Um medalhão em Saramandaia
Versos, citações em
latim, adjetivos em profusão, citações históricas: a teoria do medalhão, de
Machado de Assis, estava toda ali no discurso de posse de Ernesto Araújo.
Lembranças também dos professores Aristóbulo Camargo e Astromar Junqueira, de
Dias Gomes
Luiz Antonio Simas
Revista Época, 05/01/2019
- 13:47 / Atualizado em 05/01/2019 - 14:22
O escritor carioca Machado de Assis
publicou o conto Teoria do Medalhão em 1881, no jornal Gazeta
de Notícias . A trama é simples: Janjão está completando 21 anos, a
maioridade naquela época. Logo depois do jantar de comemoração do aniversário,
o jovem é chamado pelo pai para uma daquelas conversas definitivas sobre o
futuro.
Em resumo, o pai aconselha o filho a ser o
que ele mesmo não conseguira: um medalhão. O que seria isso? Basicamente, o
medalhão é “grande e ilustre, ou pelo menos notável”. Para chegar ao auge entre
os 45 e os 50 anos, período em que o medalhão geralmente desabrocha, Janjão
deveria se preparar desde cedo, aparelhando o espírito para evitar o perigo das
ideias próprias.
Dentre diversas dicas para que o status de
medalhão seja alcançado, o pai de Janjão ressalta a importância da linguagem.
Cito: “podes empregar umas quantas figuras expressivas, a hidra de Lerna, por
exemplo, a cabeça de Medusa, o tonel das Danaides, as asas de Ícaro, e outras,
que românticos, clássicos e realistas empregam sem desar, quando precisam
delas. Sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres, brocardos
jurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-los contigo para os discursos de
sobremesa, de felicitação, ou de agradecimento. Caveant consules é
um excelente fecho de artigo político; o mesmo direi do Si vis pacem
para bellum ”.
Por fim o pai sugere que o medalhão não
chegue a nenhuma conclusão que já não tenha sido chegada por outros, mas faça
isso de forma aparentemente original, e evite os riscos da ironia, coisa de
“céticos e desabusados”.
Ao escrever o conto Machado satirizava uma
turma da sociedade aristocrática e bacharelesca que misturava, nas mesmas
proporções, mediocridade e pedantismo. Os medalhões difundiam ideias rasteiras
recheadas de citações, tentavam impressionar os populares com demonstrações de
conhecimento das coisas do povo e, ao mesmo tempo, comover os eruditos com
axiomas clássicos, enfiando três ou quatro máximas em outras línguas para
arrematar.
A Teoria do Medalhão me veio à memória
quando escutei o discurso de posse do novo chanceler brasileiro, Ernesto
Araújo. A linguagem do medalhão estava toda ali: citação em grego de versículo
do Evangelho de São João, citação da banda Legião Urbana em música com versos
de Camões, citação em latim do brasão da Ordem de Rio Branco, referências a
Tarcísio Meira, Raul Seixas e José de Alencar, menção a uma série de ficção
científica e, para arrematar, a Ave Maria em Tupi, de acordo com a tradução do
padre José de Anchieta. No meio do sarapatel, ataques ao globalismo, exortações
ao caráter libertador de Bolsonaro e saudações aos governos conservadores de
direita da Europa.
Confesso que, até me recordar da Teoria do
Medalhão, comecei a considerar o arrazoado do ministro similar aos discursos
que dois personagens de Dias Gomes faziam nas novelas Saramandaia e Roque
Santeiro : os professores Aristóbulo Camargo e Astromar Junqueira.
Versos, citações em latim, adjetivos em profusão, citações históricas eram
comuns aos homens das letras, sempre vestidos de preto, criados por Dias.
Registre-se que Aristóbulo e Astromar, nos intervalos entre um discurso e
outro, viravam lobisomens.
Outro detalhe chama atenção no discurso do
chanceler. Em alguma medida, ele parece ir em direção oposta à comunicação do
governo. Enquanto o presidente e outros assessores buscam construir imagens
populares de pessoas comuns, com sucesso, o chanceler aparece com fumos de
erudição, saca do colete dezenas de autores, arremata tudo isso com sentenças
bíblicas em línguas clássicas e, dando uma de Policarpo Quaresma, enfia no meio
um tupi-guarani suspeito.
O discurso do chanceler, digno de um
medalhão bem sucedido, sugere duas possibilidades: uma delas é a da confirmação
da atemporalidade da obra de Machado de Assis. O Bruxo do Cosme Velho, ao
diagnosticar a sua época, permanece atual. O que escreveu em 1881 continua
irretocável em 2019; coisa que só faz afirmar o preto do Morro do Livramento
como um gigante das letras. A outra possibilidade é a de que o chanceler de
2019 seja um exemplo bem acabado de brasileiro de 1881.
A minha impressão é a de que elas não se
excluem: o escritor do século XIX continua vivendo no século XXI. O chanceler
do século XXI continua vivendo no século XIX.
Luiz Antonio Simas é historiador, autor de
15 livros, ganhador de dois prêmios Jabuti – entre eles o de Livro do Ano de
Não Ficção de 2016, com Nei Lopes
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O GLOBO
ONLINE
Deus e o diabo na terra da política externa
Chanceler
promete diplomacia que reflita religiosidade popular, mas será que brasileiros
são contra o secularismo?
Dawisson
Belém Lopes*
O Globo
online, 06/01/2019 - 04:30
Ernesto Araújo faz seu discurso
de posse, no qual disse que o Brasil "está perdido fora de si mesmo"
Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil/2-12-2018 / Agência O Globo
Há algo de
farsesco, ainda que bastante engenhoso, no modo como a política externa do
governo Bolsonaro vem buscando legitimar-se publicamente. O principal impulso
ao processo é dado pelo chanceler Ernesto Araújo, homem de fortes convicções
morais, admirador dos nacionalismos românticos e da herança ocidental.
Trata-se, ademais, de um fiel devoto de Donald Trump.
Araújo vem
se aproximando, nas manifestações feitas em seu blog pessoal e nas peças que
publica na imprensa, do apelo popular de Jair Bolsonaro à religiosidade do povo
brasileiro. A fórmula da nova política externa, segundo o chanceler, terá de
alinhar-se a essas circunstâncias.
Se a gente
brasileira é religiosa, logo a política externa, praticada por um presidente
com mandato democrático, também deverá sê-lo. O Brasil, entende Bolsonaro,
necessita pautar-se nas suas relações internas e internacionais por valores
judaico-cristãos, pois é isso que o povo reivindica na atualidade.
Do
raciocínio deriva o receituário da política externa bolsonarista: o país
precisa rejeitar o “globalismo” e o “marxismo cultural”, tendências emanadas de
foros diplomáticos e editoriais internacionais, desprovidas do empuxo popular
e, alegadamente, corruptoras da soberania nacional e do patriotismo. Eis o
bilhete para a “libertação do Itamaraty” – na expressão carregada de Araújo.
Para tanto,
devem-se recusar peremptoriamente as resoluções das entidades multilaterais e
juntar-se à liga dos regimes fortes e cultores das tradições ocidentais.
Estados Unidos, Itália, Polônia e Hungria, nações cristãs, credenciam-se como
parceiras preferenciais. Israel, o Estado judaico, candidata-se a aliado
incondicional.
Percebe-se,
todavia, que a equivalência “voz do povo, voz de Deus”, proposta pelos
bolsonaristas como o verdadeiro elo perdido da autoridade, resulta logicamente
falaciosa. Se é bem verdade que a sociedade brasileira preza a dimensão
religiosa, não se extrai daí que os cidadãos sejamos refratários ao secularismo
como princípio organizador da vida política.
Mero
estereótipo
De resto, a
experiência religiosa dos brasileiros, como já amplamente difundido pelos
antropólogos, é de um tipo sincrético, não acomodando no cotidiano os rigores
da ortodoxia. Somos o país dos milhões de cristãos “não praticantes”, das
infusões e dos intercâmbios entre as variadas denominações de fé.
Ao
substituir as máximas mundanas do realismo político por princípios idealistas e
metafísicos, Araújo e colaboradores recriam o ciclo de produção da política
externa brasileira. Tira-se o povo da conversa, reduzindo-o a mero estereótipo
de uma expressão religiosa. Habilmente, o chanceler e seu grupo promovem jogos
filosóficos e de linguagem cujo saldo é a elitização decisória em política
externa.
Explica-se:
quando o mote da política externa democrática era anteriormente evocado, imaginava-se
uma tensão constitutiva entre os aristocráticos homens de Estado e a plebe. A
democratização poderia até avançar, lenta e dialeticamente, por meio de choques
de interesses. Por um truque retórico, contudo, essa tensão dissipou-se no
discurso corrente, dado que os novos mandatários imaginam falar pelo e para o
povo, interpretando de maneira peculiar os sentidos da sua fé.
Os
diplomatas profissionais, integrantes da comunidade cosmopolita global,
tradicionalmente autorizados a pronunciar-se sobre as relações exteriores do
Brasil, dão lugar a teocratas e nativistas. Dentro desse esquema de coisas,
saber técnico, trajetória institucional e acúmulo acadêmico não se tornam,
necessariamente, alavancas de poder. Afinidade ideológica e proximidade com a chefia
do Poder Executivo, sim.
Existe,
ainda, um inesperado problema empírico com a narrativa diplomática em
construção: segundo levantamento do instituto Datafolha, divulgado em 27 de
dezembro último, 66% dos brasileiros não querem ver o país associado aos Estados
Unidos nos assuntos estrangeiros. É um rechaço popular emitido em alto e bom
som aos caminhos vislumbrados pelo novo governo federal.
*
Professor de política internacional da UFMG, é o autor de “Política Externa e
Democracia no Brasil: Ensaio de Interpretação Histórica” (Ed. Unesp, 2013) e
“Política Externa na Nova República: Os Primeiros 30 Anos” (Ed. UFMG, 2017).
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