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Inserções orais ao longo da conferência: [Complemento oral: ...]
[Palavras de abertura Rosiska Darcy de Oliveira: sejam bem-vindos.
Nós estamos tendo hoje o especial privilégio de receber o embaixador Rubens Ricupero, que aceitou responder a uma pergunta que eu formulei para este seminário: “O que
falta ao Brasil?” (...) O título que eu recebi do embaixador
Rubens Ricupero foi uma outra pergunta: “Um futuro pior que o passado?” E são “Reflexões
na antevéspera do bicentenário da independência”.
Eu agradeço muito ao
embaixador a presença aqui, porque, até agora, nós cuidamos que o Brasil não
fosse eternamente o país do futuro, e vou passar a palavra a ele, esperando que
o futuro não seja pior do que o passado. Com a palavra Rubens Ricupero.]
Rubens Ricupero
[Complemento oral: Boa noite, boa noite a
todos, minha cara Rosika, muito obrigado por este convite honroso, a todos os
acadêmicos e acadêmicas, amigos que estão aqui presentes, velhos amigos, colegas,
senhoras, senhores. Eu normalmente não escrevo quando falo sobre um tema
qualquer, mas desta vez o tema me pareceu particularmente desafiador. A Rosika,
quando me falou que o ciclo era “o que falta ao Brasil?”, é uma pergunta em que
realmente é difícil de dar reposta; é uma pergunta muito ambiciosa. Vocês vão
ver que na verdade no meu título que está embutida a ideia de que o que nos
falta é esperança, a confiança no futuro. Eu escrevi esse texto com muito
cuidado, porque é, como disse, era um desafio muito grande, e vocês verão que não
tem muito a ver com a minha própria experiência diplomática. Outras vezes eu
tenho falado sobre temas de história diplomática, mas desta vez é mais uma
reflexão sobre o Brasil, e é uma reflexão na antevéspera dos nossos 200 anos de
vida independente. Em 2022, daqui três anos, nós completamos 200 anos de vida
independente. E nessas ocasiões, em geral, nós sentimos que é o momento de dar
um balanço nas coisas, de ver o que é que nós fizemos nesses 200 anos de
construção de uma nação. Portanto, eu como disse, escrevi e vou ler, para não
divagar demais.]
[Leitura]
Ao Brasil falta
muito, quase tudo, para ser o sonho intenso de que fala o nosso hino.
Uma lista exaustiva das carências nos aproximaria do infinito. O problema
maior, no entanto, não é a ausência de muitas coisas desejáveis. O pior é
que nos privamos da única condição indispensável para um dia conquistar o que
nos falta. Perdemos a esperança, isto é, a confiança de que o futuro nos
trará remédio às agruras do presente, da mesma forma que antes o presente
costumava superar problemas do passado. Vivemos um déficit agudo de
esperança. E sem esperança, não existe possibilidade de construir o futuro.
O sentimento tem
precedentes, geralmente em momentos de profunda desestabilização das
instituições e das pessoas, como na súbita derrubada da monarquia. Joaquim
Nabuco temia até o desmembramento do país ou a perda da noção de liberdade.
O visconde de Taunay chegava a [Complemento
oral: dizer numa carta que ele]
senti[a] “intensa vergonha de não ter morrido!” Silveira Martins [Complemento oral: , na casa de Rio
Branco, em Paris,] comparava o Brasil ao que Diderot escrevera da civilização
russa: “um fruto que apodrecera antes de amadurecer”.
O regime de Pedro
II que esses brasileiros confundiam com o melhor Brasil possível possuía
aspectos respeitáveis. Era, contudo, um país de pouco mais de 14 milhões de
habitantes, a maioria analfabeta, com expectativa de vida inferior a 30 anos,
muitos recém-saídos da escravidão e abandonados à própria sorte.
Houve depois outras
fases de abatimento, mas a versão mais grave data de poucos anos atrás, de
2015/2016, o instante em que começou a desfazer-se a ilusão de que o país
tinha dado certo. Guardadas as proporções, o naufrágio da hegemonia do PT
cumpre na história brasileira função análoga ao do colapso do comunismo no
mundo. [ênfase no original] Para
melhor explicar a afirmação, peço licença para transcrever na íntegra uma
observação de Emmanuel Levinas sobre o sentido do fim do comunismo.
