Bem, na continuidade da postagem anterior, reproduzo aqui o primeiro (talvez único, preciso verificar) estudo de casos concretos da "teoria" da jabuticaba, essas maravilhosas contribuições do pensamento tupiniquim à civilização universal. Atenção, foi feito em
2 de julho de 2006 (depois disso os casos se multiplicaram, com certeza).
Estou seguro de que existem muitos outros mais, e eu mesmo tenho, na minha pasta de "working files", diversos exemplos aguardando elaboração formal. Mas fica aberto o convite aos leitores deste modesto blog contrarianista para o envio de mais exemplos de jabuticabas exemplares, com perdão da redundância jabuticabal.
Tenho certeza de que existem algumas jabuticabas saborosas, maravilhosas. Se vocês frequentarem, por exemplo, as páginas do PSOL, do PCdoB, e de outros sites edificantes como esses, dignos da teoria jabuticabal, estou seguro de que descobrirão jabuticabas fenomenais, merecedoras, de registro nos anais da ciência universal.
Mais um pouco, com alguns desses testes que requer toda inovação genial, poderei oficializar a "teoria" por meio de algum artigo na
Nature, na
Scientific American, ou até, quem sabe?, nos
Anais da Academia Brasileira de Ciências...
Paulo Roberto de Almeida
Paulo Roberto
de Almeida
Brasília, 2 de julho de 2006
Em outubro de 2005,
retirando das catacumbas de meu pensamento algo que me incomodava desde longos
anos, eu finalmente tive a petulância de redigir um pequeno ensaio sobre
algumas das idiossincrasias nacionais, ou seja, nossa indesmentível tendência a
achar – e oferecer ao resto da humanidade – soluções geniais a alguns dos mais
velhos problemas que angustiam essa mesma humanidade. Dei ao pequeno ensaio o
título sofisticado de “Teoria da jabuticaba, I:
prolegômenos”, mas à época ele estava tão simplesmente apresentado como um
conjunto de considerações sobre uma nova teoria em
formação. Vejam que modesto, consciente e honesto pesquisador eu sou, sempre
preocupado em não vender gato por lebre, nunca pretendendo oferecer aos
leitores uma teoria grandiosa, quando eu tinha apenas os rabiscos de uma
crítica à razão tupiniquim.
Em sua versão parcial e reconhecidamente incompleta – uma vez que eu
não tinha ainda sido capaz de elaborar um verdadeiro tratado filosófico sobre
essa nova “teoria da jabuticaba” –, esse texto preliminar foi publicado na
revista eletrônica Espaço Acadêmico
(nº 54, novembro de 2005; link: http://www.espacoacademico.com.br/054/54almeida.htm) e ficou desde então aguardando complementação. Ou seja, os meus “prolegômenos”
deveriam receber elaboração mais sofisticada, tendo em vista sua possível
relevância teórica na vida intelectual do país e sua importância prática para a
própria organização da nacionalidade.
Explico agora resumidamente do que se trata e volto em seguida ao
objeto deste texto que recebe o elegante número romano II, indicando que eu
pretendo justamente oferecer case studies,
como diriam nossos colegas anglo-saxões, também conhecidos como scholars. Repito aqui o que já disse
antes a título de introdução à citada teoria:
“Teoria da jabuticaba é tudo aquilo que só existe no Brasil, como
essa saborosa fruta selvagem da respeitada família das mirtáceas (myrciaria jaboticaba). Isso significa
pertencer a uma família de ‘explicações sociais’ única e exclusiva neste
planeta, situação inédita no plano universal, que consiste em propor, defender
e sustentar, contra qualquer outra evidência lógica em sentido contrário,
soluções, propostas, medidas práticas, iniciativas teóricas ou mesmo teses (em
alguns casos, antíteses) que só existem no Brasil e que só aqui funcionam, como
se o mundo tivesse mesmo de se curvar ante nossas soluções inovadoras para
velhos problemas humanos e antigos dilemas sociais.” (Apud e copyright, Paulo
R. de Almeida, op. cit., p. 1).
Voilà! Creio que a teoria está mais ou menos exposta, segundo o velho
princípio de que “para cada problema complexo, existe uma solução simples, em
geral equivocada”. Como eu ainda explicava no citado trabalho, a teoria da
jabuticaba pertence a essa família das respostas rápidas a problemas complicados
que, aparentemente, se conformam ao chamado senso comum, mas que no fundo
derivam de concepções equivocadas sobre a origem desses problemas e apontam
para soluções mais errôneas ainda. Nem por isso essas soluções “geniais” deixam
de ser apresentadas como a mais perfeita resposta “indígena”, isto é autônoma,
a problemas supostamente universais, enchendo de justo orgulho patriótico seus
formuladores e promotores.
