A melhor diplomacia não se sustenta sem uma boa governança doméstica.
Seria a diplomacia brasileira um ponto fora da curva?
Paulo Roberto de Almeida
Apresentação ao livro
Quinze anos de política externa: ensaios sobre a diplomacia brasileira, 2002-2017
Brasília: Edição do Autor, 2017, 366 p.
Disponível na plataforma Academia.edu; link:
Este livro de ensaios foi montado de maneira improvisada, e pode sofrer de alguma repetição, sobretudo nos trabalhos voltados para a análise dessa coisa que eu chamei de lulopetismo diplomático. Mas ele reflete, com certa acuidade, minha produção intelectual sobre a diplomacia brasileira ao longo desta primeira década e meia do século XXI. Tentando terminar rapidamente esta assemblagem de alguns dos muitos artigos que elaborei, desde 2002, não contei com o tempo adequado para escrever uma apresentação formal. Consoante, entretanto, meu forte espírito contrarianista, permito-me revelar aqui – o que não é exatamente uma confissão – que sou uma espécie de contestador das verdades reveladas, aquilo que os franceses chamam de idées reçues, ou seja, o pensamento banal, aceito como correto nos mais diferentes meios em que essas ideias se aplicam, mas geralmente de forma equivocada ou, talvez, ingênua.
E por que digo isto, ao iniciar a apresentação de um livro de “ideias já recebidas”, ou pelo menos de ensaios já publicados? É porque eu já fui chamado, certa vez, de accident prone diplomat, ou seja, alguém que busca confusão, o barulho, no meu caso, de fato, mais a expressão de um ceticismo sadio do que uma simples provocação ou a contestação gratuita. Com efeito, eu não me deixo convencer com certas idées reçues nos meios que frequento, e estou sempre à busca de seus fundamentos, justificações, provas empíricas, testemunhos de sua adequação e funcionamento no ambiente em que deveriam operar, em condições normais de pressão e temperatura, enfim, o entendimento convencional de como é ou de como deve funcionar a diplomacia, em especial, a nossa, esta tida por excelente e que, aparentemente, não improvisa. Talvez devesse fazê-lo, em certas ocasiões...
Na verdade, antes de ser um accident prone diplomat, se isto é correto (o que duvido), creio ser um diplomata acidental, alguém que se dava bem na academia, e que resolveu, num estalo, ser diplomata. Posso até recomendar esta profissão, aos que gostam de inteligência, de cultura, de viagens, de debates sobre como consertar este nosso mundo tão sofrido, aos que são nômades por natureza (como é o meu caso e, mais ainda, o de Carmen Lícia), menos talvez aos que pouco apreciam um ambiente meio estilo Vaticano, meio espírito Forças Armadas. Com efeito, hierarquia e disciplina são os dois princípios que estão sempre sendo lembrados aos jovens diplomatas como sendo a base de funcionamento desta Casa aparentemente tão austera, tão correta, tão eficiente no tratamento das mais diversas questões da nossa diplomacia. Confesso, também, que nunca fui um adepto zeloso desse rigorismo no trato de pessoas segundo convenções estabelecidas.
Atenção, acima eu disse diplomacia, que é uma técnica, e não política externa, que pode ser qualquer uma que seja posta em marcha pelas forças políticas temporariamente dominantes no espectro eleitoral do país. Política externa pertence a um governo, a um partido; a diplomacia pertence a um Estado, que possui instituições permanentes, entre elas essa que aplica a política externa de um governo por meio da diplomacia. E por que então o conceito de “acidental” que inaugura esta apresentação? Não preciso responder agora, e provavelmente nem depois, mas a resposta talvez esteja em cada um dos ensaios reunidos nesta coletânea de artigos escritos desde o início do milênio. Ninguém, por exemplo, há de recusar o fato de que, desde 2003 pelo menos, o Brasil vive tempos não convencionais, nos quais assistimos coisas nunca antes vistas na diplomacia, que por acaso é o título de meu livro mais recente: Nunca antes na diplomacia...: a política externa brasileira em tempos não convencionais (Curitiba: Appris, 2014). Aliás, nossos tempos são decididamente não convencionais menos pela diplomacia do que por uma série de práticas exacerbadas naquele terreno que pertence ao domínio da moral.
