Dois anos depois de emitida espertamente pelo PT, apenas para ganhar as eleições, em junho de 2002, eu perpetrei, em junho de 2004, uma análise daquele documento, apontando os pontos corretos, sinalizando as ambiguidades, e alertando para os equívocos e inconsistências. Faço apenas observações pontuais, sempre sinalizadas entre colchetes.
Doze anos depois deste exercício, volto a colocar este meu texto de 2004 como demonstrativo de que eu também dei um voto de confiança ao partido totalitário, apenas para ser enganado, como todo o povo brasileiro, menos de dois anos depois, quando o chefe da quadrilha foi substituído por Madame Pasadena, e começou o ciclo de políticas econômicas alopradas que nos levou ao Grande Desastre atual.
Desde o início eu alertei para a trajetória equivocada que estava sendo seguida (e posso provar por dezenas de textos que publiquei desde 2006, aliás disponíveis em meu site), mas parece que só se começou a ter consciência disso numa fase mais recente, e de modo mais claro com o início da Operação Lava Jato, quando foi finalmente revelada a natureza mafiosa do partido no poder, e toda a extensão (ainda não medida completamente) do verdadeiro assalto ao Brasil feito pelos companheiros da organização criminosa.
Esta análise de 2004 de um documento de 2002 é uma espécie de volta ao passado, mas que permite identificar todas as inconsistências de políticas econômicas que já estavam embutidas no itinerário de acertos e desacertos do partido no poder, bonzinho em aparência, criminoso na realidade.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4 de abril de 2016.
Dois anos de “Carta ao Povo Brasileiro”
De volta a um documento de ruptura
Paulo Roberto de Almeida
1294, Brasília, 27 jun. 2004, 16 p.
Análise do discurso argumentativo desse documento de campanha do
candidato Lula (06/2002), com base em sua lógica intrínseca, sem tentativa de
balanço em relação ao conteúdo efetivo.
1. Introdução a um documento paradigmático
O dia 22 do mês de junho
de 2004 marcou, com Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, ocupando a presidência da
República desde 1º de janeiro de 2003, os primeiros dois anos da “Carta ao Povo
Brasileiro”, um documento singular na história recente do Brasil. Com efeito,
nela, um líder político brasileiro, candidato a presidente, propõe um pacto com
o povo, assumindo solenemente uma série de compromissos que, um mês depois, em 23 de julho de 2002, seriam confirmados no documento
“Compromisso com a soberania, o emprego e a segurança
do povo brasileiro” (todos os documentos da campanha do PT de 2002 encontram-se
disponíveis no link: http://www.lula.org.br/obrasil/documentos.asp).
[Já não é mais o caso atualmente, mas
devo ter esses documentos em meus arquivos; PRA: 4/04/2016]
Muitos analistas
políticos, entre eles o que assina estas linhas, já destacaram tratar-se a
“Carta” de um texto relevante do mais importante partido político brasileiro da
atualidade. Creio, pessoalmente, que ela sinalizou uma nítida inversão da curva
eleitoral naquela campanha, que se revelaria finalmente vitoriosa, depois das
três tentativas anteriores. A partir deste momento, e antes mesmo de ocorrido o
primeiro turno das eleições, consignei a marcha para a vitória numa série de
ensaios (enfeixados sob o título comum de “Consequências econômicas da
vitória”), que depois seriam reunidos no livro A Grande Mudança: consequências econômicas da transição política no
Brasil (ver sumário em: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/58GrdeMudanca.html).
A “Carta” constituiu um
instrumento “fundador”, sendo paradigmática de uma transição efetivamente
realizada, mas curiosamente não explicitada nos anais e crônicas do partido. De
fato, a “Carta” deve ser identificada como um documento de ruptura, e talvez
duplamente, tanto no sentido de proposta para um novo caminho político, mas
também ruptura com “tudo aquilo que estava ali”, isto é, com as velhas crenças
do PT.
Recorde-se (para fins de
“arquivologia política”) que a “Carta” foi apresentada pelo candidato como
reproduzindo o resultado de uma conferência nacional sobre o programa do PT
(então em finalização) e que deveria servir de base para a elaboração da
plataforma eleitoral da campanha presidencial de 2002. O teor da “Carta” – ou
melhor, os pressupostos adotados para sustentar os compromissos nela firmados –
não foi ainda incorporado às “tábuas da lei”, isto é, ao programa ou aos textos
básicos do partido, enquanto “assembleia de militantes” – já que muitos deles
continuam sendo guiados pelas resoluções do último encontro nacional do
partido, realizado em Olinda, em dezembro de 2001 –, nem foi ela descartada
como instrumento provisório, como tendo servido apenas aos propósitos de
campanha presidencial de 2002. Seu estatuto é, portanto, algo incerto no
conjunto de documentos de referência do partido. Pode-se no entanto considerar
que esse documento continua a representar uma das mais dramáticas reviravoltas
da história de um quarto de século do mais importante partido (no presente
momento político) brasileiro.
Pretendo deixar de lado,
neste momento, o exame da liturgia de concepção, elaboração e anunciação da
“Carta”, para concentrar-me unicamente na exegese formal do seu conteúdo, tal
como se pode deduzir unicamente da letra e do espírito daquele texto, no
momento em que foi elaborado (aproveitando-me, aliás, para isso, de argumentos
já efetuados no próprio momento em que ele foi liberado). Não pretendo, assim,
utilizar-me dos benefícios do chamado hindsight,
isto é, o esclarecimento retificador que nos traz a visão retrospectiva, pois
isto seria falsear o princípio mesmo da análise do discurso.
Este exercício analítico
– que é complementado por análise paralela da “carta-compromisso” – não enfoca,
portanto, a eventual assunção das principais teses da “Carta” pelo conjunto do
partido, enquanto movimento social, nem sua eventual incorporação doutrinal e
programática pelos principais dirigentes do partido, enquanto governo
constituído. A junção da teoria com a prática, na história recente do PT, pode
ser deixada para ocasião futura, na medida em que o objetivo neste momento é o
de, simplesmente, proceder a uma análise do discurso enquanto construção
conceitual, isto é, como estrutura argumentativa que sustenta uma determinada
concepção do mundo, aquilo que filósofos uspianos gostam de referir-se como
sendo uma Weltanschauung.