Eu ainda fazia digressões de cunho teórico e metodológico, tentando
explicar de modo claro o estatuto da “coisa” e procurando validar seus
fundamentos epistemológicos. Eu falei, então, que ela consistia, nitidamente,
em uma anomalia lógica (mas que tem
toda a aparência de algo normal, ou seja, de solução absolutamente adequada ao
problema que tenciona enfrentar), que ela constitui uma contradição nos termos (uma vez que ela consagra o próprio problema
que pretende resolver), e que ela, finalmente, é absolutamente indígena (isto é, autóctone,
legitimamente nacional, como a fruta que lhe dá o nome, constituindo mais uma
dessas nossas contribuições originais para o bem-estar da humanidade, podendo,
talvez, rivalizar com o “jeitinho”, a “caipirinha”, a “broa de milho”). Em
suma, um “fenômeno”.
Não sei se fui feliz na minha primeira abordagem do problema – os scholars diriam, nesse first approach –, mas eu ainda não
consegui terminar a definição de um “tipo-ideal” de explicação “jabuticabal”,
em sintonia com o que se espera de uma verdadeira teoria do conhecimento. Não
seja por isso, não vamos ficar por aí nos enrolando em teorias quando a
realidade brasileira é muito mais rica, motivadora e despreza solenemente
qualquer teoria que não se conforma à prática, como sabem todos os empiristas
anglo-saxões. Eu tinha, aliás, deixado de lado os contornos conceituais da
teoria da jabuticaba, para oferecer, naquele momento, alguns exemplos práticos
de como ela se apresentava no Brasil (e do Brasil para o mundo, como sempre
acontece, modestamente, como nossas trouvailles
mais geniais).
Pois bem, cessa agora tudo o que a antiga musa canta e vamos passar
diretamente ao objeto desde segundo ensaio, que como diz o próprio conceito, é
uma tentativa, cheia de erros e enrolações. Faço agora apelo à generosidade dos
meus (poucos) leitores, para começar um enunciado de casos representativos da
“teoria da jabuticaba”. Vale tudo o que se enquadra, de perto ou de longe, em
meus citados critérios de inclusividade: anomalia lógica, contradição nos
termos e caráter indígena do fenômeno em questão.
Sei que muitos candidatos a case
studies não conseguem passar pelo teste de validação e legitimar-se como
representativos da espécie, mas vale a tentativa e o esforço analítico, pois
uma vez isolado o caso pode-se depois aplicar a famosa teoria popperiana da
falsificabilidade e constatar se ele merece ou não elevação ao museu das
jabuticabas. Por exemplo seriam o “caixa 2” e os chamados “recursos não
contabilizados” exemplos perfeitos dessa teoria ou simples inovações no campo
da ciência política e da contabilidade partidária? Mistério ainda não
resolvido, mas tenho certeza de que esses exemplos de “informalidade política”
devem deixar boquiabertos de admiração os vizinhos imediatos e outros
observadores estrangeiros.
Eu listava, nos meus “prolegômenos”, alguns poucos exemplos que me
pareciam suficientemente representativos da “minha” teoria – mas estou disposto
a compartilhá-la com outros pesquisadores –, dizendo que eram apenas
ilustrativos e prometendo completar o rol em prazo razoável. Entre esses poucos
casos encontravam-se os seguintes: “bolsa-escola”, “bolsa-família e a “reserva
de mercado para jornalistas” (ou seja, a obrigatoriedade de diploma para o
exercício da profissão nas redações dos meios de comunicação).
Pois bem, chegou a hora, caro leitor, de arregaçar as mangas, tirar
a poeira da memória e começar a colocar no papel todos os casos possíveis e
imagináveis de teoria da jabuticaba que possam acorrer à lembrança. A tarefa,
devo confessar, nos é imensamente facilitada pela atualidade política, pois
esta sempre traz tudo o que é preciso e humanamente imaginável em matéria de
exemplos perfeitos e acabados da “nossa” teoria (eu já a estou considerando uma
construção coletiva). Não é que, hoje mesmo, dia 1º de julho de 2006, eu leio
nos jornais um exemplo totalmente ilustrativo daquilo que pretendemos?
