Meu artigo sobre os livros que considero relevantes acaba de ser publicado pelo blog Spotniks, e no momento em que leio (21:33 do dia 6/06/2016) já se registram 2.314 compartilhamentos.
Meu artigo anterior no mesmo blog, "Dez Grandes Derrotados da Nossa História (ou como o Brasil poderia ter dado certo, mas não deu)", teve aproximadamente 10 mil compartilhamentos.
Espero que este supere, mas acho que não: livros não tem o appeal de pessoas de carne e osso.
Paulo Roberto de Almeida
Dez obras para melhor entender os problemas do Brasil
Paulo Roberto de Almeida
Gustave Flaubert,
escritor perfeccionista, que viveu para produzir pelo menos uma obra duradoura
– ele fez várias – tinha a mania de penetrar na psicologia de seus personagens
para deles tentar fazer uma síntese dos sentimentos humanos, como em Salammbô, por exemplo. A propósito do seu
mais célebre personagem, num romance que descreveu, à la Balzac, como sendo de “costumes de província”, Flaubert teria
dito, a um interlocutor que o interrogava sobre as características dessa mulher
que foi julgada nos tribunais (sic!) como muito ousada para a época: “Madame Bovary, c’est moi!”.
Talvez eu possa dizer
algo semelhante a respeito dos livros, eternos objetos do meu desejo, que
sempre me cercaram, desde a infância, passada em biblioteca pública, atravessando
uma adolescência de muitas leituras, e chegando agora à idade madura, invariavelmente
rodeado por livros. À la Flaubert, eu
diria: “Livros? É comigo mesmo!”
De fato, eu me fiz nos
livros, pelos livros e para os livros, em especial em obras sobre o Brasil e os
seus problemas econômicos e sociais. Toda a minha vida pode ser resumida numa longuíssima,
interminável sessão de leituras, e de anotações em cima dessas leituras, sempre
com uma mesma obsessão, quase doentia: tentar entender por que o Brasil é o que
é, qual a natureza exata dos seus problemas, e o que se pode fazer para
solucioná-los. Foi para responder a essas questões – que não eram puramente
teóricas, mas eminentemente práticas, uma vez que eu vinha de uma família muito
modesta, tive de trabalhar desde muito cedo, e só pude ascender
profissionalmente e socialmente graças a esses trampolins impressos – que eu me
politizei precocemente, lendo, ainda na adolescência, livros de mestres
universitários que eu encontraria mais tarde, na bibliografia do curso
superior, vários anos depois.
Quando parti para um
exílio semiforçado na Europa, nos anos de chumbo da ditadura militar, arrastei
comigo uma pequena biblioteca de “problemas brasileiros” que deve ter intrigado
mais de um guarda aduaneiro, nas diversas fronteiras que atravessei até me
fixar estavelmente na Bélgica para ali continuar meus estudos interrompidos no
segundo ano de Ciências Sociais na USP. Parece bizarro, mas vários “clássicos”
do pensamento político e dos estudos históricos brasileiros eu li primeiro em
francês, tal como disponíveis na biblioteca do Instituto de Sociologia da
Universidade de Bruxelas. Maîtres et
Esclaves, o grande Casa Grande e
Senzala, de Gilberto Freyre, ou Les
Terres de Canudos, ou seja, Os
Sertões, de Euclides da Cunha, ficaram em minha memória desde o início dos
anos 1970, antes que eu pudesse retomar essas obras nas suas edições originais,
na volta ao Brasil sete anos depois.
Da mesma forma, lendo
sobre o Brasil em todas as línguas disponíveis, revisei minha interpretação da
história política brasileira, até então fortemente marcada pela historiografia
marxista (que era de rigor na nossa tradição universitária), pela leitura de
Thomas Skidmore, Politics in Brazil 1930-1964: An
Experiment in Democracy (na primeira edição da Oxford
University Press, de 1967, que retirei da biblioteca central da ULB), vários anos antes de conhecer sua edição brasileira,
Brasil: de Getúlio a Castelo (1930-64).
Também percorri toda a produção acumulada dos brasilianistas, primeiro em
francês, depois em inglês, o que está refletido no livro O Brasil dos brasilianistas, que editei com meu amigo Marshall
Eakin (Envisaging Brazil, na edição
americana).
No Brasil e no exterior,
em qualquer tempo e lugar, básica e fundamentalmente, li tudo o que eu
encontrava de obras sobre o Brasil e seus problemas, leituras sempre entremeadas
de muita história econômica e de sociologia política. Acredito, assim, estar
habilitado a indicar aos meus leitores, alguns títulos que, efetivamente,
considero como importantes para conhecer o Brasil e seus problemas, sempre nessa
perspectiva histórica que muito me marcou, mesmo se nunca fui historiador de
formação, ainda que faça da história o centro de minhas atenções analíticas e
didáticas. Vejamos o que eu poderia indicar aos que gostariam de entender um
pouco do Brasil e dos problemas que ele precisaria enfrentar, se é que
pretendemos de fato resolvê-los. Minhas escolhas, aqui limitadas a apenas “dez
obras”, entendidas num conceito amplo, são estas:
1)
Hipólito da Costa: o primeiro pensador da nacionalidade
Considero o “braziliense”
– nascido na Colônia do Sacramento (Uruguai), criado no Rio Grande do Sul,
educado em Coimbra, enviado pelo Conde de Linhares aos Estados Unidos aos 24
anos, e refugiado desde 1805 em Londres, para fugir, por ser maçom, da
Inquisição portuguesa, editor do Correio
Braziliense desde 1808 até 1822 – um dos maiores pensadores da nação, ainda
que partidário de um grande império luso-brasileiro, que ele defendeu no
momento crucial da nossa independência. Sobre ele existem duas biografias
primorosas, que concorreram entre si para ganhar os favores da intelectualidade
brasileira no final dos anos 1950: a de Mecenas Dourado: Hipólito da Costa e o “Correio Brasiliense” (Rio de Janeiro:
Biblioteca do Exército Editora, 1957), e a de Carlos Rizzini: Hipólito da Costa e o Correio Braziliense
(São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1957, Brasiliana Grande Formato n. 13). Não
sei se Hipólito mereceria uma outra biografia, sobretudo depois que todos os
números do Correio Braziliense foram
republicados em edição fac-similar por iniciativa de Alberto Dines pela
Imprensa Oficial de São Paulo, em colaboração com o jornal Correio Braziliense, em 2002, com muitos estudos sobre sua vida,
obra e pensamento, inclusive um meu, no volume XXX: “Hipólito
da Costa e o nascimento do pensamento econômico brasileiro” (link: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/834HipolCostaPensamEconBr3.pdf).