Procederei do modo
habitual, isto é, via compilação linear dos 36 parágrafos do documento em
questão, seguindo-se então meus comentários pertinentes ao objeto de cada um
dos parágrafos. Para controle dos extratos e fiabilidade da transcrição, remeto
ao texto original do documento, que pode ser encontrado neste link do site de
campanha do PT: http://www.lula.org.br/obrasil/carta_povo_brasil.asp.
[Não mais existente, mas a transcrição
feita por mim pode ser considerada absolutamente fiel ao original; PRA:
4/04/2016] Os intertítulos que encabeçam cada parágrafo foram atribuídos
pelo autor destas linhas e não figuram, obviamente, no documento original.
Esclareço, por fim, que o presente exercício exegético representa uma simples
modalidade de “história das ideias” – neste caso, limitada a cada um dos pontos
retidos para análise –, sem pretensão alguma de operar um julgamento político
entre a adequação dos conceitos emitidos há pouco mais de dois anos e a
realidade da prática governativa no presente.
2. Uma análise do discurso: a economia da política como imaginação
A grande mudança:
1) O
Brasil quer mudar. Mudar para crescer, incluir, pacificar. Mudar para
conquistar o desenvolvimento econômico que hoje não temos e a justiça social
que tanto almejamos. Há em nosso país uma poderosa vontade popular de encerrar
o atual ciclo econômico e político.
Comentário PRA: Excelente início de documento. Traduz, numa
linguagem direta, o que o partido pretendia demarcar como seu “terreno de
batalha”: a mudança política, a retomada do processo de desenvolvimento, a
justiça social, enfim, a ruptura de ciclo. Nota dez para o redator principal do
documento.
A grande decepção:
2) Se em
algum momento, ao longo dos anos 90, o atual modelo conseguiu despertar
esperanças de progresso econômico e social, hoje a decepção com os seus
resultados é enorme. Oito anos depois, o povo brasileiro faz o balanço e
verifica que as promessas fundamentais foram descumpridas e as esperanças
frustradas.
Comentário PRA: Aqui tem início o estilo habitual de se fazer
política: uma recusa peremptória de uma situação existente (o “atual modelo”),
que não é definido nem nunca formalizado em seus componentes. Basta a
condenação sem apelo. Pode-se recusar o procedimento do ponto de vista
analítico, mas cabe reconhecer sua eficácia política.
A legenda negra:
3) Nosso povo constata com pesar e indignação que a
economia não cresceu e está muito mais vulnerável, a soberania do país ficou em
grande parte comprometida, a corrupção continua alta e, principalmente, a crise
social e a insegurança tornaram-se assustadoras.
Comentário PRA: As tinturas são voluntariamente pessimistas, do
contrário não seria possível transmitir a imagem de fracasso. O problema de
qualquer conjunturalismo político é que as situações podem facilmente
inverter-se, e a criatura voltar-se contra seu criador. Mas estes são os riscos
de todo discurso eleitoral.
Esgotamento do modelo:
4) O sentimento predominante em todas as classes e em
todas as regiões é o de que o atual modelo esgotou-se. Por isso, o país não
pode insistir nesse caminho, sob pena de ficar numa estagnação crônica ou até
mesmo de sofrer, mais cedo ou mais tarde, um colapso econômico, social e moral.
Comentário PRA: A insistência em catalogar um “modelo” não
formalizado ou definido em seus próprios termos representa um recurso habitual
da análise acadêmica e do discurso político. Não importa se, depois, não se
chegará, tampouco, à definição e estabelecimento de um modelo alternativo,
esgotando-se o discurso na demanda reiterada por um “novo modelo” (que será,
supostamente, estabelecido em “ampla consulta”). Os propósitos não são os de
esclarecer qual “esse caminho” que não vem dando certo, nem de apresentar, de
modo claro, o caminho alternativo, mas simplesmente de recusar o estado
existente. Nisso, a estratégia política é relativamente eficiente.
Projeto nacional alternativo:
5) O mais
importante, no entanto, é que essa percepção aguda do fracasso do atual modelo
não está conduzindo ao desânimo, ao negativismo, nem ao protesto destrutivo. Ao
contrário: apesar de todo o sofrimento injusto e desnecessário que é obrigada a
suportar, a população está esperançosa, acredita nas possibilidades do país,
mostra-se disposta a apoiar e a sustentar um projeto nacional alternativo, que
faça o Brasil voltar a crescer, a gerar empregos, a reduzir a criminalidade, a
resgatar nossa presença soberana e respeitada no mundo.
Comentário PRA: Os candidatos sempre precisam dramatizar a situação
existente para dizer que só eles são capazes de resgatar isso ou aquilo. O fato
é que o modelo alternativo é apresentado apenas pelo que ele supostamente será
capaz de fazer, não pelo modo ou em função dos meios empregados para produzir os
resultados esperados. Esse tipo de voluntarismo e de comportamento evasivo é
clássico em política.
Uma preferência nacional:
6) A sociedade está convencida de que o Brasil
continua vulnerável e de que a verdadeira estabilidade precisa ser construída
por meio de corajosas e cuidadosas mudanças que os responsáveis pelo atual
modelo não querem absolutamente fazer. A nítida preferência popular pelos
candidatos de oposição que tem esse conteúdo de superação do impasse histórico
nacional em que caímos, de correção dos rumos do país.
Comentário PRA: Aqui se introduz pela primeira vez o “fiat” absoluto
de todo e qualquer maniqueísmo político: o adversário não quer fazer aquilo que
se considera como necessário e indispensável ao bem estar dos cidadãos. A
“vontade política” é erigida em princípio de ação governativa, o que constitui
obviamente um triunfo da imaginação do candidato sobre o sóbrio realismo do
administrador sem pretensões eleitorais.
Adesão popular e adesismo político:
7) A crescente adesão à nossa candidatura assume cada
vez mais o caráter de um movimento em defesa do Brasil, de nossos direitos e
anseios fundamentais enquanto nação independente. Lideranças populares,
intelectuais, artistas e religiosos dos mais variados matizes ideológicos
declaram espontaneamente seu apoio a um projeto de mudança do Brasil. Prefeitos
e parlamentares de partidos não coligados com o PT anunciam seu apoio. Parcelas
significativas do empresariado vêm somar-se ao nosso projeto. Trata-se de uma
vasta coalizão, em muitos aspectos suprapartidária, que busca abrir novos
horizontes para o país.
Comentário PRA: Não se pode, obviamente, confundir real adesão às
teses e propostas defendidas em campanha com mero oportunismo político dos
tradicionais (e hipócritas) amigos do poder, mas não se pode pedir critérios
muito rígidos a quem só está pedindo votos. Nesse tipo de situação é inevitável
a mistura entre amigos da causa e os amigos da sua própria causa.
Exportar mais, mercado interno e reformas estruturais:
8) O povo brasileiro quer mudar para valer. Recusa
qualquer forma de continuísmo, seja ele assumido ou mascarado. Quer trilhar o
caminho da redução de nossa vulnerabilidade externa pelo esforço conjugado de
exportar mais e de criar um amplo mercado interno de consumo de massas. Quer
abrir o caminho de combinar o incremento da atividade econômica com políticas
sociais consistentes e criativas. O caminho das reformas estruturais que de
fato democratizem e modernizem o país, tornando-o mais justo, eficiente e, ao
mesmo tempo, mais competitivo no mercado internacional. O caminho da reforma
tributária, que desonere a produção. Da reforma agrária que assegure a paz no
campo. Da redução de nossas carências energéticas e de nosso déficit
habitacional. Da reforma previdenciária, da reforma trabalhista e de programas
prioritários contra a fome e a insegurança pública.
Comentário PRA: Este grande parágrafo volta a insistir na mudança, o
que é de boa tática, mas opera também a junção de julgamentos políticos
tradicionais (recusa do continuísmo, por exemplo) com prescrições de tipo
econômico ou social (as reformas estruturais anunciadas). Ele anuncia, pela
primeira vez, a introdução de “programas prioritários contra a fome e a
insegurança pública”, o que supõe a existência de propostas bem fundamentadas.
Ele representou, em todo caso, um notável progresso em
relação às antigas posições – economicamente insustentáveis – de interrupção da
exportação de alimentos (ou de produtos agrícolas em geral) até que todos os
brasileiros pudessem comer, quando o problema da fome não tem obviamente
relação direta com a exportação de produtos do agronegócio. O correto teria
sido caracterizar a questão da fome como um problema distributivo ou de renda,
não de produção ou de comércio, mas os economistas do partido podem não ter
tido condições de se opor a uma poderosa simbologia política.
Em todo caso, a prescrição de se exportar mais é um
poderoso avanço em relação aos preconceitos habituais contra os mercados
externos. Não se compreende bem, por outro lado, como a criação de um “amplo
mercado interno de consumo de massas” pode contribuir para reduzir a
vulnerabilidade externa, que é determinada por fatores ligados ao balanço de
pagamentos, não pela dimensão do mercado interno. Todas as situações são aqui
possíveis, amplo mercado interno com grande vulnerabilidade externa e
vice-versa, mas a diminuição dessa vulnerabilidade depende, obviamente da
produtividade e da competitividade da economia nacional, que são dadas pelas
condições internas de seu funcionamento (o que supostamente se compatibiliza
com um mercado interno de “boa” qualidade). Nas economias modernas,
praticamente não existem mais diferenças entre mercado interno e mercado
externo, pois ambos fazem parte de um mesmo sistema, hoje globalizado (ainda que
o fenômeno produza urticárias em certos meios).
É muito bem-vinda a disposição de se operar uma
“reforma tributária que desonere a produção”, algo absolutamente indispensável
no Brasil atual. A promessa de uma “reforma agrária que assegure a paz no
campo” pode, de outro modo, prestar-se a interpretações variadas, pois não há
necessariamente uma relação causal entre a justiça social (que depende do
correto cumprimento da lei) e a estrutura da propriedade no campo. Uma economia
e uma sociedade “pacificadas” são dadas pelo pleno emprego (ou quase), em
condições de relativo bem estar, não necessariamente através da posse universal
de propriedades agrícolas (pode-se ter, alternativamente, trabalhadores rurais
com direitos amplamente garantidos). O distributivismo fundiário em condições
de baixa produtividade pode produzir “paz social” com níveis mínimos de bem
estar, o que não é necessariamente uma situação ideal.
Insuficiências energéticas e habitacionais só podem
ser corrigidas com amplos investimentos, o que nas condições do Brasil passam
mais pelo setor privado do que pelo estatal. Resta saber quais seriam as
soluções concretas propostas nesses capítulos. Da mesma forma, as reformas
previdenciária e trabalhista são indispensáveis para a retomada de um processo
de crescimento sustentável, mas são igualmente as mais susceptíveis de gerar
resistências e oposição dos grupos de interesse constituídos em torno da
situação atual.
Sem
milagres da noite para o dia:
9) O PT e
seus parceiros têm plena consciência de que a superação do atual modelo,
reclamada enfaticamente pela sociedade, não se fará num passe de mágica, de um
dia para o outro. Não há milagres na vida de um povo e de um país.
Comentário PRA: Um alerta muito sensato e que aliás já prenunciava o
abandono da política de “ruptura” imediata.
Devagar com o andor que o santo é de barro:
10) Será necessária uma lúcida e criteriosa transição
entre o que temos hoje e aquilo que a sociedade reivindica. O que se desfez ou
se deixou de fazer em oito anos não será compensado em oito dias. O novo modelo
não poderá ser produto de decisões unilaterais do governo, tal como ocorre
hoje, nem será implementado por decreto, de modo voluntarista. Será fruto de
uma ampla negociação nacional, que deve conduzir a uma autêntica aliança pelo
país, a um novo contrato social, capaz de assegurar o crescimento com
estabilidade.
Comentário PRA: Mais uma nota de medido realismo mudancista. O
problema, entretanto, das “amplas negociações nacionais” é que elas correm o
risco de produzir uma virtual paralisia no processo decisório, na medida em que
os interesses dos diferentes grupos sociais são sempre conflitantes (sem falar
de preconceitos ideológicos, arraigados em certos meios). Em algum momento, o
“decisor de última instância” tem de adotar uma solução a um determinado
problema, o que necessariamente irá descontentar eventuais perdedores. Salvo
nas ditaduras, os governos não adotam decisões unilaterais, pois o processo
legislativo filtra o “pensamento único”. O crescimento com estabilidade não é
assegurado apenas por meio de um novo “contrato social”, que figura aí como
expediente retórico, mas depende de condições objetivas que não são dadas
apenas na esfera política.