Refiro-me ao projeto do ilustre presidente da Câmara dos Deputados sobre a
adição de farinha de mandioca ao pão nosso de cada dia, e é justamente por esse
exemplo que eu começo a minha lista de case
studies.
1) Mandioca no pão: projeto de lei que torna obrigatória a mistura de derivados
de mandioca à farinha de trigo, do deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP), apresentado
em 2001, agora em votação final na Câmara dos Deputados. Corre o risco de ser
aprovado, para gáudio dos plantadores de mandioca e outros amigos de
tubérculos. Mas, atenção deputado: não vale mais patentear a invenção, pois o
critério da confidencialidade já foi há muito rompido. Permanecem, no entanto,
o salto inventivo, o chamado “estado da arte”, sua aplicabilidade industrial e
o caráter absolutamente nacional da genial inovação para o pão nosso de todo
dia; ou seja, tudo o que se requer de uma boa invenção tupiniquim, conforme à
teoria.
2) Estudos afro-brasileiros e
de história da África nas escolas nacionais: mais uma genial contribuição
para resgatar nossa dívida imensa com o continente negro, sobretudo em direção
dos alemãezinhos e polacos do sul do país, ou seja os descendentes dos
imigrantes europeus, que ainda não sabem o quanto os antecessores dos atuais
afro-brasileiros sofreram nas mãos dos feitores e latifundiários perversos que
fundaram este Estado desigual e racista. Vale um prêmio Unesco de educação.
3) Obrigatoriedade do ensino
de espanhol nas escolas primárias: vai no mesmo sentido de agregar valor
aos estudos do ciclo básico, contribuindo para a plena integração dos povos do
Mercosul e da Comunidade Sul-Americana de Nações, mesmo se eles, os
castelhanos, ainda não agiram conforme a “teoria da reciprocidade” (que, como
se sabe, comanda ao fichamento de americanos em nossos portos e aeroportos) e
não decidiram, até o momento, introduzir o ensino de português em seus
currículos correspondentes. Servirá, pelo menos, para constituir um imenso
exército de professores treinados em “portunhol” que, como todo mundo sabe, é
uma língua perfeitamente necessária e adaptada aos nossos tempos de
globalização assimétrica.
4) Estatuto da Desigualdade
Racial: Ops, perdão, eu quis dizer “igualdade”, mas é aquele projeto que
vocês conhecem, n° 3.198/2000, do Senador
Paulo Paim (PT-RS) que visa, africanamente, separar os brasileiros em
afro-descendentes, de um lado, e todo o resto do outro. Será algo como “preto
no branco”, excluídos os mulatos e assemelhados, o que permite, portanto,
deixar as coisas muito mais claras do que elas são hoje, com todo esse racismo
insidioso se infiltrando nos poros da nacionalidade. O senador, que já tem
alguns problemas com a aritmética simples – ele está sempre querendo corrigir o
salário mínimo por um fator de três, que faria estourar de vez o orçamento das
prefeituras e da Previdência –, pretende apenas conferir direitos aos que nunca
desfrutaram de um bom apartheid organizado em bases racionais pelo Estado.
Prêmio Martin Luther King para o senador.
5) O escritor de carteirinha:
Trata-se do projeto de Lei nº 4641, apresentado em setembro de 1998 pelo
deputado federal Antônio Carlos Pannunzio (PSDB-SP) e que “dispõe sobre o
exercício da profissão de escritor”. A Câmara dos Deputados é realmente pródiga
em case studies para a nossa teoria e
eu ainda nem fiz uma pesquisa em sua base de dados. Acredito que os exemplos
seriam ainda mais surpreendentes nas câmaras de vereadores, mas aí o trabalho
teria de ser deslocado para um exército inteiro de pesquisadores pagos. Não é
preciso, sequer, descrever o projeto, não é, caros colegas escrevinhadores? Eu
só queria saber se o escritor profissional terá de trabalhar 8 horas por dia,
se ele descontaria imposto sindical, teria férias remuneradas, FGTS, essas
coisas. Com a palavra, o nobre deputado.