O jornal La
Stampa lhe havia perguntado, pouco antes de sua morte, em 1995, se pensava
que esse acontecimento havia sido uma grande vitória para a democracia e o
filósofo respondeu:
“Não, penso que
as democracias perderam e muito. Apesar de todos seus horrores, seus excessos,
o comunismo havia sempre representado a esperança [...]de uma ordem social
mais equitativa. Não é que os comunistas tivessem uma solução ou estivessem
preparando uma, ao contrário. Existia, no entanto, a ideia de que a História
possuía um sentido, uma direção e que viver não era insensato, absurdo.
[...]. Não creio que haver perdido essa ideia para sempre seja uma grande
conquista espiritual.[...]. Acreditávamos saber para onde ia a História e que
valor dar ao tempo. Agora caminhamos sem rumo, perguntando-nos a cada instante:
‘que horas são?’ De maneira fatalista, um pouco como se faz o tempo todo na
Rússia: ‘que horas são?’ Ninguém sabe a resposta.”
Se trocarmos a
palavra “comunismo” por “petismo”, impressiona como o trecho parece retratar o
que sucedeu no Brasil. Excessos à parte, o PT também expressava a esperança
de uma sociedade mais justa. Obviamente, além do PT, muitos brasileiros
partilhavam a mesma aspiração. Foi o PT, porém, que teve a oportunidade de
tentar em mais de 13 anos de governo aplicar inúmeras políticas públicas
para reduzir a desigualdade, outra semelhança com o comunismo “real” e seus
mais de 70 anos no poder.
Lula dava a
sensação de encarnar uma notável transformação da sociedade. As medidas de
transferência de renda, as quotas raciais, o acesso dos pobres ao ensino
superior, prometiam um futuro de superação da desigualdade extrema herdada do
passado. Sem base financeira adequada, as fórmulas petistas se tornaram
insustentáveis. Algumas concorreram poderosamente para desencadear, primeiro a
crise fiscal, em seguida o gravíssimo colapso que prostrou a economia até
este momento.
A associação que
se estabeleceu entre a ruína das contas públicas e o combate às injustiças
sociais abalou as fundações da crença de que somos capazes de superar a
desigualdade. Após os sucessos do Plano Real, do crescimento do governo Lula,
da conquista do grau de investimento, a debacle da economia trouxe de volta aos
brasileiros o efeito psicológico desmoralizante do fracasso.
A isso se somou o
trauma do impeachment de Dilma, da condenação e prisão de Lula, de seu
alijamento da campanha eleitoral de 2018, gerando contestações sobre a legitimidade
democrática do poder. O pouco que sobrava do prestígio das instituições
políticas se viu, ao longo de três intermináveis anos, estremecido pelas
revelações quase diárias de escândalos pela Lava Jato, ela mesmo ora em
vias de desmoralização devido a excessos e erros próprios, assim como à
reação defensiva de setores políticos.
O Brasil jamais
tinha passado por retrocesso tão destrutivo na vida das pessoas por meio do
desemprego, do aumento da pobreza, do desalento. Nem experimentara nada
equiparável ao profundo impacto depressivo dos escândalos de corrupção que
destruíram a autoestima de todo um povo. Em conjunto, essas desgraças
simultâneas produziram efeito equivalente ao da guerra sobre uma sociedade
até então poupada de catástrofes históricas como derrotas e ocupações
estrangeiras.
Tenho usado os
verbos no passado a fim de situar no tempo o momento em que ocorreram as causas
da situação que vivemos. Esse nosso passado próximo, contudo, não acabou de
passar, é ainda o nosso presente. Neste mesmo instante, ele continua a nos
fazer sofrer na persistência da estagnação econômica, do desemprego, do
retrocesso social, da barbárie das prisões, da corrupção, da destruição
da Amazônia, da degradação dos homens que nos desgovernam. A mais
angustiante crise de nossa História se prolonga como obra de demolição em
pleno andamento, como um work in progress. Agravada pelo advento de um
governo retrógrado cujo único programa reside na demolição sistemática do
passado.
Se a analogia com o
contexto externo for correta, deve-se esperar, também por aqui, uma
transição dolorosamente longa até que desponte período histórico
diferente. No mundo, o sonho de uma sociedade mais justa acabou antes que no Brasil.
Uma de suas primeiras expressões foi o ensaio do pensador e jornalista norte-americano
William Pfaff, por volta de 1995/96, que partia da pergunta: “E se não
houvesse nenhuma razão de pensar que o futuro será melhor que o presente, ou,
pior ainda, melhor que o passado?”
Desde o Iluminismo,
acreditava-se que a História se encaminhava a um futuro que,
retrospectivamente, daria sentido ao passado. Essa bela confiança tinha se
evaporado.
Profético, o
ensaio de Pfaff antecedeu as calamidades que se sucederiam nos anos seguintes.
A lista é interminável: o genocídio de Ruanda, os massacres da Bósnia, os
atentados do Onze de Setembro, a eterna guerra do Afeganistão, a invasão do
Iraque, a proliferação do terrorismo, a guerra civil da Síria, a anarquia na
Líbia, as massas desesperadas de refugiados, a devastadora crise financeira de
2008, o aumento da desigualdade [Complemento
oral: por toda a parte], a
conquista do poder nos EUA pelo mais reacionário dos populismos.
A passagem para um
novo milênio se cumpriu sob o signo da tragédia que voltou a pautar a
História. Ubíqua, a crise da democracia liberal se manifesta por todo lado.
Cobrem já boa parte da população mundial os regimes antiliberais,
anticientíficos, negadores da mudança climática, hostis às elites
intelectuais, à tolerância da diversidade, ao respeito do outro em matéria
sexual ou cultural.
Dos quatro centros
do poder mundial, três – os EUA de Trump, a China do presidente vitalício Xi,
a Rússia do czar Putin – colocam o egoísmo nacional acima de uma ordem
internacional baseada em leis, movida pela busca do consenso. O quarto, a
União Europeia, último reduto da democracia liberal, do bem-estar social, da
defesa do ambiente, sofre da desunião, do Brexit, do populismo de direita na
Itália, Hungria, Polônia.
Os regimes atuais,
quer o capitalismo ocidental, quer a versão estatizante chinesa, são
incapazes de resolver os três maiores problemas humanos: o aquecimento global,
o aumento da desigualdade, o desemprego estrutural agravado pelos robôs e a
inteligência artificial. A possibilidade de que a mudança climática se torne
irreversível traz de volta a ansiedade pela sobrevivência individual que se
sentia no final da Antiguidade.
Coroando tudo, os
ocidentais perdem a confiança na própria cultura, atacada com prepotência
pelos adversários do liberalismo e da democracia. Batidos pelos chineses na
expansão rápida da economia, amanhã, quem sabe, na vanguarda das tecnologias
de ponta, americanos, europeus, temem a emergência, pela primeira vez em
quinhentos anos, de uma superpotência não-ocidental.
Como será o mundo
do futuro? Que valores refletirá a partir da influência do poder chinês?
Até que ponto a ordem mundial continuará a se inspirar no Iluminismo, na
Declaração dos Direitos do Homem, na democracia? É possível confiar na
evolução de um regime como o chinês que confina centenas de milhares de
uigures em campos de lavagem cerebral, que não tolera a diversidade de Hong
Kong?
É nesse nevoeiro
espesso de incertezas que se esconde o horizonte do futuro. Não foi muito
diferente, cem anos atrás, quando o Brasil se aproximava do primeiro
centenário. O mundo saia da Grande Guerra destroçado nas estruturas e nas
almas. Em 1919, negociava-se o Tratado de Versalhes, Paul Valéry escrevia “nós
civilizações sabemos agora que somos mortais [...] sentimos que uma
civilização tem a mesma fragilidade que uma vida”.
Os tempos não eram
melhores que os de hoje. Basta lembrar que o ano do centenário da
independência coincidiu com a marcha de Mussolini sobre Roma, a primeira
conquista de um país pelo fascismo. A década de 1920 se encerraria com o
colapso da Bolsa de Nova York e a Grande Depressão. A seguinte assistiria ao
sinistro triunfo do nazismo, ao estalinismo, ao estalar da Segunda Guerra
Mundial com o cortejo de horrores que se seguiu: o Holocausto, os campos de
extermínio, as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki.
Nada disso impediu
o Brasil de avançar. Ao completar cem anos de vida independente, a sociedade
brasileira deu balanço no passado, espantando-se com o déficit. No sugestivo
estudo que dedicou ao centenário, A nação faz cem anos, a Professora
Marly Silva da Motta mencionava o severo juízo de Capistrano de Abreu, ao
concluir em 1907 seus Capítulos de história colonial. O legado de
três séculos de colônia teria sido a pobreza intelectual, moral e material,
a inexistência de vida social, a incapacidade organizativa. A monarquia
escravocrata não havia sido capaz de superar tal herança em 67 anos de
crescimento modorrento.
O debate
intelectual, jornalístico, antes e depois do centenário, produziria, em 1924,
a coletânea À margem da história da República. Seu organizador,
Vicente Licínio Cardoso, afirmava que o desafio de sua geração consistia em
empreender “nova Obra de construção, ou seja, fixar [...] o Pensamento e a
Consciência da Nacionalidade Brasileira”, tudo com maiúsculas [Complemento oral: Pensamento, Consciência
Nacionalidade]. Nas palavras de
Marly Motta, “ser moderna, eis a aspiração da sociedade brasileira às
vésperas do Centenário da Independência”, embora a autora advirta que os
diferentes atores tinham concepções diferentes da modernidade.
A diversidade
marca, de fato, as manifestações do centenário, que se inauguram, em
fevereiro, com a Semana de Arte Moderna de São Paulo, seguindo-se a fundação
do Partido Comunista do Brasil, a do Centro Dom Vital, núcleo do pensamento
católico conservador, por Jackson de Figueiredo, o sacrifício heroico dos 18
do Forte de Copacabana, primeira manifestação pública do Tenentismo, a
Exposição Internacional de setembro, e a instituição, no último dia do
ano, do imposto de renda! [Complemento
oral: É curioso, o que foi o ano de 1922.]
O carcomido sistema
político da República Velha não soube captar os sinais de que a sociedade
ansiava por mudanças profundas: a greve geral de 1917, a pulsação dos
movimentos artísticos, a inconformidade das baixas patentes do Exército com
as fraudes eleitorais. Mostrou-se assim incapaz de deter o processo de
autodestruição que culminaria na Revolução de 30.
Nascido com a
Primeira República em 1889, Vicente Licínio Cardoso manifestava a decepção
dos contemporâneos com os 35 anos do regime em palavras que parecem expressar
os nossos sentimentos em relação aos 34 anos da Nova República: “A grande
e triste surpresa de nossa geração foi sentir que o Brasil retrogradou. [Complemento oral: Acho que não utilizaríamos
esse verbo.] Chegamos quase à
maturidade na certeza de que já tínhamos vencido certas etapas [...]resolv(ido)
de vez certos problemas essenciais. E a desilusão, a tragédia [...] foi
sentir quanto de falso havia nessas suposições”
Apesar do igual
desapontamento, há uma evidente diferença entre a efervescência de 1922 e a
desesperança de hoje. O contraste talvez se deva à crueldade do choque
recente por haver sido precedido da ilusão de que o Brasil era “a maior
história de sucesso da América Latina”, como afirmou a revista Economist na
edição da fatídica capa do Cristo Redentor decolando, em novembro de 2009.
Sem a mesma frustração de um tempo melhor, os brasileiros de 22 só viam, ao
olhar para trás, um passado de atraso, ignorância, insucesso. A própria
crise do sistema político vinha de longe, tornara-se crônica. O governo de
Epitácio, que terminava em 22, até se comparava com vantagem aos anteriores,
embora a situação não tardasse em se agravar com o advento de Artur
Bernardes.
O confronto entre o
primeiro e o segundo centenário põe em evidência o inédito da experiência
corrente: a de que, em alguns aspectos importantes, nosso presente é pior que [Complemento oral: certos momentos do] nosso passado. Não se trata do
vulgar sentimento de que “a nuestro parescer, cualquier tiempo pasado fue
mejor”, como dizia Jorge Manrique nas Coplas por la muerte de su padre. [Complemento oral: ... em 1400 e
pouco...]
Quem negaria, por
exemplo, que os tempos atuais são piores que os da modernização do Estado e
industrialização dos anos 1930 a 1950, aos “50 anos em 5” de JK, aos da
Política Externa Independente de Jânio e San Tiago Dantas, aos 16 anos de
estabilidade, crescimento, conquistas sociais de FHC [Complemento oral: Fernando Henrique Cardoso] e [de] Lula? Se essa
avaliação for julgada subjetiva, existe um critério mensurável
indiscutível: o do crescimento econômico.