Respeito às obrigações e compromissos externos:
11) Premissa dessa transição será naturalmente o
respeito aos contratos e obrigações do país. As recentes turbulências do
mercado financeiro devem ser compreendidas nesse contexto de fragilidade do
atual modelo e de clamor popular pela sua superação.
Comentário PRA: Figura aqui o mais importante compromisso político
(e também econômico) do PT. Ainda que reconhecendo a existência de uma
instabilidade financeira, ele se compromete a respeitar os contratos e as
obrigações externas do país. Trata-se da mais importante evolução programática
– supondo-se que seja consagrada na prática – em relação às campanhas
anteriores, quando estava implícito (ou explícito: nas eleições de 1989, por
exemplo) o desejo ou intenção de se aplicar, junto com outros países em
desenvolvimento, um calote na dívida externa. O clamor popular figura aqui como
mero expediente eleitoral, pois o importante é o compromisso de respeito aos
contratos.
Duvidas na capacidade do Brasil de honrar seus
compromissos:
12) À parte manobras puramente especulativas, que sem
dúvida existem, o que há é uma forte preocupação do mercado financeiro com o
mau desempenho da economia e com sua fragilidade atual, gerando temores
relativos à capacidade de o país administrar sua dívida interna e externa. É o
enorme endividamento público acumulado no governo Fernando Henrique Cardoso que
preocupa os investidores.
Comentário PRA: O governo de FHC de fato acumulou uma enorme dívida
interna, mas isto se deveu à situação de virtual desequilíbrio das contas
públicas, como resultado de uma década inteira de planos heterodoxos de
estabilização tentativa da economia. A origem dos desequilíbrios não é
desconhecida: nossa capacidade de viver acima dos meios e de gastar mais do que
se arrecada (daí a necessidade de se produzir superávit primário, o que por
outro lado não descarta o requerimento de continuar a tomar dinheiro no mercado
para rolar a dívida, pagando caro pelos juros).
O governo de FHC até que tentou corrigir o
desequilíbrio histórico das contas públicas, empreendendo a reforma previdenciária,
por exemplo, no que recebeu acirrada oposição do PT (que atuou em defesa de
seus clientes habituais, as corporações de funcionários públicos), além de
retirar dos armários burocráticos diversos “esqueletos”, assumindo os ônus
reais das dívidas estaduais e municipais (com uma renegociação muito favorável
para essas esferas da federação).
O problema do endividamento público tem de ser
cuidadosamente administrado, pois seus contornos ultrapassam a vontade de um
governo, já que se trata de um problema do Estado brasileiro. Em parte, o mau
desempenho da economia tem a ver com essa enorme dívida pública (que é
essencialmente interna), já que ela retira poupança do setor privado e diminui
a taxa de investimento.
Jogando a responsabilidade da instabilidade no governo
anterior:
13) Trata-se de uma crise de confiança na situação
econômica do país, cuja responsabilidade primeira é do atual governo. Por mais
que o governo insista, o nervosismo dos mercados e a especulação dos últimos
dias não nascem das eleições.
Comentário PRA: O discurso aqui é totalmente inconsistente. Não se
pode deixar de reconhecer as dificuldades objetivas da economia brasileira, que
são de fato de responsabilidade, mas não exclusiva, do governo FHC, mas a
situação de turbulência eleitoral também nasce, quer se queira ou não, do temor
natural de que uma mudança no comando econômico do país, em favor de quem até
agora prometia “mudar tudo”, possa representar quebra de contratos e calote nas
dívidas interna e externa. Trata-se, portanto, de uma responsabilidade
compartilhada, nascida das eleições.
Na verdade, a crise de confiança era muito mais em
relação a um eventual governo do PT do que em relação à administração econômica
em curso naquele momento, mas isso seria difícil reconhecer durante a campanha,
o que pode ser considerado como normal no jogo político. Em algum momento do
itinerário, porém, as possibilidades de se atribuir a terceiros a
responsabilidade por atos e fatos correntes se esgotam.
Existe um modelo alternativo?:
14) Nascem, sim, da graves vulnerabilidades
estruturais da economia apresentadas pelo governo, de modo totalitário, como o
único caminho possível para o Brasil Na verdade, há diversos países estáveis e
competitivos no mundo que adotaram outras alternativas.
Comentário PRA: Pode-se concordar com o diagnóstico quanto à
vulnerabilidade estrutural da economia brasileira, mas isso não exime a
necessidade de se apresentar, concretamente, os caminhos alternativos
supostamente existentes à disposição dos países. O “caminho totalitário”
apresentado pelo governo de FHC era o da responsabilidade fiscal e o do
controle da inflação, elementos de política econômica que não podem servir de
terreno para a demagogia barata.
Por outro lado, caberia mencionar claramente quais são
os “diversos países estáveis e competitivos no mundo” e quais são,
concretamente, essas “outras alternativas” que eles adotaram. Podemos,
hipoteticamente, pensar em dois grupos de países: de um lado, a Índia, a China,
a Rússia, sempre presentes no discurso do PT como exemplos de modelos
alternativos com os quais caberia fazer “alianças estratégicas” (supostamente
contra alguém ou alguma situação inaceitável no mundo); de outro, países de
democracia avançada e com grau razoável de bem estar para suas populações, como
os EUA, o Reino Unido, a França e a Alemanha, todos exemplos de economias
altamente competitivas e estáveis, mas que supostamente não figuram no terreno
das alianças estratégicas.
Seria preciso saber quais desses países oferecem
exemplos de políticas econômicas alternativas que poderiam, supostamente,
tornar o Brasil melhor do que ele é hoje. O primeiro grupo não é composto de
países fundamentalmente estáveis, ainda que alguns deles exibam fortes taxas de
crescimento (resta saber se sustentáveis). Quanto ao segundo grupo de países, o
mínimo que se pode dizer de suas políticas é que elas são neoliberais, mas
apenas os mais neoliberais (como EUA e o Reino Unido) são capazes de
apresentar, simultaneamente, baixas taxas de desemprego. Quais são as
alternativas, afinal de contas?
Posto de modo claro: existe, de um lado, um conjunto
de “receitas” de política econômica, que são explícitas, transparentes e estão
sempre sendo repetidas, a cada reunião do G-7, e que muitos jornalistas
simplificam como sendo o “consenso de Washington” (que não traduz a
complexidade do “modelo”, para adotarmos essa inútil terminologia). Existe, de
outro, um conjunto nebuloso de “exemplos” (?) de crescimento, mas que não
corresponde a nenhum modelo específico de desenvolvimento econômico ou social,
e sim a peculiaridades desses outros grandes países relativamente periféricos
(ainda que relevantes do ponto de vista da política e da economia mundiais).
Seria preciso que ficasse claro, no discurso, que
modelos de economias estáveis o Brasil estaria aspirando seguir. O mais
provável é que ele pretendesse adotar um sensato realismo econômico, que vem
sendo expresso naquelas regras do G-7. Mas isso não seria neoliberalismo? Trata-se de um cruel
dilema psicológico…
Enfim, um pouco de realismo:
15) Não importa a quem a
crise beneficia ou prejudica eleitoralmente, pois ela prejudica o Brasil. O que
importa é que ela precisa ser evitada, pois causará sofrimento irreparável para
a maioria da população. Para evitá-la, é preciso compreender que a margem de
manobra da política econômica no curto prazo é pequena.
Comentário PRA: Não se poderia pedir melhor definição dos limites
impostos à vontade política dos governantes.
De volta ao terreno nebuloso das indefinições:
16) O Banco Central acumulou um conjunto de equívocos
que trouxeram perdas às aplicações financeiras de inúmeras famílias.
Investidores não especulativos, que precisam de horizontes claros, ficaram
intranquilos. E os especuladores saíram à luz do dia, para pescar em águas
turvas.
Comentário PRA: O que se ganhou em realismo, no parágrafo anterior,
foi perdido em inconsistências lógicas, no atual: não se sabe bem quais são os
equívocos acumulados pelo BC, nem quais são os investidores que perderam e os
que ganharam. O que é certo é que existe uma categoria de aplicadores que
sempre ganha com juros altos, ainda que se arriscando a perder dinheiro num
calote eventual, ou numa situação de real inadimplência.
Os “pescadores de águas turvas” constituem um dos mais
famosos lugares comuns do vocabulário político, mas ainda não se descobriu quem
são eles: para cada tipo de água turva parece haver um pescador diferente.
Pode-se, por exemplo, dizer que nas situações de instabilidade econômica, os
partidos de oposição sempre agem como “pescadores de águas turvas”: isso é
normal no jogo político.
Quem é o guardião da tranquilidade política?:
17) Que segurança o governo tem oferecido à sociedade
brasileira? Tentou aproveitar-se da crise para ganhar alguns votos e, mais uma
vez, desqualificar as oposições, num momento em que é necessário tranquilidade
e compromisso com o Brasil.
Comentário PRA: A frase seria totalmente dispensável, se não fosse a
necessidade de desqualificar o adversário, mesmo acusando-o de tentar
desqualificar quem precisa ser desqualificado, que é sempre o outro,
obviamente.
Populismo cambial:
18) Como todos os brasileiros, quero a verdade
completa. Acredito que o atual governo colocou o país novamente em um impasse.
Lembrem-se todos: em 1998, o governo, para não admitir o fracasso do seu
populismo cambial, escondeu uma informação decisiva. A de que o real estava
artificialmente valorizado e de que o país estava sujeito a um ataque
especulativo de proporções inéditas.
Comentário PRA: Todos os economistas de bom senso, de oposição, de
situação ou mesmo de direita, sabiam que o real estava sobrevalorizado na
primeira fase do Plano de estabilização. Duvidoso, porém, que se tratasse de
“populismo cambial” ou que o real tenha sido “artificialmente valorizado”.
Tratou-se de um expediente temporário para combater a alta de preços num
momento crucial do processo, e que depois não pôde ser corrigido em função das
crises financeiras em curso. O valor da moeda, na verdade, começou a ser
ajustado desde 1995, mas a um ritmo talvez insuficiente para compensar a
defasagem de competitividade. De toda forma, a valorização se explica pelo
diferencial de juros. Mas, nenhum governo sensato poderia admitir publicamente
que o câmbio estava defasado e que seria preciso ajustá-lo à realidade
econômica: a especulação e o descontrole teriam sido inevitáveis. Se o PT fosse
governo naquela ocasião, não teria agido de outro modo.
Sem a relativa valorização cambial, o imposto
inflacionário teria continuado a penalizar por mais tempo os mais pobres, os
que sempre sofrem com a continuidade da alta de preços. Foi ela, justamente,
que permitiu a relativa redistribuição de renda que ocorreu no começo do Plano
Real. Qualquer outra situação teria significado um ritmo menor de desaceleração
inflacionária e menores ganhos para os mais pobres.
O que uma coisa tem a ver com a outra?:
19) Estamos de novo atravessando um cenário
semelhante. Substituímos o populismo cambial pela vulnerabilidade da âncora
fiscal. O caminho para superar a fragilidade das finanças públicas é aumentar e
melhorar a qualidade das exportações e promover uma substituição competitiva de
importações no curto prazo.
Comentário PRA: Não se compreende por que a chamada âncora fiscal
teria de ser inerentemente vulnerável. Nenhum programa de estabilização se
sustenta sem um sério ajuste fiscal, isto é, das contas públicas, que sempre
estão no coração de todo descontrole inflacionário. Na verdade, o que passou a
ser utilizado no lugar da antiga âncora cambial (que foi sempre muito relativa)
é o chamado sistema de “inflation targetting”, ou de metas de inflação, hoje em
vigor num crescente número de países.
De resto, não se compreende bem por que a situação das
finanças públicas não se resolve sem “melhorar a qualidade das exportações e
promover uma substituição competitiva de importações no curto prazo”. O que uma
coisa tem a ver com a outra? Ambas medidas podem, no máximo, introduzir tranquilidade
nas contas externas do país, mas nunca afetar substancialmente a situação das
contas públicas, que dependem, por outro lado, de algum tipo de equilíbrio
fiscal. O discurso político aparece aqui como totalmente inconsistente e
incoerente do ponto de vista econômico.
Outras inconsistências:
20) Aqui ganha toda a sua dimensão de uma política
dirigida a valorizar o agronegócio e a agricultura familiar. A reforma
tributária, a política alfandegária, os investimentos em infraestrutura e as
fontes de financiamento públicas devem ser canalizadas com absoluta prioridade
para gerar divisas.
