Meu mais recente artigo publicado, na revista do CEBRI:
4215. “Rupturas e continuidades na política externa brasileira, 1985-2023”, Brasília, 7 agosto 2022, 9 p. Nota sobre as grandes linhas da política externa na Nova República e suas “rupturas”. Encaminhada a Feliciano Guimarães, editor da Revista CEBRI. Publicado no site da revista do CEBRI (29/09/2022, link: https://cebri.org/revista/br/artigo/54/rupturas-e-continuidades-na-politica-externa-brasileira-1985-2023) e disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/87577999/4215_Rupturas_e_continuidades_na_pol%C3%ADtica_externa_brasileira_1985_2023_Vicissitudes_da_diplomacia_no_Brasil_2022_). Relação de Publicados n. 1470.
Sumário:
A longa e lenta construção de uma política externa autônoma sob o regime militar
Poucas descontinuidades na política externa e na diplomacia da Nova República
A pequena ruptura da era Lula: o engajamento no combate à fome e à pobreza
A caminho da grande ruptura: a desafeição ao PT e a ascensão de uma direita extrema
Uma nova “ruptura diplomática” em 2023?
Referência Bibliográfica
Rupturas e continuidades na política externa brasileira, 1985-2023
Paulo Roberto de Almeida *
Publicado no site da revista do CEBRI (29/09/2022, link: https://cebri.org/revista/br/artigo/54/rupturas-e-continuidades-na-politica-externa-brasileira-1985-2023). Relação de Originais n. 4215.
A longa e lenta construção de uma política externa autônoma sob o regime militar
De todas as políticas públicas definidas e implementadas durante o regime militar de 1964 a 1985, a política externa foi, possivelmente, a que menos rupturas sofreu na transição da ditadura para a democracia naquele último ano. Tal se deveu por uma série de razões, não todas de ordem política, ou ideológica, uma vez que já havia uma longa tradição de trabalho conjunto entre o ministério das Relações Exteriores e as Forças Armadas desde o período da guerra do Paraguai, cooperação bastante reforçada durante a era do Barão e em períodos especiais, como nos dois conflitos globais da primeira metade do século XX e durante a bipolaridade do pós-Segunda Guerra. A diplomacia profissional incorporou naturalmente a visão tecnocrática e nacionalista do estamento militar, e até reforçou os fundamentos de uma diplomacia do desenvolvimento que foi quase a “ideologia oficial” do Itamaraty a partir do Estado Novo até praticamente a atualidade.
Não obstante a paranoia anticomunista e as obsessões típicas da Guerra Fria, nos anos 1950 e início dos
A primeira grande ruptura com os padrões normalmente pouco ideológicos, e basicamente desenvolvimentista
Já no quarto presidente do ciclo ditatorial – não obstante uma espécie de “diplomacia blindada” em direção de regimes esquerdistas na América do Sul, a exemplo do apoio dado em 1973 ao golpe do general Pinochet no Chile e os entendimentos com militares linha dura na Argentina, Uruguai e Bolívia –, a “continuidade” com a linha de autonomia na política externa se completa, com o estabelecimento de relações diplomática
Assim que, ao ter início a “Nova República” não se pode falar propriamente em ruptura de padrões diplomáticos, ou sequer de política externa, que continuou a seguir os cânones daquele momento: multilateralismo, desenvolvimentismo, unctadianismo, defesa do acesso às tecnologias e aos mercados dos países do Norte, adesão à Nova Ordem Econômica Internacional, enfim, todos os temas reivindicatórios do G77 e do Grupo Latino-Americano (como as teses do Consenso de Cartagena sobre a renegociação da dívida externa da região).