Segundo o professor
Rogério Furquim Werneck, entre 1940 e 1980, a economia apresentou taxa média
de crescimento de 7% ao ano, expansão rápida e estável, pois, em 40 anos,
apenas em um, (1942), registrou-se queda do produto. O longo período de
crescimento, comparável aos asiáticos, permitiu multiplicar o PIB real por
quinze. Apesar da população haver triplicado no período, o produto por
habitante cresceu mais de cinco vezes!
Compare-se agora
com as quatro décadas seguintes, de acordo com os dados do estudo da Goldman
Sachs (maio de 2019) [Complemento oral:
de maio deste ano] intitulado: Brasil:
duas décadas perdidas em 40 anos. Poderia o país perder meio século? Afirma
o estudo que “nas quatro décadas entre 1981 e 2020, o crescimento real do PIB
per capita quase certamente ficará em menos de 0,8% ao ano na média; nesse
passo, levará 87 anos para dobrar a renda per capita [...] em duas das
últimas quatro décadas, o Brasil experimentou declínio de crescimento real
do PIB per capita: a de 1980 e provavelmente a de 2010 [...] a próxima década
poderia também ser perdida, nesse caso, o Brasil teria perdido meio século”. [Complemento oral: isto é o estudo que
diz.]
Esta última frase
parece ecoar as palavras do barão de Cotegipe ao barão de Penedo sobre a
guerra do Paraguai: “Maldita guerra, atrasa-nos meio século!” Um
fracasso de 50 anos é assustador! É preciso martelar esses dados a fim de
combater a complacência e reconhecer que estamos diante do maior desastre de
desempenho coletivo de nossa história recente!
Temos de admitir
que o nosso presente é, sob esses aspectos, muito pior do que certas fases do
nosso passado. Existem, claro, luzes que se contrapõem às sombras. Estes 40
anos de altos e baixos coincidem com a consolidação da democracia. Sem
arbítrio nem poderes especiais, a democracia encontrou soluções a problemas
criados ou agravados pelos militares: a crise da dívida externa, a inflação
explosiva [Complemento oral: e sem
controle], a destruição dos
direitos humanos, a ruína do Estado de direito.
Nesse período, em
especial nos 20 anos entre 1995 e 2015, [Complemento
oral: que é, basicamente, o período Fernando Henrique e o período Lula, um
pouco mais] alcançou-se a maior
redução relativa da pobreza e da indigência de nossa História. O plano Real
criou uma moeda estável, institui-se o ministério da Defesa para subordinar
os militares ao poder civil, atingiu-se a universalização do ensino
fundamental, os estudantes das classes C, D, E no ensino superior saltaram [Complemento oral: vejam vocês, essa cifra
me parece espantosa] de 87 mil a 2,1
milhões, lançaram-se as bases de um serviço de saúde universal.
Os progressos são
reais, o problema é que, depois de gerar tais resultados, o sistema
político-econômico mostra sinais de esgotamento, produzindo rendimentos
decrescentes. Ora, se a estagnação se perpetuar, muitas conquistas se
revelarão insustentáveis a longo prazo. Foi o que sucedeu na Argentina, onde
os progressos educacionais e sociais vêm sendo gradualmente erodidos pela
crise quase permanente. O bicentenário da independência argentina, em 2016,
encontrou a nação pior do que cem anos antes, no primeiro centenário, quando
era a quinta maior economia do mundo. O decadentismo, o declínio secular, que
nos habituamos a atribuir a nossos vizinhos do rio da Prata é, na verdade,
doença contagiosa, que já transpôs nossas fronteiras.
A exemplo de cem
anos atrás, a aproximação do segundo centenário fornece estímulos para
reagir à doença antes que se torne crônica. Em 1922, esse papel pioneiro
correspondeu, em primeiro lugar, à Semana de Arte Moderna. Um século depois,
ultrapassado o debate de 22 sobre a modernidade e a questão da identidade
nacional, o que nos cabe é identificar razões para confiar que o futuro será
melhor que o presente e superior aos melhores momentos do passado. Precisamos
de razões plausíveis para recuperar o que perdemos devido aos sucessivos
fracassos: a confiança em nossa capacidade de influenciar o futuro, de dar-lhe
um sentido humano.