Comentário PRA: A valorização do agronegócio já tinha começado muito
tempo antes de ser incluída no discurso de campanha. A agricultura familiar
pode ser inserida na equação, desde que vinculada a uma cadeia produtiva, como
ocorre, por exemplo, no caso dos estados do sul e do sudeste. No resto do Brasil,
a agricultura familiar está mais ligada aos mercados locais, quando não faz
parte de um sistema de mera subsistência. Não se compreende, em todo caso, o
que isso tem a ver com a solidez das contas públicas e a sustentabilidade do
modelo econômico, que era o que se estava discutindo no parágrafo anterior.
Isso pode dar a impressão de que o documento constitui, na verdade, uma
assemblagem de frases desconexas, sem relação umas com as outras.
Esta impressão é confirmada pela frase seguinte,
quando se junta quatro elementos totalmente díspares (reforma tributária,
política alfandegária, investimentos em infraestrutura e fontes públicas de
financiamento) num mesmo objetivo comum, que seria o de gerar divisas. Do ponto
de vista dos manuais de economia, isso não faz nenhum sentido, aliás nem do
ponto de vista dos procedimentos, pois não se entende como fazer para
“canalizar” políticas setoriais que atendem objetivos diversos.
Promoção comercial e luta contra o protecionismo:
21) Nossa política externa deve ser reorientada para
esse imenso desafio de promover nossos interesses comerciais e remover graves
obstáculos impostos pelos países mais ricos às nações em desenvolvimento.
Comentário PRA: O Itamaraty vem conduzindo, desde muitos anos, esse
mesmo tipo de política recomendada na “Carta”. Talvez se devesse propor algo de
novo, mas não está muito claro o quê, exatamente.
Abertura para conversas sobre a crise:
22) Estamos conscientes da gravidade da crise
econômica. Para resolvê-la, o PT está disposto a dialogar com todos os
segmentos da sociedade e com o próprio governo, de modo a evitar que a crise se
agrave e traga mais aflição ao povo brasileiro.
Comentário PRA: É bem vinda essa consciência, mas o tom geral da
frase é muito condescendente, como se o partido estivesse convidando o resto da
sociedade a discutir com ele sobre a gravidade da situação e quem sabe até se
dispõe a dar alguns conselhos ao governo sobre como lidar com a crise. Em
outras circunstâncias isso se chamaria arrogância, mas num documento eleitoral
pode ser tolerado.
Taxa de juros
depende da “despoupança” estatal:
23) Superando a nossa vulnerabilidade externa,
poderemos reduzir de forma sustentada a taxa de juros. Poderemos recuperar a
capacidade de investimento público tão importante para alavancar o crescimento
econômico.
Comentário PRA: Mais uma inconsistência de natureza econômica: a
taxa de juros depende basicamente das necessidades de financiamento do setor
público, que por sua vez se abastece prioritariamente no mercado interno. Não
se compreende assim a relação de causa a efeito traçada na frase, a menos que
se queira dizer que um bom saldo exportador permitirá reduzir os juros internos
já que não se necessitaria mais “atrair” capitais externos. Mas, num regime de
flutuação cambial o saldo comercial tende a refletir o equilíbrio econômico
mais geral do país, ao passo que a taxa de juros continua a depender das
necessidades de financiamento do setor público.
Não há milagre neste terreno. Para reduzir os juros
internos (o que talvez afetasse, indiretamente, a chamada “vulnerabilidade
externa”), se deveria começar propondo um superávit primário de 5 ou 6% do PIB,
o que significa que o governo não precisaria mais ficar tomando dinheiro no
mercado. Os juros poderiam baixar em consequência. Para que o Estado recupere a
sua capacidade de financiamento do investimento público seria preciso um enorme
esforço de reordenamento dos gastos públicos, já que a capacidade de “extração
fiscal” parece ter chegado perto de seus limites estruturais. De toda forma,
nas condições concretas do país, o crescimento econômico parece depender bem
mais do investimento privado do que do público (de toda forma pouco disponível
nos volumes adequados). [Comentário PRA
em 4/04/2016: Essa tentativa de superávit nominal foi ensaiada em 2005, quando
caiu o “grão-vizir” do governo petista, o Richelieu do Planalto, o chefe da
quadrilha, como definido no julgamento do Mensalão; naquela conjuntura, a
substituta considerou “elementar” a proposta feita pelos três membros do
Conselho Monetário Nacional – ministros da Fazenda e do Planejamento, e o
presidente do BC – de zerar o déficit, o que obstou totalmente sua
implementação; desde essa época, o governo petista começou a gastar além da
conta e o Grande Desastre começou a ser implantado.]
Tentando compreender:
24) Esse é o melhor caminho para que os contratos
sejam honrados e o país recupere a liberdade de sua política econômica
orientada para o desenvolvimento sustentável.
Comentário PRA: Não está nada claro qual é esse caminho e as propostas
são contraditórias entre si: se o Estado recuperar sua capacidade de
investimento os contratos passam a ser honrados? E se eles não forem honrados,
o que acontece? E o que isso tem a ver com a liberdade de política econômica?:
também depende da capacidade de investimento do Estado? Um pouco de clareza de
expressão e sobretudo sequência no raciocínio econômico ajudariam bastante no
caso desses papéis que tem de ser lidos por outras pessoas.
Origem do pacto perverso: a recuperação dos salários
em situação de inflação:
25) Ninguém precisa me ensinar a importância do
controle da inflação. Iniciei minha vida sindical indignado com o processo de
corrosão do poder de comprar dos salários dos trabalhadores.
Comentário PRA: O papel principal dos sindicatos não é propriamente
o de ajudar a controlar a inflação, e sim o de minorar os seus efeitos do ponto
de vista do poder de compra dos salários dos trabalhadores afiliados. De certa
forma, eles participam, junto com os sindicatos de patrões, de um “pacto perverso”,
ainda que involuntário, no qual ambos fingem brigar contra a inflação, mas de
fato repassam alegremente seus custos para todos os demais membros da
sociedade. Uns e outros mantêm a aparência de negociar, acerbamente, os níveis
salariais, quando na verdade os parceiros são cúmplices no jogo do “empurrar a
crise para o vizinho”, ou seja: garantido um patamar satisfatório de salário
para os trabalhadores daquele sindicato combativo, os custos, numa economia
inflacionária, serão imediatamente repassados para o conjunto de consumidores,
que não têm como se defender.