Poucas descontinuidades na política externa e na diplomacia da Nova República
Os princípios básicos e as grandes diretrizes de política externa estabelecidos no governo Sarney, com grande continuidade com o que já vinha sendo feito na última década do regime anterior, permaneceram praticamente intactos nas décadas seguintes, a não ser pelo aprofundamento de tendências já presentes anteriormente – como a integração regional e a prioridade nas relações com os países vizinhos –, a “ideologia desenvolvimentista”, a ativa participação nos foros econômicos negociadores – sobretudo em comércio e finanças internacionais –, a insistência no desarmamento, mas com novas posturas em relação a temas que possuíam “peculiaridades” sob os governos militares: direitos humanos e meio ambiente, sobretudo. O segundo governo da era democrática, o de Fernando Collor, inova em diversos terrenos de importância substantiva, como o grande impulso dado à integração no Cone Sul – com uma visão bem mais aberta do que o tradicional dirigismo econômico seguido até então – e, sobretudo, a atualização da “diplomacia ambiental” brasileira, com o acolhimento da segunda Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, no Rio de Janeiro em 1992. A questão nuclear também avança, tanto na frente interna – inclusive por dispositivos inscritos na Constituição de 1988 –, quanto na externa, na construção de confiança com os argentinos, na plena entrada em vigor do Tratado de Tlatelolco (de não introdução de armas nucleares na América Latina), na constituição da Abacc (a agência binacional argentino-brasileira de contabilidade e controle de material nuclear) e no tratado quadripartite entre essa agência, os dois países e a
Em direitos humanos e em temas sociais, livres dos constrangimentos existentes no período ditatorial, os diplomatas puderam expressar plenamente, nos foros multilaterais e nas grandes conferências diplomáticas internacionais, a nova postura de uma política externa totalmente engajada no avanço de problemas e propostas compatíveis com essa visão progressista: racismo e discriminação, direitos das mulheres e das minorias, tortura, direito humanitário, habitação, saúde, etc. Pode-se dizer que há uma continuidade ascendente na participação engajada do Brasil em todas as áreas pertinentes aos objetivos de crescimento econômico e desenvolvimento social em debate nos foros internacionais, o que torna o Brasil um grande protagonista em todas essas discussões, sobretudo comércio internacional, saúde e desarmamento; nas rodadas do
O processo de estabilização macroeconômica obtido, após sucessivos planos frustrados, sob o ministro da Fazenda, depois presidente por dois mandatos, Fernando Henrique Cardoso,
A pequena ruptura da era Lula: o engajamento no combate à fome e à pobreza
Os três governos e meio do Partido dos Trabalhadores, em especial os dois mandatos do presidente Lula, representaram uma “ruptura” mais conceitual do que efetiva, pelo menos em relação à quase totalidade dos temas e métodos de trabalho mobilizados pela diplomacia profissional na defesa dos temas quase permanentes da agenda brasileira em política externa: políticas nacionais de desenvolvimento, combate às desigualdades entre os países, forte apoio ao multilateralismo e à integração regional, diálogo construtivo entre países avançados e em desenvolvimento, políticas sociais progressistas e novo ativismo em direitos humanos e em meio ambiente. Novidades se manifestaram na criação de foros regionais e plurilaterais de interesse desse ativismo diplomático, na busca de parcerias estratégicas para a consecução de um objetivo mais enfatizado nesse período – a “democratização das relações internacionais”, por meio da reforma da Carta da ONU e a ampliação do seu Conselho de Segurança, inclusive na aliança do G4, com Índia, Japão e Alemanha –, na reafirmação prioritária do combate à pobreza e a fome no mundo, o que valeu a conquista da direção da
As parcerias estratégicas se desenvolveram tanto em direção dos países do Norte – em especial com os europeus –, como no estabelecimento de vínculos e novos grupos de consulta e coordenação na direção do chamado Sul Global:
Uma frente que cresceu enormemente nas duas décadas deste século foi a assistência aos brasileiros no exterior, o que representou um grande esforço da diplomacia profissional no trabalho consular, geralmente menos prestigiado em épocas anteriores, mas que passou a absorver atenção especial do Itamaraty, pois que o Brasil deixou de ser um país de imigração para se tornar um “exportador” de sua própria mão-de-obra, primeiro pouco qualificada, no período recente até envolvendo quadros especializados e pessoal de excelente formação. No conjunto, a chamada diplomacia lulopetista preservou as linhas básicas da política externa tradicional – sobretudo quanto aos métodos centrais do multilateralismo –, mas inovou bastante no estilo da diplomacia, como manifestado no slogan triunfalista da “diplomacia Sul-Sul”. Nessa vertente, as relações com países sul-americanos, africanos, do Oriente Médio e os grandes emergentes integrantes do IBAS e logo em seguida do BRIC-BRICS foram as que receberam as maiores atenções dos governos do PT, o que não pode ser visto exatamente como uma ruptura de padrões anteriores, mas como ênfases reforçadas do antigo “terceiro-mundismo” tantas vezes criticado pelos parceiros americanos. Aliás, os dirigentes à frente da diplomacia lulopetista faziam questão de vincular a política externa do PT à Política Externa Independente do início dos anos 1960.
