Se vencer nos EUA, Biden nem prestará atenção no Brasil, diz embaixador
Paulo Roberto de Almeida
[Objetivo: Entrevista a repórter; finalidade: Chico Alves, UOL Notícias]
Em sua live semanal, o presidente Jair Bolsonaro comentou ontem o cenário da eleição presidencial americana. Confirmou que torce por Donald Trump, mas disse que vai tentar aproximação caso John Biden seja o vencedor.
Bolsonaro sabe (imagina-se) que a questão não pode ser tratada com tal negligência. O embaixador Paulo Roberto de Almeida mostra o tamanho da mudança que o Brasil terá que fazer para se adaptar à linha de Biden, se quiser manter os Estados Unidos como parceiro.
"A gente vai ter que se corrigir não só nas relações bilaterais", disse Almeida à coluna. "O Biden tem uma postura detalhista [PRA: o conceito correto é "ambientalista"], tem uma postura humanitária, se importa com minorias, aquelas pautas dos democratas. O Brasil é contra tudo isso".
Há dois meses, o embaixador entrou com uma ação na Justiça Federal do Distrito Federal contra a União por assédio moral e perseguição, por ter sido demitido do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais pelo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. A dispensa aconteceu depois que publicou em blog pessoal um texto de Fernando Henrique Cardoso.
Ele acredita que à medida que a vitória de Biden for se desenhando, vão aumentar as pressões pela demissão de Araújo. Para Almeida, porém, o principal problema da política externa não é o chanceler. "Bolsonaro é o maior obstáculo. Essa é a principal esquizofrenia desse governo".
UOL - Caso Biden vença as eleições americanas, o que o sr. acha que o Brasil deverá fazer para se aproximar do novo presidente, já que Jair Bolsonaro buscou sempre se vincular a Donald Trump?
Paulo Roberto Almeida - John Bolton, o grande amigo do Ernesto Araújo e do Jair Bolsonaro, já recomendou ao Brasil que se aproxime do Biden. É comentário corrente a inviabilidade dessa política externa e da permanência de Araújo, mesmo que para ficar ele esteja fazendo o possível junto a Olavo de Carvalho, Filipe Martins e Eduardo Bolsonaro, que são os seus apoiadores.
Nessa circunstância, se o atual chanceler continuar vai ter pressão muito grande dos militares e do agronegócio sobre ele e sobre o Salles.
O mais provável é que Biden ganhe. A pandemia vai continuar matando gente e isso é um fator muito grande contra o Trump.
Até fim de novembro, no máximo, deveremos ter novidades. Porque a pressão externa vai continuar para tirar o chanceler, vai ter pressão quanto a Direitos Humanos, Meio Ambiente, questões da mulher.
O sr. acredita que também vamos ter pressões internas para a mudança de nossa política de relações internacionais?
Com a retomada parcial das atividades parlamentares em agosto ou setembro vão ter que renovar as comissões do Congresso e Eduardo Bolsonaro será sacado da Comissão de Relações Exteriores. Ele deveria ter saído no começo do ano, já que o cargo teria vigência até fevereiro, quando haveria eleição de um novo presidente da comissão. Isso foi suspenso por causa da pandemia.
O chanceler vai ser chamado pelos parlamentares para responder tanto no Senado quanto na Câmara. Vai ficar em condição incômoda. Vai ser atacado. Então, para sobreviver Bolsonaro terá que sacrificar alguns. O Salles em primeiro lugar, o Eduardo Araújo em segundo.
O presidente vai conseguir dar guinada tão radical em sua política externa?
Difícil, porque justamente Bolsonaro é o maior obstáculo. Essa é a principal esquizofrenia desse governo. O presidente é não só inepto, como também arrogante. Ele quer mostrar que manda, quer escolher alguém que esteja de acordo com ele.
O sr. acredita que a pandemia terá peso decisivo em uma eventual derrota de Trump?
Trump e Bolsonaro vão ser os grandes acusados, tanto internamente quanto internacionalmente, pela mortandade. Negacionistas que sabotaram tudo. O Trump só começou a usar máscara essa semana, um negócio inacreditável. Eles vão pagar alto preço por isso.
Saiu um artigo recente sobre os estados republicanos, que têm um recorde de mortes. É o "cinturão da peste". Isso vai pesar. Os republicanos vão tomar uma tunda e perder muitas cadeiras no Senado e na Câmara, vão ficar em minoria absoluta. Então, Biden vai surgir como presidente poderoso, com um Congresso democrata. Vai colocar os Estados Unidos de volta na OMS, vai tentar acomodar o assunto com a China e o Brasil vai ser desprezado, ao menos no começo. Tudo depende do que fizermos aqui.
O nosso embaixador indicado nos EUA, que hoje é encarregado de negócios, não sabemos se ele vai ser confirmado pelo Senado no cargo. Se Ernesto cair, talvez Bolsonaro decida mandá-lo para Washington.
O prometido acordo comercial com os Estados Unidos ficou definitivamente inviabilizado?
O acordo comercial não tem possibilidade de sair. O que poderia haver seria um acordo de facilitação de comércio, que são medidas aduaneiras, mais que de tarifa ou de livre mercado. Algo para facilitar o desembaraço alfandegário. Porque todo acordo comercial depende do Congresso americano e a comissão de economia da Câmara já declarou que não quer saber de acordo com o Brasil.
Diante desse cenário, qual a importância do Brasil para os Estados Unidos?
O Brasil não conta para nada. Com um presidente negacionista e trumpista aqui, o Biden não vai nem prestar atenção. Por isso, o gesto tem que partir do Brasil. Biden não vai fazer nada. Vai assumir, vai cuidar dos assuntos americanos, que são os mesmos de sempre: Oriente Médio, China, Rússia, Europa, México, só isso. O Brasil estará relegado a uma quinta posição.
Ele não vai fazer nada quanto ao Brasil, a não ser que o governo faça gesto de reconciliação, mostrar que abandonou o trumpismo. Acho que Bolsonaro não vai fazer mais a bobagem que fez nas eleições da América Latina ou no início da jornada de reeleição do presidente americano, de ficar apoiando o Trump.
A gente vai ter que se corrigir, não só nas relações bilaterais. O Biden tem uma postura detalhista [PRA: o conceito correto é "ambientalista"], tem uma postura humanitária, se importa com minorias, aquelas pautas dos democratas. O Brasil é contra tudo isso.
Podemos aparecer como mau exemplo, tanto na pandemia, quanto a direitos humanos.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 16 de julho de 2020