Pois bem, reunindo tudo o que eu escrevi nos parágrafos anteriores – diplomata acidental, hierarquia, disciplina, ideias de senso comum, etc. – e juntando tais conceitos aos ensaios aqui compilados, os leitores terão uma explicação para o sentido geral de minha obra, anárquica, dispersa, contestadora, por vezes contrarianista, mas explorando o lado menos convencional da diplomacia, aquele que destrincha certas verdades reveladas e ousa apresentar outras ideias que não necessariamente fazem parte do discurso oficial. Esta talvez também seja a razão de eu apreciar, muitíssimo, uma seção da revista Foreign Policy, desde a sua reorganização por Moisés Naím, que se chama “Think Again”, ou seja, reconsidere, ou pense duas vezes, pois a resposta, ou a explicação pode não estar do lado que você costuma encontrar, mas que talvez esteja escondida em alguma dobra da realidade, por uma dessas surpresas do raciocínio lógico, por alguma astúcia da razão ou por algum outro motivo que se encontra enterrado, e quase esquecido, na história.
A vantagem de ser um diplomata acidental está justamente no fato de poder perseguir (nem sempre impunemente) o outro lado das coisas, e de poder contestar algumas dessas idées reçues que passam por certezas consagradas, ou pela única postura possível no funcionamento convencional da grande burocracia vaticana, que também leva jeito de quartel (mas acordando um pouco mais tarde). Durante todos estes anos em que venho escrevendo sobre política externa, tenho podido exercer meu lado irreverente e pouco convencional para tratar de aspectos muito pouco convencionais de nossa diplomacia nestes anos do nunca antes (agora, felizmente, terminados).
Atenção: muitos dos ensaios aqui coletados não brotaram, originalmente, de trabalhos de pesquisa, ou daquilo que se chama, usualmente, de scholarly work, isto é, o produto derivado de estudos meticulosos, ou objeto de revisão cega por pares, material que está mais propriamente coletado em meus livros publicados. Eles são, eu diria, peças de simples divertimento intelectual, ainda que vários deles contenham aparato referencial (notas de rodapé, bibliografia, citações doutas, etc.) e também sejam o reflexo de muitas leituras sérias e anotadas ao longo de meus anos de estudo e trabalho. Mas, destinados a veículos mais leves, e não a revistas científicas, eles constituem reflexões de um momento, de um problema, de uma conjuntura, de algum evento que valia a pena registrar em um artigo mais curto.
Vários ensaios foram publicados em veículos como Mundorama ou Meridiano 47, ambos dirigidos por meu amigo Antonio Carlos Lessa, do IRel-UnB. Mas o que vai aqui compilado foi retirado de meus próprios arquivos, em processador usual de texto, para contornar os problemas de formatação de texto em suporte digital, mas corresponde, em princípio, aos originais, embora não necessariamente ao que foi publicado. Nem tudo o que publiquei vai aqui reproduzido, em ordem cronológica sequencial. Ficaram de fora diversos artigos circunstanciais, todas as resenhas de livros – já coletadas em outras publicações digitais que organizei – e alguns textos de menor importância. Coloquei uma listagem seletiva dos ensaios mais importantes num apêndice, ao final do volume, onde também figuram os respectivos links para revisão eventual das publicações. Essa lista representa uma pequena parte de uma produção mais ampla, que se dedica também às relações econômicas internacionais do Brasil, à globalização, a temas regionais (como a integração, e dentro desta ao Mercosul), questões diversas da política internacional e da economia mundial.
O lado divertido de ser um diplomata acidental está justamente na possibilidade de se poder escrever livremente sobre assuntos sérios e menos sérios, com a liberdade editorial que só existe nos veículos leves, sem precisar cumprir todo o ritual passavelmente aborrecido dos requisitos acadêmicos ligados às revistas “sérias” – como a RBPI, por exemplo, com a qual também colaboro, de diversas maneiras – e sem precisar atentar para a langue de bois normalmente associada às publicações oficiais, onde aquele lado Vaticano inevitavelmente predomina. Foi nestes ensaios que eu explorei o lado meio escondido de certas verdades reveladas do meio profissional, uma atividade que sempre me deu imenso prazer por combinar com meu jeito contrarianista de ser.
Dito isto, preciso voltar minhas energias para coisas mais sérias, como por exemplo o segundo volume de minha história das relações econômicas internacionais do Brasil, que me espera desde vários anos a partir da conclusão do primeiro volume (Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império; 2001, 2005, 2017). Em todo caso, sempre que posso estou me divertindo com este tipo de exercício intelectual, aqui representado por uma dezena e meia de textos supostamente “diplomáticos”, vários publicados apenas em revistas digitais, alguns outros em publicações mais sérias, inclusive em meus próprios veículos de divulgação. Tenho como regra coletar no blog Diplomatizzando (que me serviu de “quilombo de resistência intelectual” nos anos patéticos do lulopetismo), tudo o que encontro de inteligente circulando pelo mundo, o que também compreende vários dos textos aqui reproduzidos. Espero que eles sirvam a um debate igualmente inteligente.
Vale!
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 25 de maio de 2017
Apresentação em Academia.edu, link: