieu (1930-2002)
Sociólogo francês, discutiu em suas obras temas como educação, cultura, arte e política, utilizando métodos de várias disciplinas. Estudou particularmente os mecanismos sociais que estão por trás das diversas formas de dominação.
Carlo Ginzburg
Historiador italiano conhecido mundialmente por seus estudos no campo da micro-história, nos quais aborda especialmente a relação entre religiosidades e Inquisição. Entre seus estudos mais famosos está O queijo e os vermes (1976).
Giovanni Levi
Historiador italiano, participou da criação da micro-história como método de análise, especialmente dos sistemas econômicos e suas redes sociais. Seu trabalho mais conhecido é A Herança Imaterial, publicado na Itália em 1985.
Maio de 1968 na França
Símbolo de uma década de transformações nos valores sociais marcadas, sobretudo, por movimentos e protestos estudantis. A Guerra do Vietnã, a desigualdade dos direitos civis e os tabus sexuais foram temas recorrentes e deram início a uma volumosa produção intelectual nos campos da Arte, da Filosofia e da História.  
Edgar Morin
Sociólogo francês, conhecido por seus estudos sobre inter e transdisciplinaridade. Em O Método– seis volumes publicados entre 1977 e 2004 –, apresenta sua crítica ao modelo de pensamento das sociedades “desenvolvidas” baseado na determinação causal e no tempo linear.
Nelson Werneck Sodré (1911-1999)
Nascido no Rio de Janeiro, foi militar do Exército e historiador de orientação marxista. Autor, entre outros livros, deCapitalismo e Revolução Burguesa no Brasil (1990).
Francisco José Calazans Falcon
Historiador nascido no Rio de Janeiro, participou do estabelecimento do ofício de historiador nas universidades brasileiras.Seu livro A época pombalina (1982) é referência central sobre o governo do marquês de Pombal (1750-77).

Obras do autor
Agricultura, Escravidão e Capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1979.
Uma introdução à História. São Paulo: Brasiliense, 1981.
O Egito Antigo. São Paulo: Brasiliense, 1982.
Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus, 1997 (org.).
A ficção científica, imaginário do mundo contemporâneo: uma introdução ao gênero. Niterói: Vício de Leitura, 2003.
Um historiador fala de teoria e metodologia: Ensaios. Bauru: Edusc, 2005.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

O Barao, visto por Rubens Ricupero (RHBN)


O desenhista do Brasil

Ao negociar com os vizinhos cada palmo das fronteiras, o barão do Rio Branco criou uma cultura de paz impensável no mundo atual

Rubens Ricupero
Revista de História da Biblioteca Nacional, 1/2/2012 
  • O jornal A Noite resumiu o sentimento geral ao abrir a manchete “A morte de Rio Branco é uma catástrofe nacional” em 10 de fevereiro de 1912. Às 9h10 da manhã, expirara em seu gabinete de trabalho aquele que era considerado “o maior de todos os brasileiros”. O destino do barão foi paradoxal. Monarquista convicto, teve papel fundamental na legitimação da República de 1889, que começara sob os piores auspícios: a inflação do Encilhamento, a ditadura militar de Floriano, a tragédia sanguinária de Canudos, a repressão à Revolta da Armada e a Rebelião Federalista no Sul. Foram os êxitos diplomáticos de Rio Branco, ainda antes de se tornar ministro, nas definições de limites com a Argentina e a França-Guiana Francesa, que forneceram ao governo republicano os primeiros sucessos de que precisava desesperadamente.  
    Algo parecido ocorreu com sua projeção pessoal. Viveu semiesquecido em postos obscuros na Europa por 26 anos. Só a partir dos 50 anos (morreria com 66) alcançaria o reconhecimento tardio. Desde esse momento, no entanto, acumulou tantas vitórias, em especial como ministro das Relações Exteriores durante quase dez anos (1902-1912) sob quatro presidentes, que ofuscou todos os demais. Nenhum outro diplomata de carreira, em qualquer país, atingiu como ele o status de herói nacional de primeira grandeza, culminando com a reprodução da sua efígie no padrão monetário. Entre 1978 e 1989, a nota de 1.000 cruzeiros, a de maior valor, era chamada pelo povo de “barão”.
    O futuro barão nasceu em 20 de abril de 1845 como José Maria da Silva Paranhos Júnior na velha Travessa do Senado, atual Rua 20 de abril, no Centro da cidade, num sobrado que se pode ver ainda hoje no Rio de Janeiro. Fez seus estudos no Liceu D. Pedro II e na Faculdade de Direito de São Paulo, transferindo-se no último ano para Recife, onde se formou. No começo, hesitou sobre o caminho a seguir: foi professor, promotor público e deputado por Mato Grosso em duas legislaturas.
    (...)
    Ler o restante na Revista de História da Biblioteca Nacional