O ponto de partida
terá de ser a renovação da cultura, da filosofia, da literatura, das artes,
como na Semana de Arte Moderna, [como] na geração espanhola de 1898 e na
experiência de tantos outros povos [Complemento
oral: ... o Risorgimento italiano, e tantos outros. E eu achei que era
importante lembrar essa ideia aqui na Academia, porque será justamente da
renovação da cultura, eu acho que deve partir a renovação da nacionalidade. Eu
não creio que isso possa vir da economia, que possa vir de um outro domínio
qualquer]. De 1922, o que ficou na
memória coletiva foi a Semana de Arte Moderna. É por referência a Mário de
Andrade, a Oswald, a Bandeira, a Drummond, a Villa Lobos, aos que vieram
depois, que nos definimos na consciência de uma identidade bem diferente da
que prevalecia anteriormente.
No campo das
ideias, [Complemento oral: hoje,] os sinais não são encorajadores. A
novidade, se é que cabe tal palavra, é a versão brasileira requentada de
fenômeno mundial, a seita de extrema-direita que mistura ideólogos
pós-fascistas com iluminados, astrólogos, apocalípticos e lunáticos de todo
o gênero. [Palmas da platéia] [Complemento oral: infelizmente essa é
a renovação que se vê no terreno das ideias.] Em política, a polarização e radicalização da sociedade se
aproximam dos níveis da véspera do golpe militar de 64. Consolida-se um
quadro perverso que lembra o italiano no período em que o Partido Comunista se
mantinha como primeira força de oposição, atingia um terço do eleitorado,
mas não lograva romper esse teto. Dizia-se então que a Itália não era um
país normal como os demais da Europa Ocidental, pois não existia
possibilidade de uma alternância democrática, que [Complemento oral: no caso italiano] equivaleria à chegada do
comunismo ao poder. [Complemento oral:
A política estava, portanto, congelada, paralisada.]
A eleição
brasileira de 2018 ajusta-se a essa descrição. O padrão se reproduzirá por
muito tempo se não se romper a polarização entre extrema direita e PT, com o
medo empurrando os segmentos médios na direção da direita. Superar o medo
requer algo parecido ao compromisso histórico que se frustrou na Itália, isto
é, a aliança entre o centro socialmente progressista e a esquerda
democraticamente renovada. [Complemento
oral: Infelizmente, acho que não temos no momento, nem uma coisa nem outra,
não é?]
A eficácia
econômica, a responsabilidade financeira, que tomaram o lugar da luta contra a
miséria depois do colapso da era Dilma não bastarão, se não forem
acompanhadas de vida melhor para os marginalizados. A paixão capaz de
galvanizar a sociedade brasileira só pode vir da busca da maior igualdade possível.
Uma população dividida por profunda desigualdade de condições jamais se
empolgará por ideais liberais de competição, eficácia, meritocracia,
produtividade. Necessárias para tornar sustentável a economia, essas
qualidades precisam ser conciliadas com forte redistribuição da propriedade e
da renda.
Nos anos 20, o
vácuo criado no debate público pelo fim do abolicionismo começava apenas a
ser ocupado pela “questão social”, sob impacto das greves operárias, dos
primeiros sindicatos, da agitação dos jornais e elementos
anarco-sindicalistas. Dos 17,5 milhões de habitantes de 1900, rurais e
analfabetos na sua maioria, a população atingiria cerca de 31 milhões no ano
do centenário. A partir de então acelera-se a dupla explosão demográfica e
urbana, hoje em grande parte concluída, até chegar aos atuais 209 milhões, 86% vivendo em cidades. [Correção oral: 87%]
O crescimento
concentrou-se maciçamente nos pobres. Deu nascimento às favelas, às
gigantescas periferias que circundam as cidades, mesmo as pequenas do interior.
Nelas se desenvolve um ator social novo, de cultura original até na
religiosidade carismática e na expressão política. Esse ator novo exige um
lugar ao sol na vida política, na economia, na cultura. A história dos
últimos cem anos se confunde com o esforço de integração da periferia, das
resistências aos avanços, dos políticos e partidos que tentaram canalizar a
luta ou se beneficiar dela, [Complemento
oral: Getúlio] Vargas, PTB, Lula, PT.
Ninguém se iluda,
o aparecimento de um novo ator social e político tem sempre efeito
desestabilizador. Assim sucedeu na Europa da Revolução Industrial, com as
revoluções de 1830, 1848, da Comuna de 1871. Entre nós e no resto da
América Latina não será diferente: não haverá paz, estabilidade, retomada
do desenvolvimento sem a integração progressiva do novo ator como cidadão,
produtor, consumidor, agente de cultura.
Urge por isso
dobrar a página desta anomalia monstruosa produzida pelo medo na última
eleição, reabrindo o caminho para devolver a esperança a todos os
brasileiros, em especial aos que mais carecem dela. Depois desta hora do poder
das trevas, impõe-se dar sentido à História, recuperar o sentimento de que a
vida humana no Brasil não é absurda e insensata.
Nesse esforço cabem
à renovação da cultura e aos intelectuais um papel insubstituível.
Trata-se, com efeito, como escrevia Marcuse em O Homem Unidimensional, de
fazer com que os extremos se encontrem, isto é, que a consciência humana mais
evoluída se ponha a serviço da força humana mais explorada.
Não está escrito
nas estrelas que o nosso futuro será melhor ou pior que o presente e o
passado. Sem o consolo das certezas ilusórias, depende apenas de nós, de
nossa ação consciente, que os próximos cem anos revertam o declínio,
garantindo-nos um futuro melhor que o presente e superior ao passado. Devemos
devolver ao Brasil não uma esperança qualquer, mas aquela de que afirmava
Walter Benjamin: “É apenas por causa dos que não têm esperança que a
esperança nos foi dada”.
[Complemento oral: Muito obrigado.]
[São Paulo, 17 de agosto de 2019.]
[Encerramento, sem debate]
Rosiska Darcy de Oliveira: Muito obrigado, embaixador
Rubens Ricupero, cidadão brasileiro. Muito obrigado pela esperança que você nos
traz, que não é uma esperança qualquer, como você mesmo disse. Mas a esperança
que vocês nos traz, porque nós ainda temos entre nós intelectuais do porte, da
dignidade, da honra de Rubens Ricupero, que nos propicia uma palestra como
esta. Então, minha primeira palavra é uma palavra de profundo agradecimento
pela esperança que você nos trouxe. Em segundo lugar, eu bem registrei o papel
que você destacou dos intelectuais e da cultura. E você diz isso numa Casa cuja
substância mesma é a cultura. E eu não posso concordar mais do que concordo com
você, quando você diz que aos intelectuais cabe reinventar a cultura, cabe na
verdade reinventar o Brasil, e reinventar a esperança. Eu não posso tampouco
imaginar melhores palavras do que as suas para encerrar este ciclo que foi uma
constante pesquisa, ao longo de um mês, do que nos falta, para finalmente ser o
país que foi pensado, o país que foi sonhado, sonho este para o qual a cultura
contribuiu permanente. E a cultura, ainda é, penso eu ainda, o maior ativo do
Brasil. E é sobre ela que nós tentamos aqui trabalhar, e tentamos aqui
refletir. Muito obrigado, Rubens, por ter vindo aqui conversar conosco e fechar
de uma maneira tão extraordinária esse ciclo no qual nos investimos tanta
esperança. Essa é a palavra. Muito obrigada.
Eu preciso convidar
a todos para os próximos eventos da Academia, vamos ter música de câmara,
cinemateca ... (...) ]
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Vídeo
da palestra do embaixador Rubens Ricupero na Academia Brasileira de
Letras:
6º
Ciclo | Um futuro pior que o passado? Reflexões na antevéspera do bicentenário
da Independência
Ciclo de Conferências "O que falta ao
Brasil?" Conferência: "Um futuro pior que o passado? Reflexões na
antevéspera do bicentenário da Independência" Coordenação: Acadêmica
Rosiska Darcy de Oliveira Palestrante: Rubens Ricupero Data: 29/08/2019
Música neste vídeo
Artista: Ars rediviva
Álbum: The Italian
Settecento (Corelli, Locatelli, Scarlatti, Vivaldi, Sammartini
Supraphon
(em nome de SUPRAPHON a.s.)
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