Antonio F. Costella, um
outro estudioso do grande brasileiro emigrado, publicou no Observatório da Imprensa uma pequena cronologia da vida e obra de
Hipólito (ver : http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/alm030620032.htm); o mesmo site publicou a maior parte dos estudos
feitos para o último volume da edição fac-similar, entre eles o de Istvan
Jancsó e de Andréa Slemian sobre a curiosa posição de Hipólito no momento da
independência: “Correio
Braziliense, um
caso de patriotismo imperial” (neste link: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/alm290720032.htm). De fato, Hipólito e o Correio se empenharam, como escrevem esses autores, na “defesa da
unidade da Monarquia e, sempre no interior dela, à valorização da coesão de
suas partes da América”. A postura de Hipólito tinha profundas razões
políticas, pelo menos desde 1815, quando o Brasil é declarado Reino Unido, mas
mesmo antes, nas negociações com os britânicos em torno dos dois tratados de
1810, por exemplo, o de amizade e defesa e o de comércio e navegação, o “braziliense”
explicava detalhadamente como deveriam negociar os representantes lusos, sempre
em defesa dos interesses brasileiros, como eu analiso em meu ensaio citado
acima. A esse respeito, recomendo ler o ensaio de Rubens Ricupero sobre esses
tratados, neste livro: Luis Valente de Oliveira e Rubens Ricupero
(orgs.), A Abertura dos Portos (São
Paulo: Editora Senac-SP, 2007).
Hipólito foi o primeiro
e um dos maiores pensadores dos problemas brazilienses
(caracterização que ele defendia desde o primeiro número do Correio), e por isso mesmo recomendo começar
o estudo dos problemas brasileiros pela leitura atenta do seu “armazém
literário”, se disponível online. Existe também a possibilidade de se recorrer
a um dos grandes nomes do jornalismo brasileiro: Barbosa Lima Sobrinho, que
escreveu uma Antologia do Correio
Braziliense (Rio de Janeiro: Cátedra, 1977). Ao ser comemorado o
bicentenário da primeira edição do Correio, em 2008, Lilia Diniz publicou uma
excelente síntese dos trabalhos efetuados pelo Observatório da Imprensa em torno do grande pensador brasileiro,
que também recomendo ler: “200 anos da imprensa brasileira: Correio Braziliense e Hipólito da Costa”
(edição 489, 11/06/2008; link: http://observatoriodaimprensa.com.br/e-noticias/200_anos_da_imprensa_brasileira_correio_braziliense_e_hipolito_da_costa/). Em suma, em se tratando
dos problemas brasileiros, melhor começar pelo começo...
2) Mauá:
o primeiro capitalista brasileiro (que faliu por causa do estado)
Existem duas grandes
biografias desse grande brasileiro, que a exemplo de Hipólito também teve uma
“educação inglesa”, ambos pelo lado prático, e que também enfrentou inúmeras
dificuldades nas tentativas respectivas de encaminhar problemas da nação e de
seu desenvolvimento. A primeira é do membro da Academia Brasileira de Letras
Alberto de Faria, que ao adquirir a casa que tinha sido construída pelo grande
empresário do Império (1813-1889) em Petrópolis, no início do século XX,
resolveu investigar a vida daquele homem que tinha deixado um grande escrito, sua
“Exposição aos Credores” (1878), e muitas empresas espalhadas pelo Brasil e no
Uruguai, a maior parte em situação falimentar, depois que enfrentou problemas
com ministros da monarquia. Ele escreveu, então, uma obra irregular (pois feita
de pesquisas ao longo de alguns anos e escritos parcialmente divulgados em
palestras e conferências), mas que ainda se mantém como um testemunho
importante sobre o grande empresário: Mauá: Irineo Evangelista de Souza, Barão e Visconde de Mauá, 1813-1889 (Rio
de Janeiro: Paulo, Ponguetti & Cia, 1926). Valeria uma reedição, talvez
pela própria Academia.
A segunda biografia, mais pesquisada, e saborosa, é a
de Jorge Caldeira: Mauá: Empresário do
Império (São Paulo: Companhia das Letras, 1995), uma cuidadosa reconstrução
da vida e dos empreendimentos do homem mais rico do Brasil durante o Segundo
Império, com um patrimônio provavelmente equivalente a todo um orçamento anual
da monarquia. A despeito de bastante criticado na sua metodologia
historiográfica pelos especialistas do período, a simpática narrativa de
Caldeira se sustenta em função da interpretação que ele privilegiou na
descrição dos inúmeros obstáculos encontrados por Irineu em suas tentativas de
fazer o Brasil resolver seus problemas de crescimento e riqueza pela via
pragmática de um capitalismo estilo britânico, e que se chocava com o falso
aristocratismo dos dirigentes do Império. Como ele escreve, Mauá conseguiu
criar duas dezenas de empresas (bancos e indústrias) em seis países diferentes,
cuja gestão era feita, no início, por meio de cartas despachadas em navios a
vela, ainda que alguns desses investimentos dependessem dos movimentos
erráticos do câmbio, que no Brasil estavam ligados aos volumes anuais da
produção de café e seus preços de mercado.
Uma visão mais circunspecta de seu insucesso
empresarial revela que, ao contrário do que disseram vários dos seus biógrafos,
Mauá não foi vítima apenas de percalços colocados pelo governo, mas da mudança
de circunstâncias sob as quais ele trabalhava, e que talvez tenham dependido
excessivamente de negócios contratados ou alicerçados em políticas
governamentais, o que transparece em uma análise mais empiricamente embasada
efetuada por David Izecksohn Neto e Paulo Emílio Matos Martins no trabalho:
“Mauá e Cia.: a autocrítica do maior empreendedor brasileiro do século XIX”
(Trabalho apresentado ao XXIX EnAnpad, Associação dos Programas de
Pós-Graduação em Administração; Brasília, 18-21/09/2005). Qualquer que seja a
hipótese correta para a sua falência, fica claro que o ambiente de negócios no
Brasil sempre foi, em qualquer época, extremamente difícil, justamente devido
ao forte papel regulador exercido intrusivamente pelo estado em todas as
esferas de atividade.
Nesse sentido, não apenas o itinerário empresarial de
Mauá deve continuar a ser estudado por economistas e historiadores, mas eles também
deveriam analisar não só sua trajetória no confronto com as medidas econômicas
do governo imperial, mas também em relação às medidas de quaisquer governos em
quaisquer épocas, ou seja, o impacto da mão pesada do estado sobre as
atividades de mercado. O Brasil, por exemplo, vai demorar a se recuperar da
Grande Destruição lulopetista – da qual tratei recentemente em um artigo
escrito para uma palestra na Yale School of Management: “The
Great Destruction in Brazil: How to Downgrade an Entire Country in Less Than
Four Years”, Mundorama (n. 102, 1/02/2016, link: http://www.mundorama.net/2016/02/01/the-great-destruction-in-brazil-how-to-downgrade-an-entire-country-in-less-than-four-years-by-paulo-roberto-de-almeida/) – mas cabe registrar que, no auge das
medidas insanas que nos conduziram ao desastre atual, empresários de todos os ramos
viviam implorando ao governo por “políticas setoriais” que induzissem suas
respectivas áreas de atividade. Seriam êmulos de Mauá?