6) Sociologia e filosofia no ensino médio: traidor da
categoria, me dirão alguns leitores, meus colegas. Pois é, não queria dizer,
mas eu também pertenço à “tribo” dos sociólogos, embora nunca tenha exercido
legalmente a profissão – esqueci de me inscrever na associação da categoria – e
vivo por aí pontificando em sociologuês sem o devido registro na classe. Mas,
não seja por isso, não deixo de me manifestar virulentamente contra essa
iniciativa que visa apenas criar mais uma reserva de mercado legal para um
bando de sociólogos e filósofos sem emprego no mercado, além de servir para
infernizar a vida dos pobres estudantes com alguma contrafação do marxismo
vulgar, sem que eles consigam aprender direito aquilo que deveriam: português,
matemáticas, ciências e estudos sociais (onde deveriam estar normalmente
compreendidas essas matérias, junto com história e geografia, que não deixam de
ser variações sobre um mesmo tema, inclusive com fortes doses de certa religião
política). Alerto que eu não tenho nada contra o ensino
das duas matérias em quaisquer anos dos ciclos fundamental e médio, e até da
pré-escola, se assim decidirem os defensores da iniciativa, mas o que sou
contra é essa “obrigatoriedade” que torna tudo o que é bom uma chatice
insuportável. Por que é que o Brasil não pode ser um país normal, no qual as
pessoas, as associações de pais e mestres, os educadores geniais, enfim,
decidem democraticamente, depois de um bom estudo de “custo-benefício”, o que
as escolas vão enfiar ou não na cabeça das crianças, sujeitas as decisões a
revisões periódicas em função da experiência adquirida e das vantagens
constatadas (if any)? Por que é que
tudo tem de ser objeto de uma lei obrigatória? Nossa natureza jabuticabal está
sempre nos traindo...
Creio que bastam esses casos, por enquanto, mas
certamente eles existem em maior número: como, por exemplo, aquele outro
projeto de um nobre deputado que pretende limitar o rendimento máximo dos
brasileiros, desviando tudo o que ultrapassar um valor limite para uma poupança
coletiva nacional. A cooperação de meus leitores não deixará de enriquecer a
galeria de candidatos a exemplos puros da teoria da jabuticaba. Não me parecem
ainda suficientemente claras as razões desse extraordinário sucesso, no Brasil,
da teoria – não da fruta, obviamente – mas pode ter algo a ver com nossas
bizarrices institucionais. Afinal de contas, qual é o país que consegue ter,
simultaneamente, dois chefes de governo (e de Estado) atuando paralelamente,
ambos dotados de plenos poderes para assinar atos legais? Sim, ninguém ainda
ouviu dizer que quando o presidente viaja – e fica lá fora, assinando acordos
internacionais, ou seja, no pleno exercício de seu mandato – o vice, montado na
cadeira presidencial, também assina leis e outros atos de sua potestade
imperial? Um país que tem coisas desse gênero, pode ter quaisquer outras
coisas, podendo-se daí deduzir que a teoria da jabuticaba ainda tem, em nosso
país, brilhantes dias (e anos) pela frente.
Com a ajuda dos leitores, nós vamos mapear todos esses
casos, descrevê-los e extrair sua racionalidade intrínseca – sim, eles devem
ter alguma, do contrário não se sustentariam no plano da institucionalidade
jurídica e não se validariam do ponto de vista da teoria pura – de maneira a
oferecer ao mundo mais alguns lampejos de nossa genialidade. Espero, portanto,
a colaboração voluntária de todos – e de todas, como convém, agora, segundo um
outro projeto de lei, que visa evitar, justamente, discriminações de gênero –
nesse esforço jabuticabal de teorizar sobre o inútil e o absurdo. Se por um
desses acasos do destino – e num desses exercícios de história virtual –, Kant
fosse transplantado de Königsberg para este patropi, jamais teria conseguido
escrever seus muitos tratados de filosofia, ou então teria virado um passista
de escola de samba, com sua peruca empoada e sua bengala de mestre-sala. Enfim,
alguma razão deve haver para tantos exemplos de surrealismo cotidiano em nossa
terra. Com sua ajuda, encontraremos a explicação, caro leitor...
Brasília, 2 de julho de 2006