Ainda o pacto perverso: as negociações setoriais:
26) Quero agora reafirmar esse compromisso histórico
com o combate à inflação, mas acompanhado do crescimento, da geração de
empregos e da distribuição de renda, construindo um Brasil mais solidário e
fraterno, um Brasil de todos.
Comentário PRA: Os propósitos, refletidos neste parágrafo, são os
melhores possíveis, mas subsiste uma vaga impressão de que esse compromisso de
luta contra a inflação pode ser feito mediante negociações setoriais (ou
câmaras), nas quais os parceiros “combinam” níveis aceitáveis de preços contra
garantia de emprego e salários. Isso pode funcionar para os setores já
incluídos da sociedade – como os sindicatos de metalúrgicos –, mas nunca
funcionou para os imensos contingentes do setor informal da economia, que se
aproximam da maioria da força-de-trabalho.
Salada mista:
27) A volta do crescimento é o único remédio para
impedir que se perpetue um círculo vicioso entre metas de inflação baixas, juro
alto, oscilação cambial brusca e aumento da dívida pública.
Comentário PRA: O crescimento é, sem dúvida alguma, um grande
auxiliar de políticas redistributivas, diretas e indiretas, mas ele pode
conviver com os mais diversos tipos de situação nos planos monetário, fiscal,
cambial ou orçamentário. A rigor, não existem muitos nexos estruturais entre os
quatro elementos citados no parágrafo: também se poderia ter, hipoteticamente,
uma combinação de inflação alta, com juro baixo, rigidez cambial e um patamar
razoável de dívida pública, já que tudo depende de um conjunto de variáveis
independentes. Na verdade, a frase, do ponto de vista econômico, pode dizer
tudo e o seu oposto.
Defendendo a burguesia nacional?:
28) O atual governo estabeleceu um equilíbrio fiscal
precário no país, criando dificuldades para a retomada do crescimento. Com a
política de sobrevalorização artificial de nossa moeda no primeiro mandato e
com a ausência de políticas industriais de estímulo à capacidade produtiva, o
governo não trabalhou como podia para aumentar a competitividade da economia.
Comentário PRA: O equilíbrio fiscal, precário ou não, é aquele
compatível com o estado das contas públicas, que diga-se de passagem continua a
produzir déficits nominais (isto é, o superávit não é suficiente para cobrir os
juros da dívida pública). A crítica à sobrevalorização cambial, três anos
depois da adoção de um regime de flutuação, parece anacrônica, em seus próprios
termos.
A adoção de uma política industrial, qualquer que seja
ela, não significa que se estará trabalhando para aumentar a competitividade
geral da economia, pois ela também pode representar um fator de atraso nos
índices de produtividade, na medida em que tende a “proteger” os industriais da
competição externa. No passado distante essa política significou subsidio farto
e barato aos industriais, taxas de juros camaradas, isenções fiscais, tarifas
altas, enfim, a tradicional reserva de mercado.
Tocando no ponto nevrálgico:
30) Exemplo maior foi o fracasso na construção e
aprovação de uma reforma tributária que banisse o caráter regressivo e
cumulativo dos impostos, fardo insuportável para o setor produtivo e para a
exportação brasileira.
Comentário PRA: Trata-se da questão mais importante do ponto de vista
do funcionamento do nosso sistema econômico. Se este problema for equacionado,
os responsáveis merecem entrar para os livros de história, com todas as glórias
a que terão direito. Não há problema mais relevante para a vida nacional. Pena
que tenha merecido tão pouca elaboração.
Crescer para os credores ou para a população?:
31) A questão de fundo é que, para nós, o equilíbrio
fiscal não é um fim, mas um meio. Queremos equilíbrio fiscal para crescer e não
apenas para prestar contas aos nossos credores.
Comentário PRA: Muito louvável a intenção, mas uma coisa não costuma
vir sem a outra. Combinar equilíbrio fiscal e crescimento é uma das tarefas
mais ingratas da política econômica, já que para crescer são necessários
investimentos, e para que o Estado participe desse processo ele precisaria ter
folga fiscal, o que não parece ser o caso do Brasil. Ao contrário: o país está
há anos atolado no desequilíbrio fiscal e no baixo crescimento. Quem tiver a
receita para superar essa cruel contradição precisaria dizer, sem mais tardar.
Quanto aos credores, seria preciso ficar claro: ou se
pretende honrar contratos (isto é, prestar contas aos credores), ou se adota
uma solução de risco, como a de preferir o crescimento ao pagamento das
dívidas. Ambas as situações são conflitantes, pelo menos no plano imediato. Em
todo caso, seria interessante que num documento programático como este, toda
ambiguidade fosse eliminada.
Uma opção pela sensatez econômica:
32) Vamos preservar o superávit primário o quanto for
necessário para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na
capacidade do governo de honrar os seus compromissos.
Comentário PRA: Eis uma forma de diminuir a ambiguidade: seria
preciso que ela fosse seguida de demonstrações práticas nesse sentido.
Mas mesmo o bom senso tem limites:
33) Mas é preciso insistir: só a volta do crescimento
pode levar o país a contar com um equilíbrio fiscal consistente e duradouro. A
estabilidade, o controle das contas públicas e da inflação são hoje um
patrimônio de todos os brasileiros. Não são um bem exclusivo do atual governo,
pois foram obtidos com uma grande carga de sacrifícios, especialmente dos mais
necessitados.
Comentário PRA: O equilíbrio fiscal duradouro é importante mesmo
numa situação de baixo crescimento, e talvez sobretudo com crescimento
insuficiente, em que pese o keynesianismo instintivo da maior parte da classe
política. Essa constatação já tinha sido feita pelos próprios eleitores desde
meados dos anos 90, ao premiar duas vezes seguidas as políticas que tendiam a
colocar o primado da estabilidade sobre o do crescimento. Não se pode, portanto, admitir a tese de que
um “pouco de inflação” pode ser aceitável desde que contribua para o
crescimento econômico. Da mesma forma, não se deveria contestar a constitucionalidade
da Lei de Responsabilidade Fiscal no Supremo Tribunal Federal.