Em face dessas demandas, o estado, pelos seus mandarins amestrados e seus
tecnocratas bem intencionados, se esforça, então, para atender aos reclamos dos
empresários, mas o preço a pagar é esse mesmo que estamos vendo agora: falência
das contas públicas. Isso sem esquecer que vários dos “crimes econômicos” do
lulopetismo (como Pasadena, por exemplo, ou a Sete Brasil) foram
deliberadamente construídos para produzir o que já estamos assistindo: milhões
desviados em favor de capitalistas promíscuos, que repartem algumas migalhas
com os mafiosos da política (de vários partidos, com destaque, obviamente, para
os neobolcheviques petistas).
Uma diferença, porém: Mauá pode até ter sido levado ao insucesso quando,
depois do protecionismo e das concessões garantidas pela monarquia, mudanças
nas políticas setoriais fizeram com que ele tivesse de enfrentar uma concorrência
bem mais acirrada do que nos tempos de exclusividade. Mas ele nunca teve de
enfrentar o tipo de quadrilha cleptocrática tão completamente instalada no
coração do estado quanto a que foi administrada pelos companheiros entre 2003 e
2016. Vivam as diferenças!
3)
Joaquim Nabuco: O abolicionismo
A obra é o resultado das
primeiras derrotas de Nabuco – haveria outras – no seu empenho em modernizar o
Brasil, a despeito de todo o atraso intelectual das elites, inclusive a sua
própria, a dos senhores de engenho do Nordeste, que mandaram no Brasil desde o
descobrimento até meados do século XIX, aproximadamente, quando foram
suplantados por uma outra elite, a dos plantadores de café do Sudeste. Escrita
em Londres, em 1883, onde ele se “refugiou” na legação do Barão de Penedo
depois de perder as eleições para reconduzi-lo a um novo mandato de deputado
por Pernambuco, a obra é um marco do pensamento político brasileiro, não porque
nela ele defendesse o abolicionismo – o que muitos outros membros da elite ilustrada
também faziam – mas porque ele preconizava a reforma agrária e a educação dos
miseráveis, os libertos do regime escravo, mas também todos os brasileiros
pobres, geralmente do campo.
A famosa Lei de Terras
de 1850 representou o contrário do que o seu nome indica: ao contrário do Homestead Act dos Estados Unidos,
adotado em plena guerra civil pelo presidente Lincoln – e que garantia a posse de uma propriedade de 160 hectares a quem a cultivasse
por cinco anos, aumentando o fluxo de imigrantes europeus e criando uma grande
classe de pequenos proprietários rurais –, a lei brasileira só admitia a posse
de terras da União mediante compra liquidada no ato, o que era uma clara
estratégia da elite agrária no sentido de substituir o tráfico de escravos proibido
pelo decreto do mesmo ano pela importação de novos servos de gleba europeus
postos a serviço da grande propriedade comercial de exportação. Nabuco queria
justamente criar uma classe de camponeses tal como vinha observando na
experiência dos EUA ou da Austrália, e mais do que isso, garantir que eles
tivessem uma formação adequada em termos de ensino, para que eles
constituíssem, não necessariamente cidadãos, mas bons súditos de um regime monárquico.
Como muitos outros,
Nabuco foi um dos grandes derrotados da nossa história – como já tive
oportunidade de examinar neste artigo: “Dez grandes derrotados da nossa história (ou, como o
Brasil poderia ter dado certo mas não deu)”, Spotniks (14/02/2016; link: http://spotniks.com/dez-grandes-derrotados-da-nossa-historia-ou-como-o-brasil-poderia-ter-dado-certo-mas-nao-deu/) – e não apenas nessa questão: sua campanha pela
laicização do Estado imperial também não logrou sucesso, pelo menos até o
surgimento da República jacobina. Considerando-se porém a atual penetração da
agenda religiosa – não mais apenas da Igreja Católica, mas sobretudo pelas
seitas evangélicas, e as muitas “empresas religiosas” que se multiplicam em
todos os lados – nos assuntos do Estado, pode-se afirmar que o Nabuco
anticlerical continua a ser um grande derrotado. Mais ainda: sua agenda pela
universalização do ensino fundamental foi cumprida apenas pelo lado
quantitativo (e ainda assim parcialmente, pois a evasão é contínua, a partir dos
últimos anos do básico e dos primeiros do secundário), uma vez que do lado
qualitativo a miséria educacional continua a crescer, agora influenciada por
esse grande idiota, convertido em “patrono”, da educação brasileira, Paulo
Freire, aliás um pernambucano como Nabuco. Em todo caso, a leitura do seu livro
de 1883 pode nos ajudar a entender quando é que começamos a errar no tratamento
dos problemas brasileiros.
O historiador econômico
brasilianista Nathaniel Leff achava que o Brasil começou a não dar certo
justamente a partir do segundo império, ou seja, a coisa vem de longe, de muito
longe. Não acredito muito nessa tese, pois o Brasil já era muito diferente dos
Estados Unidos desde o período colonial, sobretudo na educação, o que explica
nossos índices historicamente baixos de produtividade. A coisa é complicada...
4) Monteiro
Lobato: Mr. Slang e o Brasil
Já me referi, no mesmo
trabalho citado acima, a esse pequeno opúsculo perdido no meio da imensa obra –
infantil e adulta – do mais célebre publicista da primeira República e da era
Vargas, o homem que prenunciou um presidente negro nos Estados Unidos (não
exatamente num sentido “progressista”), que lutou pelo “petróleo é nosso” (mas
não com o nacionalismo obtuso dos realizadores do slogan), e que sempre afirmou
que um país “se faz com homens e livros” (uma frase talvez oportunista, uma vez
que foi editor durante boa parte da sua vida). Todo o livro trata dos problemas
do Brasil, tal como existiam nos anos 1920, e que parecem ter continuidade nos
dias que correm. Como diria Nelson Rodrigues, o subdesenvolvimento não se
improvisa. Na mesma época, Mario de Andrade, aliás “inimigo” de Lobato, um
crítico acerbo da Semana da Arte, escreveu um poema no qual dizia que
“progredir, progredimos um tiquinho, que o progresso também é uma fatalidade” (“O
Poeta Come Amendoim”).
Mister Slang era um
inglês imaginário, morador da Tijuca, com o qual o “autor”, um “homem comum”,
se entretinha para tratar desses problemas do Brasil. Resultado de crônicas
publicadas na imprensa carioca em 1926 (O
Jornal, de Assis Chateaubriand), quando acabava o governo tumultuado de Artur
Bernardes, um mineiro, e começava o de Washington Luiz, um paulista, publicada
em forma de livro em 1927 (apenas 135 p.), a obra utiliza-se de um estratagema
tão velho quanto as Cartas Persas de
Montesquieu, no sentido de recorrer a um estrangeiro para falar das
idiossincrasias do próprio país. Não deixava de ser um subterfúgio para falar
mal do governo corrente.