A caminho da grande ruptura: a desafeição ao PT e a ascensão de uma direita extrema
O terceiro governo do lulopetismo foi um desastre, sobretudo no campo econômico, mas também um retrocesso operacional em relação ao grande protagonismo internacional exercido pela diplomacia presidencial de Lula. Dilma Rousseff não escondia sua desafeição ao Itamaraty, como tampouco seu enfado no diálogo com parceiros estrangeiros, ainda que a diplomacia profissional e a paralela – “partidária” – tenham continuado a defender os grandes temas da política externa do PT: protagonismo sul-americano – uma liderança contestada e, em parte, desafiada por outras lideranças regionais, entre eles Chávez e N
O novo governo liderado pelo até então vice-presidente Michel Temer representou uma pequena ruptura com a política externa imediatamente anterior, mas simplesmente por um retorno a padrões mais tradicionais seguidos pela diplomacia profissional dos anos anteriores ao lulopetismo, sem os apelos ribombantes a um pouco definido “Sul Global”, e em especial no terreno da política externa regional, na qual desapareceu a diplomacia paralela de alianças com os países “bolivarianos” e com Cuba. A Venezuela chavista, que tinha sido incorporada de maneira oportunista ao Mercosul (e até de forma ilegal, uma vez que ela não cumpria nenhum dos requisitos formais do bloco, entre elas a adesão à
A “grande ruptura” ocorreu mesmo na campanha presidencial de 2018, quando, pela primeira vez na história republicana, um governo declaradamente alinhado com uma extrema direita que já fazia progressos no plano internacional conseguiu capturar apoios suficientes no eleitorado para dar início a um governo e uma política externa jamais vistos nos anais do Estado independente. Pela primeira vez em quase duzentos anos de história, um governo rompia com padrões normalmente aceitos por tod
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O “programa” de política externa para o “novo Itamaraty” pode parecer bizarro, e até mesmo ridículo, mas por incrível que pareça ele foi seguido na íntegra, senão na letra, pelo menos no espírito de suas recomendações estapafúrdias, pelo primeiro chanceler designado pelo governo que tomou posse em 1º de janeiro de 2019, já tendo anunciado nas semanas seguintes à vitória de outubro de 2018 que afastaria o Brasil do Acordo de Paris de 2015, sobre mudanças climáticas, que desassociaria o país do Pacto Global sobre as Migrações, que mudaria a embaixada do Brasil em Israel de Tel Aviv a Jerusalém, que promoveria uma revisão nas relações bilaterais com a China – denunciada por querer “comprar o Brasil”, pelo próprio candidato, depois de visitar Taiwan – e, sobretudo e especialmente, que comporia uma estreita aliança com o governo americano (na verdade uma política de quase submissão a tudo que desejasse o presidente Trump, com ênfase na derrubada do governo chavista da Venezuela). De fato, a política externa ordenada pelo presidente – assistido por um bando de amadores e por um chanceler visivelmente submisso a essa “franja lunática” – foi muito pior do que a que figurava no “programa” registrado no
A sucessão de enfrentamentos, na região e no mundo todo, protagonizados pelo próprio presidente, assim como pelos integrantes da “franja lunática”, foi construindo um isolamento internacional do Brasil nunca antes visto nos anais da nossa diplomacia, sequer durante a ditadura militar, quando notícias sobre a repressão política, a censura, a eliminação ou “desaparecimento” de opositores políticos frequentavam as páginas dos principais jornais internacionais. Alguns episódios realmente constrangedores, até surrealistas, do ponto de vista da diplomacia profissional, se tornaram frequentes no noticiário brasileiro e do exterior, como as diatribes do presidente e do chanceler acidental contra a ditadura chavista, contra o novo presidente peronista da Argentina, contra líderes europeus e contra a “ditadura comunista” da China, como feito em diversas ocasiões pelo próprio filho do presidente, o deputado Eduardo Bolsonaro, chefe virtual (e real) do chanceler apenas formal. Ao lado e em oposição a esses enfrentamentos, as únicas relações desejadas e buscadas pelo governo assumidamente de direita no Brasil eram aquelas com dirigentes dos países do pequeno arco iliberal e antimultilateralista, nomeadamente o presidente Trump (objeto de uma declaração virtualmente servil: “I love you Trump
O isolamento internacional do Brasil foi sendo construído pelo próprio presidente e por seu governo, inclusive pelo chanceler, que chegou a reconhecer que o país tinha virado um “pária” na comunidade mundial, num dos episódios mais constrangedores para os diplomatas do corpo profissional, pois que feito num “Dia do Diplomata”
Nas primeiras semanas de 2022 – já em meio ao acirramento de desavenças com ministros do
Uma nova “ruptura diplomática” em 2023?
