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domingo, 18 de fevereiro de 2024

O Alienista ensina: “a loucura dos grandes precisa ser vigiada” - José Roberto de Castro Neves

O Alienista ensina: “a loucura dos grandes precisa ser vigiada”

José Roberto de Castro Neves

(Recebido de Maurício David, em 18/02/2024, a quem agradeço)

 

Até o final da década de setenta do século XIX, Machado de Assis publicara romances bem escritos e bem-comportados, como A mão e a luva, Helena, Iaiá Garcia. Seguiam um padrão, uma estética própria das novelas de amor. No final de 1878, Machado tem um problema grave na sua vista, fica incapacitado de ler e é obrigado a se cuidar. Ele e Carolina, sua mulher, passam uma temporada em Nova Friburgo, região serrana do Rio de Janeiro, onde permanecem até março de 1879. 

Naquele período de cegueira, Machado vê algo diferente. Enquanto se curava, Machado elabora O alienista – um conto? Uma novela ou um pequeno romance? – e inicia a redigir Memórias póstumas de Brás Cubas. Em 1881, publica Memórias póstumas. No ano seguinte, 1882, O alienista é incluído, com outros contos, em Papéis avulsos. 

Machado havia cruzado uma ponte. Mergulhou no realismo. Mais do que isso, mergulhou o Brasil no realismo. O alienista é uma obra-prima do sarcasmo. O médico e cientista Simão Bacamarte – o alienista – desfruta enorme reputação. Depois de estudar na Europa, volta consagrado para o Brasil, estabelecendo-se na vila de Itaguaí. É um protegido das cortes. Bacamarte se entende como devoto adorador da ciência. Para ele, a ciência cura todos os males. Casa-se com a jovem viúva Dona Evarista, “não bonita nem simpática”. Faz isso por acreditar que Dona Evarista reunia boas condições fisiológicas – num equívoco do médico, pois sua mulher não lhe rendeu os esperados herdeiros. Simão Bacamarte consegue construir, com dinheiro público obtido por meio de impostos (passou-se a tributar os penachos utilizados pelos cavalos nas carruagens fúnebres), um monumental nosocômio, que denominou sanatório da Casa Verde, por conta das cores de suas janelas. O hospital seria dedicado a cuidar dos desprovidos de sanidade mental. Cabia a Bacamarte diagnosticar o louco. Em seguida, mandava retê-lo no sanatório. 

O cientista estava aficionado em suas pesquisas e teorias. Rapidamente, instaura-se o terror em Itaguaí. Sem critério objetivo, o alienista Bacamarte determinava a reclusão das mais diversas pessoas. Costa, um sujeito boa praça e estimado na cidade, foi levado ao hospital por emprestar sem cobrar juros, o que acabou por lhe trazer a ruína econômica. Um outro foi também preso no sanatório por gostar de observar as flores. Um rapaz teve sua reclusão ordenada por fazer um poema em homenagem à Dona Evarista. 

Bacamarte identifica um sem-fim de loucuras e transtornos. O número de internados cresce exponencialmente. Ninguém estava a salvo. Era o terror. A comunidade de Itaguaí se rebelou contra os desmandos do alienista. O barbeiro Porfírio, munido de aspirações políticas, lidera o movimento contra Bacamarte e as prisões arbitrárias no hospício, no que ficou conhecido, nos anais da cidade, como a Revolta dos Canjicas – a partir do apelido do barbeiro. 

A guarda real, os “Dragões”, teve que intervir, protegendo a Casa Verde da destruição pela gente da cidade. No momento crucial da Revolta, quando o capitão dos Dragões exige a rendição dos insurretos, o barbeiro responde heroicamente ao capitão: “Não nos dispersaremos. Se quereis os nossos cadáveres, podeis tomá-los; mas só os cadáveres; não levareis a nossa honra, o nosso crédito, os nossos direitos, e com eles a salvação de Itaguaí.” 

Machado qualifica essas palavras, naquele momento, como imprudentes. “Era a vertigem das grandes crises”. Entretanto, a resistência reverberou. Alguns Dragões mudaram de lado. Rapidamente, deu-se uma reviravolta. O capitão se rendeu, entregando sua espada ao barbeiro, líder do movimento. O barbeiro Porfírio toma o poder da vila. Faz isso alegadamente em benefício do Rei. Passa a se qualificar como o “Protetor da Vila em nome de Sua Majestade e do povo”. 

O poder de Porfírio dura pouco. Como o barbeiro tinha aspirações políticas, tentou compor com Simão Bacamarte, que seguiu no comando do hospício. As internações não cessam. O barbeiro perde credibilidade e apoio. Outro barbeiro, João Pina, inicialmente partidário de Porfírio, volta-se contra ele. Há a deposição do Canjica. O comando público se esgarça. 

Quando boa parte da cidade estava internada no hospício, o alienista Bacamarte, de forma surpreendente, acaba por rever suas verdades. Muda de orientação. Logo adiante, mudará outra vez, entendendo que sua teoria anterior estava equivocada. Liberta todos os “loucos”, e ele próprio se interna na Casa Verde. Ele passa a ser o objeto de seus estudos. 

Pouco mais de um ano se passa e Bacamarte morre, “sem ter podido alcançar nada”. O alienista precede a Interpretação dos sonhos, de Sigmund Freud, lançado em 1900. 

Quase uma década antes, Machado de Assis já escrevia que seu Simão Bacamarte “estudava por todos os lados uma certa ideia arrojada e nova, própria a alargar as bases da psicologia”. O alienista impõe a seguinte discussão: quem é o louco? Ainda: quem pode dizer onde está a loucura? Entre as fraquezas humanas, a dificuldade da autocrítica ganha destaque. Somos péssimos juízes de nós mesmos e, ao mesmo tempo, os melhores juízes, segundo nossa convicção, do resto dos semelhantes. Os loucos são os outros. 

Talvez a lição de O alienista – se é que Machado estava preocupado em dar lições – é a de que Simão Bacamarte, ao fim, reconhece ser ele próprio o grande mentecapto. Nossa busca pelo aprimoramento pessoal deveria passar por essa fase, na qual nós mesmos nos internamos para estudar nossas “loucuras”. Desde os primórdios da filosofia, o autoconhecimento serve como pressuposto da vida saudável. 

Há uma pureza de propósito em Simão Bacamarte que assombra. O cientista tem convicções. Machado coloca em oposição o “honesto” Bacamarte e o “oportunista” barbeiro Porfírio, que assume uma causa, mas faz tudo em função de uma agenda oculta. Os propósitos honestos, por mais disparatados que sejam, têm resiliência. 

O conto traz um segundo tema de reflexão. Um tema sinistro. Esse julgamento alheio, que fazemos mesmo por instinto, ganha maior repercussão na exata medida do poder do julgador. A capacidade de Simão Bacamarte identificar a loucura nos demais não teria grandes consequências se ele não tivesse o poder de mandar prender as pessoas no hospício à medida em que encontrava o que considerava um transtorno. O arbítrio reluz quando se concentra na mesma pessoa o papel de acusador e juiz. O alienista detinha o poder de qualificar e definir o que se considerava a doença, indicar o louco e mandar prendê-lo. A sua opinião bastava. Esse poder não convivia com o contraditório, nem tampouco com recurso. O alienista, independentemente de seus propósitos “puros”, tornou-se um tirano. Como adverte o Rei Cláudio – um usurpador e assassino – em Hamlet, “a loucura dos grandes precisa ser vigiada.” 

Machado de Assis deixou aqui outra fundamental lição, agora não mais relacionada à nossa relação consigo próprio, mas relativa à vida em sociedade: não há Estado saudável quando os homens concentram o poder em excesso. Num plot twist que só um gênio poderia conceber, O alienista de Machado de Assis incute-nos humildade para ser mais indulgentes com a nossa loucura e, de outro lado, mais críticos com quem exerce o poder. Faz parte do amadurecimento como ser humano reconhecer nossas fraquezas e dominar o desejo egoísta – e infantil – de controlar as pessoas ao nosso redor. O alienista percebe que o louco é ele. Assim começa a verdadeira cura. 

Clássico, como se sabe, é aquilo que resiste ao tempo. O alienista prova sua longevidade, sua força como obra, quando conseguimos vê-lo claramente como uma fábula contemporânea. Vivemos um período no qual a polarização política, infelizmente dominante, alimenta essa cultura de que “os loucos são os outros”. Isso virou normal (mas não é e não deveria ser). Pior, tal como no conto de Machado, o poder se concentra perigosamente. Viramos a Vila de Itaguaí? 

 

José Roberto de Castro Neves é sócio do Ferro, Castro Neves, Daltro & Gomide Advogados (FCDG)

 

quinta-feira, 7 de abril de 2022

Novo livro de João Almino: Homem de Papel (dia 12/04, pelo YouTube da Livraria da Travessa)

 


Um novo livro do colega diplomata, grande amigo, insigne escritor, membro da Academia, João Almino, e sendo ainda dedicado aos apreciadores de Machado de Assis, sempre é um grande acontecimento, pois também presente, em seu lançamento, outro grande escritor.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Apenas imaginando um roteiro machadiano - Paulo Roberto de Almeida

 Apenas imaginando um roteiro machadiano

Paulo Roberto de Almeida 


Se Machado fosse vivo teria farto material para um novo O Alienista

Uma familia de alucinados conduz toda uma população ao asilo de alienados, pretendendo estancar o mal imaginário do “comunismo”, tal como proclamado por um guru expatriado, o subsofista da Virgínia. 

Até o dia em que povo, desperto da ilusão de um populista farsante, os encerre num asilo de loucos e pervertidos, como merecem. 

Seria apenas um exercício de ficção?

Um novo enredo, mais na categoria do “terror político”, já está pronto para a minha série de “clássicos revisitados”.

Mas, como não sou romancista, abro o copyright para candidatos voluntários a esse tipo de escrito.

Paulo Roberto de Almeida

3 de janeiro de 2022


terça-feira, 22 de dezembro de 2020

O Alienista Alienado, livre adaptação de uma narrativa sobre a loucura de certas pessoas, de Machado de Assis

 Por acaso – por acaso mesmo, pois minha biblioteca está um cafarnaum, como a cabeça do chanceler acidental – caí numa edição para estudantes do famoso O Alienista, de Machado de Assis. Não resisti à tentação de transcrever alguns trechos do prefácio de José Carlos Garbuglio, professor da USP, com algumas livres adaptações à nossa alienada situação:



"Convertendo o Itamaraty [seria Itaguaí] em campo de experimentação a partir de um flexível conceito de loucura, Beato Salu [seria Simão Bacamarte] leva pânico à pequena população que vê atônita as internações em sua Casa de Rio Branco, transformada em laboratório de provas. Confundindo-se com a Ciência, o alienado [seria alienista] recebe ataques ou elogios sempre indiretos e por meio de instrumentos destituído de eficiência: chavões de uma oratória ôca. (...) São resoluções de momento, não atos amadurecidos. (...)

Encarnando a Ciência, Beato Salu [S.B.] se converte em entidade distante, fria e intocável e se coloca acima do bem e do mal. Guardando consigo os segredos apenas revelados aos iniciados, assume feição mágica e se torna elemento sagrado, como repositório ou "templo" do saber científico. (...)

As pessoas se satisfazem com a frase de efeito epidérmico, na qual fica clara a ruptura significado-significante, uma vez que as frases aparecem como elementos independentes, sem relação com o contexto. (...) Na caracterização de Beato Salu, a linguagem perde o empolado para reduzir-se ao mínimo."
(p. 3-4 da edição da Ática, 2002; ilustração da capa: Jayme Leão)

Da contracapa:
"Quem são os loucos? O que fazer com eles?
A inquietação que se origina destas dúvidas leva Beato Salu a subverter a ordem pacata do acomodado Itamaraty, trazendo pânico a todos os seus habitantes. Depois de mandos e desmandos, o alienado ..."

Cada um que imagine o seu final preferido...
Pela transcrição maldosa:
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22/12/2020

segunda-feira, 24 de junho de 2019

Novamente Machado de Assis- pela Penguin

Uma nova postagem, atrasada, do dia 21, e diretamente publicitária, mas ainda assim válida, para homenagear o grande escritor brasileiro universal.

Hoje é Dia do Machado!

Joaquim Maria Machado de Assis nasceu em 21 de junho de 1839, no Morro do Livramento, nos arredores do centro do Rio de Janeiro. Seu pai, Francisco José de Assis, era neto de escravos alforriados; sua mãe, Maria Leopoldina Machado, era açoriana. Ainda criança, perdeu a mãe e uma irmã, e, em 1851, o pai. Muito cedo mostrou inclinação para as letras.
Foto colorizada pelo projeto Machado de Assis Real
Começou a publicar poesia aos quinze anos, na Marmota Fluminense, e no ano seguinte entrou para a Imprensa Nacional, como aprendiz de tipógrafo. Aí conheceu Manuel Antônio de Almeida e mais tarde Francisco de Paula Brito, livreiro, para quem trabalhou como revisor e caixeiro. Passou então a colaborar em diversos jornais e revistas.
Publicou seu primeiro livro de poesias, Crisálidas, em 1864. Contos fluminenses, sua primeira coletânea de histórias curtas, saiu em 1870. Dois anos depois, veio a lume o primeiro romance, Ressurreição. Ao longo da década de 1870, publicaria mais três: A mão e a luva, Helena e Iaiá Garcia. Seu primeiro grande romance, no entanto, foi Memórias póstumas de Brás Cubas, publicado em 1881. Papéis avulsos, de 1882, foi sua primeira coletânea de contos dessa fase. Em 1899, publicou Dom Casmurro.
Em dezembro de 1881, com “Teoria do medalhão”, começou a colaboração na Gazeta de Notícias. Ao longo de dezesseis anos, escreveria mais de quatrocentas crônicas para o periódico. Em 1897, foi eleito presidente da Academia Brasileira de Letras, instituição que ajudara a fundar no ano anterior.
Morreu em 29 de setembro de 1908, aos 69 anos de idade.

Conheça os títulos publicados pela Penguin

    

    
  

  

sexta-feira, 21 de junho de 2019

Nasce Machado de Assis, 180 anos atras

Nasce Machado de Assis

Em 21 de junho de 1839, nasceu o ícone da literatura brasileira, Machado de Assis


Nasce Machado de Assis
De saúde frágil, epilético e gago, concluiu apenas a escola primária (Foto: Wikipedia)
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Esse grande brasileiro é considerado o maior nome da literatura do país de todos os tempos. Autor de romances, poesias e peças de teatro, além de crítico literário, Machado foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras.
Filho do mulato Francisco José de Assis, e da imigrante Maria Leopoldina Machado de Assis, Joaquim Maria Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro em 21 de junho de 1839, e morreu também no Rio de Janeiro, em 29 de setembro de 1908.
De saúde frágil, epilético e gago, o menino foi criado no morro do Livramento e perdeu a mãe muito cedo. Sua madrasta, Maria Inês, foi quem o matriculou na escola pública, onde concluiu apenas a escola primária. Aprendeu francês com imigrantes da padaria do bairro onde morava.
Em 1855, publicou o primeiro trabalho literário, o poema “Ela”, no jornal Marmota Fluminense. No ano seguinte, tornou-se aprendiz de tipógrafo na Imprensa Nacional, onde conheceu Manuel Antônio de Almeida, que se tornou seu protetor. Em 1858 começou a trabalhar como revisor e colaborador do Marmota, e lá construiu o seu círculo de amigos, do qual faziam parte Joaquim Manoel de Macedo, Manoel Antônio de Almeida, José de Alencar e Gonçalves Dias.
Em 1861 foi impresso seu primeiro livro, Queda que as mulheres têm para os tolos, mas seu nome aparecia apenas como tradutor. No ano seguinte, tornou-se censor teatral, cargo que não era remunerado, mas possibilitava ingresso livre nos teatros. Começou também a colaborar em O Futuro. O veículo era dirigido por Faustino Xavier de Novais, irmão de sua futura esposa, Carolina Augusta Xavier de Novais. Carolina revelou a Machado os clássicos portugueses e vários autores de língua inglesa.
Em 1863, o escritor lançou o Teatro de Machado de Assis, volume que se compõe de duas comédias, O Protocolo O Caminho da Porta. Em 1872, foi publicado o primeiro romance de Machado, Ressurreição. No mesmo ano, o escritor iniciou a carreira de burocrata, que seria seu principal meio de sobrevivência durante toda a vida.
De 1881 a 1897, Machado escreveu inúmeras crônicas para o jornal Gazeta de Notícias. Em 1881 saiu também o famoso livro – Memórias póstumas de Brás Cubas, que ele publicara em folhetins na Revista Brasileira nos dois anos anteriores. Em 1882 lançou Papéis avulsos, sua primeira coletânea de contos.
Do grupo de intelectuais que se reunia na Redação da Revista Brasileira partiu a ideia da criação da Academia Brasileira de Letras. Machado apoiou o projeto desde o início e em 1897, ano que se instalou a Academia, foi eleito presidente da instituição, cargo que ocupou por mais de dez anos.
Ao longo de sua carreira, Machado trabalhou como colaborador nos veículos Correio MercantilDiário do Rio de JaneiroO EspelhoA Semana IlustradaJornal das FamíliasO Cruzeiro, A Estação, O Globo, Gazeta de Notícias, além dos já citados.
A obra de Machado de Assis abrange vários gêneros literários. Seu estilo passa do romantismo, como em Crisálidas Falenas, pelo indianismo em Americanas, e o parnasianismo em Ocidentais, até chegar ao realismo. O brilhante autor escreveu obras memoráveis, como Helena, Iaiá Garcia, Memórias póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro.
Em 1908 publicou seu último romance, Memorial de Aires. Na madrugada de 29 de setembro, morreu em sua casa, na Rua Cosme Velho, deixando um belo exemplo de determinação. O menino pobre terminava a vida como um baluarte da literatura nacional.

domingo, 9 de junho de 2019

Machado de Assis, um escritor universal - Deonísio da Silva

Grato ao amigo e colega de blog Orlando Tambosi por ter salvo esta postagem em seu blog.
Paulo Roberto de Almeida

Machado de Assis, o nosso craque na Copa América.

Todos os estrangeiros que o leram se encantaram com sua prosa. Ele já foi comparado em grandeza a referências solares das letras mundiais. Texto do escritor Deonísio da Silva, diretor do Instituto da Palava, via Augusto Nunes:

Ele venceu quando o placar era de 7 x 0 contra ele. Machado era brasileiro, negro, órfão, pobre, epiléptico, gago e sem escola, mas tornou-se o maior escritor brasileiro, sem fugir de dois temas complexos: a abolição, que ainda não nos redimiu; e a república, que ainda não nos democratizou.

Vamos esclarecer a confusão. Heróis não são pessoas como Neymar Jr. São pessoas como Machado de Assis, que está fazendo 180 anos de nascimento e 111 de morte. Ele nasceu em 1839 e morreu em 1908. Que a cabala nos diga o que não sabemos explicar dos números e fiquemos com as obras do talentoso escritor.

Pois uma das mais belas efemérides deste ano é que Joaquim Maria Machado de Assis faz 180 anos em junho, embora as hordas de ágrafos só falem de Paulo Reglus Neves Freire, que não é efeméride de nada.
Pouco a estranhar nesses tempos no terreno minado de lutas ideológicas sem pé nem cabeça, sobretudo num país que removeu os ossos do padre Manuel da Nóbrega, levando-os ignotos nas caçambas que partiam do Morro do Castelo para fazer o Aterro do Flamengo, no Rio.

E hoje ninguém sabe onde foram parar os ossos do padre. O inédito descaso de violar túmulos e o descuido posterior de sequer separar ossos e terra nos impedem de saber onde eles estão. Os administradores fluminenses e cariocas transformaram o famoso sacerdote num sem-túmulo.

É que temos mais no que pensar e nos preocupamos mais com os sem-terra, com os sem-teto, com os sem-nada, mas não nos preocupamos com coisas igualmente essenciais, como, por exemplo, o fato de não termos uma obra completa de nosso maior escritor.

Se tratamos assim o padre jesuíta e fundador da primeira escola no Brasil e um de nossos primeiros professores, talvez não nos devêssemos espantar com o uso frequente de “ou” em vez de “e” no fogo de palha de nossas célebres polêmicas, que duram menos que a vida breve das borboletas.

Pois que também em muitas instituições dedicadas ao ensino e à cultura o ar está igualmente irrespirável. Reiteremos, porém, que, mais do que gênio, Machado de Assis é oxigênio para o intoxicado ambiente literário brasileiro e ele está completando 180 anos em silêncio, à sorrelfa, observador ardiloso e minucioso, mesmo do além-túmulo, por meio do que deixou publicado ou apenas escrito.

“Nós ainda não temos Prêmio Nobel, mas temos Machado de Assis”, me disse o advogado e empresário Wilson Volpato, meu colega de adolescência, o mesmo que me levara a ler Castro Alves em nossos verdes anos.

Despencando em todas as classificações internacionais que avaliam o ensino — entre 2002 e 2018, o Brasil passou do 35º para o 69º lugar, um dos últimos —, nosso País discute quem vai para o (pa)trono, se José de Anchieta, notável educador parceiro de Nóbrega, ou Paulo Reglus Neves Freire que, embora autor de obra importante, não é digno de atar-lhe as sandálias.

E, além do mais, não é questão de “ou”, é questão de “e”, que em se tratando de escola e de ensino, devemos somar e não dividir o pouco que temos.

Ensino privado ou ensino público, ensino presencial ou ensino à distância, ensino laico ou ensino religioso, ensino escolar ou ensino doméstico etc. — eis as falsas polêmicas habituais. Usemos “e” em vez de “ou”. Precisamos muito de ensino, mas quem precisa ainda mais é quem faz esse tipo de falsa oposição.

Enquanto isso, nos EUA saiu uma coletânea das histórias curtas de Machado de Assis, saudada por todos os que sabem saborear livros de qualidade, deslumbrados com a riqueza que temos e escondemos no subsolo de nosso grande patrimônio literário.

Todos os estrangeiros que leram Machado se encantaram com sua prosa. Ele já foi comparado em grandeza a referências solares das letras mundiais, como Dostoiévski, Gogol, Tchekov e Kafka. O famoso crítico Harold Bloom falou mais de perto ao próprio coração de Machado, comparando-o a Laurence Sterne, o escritor e clérigo irlandês que o brasileiro admirava. Philip Roth disse que Machado é o nosso Beckett. Antes de todos eles, Stefan Zweig, que apreciava muito a poesia de Camões, disse que O Bruxo do Cosme Velho, como o chamava Drummond, era dos maiores que tinha lido.

No prefácio das The Collected Stories of Machado de Assis, o crítico Michael Wood cita outros parentes literários de Machado, como Henry James, Henry Fielding, Vladimir Nobokov e Ítalo Calvino. Há alguns anos, Susan Sontag, que faleceu em 2004, aos 71 anos, já tinha dito: “Machado é o maior escritor da América Latina. Por que vocês o esconderam de nós tanto tempo?”

Prezada Susan Sontag, nós o escondemos de nós também.

domingo, 2 de junho de 2019

A diplomacia, segundo Machado de Assis

Transcrevo: 

        [...] a diplomacia é a arte de gastar palavras, perder tempo, estragar papel, por meio de discussões inúteis, delongas e circunlocuções desnecessárias e prejudiciais.
        Balzac, notando um dia que os marinheiros quando andam em terra bordejam sempre, encontrou nisso a razão de se irem empregando alguns homens do mar na arte diplomática.
        Donde se conclui que o marinheiro é a crisálida do diplomata.

Machado de Assis, "Ao Acaso", Diário do Rio de Janeiro, 24 de janeiro de 1865

In: Machado de Assis, Máximas, pensamentos e ditos agudos
(São Paulo: Penguin e Companhia das Letras, coleção Grandes Ideias, 2018, p. 29.

E mais uma, à propos

    Em nosso país a vulgaridade é um título, a mediocridade um brasão [...]
        (idem, p. 13)

domingo, 6 de janeiro de 2019

Machado de Assis entra no Itamaraty - Luiz Antonio Simas; Dawisson Lopes


 Um medalhão em Saramandaia
Versos, citações em latim, adjetivos em profusão, citações históricas: a teoria do medalhão, de Machado de Assis, estava toda ali no discurso de posse de Ernesto Araújo. Lembranças também dos professores Aristóbulo Camargo e Astromar Junqueira, de Dias Gomes
Luiz Antonio Simas
Revista Época, 05/01/2019 - 13:47 / Atualizado em 05/01/2019 - 14:22

O escritor carioca Machado de Assis publicou o conto Teoria do Medalhão em 1881, no jornal Gazeta de Notícias . A trama é simples: Janjão está completando 21 anos, a maioridade naquela época. Logo depois do jantar de comemoração do aniversário, o jovem é chamado pelo pai para uma daquelas conversas definitivas sobre o futuro.
Em resumo, o pai aconselha o filho a ser o que ele mesmo não conseguira: um medalhão. O que seria isso? Basicamente, o medalhão é “grande e ilustre, ou pelo menos notável”. Para chegar ao auge entre os 45 e os 50 anos, período em que o medalhão geralmente desabrocha, Janjão deveria se preparar desde cedo, aparelhando o espírito para evitar o perigo das ideias próprias.
Dentre diversas dicas para que o status de medalhão seja alcançado, o pai de Janjão ressalta a importância da linguagem. Cito: “podes empregar umas quantas figuras expressivas, a hidra de Lerna, por exemplo, a cabeça de Medusa, o tonel das Danaides, as asas de Ícaro, e outras, que românticos, clássicos e realistas empregam sem desar, quando precisam delas. Sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres, brocardos jurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-los contigo para os discursos de sobremesa, de felicitação, ou de agradecimento. Caveant consules é um excelente fecho de artigo político; o mesmo direi do Si vis pacem para bellum ”.
Por fim o pai sugere que o medalhão não chegue a nenhuma conclusão que já não tenha sido chegada por outros, mas faça isso de forma aparentemente original, e evite os riscos da ironia, coisa de “céticos e desabusados”.
Ao escrever o conto Machado satirizava uma turma da sociedade aristocrática e bacharelesca que misturava, nas mesmas proporções, mediocridade e pedantismo. Os medalhões difundiam ideias rasteiras recheadas de citações, tentavam impressionar os populares com demonstrações de conhecimento das coisas do povo e, ao mesmo tempo, comover os eruditos com axiomas clássicos, enfiando três ou quatro máximas em outras línguas para arrematar.
A Teoria do Medalhão me veio à memória quando escutei o discurso de posse do novo chanceler brasileiro, Ernesto Araújo. A linguagem do medalhão estava toda ali: citação em grego de versículo do Evangelho de São João, citação da banda Legião Urbana em música com versos de Camões, citação em latim do brasão da Ordem de Rio Branco, referências a Tarcísio Meira, Raul Seixas e José de Alencar, menção a uma série de ficção científica e, para arrematar, a Ave Maria em Tupi, de acordo com a tradução do padre José de Anchieta. No meio do sarapatel, ataques ao globalismo, exortações ao caráter libertador de Bolsonaro e saudações aos governos conservadores de direita da Europa.
Confesso que, até me recordar da Teoria do Medalhão, comecei a considerar o arrazoado do ministro similar aos discursos que dois personagens de Dias Gomes faziam nas novelas Saramandaia e Roque Santeiro : os professores Aristóbulo Camargo e Astromar Junqueira. Versos, citações em latim, adjetivos em profusão, citações históricas eram comuns aos homens das letras, sempre vestidos de preto, criados por Dias. Registre-se que Aristóbulo e Astromar, nos intervalos entre um discurso e outro, viravam lobisomens.
Outro detalhe chama atenção no discurso do chanceler. Em alguma medida, ele parece ir em direção oposta à comunicação do governo. Enquanto o presidente e outros assessores buscam construir imagens populares de pessoas comuns, com sucesso, o chanceler aparece com fumos de erudição, saca do colete dezenas de autores, arremata tudo isso com sentenças bíblicas em línguas clássicas e, dando uma de Policarpo Quaresma, enfia no meio um tupi-guarani suspeito.
O discurso do chanceler, digno de um medalhão bem sucedido, sugere duas possibilidades: uma delas é a da confirmação da atemporalidade da obra de Machado de Assis. O Bruxo do Cosme Velho, ao diagnosticar a sua época, permanece atual. O que escreveu em 1881 continua irretocável em 2019; coisa que só faz afirmar o preto do Morro do Livramento como um gigante das letras. A outra possibilidade é a de que o chanceler de 2019 seja um exemplo bem acabado de brasileiro de 1881.
A minha impressão é a de que elas não se excluem: o escritor do século XIX continua vivendo no século XXI. O chanceler do século XXI continua vivendo no século XIX.

(Leia aqui o conto Teoria do Medalhão e tire sua conclusão sobre as duas possibilidades levantadas por Simas)

Luiz Antonio Simas é historiador, autor de 15 livros, ganhador de dois prêmios Jabuti – entre eles o de Livro do Ano de Não Ficção de 2016, com Nei Lopes

SAIBA MAIS

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O GLOBO ONLINE
Deus e o diabo na terra da política externa
Chanceler promete diplomacia que reflita religiosidade popular, mas será que brasileiros são contra o secularismo?
Dawisson Belém Lopes*
O Globo online, 06/01/2019 - 04:30

 Ernesto Araújo faz seu discurso de posse, no qual disse que o Brasil "está perdido fora de si mesmo" Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil/2-12-2018 / Agência O Globo

Há algo de farsesco, ainda que bastante engenhoso, no modo como a política externa do governo Bolsonaro vem buscando legitimar-se publicamente. O principal impulso ao processo é dado pelo chanceler Ernesto Araújo, homem de fortes convicções morais, admirador dos nacionalismos românticos e da herança ocidental. Trata-se, ademais, de um fiel devoto de Donald Trump.
Araújo vem se aproximando, nas manifestações feitas em seu blog pessoal e nas peças que publica na imprensa, do apelo popular de Jair Bolsonaro à religiosidade do povo brasileiro. A fórmula da nova política externa, segundo o chanceler, terá de alinhar-se a essas circunstâncias.
Se a gente brasileira é religiosa, logo a política externa, praticada por um presidente com mandato democrático, também deverá sê-lo. O Brasil, entende Bolsonaro, necessita pautar-se nas suas relações internas e internacionais por valores judaico-cristãos, pois é isso que o povo reivindica na atualidade.
Do raciocínio deriva o receituário da política externa bolsonarista: o país precisa rejeitar o “globalismo” e o “marxismo cultural”, tendências emanadas de foros diplomáticos e editoriais internacionais, desprovidas do empuxo popular e, alegadamente, corruptoras da soberania nacional e do patriotismo. Eis o bilhete para a “libertação do Itamaraty” – na expressão carregada de Araújo.

Para tanto, devem-se recusar peremptoriamente as resoluções das entidades multilaterais e juntar-se à liga dos regimes fortes e cultores das tradições ocidentais. Estados Unidos, Itália, Polônia e Hungria, nações cristãs, credenciam-se como parceiras preferenciais. Israel, o Estado judaico, candidata-se a aliado incondicional.
Percebe-se, todavia, que a equivalência “voz do povo, voz de Deus”, proposta pelos bolsonaristas como o verdadeiro elo perdido da autoridade, resulta logicamente falaciosa. Se é bem verdade que a sociedade brasileira preza a dimensão religiosa, não se extrai daí que os cidadãos sejamos refratários ao secularismo como princípio organizador da vida política.

Mero estereótipo
De resto, a experiência religiosa dos brasileiros, como já amplamente difundido pelos antropólogos, é de um tipo sincrético, não acomodando no cotidiano os rigores da ortodoxia. Somos o país dos milhões de cristãos “não praticantes”, das infusões e dos intercâmbios entre as variadas denominações de fé.
Ao substituir as máximas mundanas do realismo político por princípios idealistas e metafísicos, Araújo e colaboradores recriam o ciclo de produção da política externa brasileira. Tira-se o povo da conversa, reduzindo-o a mero estereótipo de uma expressão religiosa. Habilmente, o chanceler e seu grupo promovem jogos filosóficos e de linguagem cujo saldo é a elitização decisória em política externa.
Explica-se: quando o mote da política externa democrática era anteriormente evocado, imaginava-se uma tensão constitutiva entre os aristocráticos homens de Estado e a plebe. A democratização poderia até avançar, lenta e dialeticamente, por meio de choques de interesses. Por um truque retórico, contudo, essa tensão dissipou-se no discurso corrente, dado que os novos mandatários imaginam falar pelo e para o povo, interpretando de maneira peculiar os sentidos da sua fé.
Os diplomatas profissionais, integrantes da comunidade cosmopolita global, tradicionalmente autorizados a pronunciar-se sobre as relações exteriores do Brasil, dão lugar a teocratas e nativistas. Dentro desse esquema de coisas, saber técnico, trajetória institucional e acúmulo acadêmico não se tornam, necessariamente, alavancas de poder. Afinidade ideológica e proximidade com a chefia do Poder Executivo, sim.
Existe, ainda, um inesperado problema empírico com a narrativa diplomática em construção: segundo levantamento do instituto Datafolha, divulgado em 27 de dezembro último, 66% dos brasileiros não querem ver o país associado aos Estados Unidos nos assuntos estrangeiros. É um rechaço popular emitido em alto e bom som aos caminhos vislumbrados pelo novo governo federal.

* Professor de política internacional da UFMG, é o autor de “Política Externa e Democracia no Brasil: Ensaio de Interpretação Histórica” (Ed. Unesp, 2013) e “Política Externa na Nova República: Os Primeiros 30 Anos” (Ed. UFMG, 2017).


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