Mas cabe não esconder,
desde já, que Lobato foi de certa forma beneficiado por essas crônicas a favor
da “paulistização” do país – isto é, o seu progresso impulsionado a partir da
economia mais vibrante –, já que antes do final do governo, e instalado na capital
federal desde 1925, foi nomeado adido comercial junto ao Consulado do Brasil em
Nova York em 1928. Residindo alguns anos na mais importante cidade americana,
ali reforçou a admiração que já exibia pela produção industrial em série, à la Henry Ford, pelo rádio e pelo
telefone, e tantas outras inovações que reputava indispensáveis ao Brasil
essencialmente agrícola (e ainda muito atrasado) de sua época.
Independentemente,
porém, das motivações dessas crônicas, e de seu papel na própria promoção “comercial”
do autor no mercado intelectual e editorial brasileiro, cabe refletir sobre os
problemas levantados pelo inglês da Tijuca, todos eles apontando para a
modernidade, para as reformas compatíveis com os progressos da tecnologia,
quando não para o progresso moral na condução política dos assuntos públicos
(como a simples instituição do voto secreto, por exemplo). As críticas de
Lobato à capital da República – e ele concordava com o presidente Artur
Bernardes na corrupção do Rio e na necessidade de transferência da capital para
o interior de Goiás – eram encobertas pelas declarações do inglês quanto ao
parasitismo da “cidade maravilhosa”, e Lobato parafraseava sua famosa
condenação das saúvas, ao dizer que “ou o Brasil dá cabo desse [sic] Rio de
Janeiro, ou o Rio de Janeiro dá cabo do Brasil”.
Não se pretende dizer
aqui que o trabalho de Lobato – que se esconde atrás de um inglês imaginário para
expressar suas próprias ideias sobre o que caberia reformar no país do seu
tempo – seja um retrato perfeito de problemas estruturais que até agora
permanecem não resolvidos, ou que as ideias do inglês, de Lobato, fossem, ou
sejam, as mais apropriadas para resolver esses problemas, antes ou atualmente. Provavelmente,
a maior parte dos problemas atuais – os da política corrupta, os da economia
errática, os da enorme, extraordinária em seu tempo, miséria material do povo e,
sobretudo, os do espantoso baixo nível educacional, que está na origem da
medíocre produtividade do trabalho – não será resolvida com base nas percepções
de um inglês déplacé na Tijuca, ou
nos “repentes” de Lobato (ele tinha muitos), inadequados então e também agora.
Mas, uma das primeiras condições para tentar, ao menos, oferecer soluções a
problemas desse tipo, seria começar por fazer um diagnóstico preciso dos
problemas do país. E isso Lobato podia fazer, ainda que tivesse mudado ao longo
do tempo suas prescrições para os problemas do país: primeiro o Jeca Tatu
eternamente doente, depois as saúvas, ou a falta de aço e petróleo, enfim, tudo
aquilo que acorrentava o Brasil ao atraso.
Além das críticas mais
frequentes às insuficiências materiais do país, o que mais enfastiava o inglês
da Tijuca era a incapacidade dos brasileiros pensarem com suas próprias
cabeças, sempre predispostos a adotar esta ou aquela postura de seus jornais de
preferência ou a de algum político de destaque. A falta de ideias próprias dos
brasileiros seria, para Mr. Slang, uma das razões do atraso do Brasil, o que
obviamente era um argumento do próprio Lobato. São apenas 21 crônicas, todas
criticando as inadequações da república “carcomida”, como revelado nas
constantes revoltas dos jovens militares. Ele já tratava de questões como a
necessidade de estabilização monetária – efetivamente tratada por Washington
Luiz e seu primeiro ministro da Fazenda, Getúlio Vargas, mas que não chegou a
completar o processo, trocando o mil-réis por uma nova moeda, o que só seria
feito pelo próprio Vargas, em 1942 –, de questões políticas (num contexto de
revoluções tenentistas e da própria coluna Prestes), do peso dos tributos sobre
a produção nacional – o que já tinha sido a causa da falência de sua primeira
editora – e até do protecionismo comercial, que ele queria substituir por uma
sadia concorrência.
A burocracia estatal é
também criticada pelo “inglês”, mas a sua causa seria a “miséria do
funcionalismo público”, um aspecto que parece ter sido amplamente corrigido desde
então, a ponto de os servidores públicos terem se convertido em mandarins
privilegiados, com salários cinco ou seis vezes superiores aos equivalentes
funcionais do setor privado. A ineficiência do serviço público é um desses
disfarces do patrimonialismo, chamado por Lobato de “parasitismo camuflado”. As
Forças Armadas tampouco escapam de suas críticas, por serem igualmente
ineficientes, ao deixarem de usar aviões, por exemplo. O provimento de serviços
públicos, em especial nas vias de comunicações e transportes, era lastimável (o
que não é propriamente uma novidade): Mr. Slang, quer dizer, Lobato, recomenda aqui
o reforço da importação de cérebros, ou seja, o estimulo a fluxos imigratórios
mais intensos. A corrupção do antigo governo federal (sob Artur Bernardes) era
contrastada com a operosidade de São Paulo, motor da nova economia industrial
que despontava. Com isso, Lobato obteve a sua mencionada remoção para Nova
York, para servir de adido comercial segundo as novas orientações da política econômica
externa traçadas pelo chanceler Otávio Mangabeira.
Essa modalidade da troca
de “conversa fiada” com um estrangeiro, amplamente usada por Lobato, sempre foi
um bom recurso dos reformistas sinceros que não querem romper inteiramente com
o governo em vigor. Em todo caso, as ambiguidades políticas do escritor
paulista não podem obscurecer o sentido de suas críticas, todas elas ainda
plenamente válidas nos dias que correm. Se o voto de cabresto e o escrutínio
aberto foram banidos da legislação eleitoral, a corrupção política segue tão
vibrante quanto na República Velha. Gilberto Amado, um tribuno dessa República,
depois diplomata e grande internacionalista, dizia que, nessa época, “as
eleições podiam ser falsas, mas a representação era verdadeira”, no sentido em
que o voto “a bico de pena” servia para eleger próceres cosmopolitas,
perfeitamente educados, membros das melhores “elites”.
O que mudou na vida
política do país? Eu diria que as eleições, atualmente, são amplamente verdadeiras,
mas que a representação é perfeitamente falsa, no sentido em que não temos mais
os tribunos educados de antigamente, mas apenas um baixo clero totalmente
representativo de uma classe política comprometida unicamente com seus próprios
interesses pecuniários. A representação, aliás, tornou-se altamente
corporativa, com suas bancadas de sindicalistas, ruralistas, evangélicos,
advogados, e até políticos profissionais, representantes deles mesmos e das
corporações que os elegem. O Brasil parecer ter retornado ao regime eleitoral
de 1934, típico do fascismo disfarçado. Não sei se Lobato concordaria comigo,
mas Mr. Slang certamente estaria pronto a assentir...