No início de agosto de 2022, pesquisas eleitorais apontam uma provável vitória, no primeiro ou no segundo turno do pleito presidencial de outubro, do ex-presidente Lula, com declarações “diplomáticas” já registradas pelo próprio e pelo seu ex-chanceler, e possível futuro conselheiro presidencial, Celso Amorim. A ruptura, obviamente, é em primeiro lugar com a diplomacia bolsonarista, um acidente exótico e desastroso em duzentos anos de política externa caracterizada por certos traços básicos que nem as ditaduras ou episódios de exceção ousaram contestar, mas que foram terrivelmente deformados durante quatro anos de amadorismo ignaro e de instintos primitivos próximos a uma extrema direita muito rústica. Mas também poderá representar uma nova ruptura com padrões consagrados de política externa e de diplomacia que foram seguidos invariavelmente durante quase toda a trajetória do Estado independente: o pragmatismo, o equilíbrio nas relações bilaterais, o respeito pelo Direito Internacional, o afastamento de considerações ideológicas ou partidárias na condução da atuação externa do Estado, a ênfase no multilateralismo e o universalismo das relações diplomáticas. Não que um futuro governo petista venha a romper com tais padrões e métodos de trabalho, mas, com base no registro da experiência anterior, é possível um retorno a certo determinismo geográfico – representado por essa miopia do Sul Global – e uma preferência pelo aprofundamento do relacionamento plurilateral no âmbito do BRICS, atualmente um grupo crescentemente manipulado pela China, e agora pela Rússia, para atender seus objetivos e interesses estritamente nacionais, e antiocidentais.
Tanto o ex-presidente Lula quanto seu principal conselheiro em assuntos internacionais já declararam que os Estados Unidos e a
Na ausência de perspectivas definidas para a diplomacia regional de um provável governo petista – uma vez que a fragmentação política e ideológica é uma realidade na América do Sul –, assim como para o fantasmagórico “Sul Global”, dilacerado pela pandemia e pela guerra na Ucrânia, a postura da futura diplomacia do Brasil em relação ao mais grave conflito inopinadamente surgido na agenda internacional deve ser o principal desafio desse governo, ademais da própria política em relação a um BRICS bastante diferente do formato e dos objetivos iniciais. A ruptura, neste caso, não seria nem em relação ao governo Bolsonaro ou aos padrões tradicionais do Itamaraty, mas com respeito aos próprios princípios do Direito Internacional, gravemente comprometidos pela atual guerra de agressão de um “sócio” do Brasil num dos grupos privilegiados pelo lulopetismo diplomático, em contradição com posturas que sequer o Estado Novo ousou transgredir (ao recusar reconhecer a legitimidade da invasão violenta da Polônia pelas forças nazistas e da invasão e incorporação dos três países bálticos pela União Soviética). Uma ruptura a mais na longa história da diplomacia brasileira...
[Minibio do autor:]
* Diplomata de carreira de 1977 a 2021. Foi professor no Instituto Rio Branco, na UnB e diretor do IPRI-MRE (2016-2018). Entre os muitos livros publicados estão: Apogeu e Demolição da Política Externa (2021) e Construtores da Nação: projetos para o Brasil, de Cairu a Merquior (2022).
[Info pessoal: Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4215: 7 agosto 2022, 9 p.; Revisão: 28/09/2022]