A bem da verdade, os mais necessitados foram os mais
beneficiados com o fim do ciclo de inflação alta, mas eles não têm consciência
de todos os mecanismos complexos que foi preciso mobilizar para superar essa
fase: são os que menos poupam atualmente, por exemplo, sob a alegação de que o
fim da correção monetária fez com que a poupança “rendesse pouco”. Cabe ao
governo garantir que a situação anterior não volte mais.
Novas inconsistências?:
34) O desenvolvimento de nosso imenso mercado pode
revitalizar e impulsionar o conjunto da economia, ampliando de forma decisiva o
espaço da pequena e da microempresa, oferecendo ainda bases sólidas par ampliar
as exportações. Para esse fim, é fundamentar a criação de uma Secretaria
Extraordinária de Comércio Exterior, diretamente vinculada à Presidência da
República.
Comentário PRA: O desenvolvimento do mercado interno e a promoção da
pequenas empresas têm muito pouco a ver com a criação de uma Secretaria de
Comércio Exterior vinculada à Presidência da República. Por certo que um grande
mercado interno oferece uma base segura para a expansão externa, mas isso
depende de políticas no campo microeconômico, com menor destaque para a
promoção comercial externa.
De volta ao terreno das promessas:
35) Há outro caminho possível. É o caminho do
crescimento econômico com estabilidade e responsabilidade social. As mudanças
que forem necessárias serão feitas democraticamente, dentro dos marcos
institucionais. Vamos ordenar as contas públicas e mantê-las sob controle. Mas,
acima de tudo, vamos fazer um Compromisso pela Produção, pelo emprego e por
justiça social.
Comentário PRA: Os discursos “produtivistas” costumam ter ampla
aceitação, pois não há quem se oponha ao crescimento sustentado, com inclusão e
justiça social. O importante é que cada parceiro social, cada agente econômico,
interno ou externo, encontre o pedaço de frase que o satisfaça. Wall Street,
por exemplo, reterá apenas que as contas públicas serão mantidas sob controle.
A Fiesp fica encantada com esses pactos pela produção, assim como as centrais
sindicais gostam de ouvir frases que contenham os conceitos de emprego e de
justiça social. Tem sido assim desde o início da era Vargas, e não se pode
querer que esses velhos hábitos políticos venham a morrer quando menos se
espera.
A união pelo crescimento e pela mudança:
36) O que nos move é a certeza de que o Brasil é bem
maior que todas as crises. O país não suporta mais conviver com a ideia de uma
terceira década perdidas. O Brasil precisa navegar no mar aberto do
desenvolvimento econômico e social. É com essa convicção que chamo todos os que
querem o bem do Brasil a se unirem em torno de um programa de mudanças
corajosas e responsáveis.
Comentário PRA: Quando todos forem chamados para discutir um
programa de mudanças, haverá discussões intermináveis e pouco ou nenhum
consenso em torno de quais mudanças são necessárias para atingir todas aquelas
promessas de crescimento com estabilidade e justiça social. Por isso, é função
dos partidos políticos propor eles mesmos as mudanças que consideram
necessárias para o bem do país e de seus cidadãos. Abster-se de fazer isso
significa pedir um cheque em branco ao eleitorado. [Comentário PRA em 4/04/2016: parece que o Brasil se prepara agora para
mais uma década perdida, resultado de todas as políticas erradas feitas pelos
governos do PT desde 2006.]
Final:
37) Luiz Inácio Lula da Silva
Sem comentários.
3. Consequências econômicas de uma transição não assumida
A mensagem mais visível
da “Carta ao Povo Brasileiro” é a de que ela propõe que aceitemos uma grande
mudança. Essa mudança é, antes de mais nada, a do próprio Partido dos Trabalhadores,
que resolveu trabalhar com conceitos bem mais tranquilos, e de fato menos
assustadores, do que aqueles que compareciam regularmente em seus manifestos
anteriores: ruptura, calote, distribuição compulsória de terras, redução dos
lucros abusivos dos industriais, limitações dos ganhos dos banqueiros, luta
contra o capital financeiro internacional, enfim, a recusa de tudo o que estava
ali (no sistema). Agora, somos convidados a aceitar que os contratos serão
respeitados, que a estabilidade será garantida e que todas as mudanças serão
feitas num marco democrático, o que parece bem razoável.
Em síntese, o sistema
econômico já é aceito enquanto tal, ainda que ele possa ser mudado para
beneficiar a grande maioria. O realismo econômico parece bem mais visível,
ainda que subsistam vários equívocos e inconsistências lógicas, que terão de
ser corrigidos mediante uma revisão adequada do texto e uma consulta mais
detalhada aos manuais de economia.
O que talvez se devesse esperar seria
que uma nova “Carta ao Povo Brasileiro” reafirmasse agora as bases do
crescimento responsável, confirmando princípios e práticas da política
econômica. O discurso político precisa ter uma certa consistência, sob risco de
perda de credibilidade. Por isso, a adoção de um novo manual de economia
política, que afastasse de vez novas promessas de ruptura, representaria um
grande avanço no terreno da administração responsável da coisa pública no
Brasil.
De fato, uma das consequências mais
indesejadas do não reconhecimento da mudança interna ao partido é essa situação
de baixo crescimento, de investimentos retraídos, de desconfiança dos agentes
econômicos de que alguma coisa ainda pode ocorrer na gestão da política
econômica. Se a transição já foi feita, não há porque delongar o seu reconhecimento
explícito pelos próprios agentes da transição. A luta de ideias ainda pode
estar em curso, mas as que saíram vencedoras já são plenamente identificáveis.
Evitar chamá-las pelo nome apenas prolonga o nascimento do novo discurso. [Comentário PRA em 4/04/2016: A luta de
ideias se processou no PT, e a vitória foi dada em favor das ideias
inconsistentes, das opções econômicas irresponsáveis, pois que equivocadas
quanto aos objetivos de crescimento com estabilidade, e em favor de práticas delitivas
no terreno político, que aliás ainda continuam nesta fase agônica da era
lulopetista, que é a derrocada de todas as suas promessas, e a instalação de
uma situação de quase caos no plano político e, mais ainda, no terreno econômico.
O Brasil foi literalmente afundado pelo PT.]
Paulo Roberto de Almeida
(pralmeida@mac.com; www.pralmeida.org)
Brasília, 1294: 27 de junho de 2004
[Com complementos pontuais em
4/04/2016]