5)
Fernando de Azevedo: A Cultura Brasileira
Foi, sem qualquer
exagero, o mais importante representante da cultura nacional, o homem que
emergiu antes mesmo da criação do Ministério da Educação em 1930, por um “inquérito”
sobre a educação nacional feito em 1926, fundador da “Brasiliana” em 1931, que fez
parte do grupo que redigiu um “manifesto dos pioneiros da escola nova” em 1932,
pedindo mudanças na educação brasileira, e que se bateu por ela, durante toda a
sua vida, sendo ainda um dos redatores de um novo “manifesto dos educadores”,
em 1959, batalhando incansavelmente pela educação até a sua morte, em 1974. No
entanto, este livro, publicado pelo IBGE, em 1943, quase não foi escrito, pois
ele deveria ser, na origem, uma introdução geral ao Recenseamento do Brasil feito
em 1940, tarefa que Fernando de Azevedo hesitou em aceitar, pela vastidão do
empreendimento.
Recusando o cargo de
presidente da Comissão Censitária Nacional, ainda assim Fernando de Azevedo
teve de ceder aos apelos dos amigos para fazer um “retrato de corpo inteiro do
Brasil, uma síntese ou um quadro de conjunto de nossa cultura e civilização”,
como ele explicou na terceira edição da obra, publicada em três volumes, em
versão revista e ampliada, em 1958, pelas Edições Melhoramentos. Ainda bem que
ele acedeu em meio à ofensiva. Uma quarta edição, publicada pela mesma editora
em 1964, consolida os três volumes, transformando-os em três partes de um único
e grosso volume de 803 páginas, e alcança ainda mencionar a mensagem de João
Goulart ao Congresso Nacional, em 1963.
A obra é mais perfeita
síntese da inteligência nacional, feita por um grande intelectual dos anos
1930, um dos mestres da inteligência que figurou entre os mais importantes reformadores
do ensino brasileiro, junto com Anísio Teixeira, mas que traz em seu subtítulo
apenas “Introdução ao estudo da cultura no Brasil”. As três partes cobrem,
respectivamente, os “fatores da cultura” (país e raça, trabalho, formações
urbanas, evolução social e política e a psicologia do povo brasileiro), a
“cultura” (instituições e crenças religiosas, vida intelectual, profissões
liberais, vida literária, e cultura científica e artística), e, enfim, a
“transmissão da cultura” (educação colonial, origens das instituições
escolares, descentralização e dualidade dos sistemas, renovação e unificação do
sistema educativo, e o ensino geral e os ensinos especiais). Constitui,
portanto, um quadro completo do Brasil, desde suas origens coloniais até meados
do século XX, sem deixar de lado algumas características que ainda hoje marcam
nosso errático desenvolvimento.
Logo na primeira parte,
ele cita uma conferência feita em 1954, em São Paulo, pelo professor Yale
Brozen, da Northwestern University, a propósito do “roteiro da industrialização
do Brasil”, segundo quem, “a legislação protecionista que presumivelmente tem
por finalidade apressar a industrialização, pode, na verdade, retardá-la, quer
porque, eliminando a competição, a produtividade diminui (...), quer por se
tornarem mais lentos, em consequência da proteção do governo, o aumento da
renda nacional e a velocidade da formação do capital” (Folha da Manhã, 15/09/1954). Esta é uma crítica que, se feita entre
2011 e 2015, poderia ser aplicada à mal chamada “Nova Matriz Econômica” do
último governo lulopetista, tanto mais que Azevedo completava, ainda citando o
professor Brozen: “Sendo este [o capital], o principal ingrediente para a
industrialização, além de um grupo de empresários, ativos e realizadores, tudo
o que reduz o capital disponível, atrasa a marcha da industrialização”. Mais
ainda: “Se é exato que, sendo estes os seus principais fatores, num regime
capitalista, devem ter, uns e outros, a liberdade de entrar em qualquer área,
não importando a sua origem, nacional ou estrangeira, e se os imigrantes, entre
nós, como se verifica nos Estados Unidos, fornecem uma proporção maior de
empresários que a população nacional, as restrições à imigração e à aplicação
de capitais estrangeiros, como a proteção tarifária, podem retardar o processo
de industrialização no país” (p. 119 da edição de 1964). Como se vê, não só de
cultura se ocupava a magnífica obra de Fernando de Azevedo.
Aliás, ele dizia em seu
citado prefácio à 3a. edição, que sua obra de introdução à cultura
brasileira, “[n]ão é mais do que o preâmbulo da que está por escrever e, pela
extensão do campo que teria de cobrir, como pela variedade de seus setores, não
poderia ser confiada senão a um grupo numeroso de especialistas, capazes de
exaurir, cada um por sua parte, os problemas desse vasto domínio de estudos”
(p. 24). Essa nova síntese nunca foi feita e, no entanto, a obra ciclópica de
Fernando de Azevedo se sustenta até hoje, como um roteiro detalhado (das
insuficiências) do desenvolvimento brasileiro, nos mais de 400 anos de história
(em seu sentido amplo) percorridos pelo autor.
6)
Raymundo Faoro: Os Donos do Poder
O jurista gaúcho sempre
recusou que sua tese representasse uma interpretação weberiana do
desenvolvimento político nacional, mas é certo que foi assim como foram
recebidos os dois prolixos volumes publicados pela Globo Editora em Porto
Alegre, no final dos anos 1950, quando também apareciam outras grandes obras do
pensamento nacional, entre elas Formação Econômica
do Brasil, de Celso Furtado, uma história “keynesiana” (ou cepaliana) do
desenvolvimento econômico do país. Weberiana ou não, esta recomposição das
origens do patrimonialismo brasileiro com base em antigas, antiquíssimas
tradições portuguesas dos “códigos” promulgados pelos soberanos – primeiro as
ordenações alfonsinas, depois manuelinas, logo após filipinas – e o que mais
surgiu na era pombalina do despotismo pouco esclarecido português, tudo isso
marcou indelevelmente a formação do nosso estamento burocrático. Desde os
antigos magistrados e tribunos do Império aos atuais mandarins da república, tais
foram os homens que de fato mandavam no Brasil, ou mandaram, até o aparecimento
dos atuais lulopetistas, os militantes do partido da reforma que se revelaram,
ao fim e ao cabo, os predadores mais selvagens da riqueza nacional. Faoro por
certo não esperava por isto.
Por uma das ironias da
história – mas ele não viveu o suficiente para constatar essa tragédia, como o
fez, por exemplo Hélio Bicudo –, Faoro foi, com outros grandes intelectuais
anti-estamentais (como Sérgio Buarque de Holanda, por exemplo), um dos fundadores
do PT, na esperança de que se estava enterrando o poder do “estamento
burocrático”, para inaugurar a era da soberania popular nos assuntos da
República. Eu me pergunto o que ele estaria pensando hoje, ao contemplar as
revelações da Operação Lava Jato contra o partido que era julgado o redentor da
nação, isto é, a salvação do país pelas suas anti-elites, o “contra-estamento”
burocrático. Acredito que, assim como fez em relação a Collor, ele teria apoiado
Bicudo e Miguel Reale Jr. no pedido de abertura de um processo de impeachment
contra o sistema cleptocrático implantado pelo PT.
