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sexta-feira, 30 de outubro de 2009

1455) Relações entre União Européia-Brasil, Rodada de Doha, PAC e Grupo de Cairns

Como no caso do post precedente, estas respostas minhas foram fornecidas a um estudante, mais precisamente uma pesquisadora de pós-graduação, e permaneceram inéditas até o momento. Talvez interesse a alguns os temas tratados. Eis a ficha do trabalho:
1911. “Questionário de Investigação sobre as Relações entre União Européia-Brasil, Rodada de Doha, PAC e Grupo de Cairns”, Niterói, 17 julho 2008, 3 p. Respostas a questões colocadas por pesquisadora, para Master em European Studies da Universidade de Siena, Montpellier e Coimbra.

Questionário de Investigação sobre as Relações entre União Européia - Brasil
Rodada Doha, PAC e Grupo de Cairns

Data e local: 17 de julho de 2008, Niterói, RJ
Nome do entrevistado: Paulo Roberto de Almeida (PRA)
Instituição para qual trabalha: Ministério das Relações Exteriores
Cargo /posição profissional: Ministro da carreira diplomática, professor universitário.

1. As relações comerciais entre a União Européia e o Brasil podem ser entendidas como uma reação do Brasil ao poderio negociador dos Estados Unidos e da ALCA a fim de obter mais poder de barganha nas rodadas de liberalização do comércio internacional? Se sim, como a União Europeia percebe isso? Se não, por quê?
PRA: As relações comerciais entre a UE e o Brasil têm uma longa história atrás de si, uma vez que elas são tradicionais no quadro do relacionamento bilateral entre o Brasil e cada um dos integrantes do esquema de integração europeu, precedendo de muito qualquer arranjo formal de caráter institucional (pois que remontando à própria formação histórica do Estado brasileiro e suas relações comerciais, desde sempre majoritariamente voltadas para a Europa ocidental). No plano histórico mais recente, deve-se registrar que essas relações comerciais precedem, seguem e acompanham quaisquer projetos dos EUA para a negociação de acordos comerciais específicos ao hemisfério americano (em especial a “Iniciativa para as Américas”, de 1990, proposta por George Bush, pai, assim como a Alca, iniciativa de 1994, do presidente Clinton), posto que desde o surgimento do Mercosul, em 1991, a então CE já propunha a intensificação das relações entre os dois blocos, primeiro sob a forma de um acordo de cooperação técnica (1991), firmado entre a Comissão Européia e os países do Mercosul (em sua fase de transição), depois desdobrando essa iniciativa no Protocolo de Madrid (1995), já prevendo a assinatura de um acordo de liberalização comercial e de intensificação das relações entre as duas partes.
Deve-se, portanto, reconhecer que, desde o início (e com inteira concordância do Brasil), a UE buscou intensificar suas relações com o Mercosul, independentemente de qualquer oferta, arranjo ou iniciativa dos EUA, em relação seja ao Mercosul, como bloco, seja em direção de cada um dos países membros do esquema sul-americano. Mas, deve-se reconhecer que a UE, como seria natural em situações de concorrência intensa pela busca de mercados e de oportunidades de negócios para suas empresas, preocupou-se em não permitir o acesso exclusivo dos EUA à possível ampliação dos fluxos de comércio e de investimentos aos países membros do Mercosul em decorrência de eventual acordo preferencial que fosse negociado e concluído entre estes países e os EUA (dentre os quais o Brasil se destaca naturalmente).
O Brasil igualmente – e isto vem praticamente desde a primeira conferência americana de Washington, em 1889-1890 – sempre se preocupou em equilibrar suas relações comerciais com seus parceiros mais importantes, barganhando as melhores vantagens possíveis tanto do lado europeu, tradicional em suas relações econômicas externas, como do lado americano, muito relevante desde o final do século XIX e extremamente importante no que se refere ao acesso de determinados produtos aos mercados consumidores. Cabe, com efeito, registrar igualmente, que o mercado europeu encontra-se concentrado mais nas commodities oferecidas pelo Brasil do que em produtos de maior valor agregado (manufaturados), que comparece de modo mais intenso nas relações comerciais entre o Brasil e os EUA.
O que a UE percebe, pragmaticamente, é que ela não pode deixar os EUA dominarem os mercados dos países da América do Sul de modo tão amplo quanto os EUA já dominam os fluxos com os países da América Central e Caribe, posto que os sul-americanos apresentam enormes oportunidades de intercâmbio e investimentos para as suas empresas. O Brasil e o Mercosul, tanto quanto a UE, percebem esse lado “compensatório” e tentam exercer o seu potencial de barganha, tanto quanto é possível nesse tipo de relacionamento complexo.