Independentemente destas
considerações totalmente contemporâneas, creio que sua tese merece ser lida e
refletida, como o melhor estudo que se fez até hoje sobre a formação do
“patronato político” brasileiro. Os donos do poder já não são, em contraste com
os estamentos sociais examinados em sua obra, os representantes da velha elite,
de extração fundiária ou diretamente estatal; ele são os representantes da
“República Sindical” tão temida pelos militares de 1964, que não hesitaram em
interromper o curso da República de 1946 para impedir a deriva do poder para um
formato peronista que eles tanto temiam e que combatiam desde 1935. Eles talvez
tivessem razão: o fascismo sindical é uma espécie de deriva genética do comunismo,
a ser igualmente combatido.
Estamos mais imunes,
hoje, às promessas do populismo esquerdista quanto se deveria estar contra as
ilusões da tecnocracia de direita, tal como encarnada pelo regime militar que
durou 21 anos? Talvez, mas cabe recordar que a obra de Faoro foi redigida no contexto
da república de 1946, que prometia muito e que finalmente se estiolou nas
revoltas dos militares anti-varguistas, de um lado, e nos protestos dos
trabalhistas e dos reformistas radicais, de outro, para finalmente se esboroar na
inépcia administrativa de Goulart e seus acólitos, entre 1961 e 1964, até
desembocar no golpe desse ano. Faoro foi um opositor do regime de 1964, sobretudo
quando este enveredou claramente pela via do autoritarismo, a partir de 1965. Ele
teria ainda muitas coisas a nos ensinar a partir de sua tese, que permanece
inteiramente válida do ponto de vista da formação política e institucional da
nação. Recomendo sua leitura atenta: os livros são terrivelmente chatos, talvez
“alemães” em seu estilo e formatação, mas altamente enriquecedores de nossa
pobre cultura política e jurídica. Passando os olhos pelos tribunais
“superiores”, é de se lamentar que não tenhamos, hoje em dia, mais “Faoros”, em
espírito, no STF.
O que fazer? Já não se fazem mais juristas com
antigamente, substituídos pelos inúmeros bacharéis egressos das faculdades “Tabajara”
de Direito, que envergonham a cultura jurídica do país, com suas teses “achadas
na rua” e um “coletivismo” instintivo que ofende à inteligência e ao léxico
oficial. Acho que Faoro também seria bastante reservado quanto à OAB dos tempos
companheiros. O tempora, o mores...
7) Marcelo
de Paiva Abreu (org.): A Ordem do
Progresso
Um entre muitos outros
livros de síntese da história econômica do Brasil, esta obra coletiva tinha
sido publicada pela primeira vez em 1990, para comemorar os primeiros “cem anos
de política econômica republicana, 1889-1989”, segundo seu subtítulo original. Por
suas qualidades intrínsecas, ela converteu-se, desde que lançada, em um
“clássico” do gênero. Depois de mais de duas décadas de bons e leais serviços
prestados à comunidade acadêmica, ela foi ampliada cronologicamente e relançada
em 2014 com novo subtítulo e maior extensão, para cobrir tanto o Império quanto
a República, já antecipando, portanto, toda a vida independente do país: “dois
séculos de política econômica no Brasil”. Sempre coordenado pelo professor de
Economia Brasileira da PUC-Rio, Marcelo de Paiva Abreu, autor de vasta obra
sobre as relações econômicas internacionais do Brasil, o livro passou de onze a
treze colaboradores, aptos a seguir tanto as trepidações do Império (bastante
na esfera cambial), quanto os muitos trancos e barrancos do período
republicano, sobretudo nas transações externas e na inflação. Em ambos períodos,
políticas econômicas erráticas e iniciativas contraditórias ajudam a explicar
porque o Brasil foi caracterizado (ou condenado) por Stefan Zweig, em 1941, como
o “país do futuro”. Esse futuro chegou várias vezes, mas foi sob a forma de
acelerações inflacionárias recorrentes e um recorde mundial em troca de moedas,
nada menos do que oito em três gerações, sendo seis delas em menos de oito
anos.
Trata-se de um bom
instrumento de trabalho, uma vez que além das análises cronológicas lineares,
existem anexos com séries estatísticas, tabelas e gráficos para cada
subperíodo, sem mencionar as listas dos presidentes, dos ministros da Fazenda e
do Planejamento ao longo do tempo. Quando lançado pela primeira vez, a
República atravessava o que parecia então a “maior crise da história econômica
do Brasil independente”, segundo a introdução de Marcelo de Paiva Abreu, datada
de agosto de 1989. Uma afirmação arriscada, já que ela terá de ser refeita numa
futura reimpressão dessa edição, publicada quando ainda não se tinham
manifestado os sinais daquela que já pode ser considerada a pior crise de toda
a nossa história, mas que ainda não desvelou todas as suas consequências em
termos de emprego, endividamento e desorganização completa das contas públicas.
Em 2022, ao se completarem dois séculos de políticas econômicas, teremos retrocedido
pelo menos dez anos em termos de renda per capita.
Uma outra obra que
completa esta é aquela organizada por Fábio Giambiagi et alii: Economia Brasileira Contemporânea, 1945-2010
(Rio de Janeiro: Elsevier, 2011), também em nova edição, uma vez que a
original se estendia unicamente a 2004. Apenas a primeira parte segue uma ordem
analítica cronológica, segundo uma periodização clássica, enquanto a segunda
observa um corte temático, cobrindo os grandes problemas da economia
brasileira: crescimento, financiamento, restrições de poupança, pobreza e
desigualdade de renda e a “escassez” de educação. Também como no primeiro caso,
a análise é complementada por inúmeros quadros, gráficos e figuras, além de
tabelas com séries estatísticas completas para todo o período. Giambiagi é
autor ou co-organizador de mais de duas dezenas de obras, sempre tratando da
economia brasileira, o que o converte, junto com Marcelo de Paiva Abreu, em uma
presença constante, praticamente obrigatória, na bibliografia especializada.
Existem muitas outras
obras, individuais ou coletivas, de história econômica ou de análise
conjuntural da economia brasileira, mas quem quiser se tornar um expert nos
problemas econômicos brasileiros de todas as épocas ficará plenamente
abastecido de informações e análises por meio dessas duas grandes obras de
qualidade. Talvez se possa complementar a visão brasileira mediante a consulta
de alguns observadores estrangeiros, entre os quais cabe destacar o
brasilianista recentemente falecido Werner Baer, autor de um clássico sobre a
economia brasileira (com várias edições em inglês e em português), e Albert
Fishlow, com muitos títulos, entre os quais eu destacaria este: Desenvolvimento no Brasil e na América
Latina: uma perspectiva histórica (São Paulo: Paz e Terra, 2004). Finalmente,
no campo memorialístico, impossível não mencionar um dos grandes protagonistas
da história econômica do Brasil durante toda a segunda metade do século XX, o
diplomata e economista Roberto Campos, que registrou fatos objetivos e suas
ações nas mais de 1.400 páginas de suas memórias: A Lanterna na Popa (Rio de Janeiro: Topbooks, 1994).
8) Antonio
Paim: Momentos Decisivos da História do
Brasil
Países não são
exatamente condomínios, onde vizinhos se conhecem e podem se reunir para
discutir benfeitorias na propriedade comum. Nações não costumam reunir-se em
assembleia, de tempos em tempos, para debater tranquilamente qual caminho
adotar em face de ofertas igualmente interessantes quanto às melhores políticas
para guiar o seu processo de desenvolvimento, frente às quais cabe decidir sobre
as de menor custo relativo e de maior retorno possível. Isso só acontece em
momentos de ruptura, guerras, revoluções, golpes, quando uma nova elite sobe ao
poder, e precisa adotar condições mínimas de governabilidade, para assentar as
bases mais ou menos aceitáveis de sua legitimidade política (ou não). Existem
também fases menos felizes, quando um país pode sair de um tipo de dominação
racional-legal, para usar a terminologia weberiana, para descambar numa
administração de tipo carismática, que nos remete aos piores exemplos da
tradição latino-americana de caudilhos e golpes de estado; por sinal, a
Argentina só decaiu durante praticamente 80 anos seguidos porque em 1930 se
derrocou uma república “oligárquica” para inaugurar um ciclo de governos
autoritários, e depois populistas, supostamente identificados com a “soberania”
do país e “projetos nacionais” de desenvolvimento, geralmente alinhados ao
protecionismo e à industrialização substitutiva, como o Brasil, aliás.
Pois bem, sem fazer
qualquer história virtual do Brasil, Antonio Paim, um dos grandes pensadores da
nacionalidade, examina no seu livro, Momentos
Decisivos da História do Brasil (São Paulo: Martins Fontes, 2000), três
momentos decisivos de nossa história, quando poderíamos, teoricamente, ter
“escolhido” um caminho melhor, mas falhamos, terrivelmente – ou nossas elites
falharam –, em adotar aquela via que poderia ter nos levado a um estágio mais
elevado de desenvolvimento econômico e social, a um sistema político mais
representativo e a uma organização institucional menos conspurcada pelo
patrimonialismo tradicional. Não tenho certeza de que o Brasil, como nação,
tenha tido essas chances, essas janelas abertas às suas elites, para debater,
de forma consciente e deliberada, essas vias “progressistas”, mas cabe
mencionar as “teses” de Antonio Paim, para verificar, o que perdemos como oportunidades
históricas.
A primeira, ainda na
fase colonial, foi o fato de ter constituído precocemente uma economia
florescente, ligada ao açúcar e outras atividades paralelas, que poderia ter
sido a base de um desenvolvimento ulterior mais estruturado. Tendo sido mais
rico do que as colônias inglesas na América do Norte nos séculos XVI a XVII, em
grande parte devido aos cristãos novos, os judeus portugueses convertidos
forçadamente que se tornaram os grande financistas do comércio internacional do
açúcar, a chance perdida se explica pelo papel da Contra Reforma e da Inquisição
na repressão desses “capitalistas mercantis”, o que bloqueou, portanto, a
possibilidade de uma economia vinculada de maneira mais “decisiva” – o termo se
aplica – aos mercados internacionais.
A segunda oportunidade
perdida foi no século XIX, com a nação independente e já na fase de construir
seu estado nacional, quando Paim acredita que as elites trataram de assegurar a
unidade nacional, com certo sucesso até (comparativamente à completa
desagregação da hispano-América, por exemplo), mas a um alto custo, perdendo,
no mesmo movimento, a iniciativa de consolidar um sistema representativo
eficiente. O Regresso, nos anos 1840,
e, mais tarde, as teses positivistas, inspiradas em Comte, “conspiraram” para
manter o Brasil um sistema político pouco funcional tanto para fins da “ordem”,
quanto do “progresso”. As frequentes intervenções militares desde o início da
República se encarregam de eliminar a possibilidade de constituição de uma
“moral social de tipo consensual”, que nunca tivemos entre nós, nas palavras de
Paim.
A terceira, em pleno
século XX, foi a consolidação, que ele chama de “estruturação”, do Estado
patrimonial, sob Getúlio Vargas, e o abandono do sistema representativo. Nessa
terceira parte de sua obra, Paim é bastante crítico daquilo que ele chama de
“lixo historiográfico”, a maior parte de extração pretensamente marxista, que
produziu alguns delírios sobre o “caráter da revolução brasileira” pelos
representantes dessa corrente. Já na queda da monarquia, o Brasil perdeu a
oportunidade de constituir um “Estado liberal de Direito”, enveredando depois
pelas “oligarquia dos estados”, mais até que a chamada “política dos
governadores”. Mas, o castilhista Getúlio Vargas conseguiu implantar um Estado
nacional unitário, ao mesmo tempo em que fixou o patrimonialismo, no conceito
weberiano da palavra, realidade já estudada por Simon Schwartzman. O feito de
Vargas, resumido por Paim, foi “retomar o projeto formulado no Império, de
constituição do Estado Nacional, abdicando de dar-lhe a feição democrático-representativa
e dele fazendo um autêntico Estado patrimonial. O projeto Vargas seria retomado
pela Revolução de 64” (p. 217-18).
O último capítulo do
livro de Paim tem por título, de forma otimista, “Como sair do
patrimonialismo”, mas não devemos esquecer que o livro deve ter sido terminado
em 1999 para ser publicado no ano seguinte. Apoiando-se na experiência das
privatizações daquela década, ele concorda com Roberto Campos em que “o
problema reside na adequada formulação das políticas” (p. 315), e não só
econômicas. Quinze anos depois, no entanto, no livro que ele organizou e
publicou, com colaborações de Paulo Kramer e de Ricardo Vélez-Rodríguez, O patrimonialismo brasileiro em foco
(Campinas: Vide Editorial, 2015), ele tem de constatar, tristemente, a “sobrevivência
da estatização brasileira”, e se pergunta como enfrentá-la (capítulo II, p.
35-43). Se formos ainda mais pessimistas, não há como discordar do mesmo
Ricardo Vélez-Rodríguez, em seu livro A
Grande Mentira: Lula e o patrimonialismo petista (Campinas: Vide Editorial,
2015), em que o patrimonialismo tradicional brasileiro foi transmutado, pelas
mãos e pés dos companheiros, em um patrimonialismo de tipo criminoso. Como é
mesmo que dizia Lavoisier? Na natureza, nada se perde, nada se cria, tudo se transforma.
A despeito de basicamente político, este último livro possui um importante
capítulo sobre as “desgraças do intervencionismo no Brasil”, que também começa
pelas desgraças de Mauá, aliás recorrendo ao livro de Jorge Caldeira.
9) Revista
Conjuntura Econômica (1947 até hoje)
A verdade é que, até
1947, o Brasil sequer conseguia identificar seus problemas, simplesmente pela
falta de dados confiáveis. Parece incrível, mas o Brasil não tinha indicadores
econômicos ou outros dados metodologicamente sólidos que pudessem sustentar
diagnósticos fiáveis sobre a atividade econômica e, portanto, a formulação de
políticas adequadas nos planos macroeconômico ou setoriais. Antes dos primeiros
levantamentos metodologicamente sólidos que começaram a ser feitos apenas no
pós-guerra pelo Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getúlio Vargas do
Rio de Janeiro, os poucos dados econômicos disponíveis eram aqueles
disponibilizados pelos censos irregulares conduzidos a grandes intervalos a
partir de 1872, e alguns outros levantamentos setoriais organizados por associações
de classe ou por alguns ministérios mais focados nas atividades produtivas
(Agricultura, Fazenda para as aduanas, etc.).