2. Quanto Portugal contribuiu e continua contribuindo política e economicamente para ser o promotor da parceria entre o Brasil e a União Européia?
PRA: Por afinidades históricas patentemente reconhecidas por ambas as partes, Portugal e Brasil mantêm um relacionamento muito estreito no que se refere à intensificação possível das relações políticas e econômicas entre este último e a UE. Cabe, no entanto, não exagerar nesse papel, uma vez que a UE é uma construção política e institucional extremamente complexa, dotada de “ferramentas” próprias para negociações econômicas externas – concedidas pelos países membros à Comissão Européia –, com muitos interesses nacionais projetados sobre as instâncias negociadoras de Bruxelas, interesses que são, no conjunto e individualmente superiores ao poder político e econômico do pequeno Portugal. Países como Alemanha, França, Itália e Reino Unido apresentam interesses econômicos tão importantes, ou até mais, no Brasil, do que Portugal, e parecem dispor de condições ainda mais fortes do que Portugal para fazer valer esses interesses na determinação das políticas (comerciais e outras) que serão seguidas pela UE em relação ao Brasil e ao Mercosul. Mas, pode-se dizer que Portugal de fato exerce um papel “patrocinador” dos interesses brasileiros (que são também os de seus nacionais e investidores residentes no Brasil e aqui dispondo de interesses concretos a defender) junto às instâncias comunitárias. O status de “parceiro estratégico” concedido ao Brasil pela UE certamente tem a ver com esse papel.

3. Quanto você acredita que o Brasil esteja disposto a ceder na área de serviços e quanto a União Européia esteja disposta a ceder na área agrícola para o êxito da Rodada de Doha?
PRA: Observando realisticamente o desenvolvimento das negociações comerciais, tanto no plano multilateral (Rodada Doha), quanto no plano birregional (Mercosul-UE) ao longo de mais de uma década de desenvolvimentos sempre frustrantes (desde 1995, praticamente), acredito que, tanto do lado brasileiro quanto do lado europeu, as possibilidades de concessões reais nos terrenos agrícola (do lado europeu) e industrial e de serviços (do lado brasileiro e do Mercosul) são muito modestas, para dizer o mínimo. Nenhum lado parece querer oferecer acesso efetivo aos seus mercados, que parece terem sido colocados num patamar de extrema sensibilidade recíproca, o que é efetivamente uma pena, tendo em vista que esse protecionismo só prejudica os interesses de seus respectivos consumidores.
Ambas partes, como é visível e patente, cedem continuamente aos lobbies setoriais e continuam a manter esses setores sob estrita proteção comercial e fechamento regulatório, concorrendo assim para um possível fracasso (ou resultado extremamente modesto) na Rodada Doha. Minha visão do processo não é muito otimista, uma vez que não vejo nenhuma das partes conduzindo as negociações, nos planos multilateral e bilateral, para a abertura efetiva dos respectivos mercados. Como em muitos outros exercícios negociadores, oportunidades serão perdidas de expandir comércio e abrir novas oportunidades de investimento uma vez que os negociadores políticos não parecem exibir a coragem de resistir aos impulsos e pressões protecionistas vindos de seus setores menos competitivos em escala econômica interna.
Assim, as concessões, se houver alguma, serão mínimas e estritamente condicionadas à necessidade de um acordo restrito no plano multilateral e eventualmente birregional.

Paulo Roberto de Almeida
Niterói, 17 de julho de 2008