A partir daquele ano, a
revista Conjuntura Econômica, editada
pelo IBRE-FGV, passou a divulgar séries estatísticas relativamente completas
sobre o nível de atividade econômica, preços, fluxos monetários e de balanço de
pagamentos, e os grandes dados das contas nacionais, que passaram a ser
coletados, a partir de 1938, pelo IBGE, junto com outras informações
demográficas e civis. Ao lado da Conjuntura
Econômica, o IBRE também passou a publicar a Revista Brasileira de Economia, de caráter diretamente acadêmico, e
contendo, numa primeira fase, muitos artigos traduzidos de economistas
estrangeiros, uma vez que a produção universitária nessa área ainda era
relativamente modesta. Progressivamente, o campo foi se sofisticando e se
diversificando, mas a revista mensal do IBRE, junto com as bases de dados em
suporte informático que a ela se agregou posteriormente continuam a representar
o instrumento de trabalho primário da maior parte dos economistas que trabalham
com dados empíricos para suas análises de conjuntura, ou mesmo de séries
históricas mais amplas.
Outros indicadores
econômicos foram sendo construídos desde então, com destaque para os do Banco
Central e os do Ipea (mas aqui baseados, em geral, nos dados primários do IBGE),
embora as séries da Conjuntura
continuem a ser imprescindíveis para qualquer estudioso dos problemas do
Brasil. A revista, na verdade, só ocupa as suas últimas páginas com séries
estatísticas, pois todo o resto vem preenchido com matérias de capa, pesquisas
de maior amplitude cronológica e temática, bem como artigos de opinião e entrevistas
dos e com os melhores economistas do país e do exterior. Trata-se, certamente,
da revista mais fiável do panorama editorial brasileiro.
10) O Estado de São Paulo, esse velho jornal
reacionário...
Nem só de livros ou
revistas é feita esta lista das melhores fontes de informação sobre os
problemas brasileiros, especialmente no terreno econômico. Eu, por exemplo,
aprendi economia ainda adolescente, lendo o jornal que eu considerava um
“inimigo de classe”, na minha visão marxista simplória da primeira
adolescência. Tendo alcançado um grau razoável de politização com o golpe
militar de 1964, comecei a devorar o único jornal completo, sob todos os pontos
de vista, inclusive e sobretudo nos planos cultural e de política
internacional. Mas eu enfrentava com certo ardor oposicionista tanto os
editoriais circunspectos do jornal da família Mesquita, quanto os artigos
regulares do meu “inimigo de classe particular”, e diplomata e economista,
então ministro do Planejamento Roberto Campos. Sempre tentei rebater sua lógica
elitista, conservadora, ou alinhada aos interesses do “império”, mas confesso
que nunca consegui, e bem mais tarde aprendi a admirar o mais lógico, erudito e
bem humorado dos nossos homens públicos e, a partir de 1977, meu colega
diplomata, um dos poucos personagens da vida política do país a que se pode
dar, tranquilamente, o epíteto de estadista.
Durante muitos anos, a
informação econômica de qualidade que eu encontrava no Estadão podia ser complementada pelos representantes da imprensa
especializada, ou seja, edições regionais do Jornal do Commercio, tal como existentes no Nordeste, no Rio de
Janeiro ou no Rio Grande do Sul, mais adiante complementados pela Gazeta Mercantil. Todos eles desapareceram,
restando atualmente apenas o Valor
Econômico. Mas considero, pessoalmente, que para alguém que queira se
informar sobre a realidade nacional e internacional mediante um único veículo,
a opção incontornável continua a ser o velho jornal reacionário. No plano
internacional, eu recomendaria The
Economist, cujos números do século XIX eu costumava ler na biblioteca do
Instituto de Sociologia da Universidade de Bruxelas. A revista liberal
britânica informou sobre o golpe contra a monarquia e a instauração da
República no Brasil com quase um mês de atraso, mas como no caso do Estadão, a
qualidade das matérias sempre superou amplamente o timing de sua veiculação.
Ao fim e ao cabo, nesta
seleção necessariamente limitada de leituras sobre os problemas brasileiros, eu
gostaria de insistir quanto à necessidade de se reler as obras dos grandes
brasilianistas dos anos 1960 e 70, estudiosos como Skidmore e Baer, já citados,
mas também Stanley Hilton, Joseph Love, Robert Levine, John W. F. Dulles e
muitos outros nos campos da história, da política, da antropologia, da
sociologia, ou mesmo da literatura e das
artes, muitos dos quais devidamente resenhados na obra que editei com Marshall
Eakin, O Brasil dos Brasilianistas
(São Paulo: Paz e Terra, 2001). Sobre os brasileiros, eles possuem a qualidade
de não serem animados pelas nossas paixões políticas, ainda que possam exibir,
tanto quanto nós, determinadas preferências ideológicas, o que é praticamente
impossível eludir nas ciências sociais
Por último, mas deveria
vir primeiro, quem quiser conhecer o que se produziu no Brasil, em matéria
intelectual, em todas as épocas, não pode dispensar uma leitura completa dos
muitos volumes da História da
Inteligência Brasileira, do critico literário Wilson Martins, um desses
gigantes da síntese historiográfica que fazem falta tanto no cenário acadêmico
quanto na divulgação grande público de qualidade: nesse seus volumes
cronologicamente organizados figuram praticamente todos os grandes autores da
nacionalidade, literatos e cientistas sociais, escritores e filósofos, poetas e
homens públicos que pensaram o país e seus problemas.
Estes são alguns dos
livros (e veículos da imprensa) com os quais convivi, dos quais me alimentei,
nos quais fui buscar fontes de reflexão e de inspiração para os meus próprios
trabalhos, ao longo de uma vida inteira dedicada aos livros, a todos os livros,
às leituras, mesmo altamente erráticas, até mesmo dispersivas, a partir dos
quais eu desenvolvi a minha própria arte da “escrevinhação”, uma atividade
totalmente livre, puramente intelectual (ou
seja, sem qualquer objetivo social ou material), sem qualquer
compromisso com editores ou até mesmo com o público. Cervantes, logo ao início
da maior obra da inteligência humana até hoje elaborada, arriscou dizer que o
cérebro do seu herói, de tanto ler livros de cavalaria, secou de tal maneira
que ele veio a perder o juízo. Ainda não me ocorreu tal fatalidade, mas
tampouco pretendo sair enfrentando gigantes e vilões pelas estradas da vida.
Contento-me com a minha biblioteca e com todas as demais que se me cruzarem
pelo caminho...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 31 de maio de 2016
Livros Paulo Roberto de Almeida:
Livros próprios:
Livros editados:
Colaboração em obras coletivas:
Teses e dissertações:
Outros livros: