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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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quarta-feira, 1 de junho de 2022

O Paradoxo do Merito - Fernando Schüler

 Estudo a fundo, trabalho intenso, aproveitamento das oportunidades, focar a utilidade da cada ação que se empreende, reconhecer talentos alheios, incorporar as boas ideias disponíveis e agradecer a todos que lhe ajudam na caminhada; acredito que pode ser uma boa fórmula para o sucesso.

Paulo Roberto de Almeida 

O Paradoxo do Merito

Fernando Schüler

Dias atrás li uma entrevista de Michael Sandel, filósofo de Harvard, sugerindo que Messi e Cristiano Ronaldo deveriam estar em “dívida”, em vez de celebrar seu sucesso como resultado de algum tipo de mérito pessoal. Sandel escreveu um best-seller, A Tirania do Mérito, atacando o que chama de “retórica da ascensão”. Critica Bill Gates por associar a ideia de “ganhar mais” com “estudar mais” e coisas do tipo. Sugere substituir a competição por vagas nas universidades, a partir do conhecimento de cada um, por sorteios. Seria uma forma de mostrar a força do acaso, e não de coisas como o preparo e o estudo, na vida das pessoas. Sempre admirei Sandel. Até trabalhamos juntos, em algum momento, mas suspeito que exista alguma coisa mal colocada em seu argumento.

“A ideia meritocrática fez o mundo moderno”, diz Adrian Wooldridge, editor da The Economist e autor do belíssimo livro The Aristocracy of Talent. A obra mostra como a ideia das “carreiras abertas ao talento” desempenhou um papel-chave na ruptura com as velhas estruturas da Europa aristocrática, em que o sucesso dependia essencialmente do nascimento e do pertencimento social. A noção de que qualquer um poderia ocupar a posição que quisesse, “sem outra distinção que não suas virtudes e talentos”, estava lá, inscrita na Declaração dos Direitos Humanos, da Revolução Francesa. Essa foi uma ideia central na grande tradição iluminista. Ela esteve na base da gradativa universalização do acesso à educação, no mundo moderno, e serviu de pavimento para a enorme transformação econômica, na era industrial, assim como para a lenta afirmação de nossas democracias.

O radicalismo antimeritocrático atual se organiza sobre uma espécie de falácia do espantalho, que consiste em “denunciar a ideia fraudulenta de que vivemos em sociedades meritocráticas”. O truque é fazer acreditar que de fato alguém defenda a ideia esdrúxula de que, em uma economia de mercado, o sucesso é definido pelo mérito pessoal. Isso é uma bobagem. Não há uma régua para definir ou medir o que significa mérito individual. O mercado remunera o valor, não o mérito. As pessoas compram celulares da Apple não por reconhecer o talento de Steve Jobs, mas pela boa relação custo-benefício de seus produtos. No mais, é perfeitamente plausível que alguém faça sucesso, ou fique milionário, simplesmente por um lance de sorte. O sujeito pode ganhar na loteria, por exemplo, ou herdar 1 milhão de dólares de uma tia distante. Simplesmente não há como separar o que é resultado do esforço ou do acaso.

Isso não significa que o esforço, a disciplina e a capacidade de renúncia não sejam decisivos para o sucesso. Reside aí o paradoxo do mérito. Tyler Cowen e Daniel Gross observam que nos EUA, de 1980 a 2000, o grau de escolaridade explicava 75% da desigualdade de salários; nas últimas duas décadas, esse porcentual caiu para 38%. As diferenças de ganhos surgem majoritariamente dentro dos grupos de mesmo padrão educacional. O que vai fazendo a diferença são precisamente aspectos ligados ao mérito e ao talento. A capacidade de alguém apresentar uma performance superior, pela capacidade de inovar ou de trabalhar duro, mesmo competindo com pessoas com a mesma base educacional. Há algo associado ao fator humano, à “capacidade de perseverar em objetivos de longo prazo”, como define a psicóloga Angela Duckworth, fazendo a diferença na vida das pessoas. E é simplesmente um erro fazer de conta que essas coisas não existem, quem sabe para não destoar da multidão barulhenta.

O desafio é cultivar uma visão inclusiva do mérito. Em vez de renunciar ao princípio das “carreiras abertas ao talento”, crucial na formação moderna, deveríamos andar para a frente. Assegurar que cada um tenha direito a uma base de oportunidades iguais. A igualdade pura e simples de oportunidades não passa de uma miragem. Seria preciso separar os filhos das famílias, impor a todos a mesma educação e, por fim, equalizar a sorte e o azar. O segredo é focar no que Harry Frankfurt chamou de “suficiente”. Isso pode significar muitas coisas, mas todos concordariam com o pacote básico, que inclui uma sociedade aberta, feita de direitos iguais e uma boa educação. Educação que realmente faça a diferença, colocando alunos de menor renda nas mesmas escolas, ou ao menos em escolas similares, onde estudam os alunos de maior renda. Curiosamente, o que nossa elite atrasada não quer nem ouvir falar.

Assegurado o básico, são as escolhas de cada um que devem fazer a diferença. Na prática, a famosa frase de Obama: “Se você tentar, você pode conseguir”. Meu amigo Sandel achou a frase um insulto. Acha que ela é ofensiva para os que não conseguiram chegar lá. Fico com Obama. Se alguém falhou (e quem nunca?), deve ter a chance de aprender e voltar ao jogo. Essa ideia contém um claro sentido ético: desejamos não apenas ter sucesso, mas saber que somos autores do caminho pelo qual trilhamos. E talvez seja por aí que se mova uma boa sociedade. Aquela que não trate as pessoas como “vítimas das circunstâncias”, como diz Wooldridge.

Para uma visão inclusiva do mérito, sugiro prestar atenção à hipótese de Howard Gardner, psicólogo de Harvard, de que a inteligência humana é múltipla. Ele identificou nove grandes campos, que vão da inteligência lógico-matemática à inteligência interpessoal. Neymar pode não se interessar muito por filosofia, mas sua capacidade corporal-cinestésica é constrangedoramente melhor que a minha. A tese de Gardner recupera a velha ideia iluminista de que todos somos capazes. E que é preciso acreditar um pouco mais nas pessoas. Apostar que, recebendo a chance devida, as pessoas saberão voar muito mais alto do que nossos preconceitos permitem imaginar.

É o que diz Ken Robinson, o grande educador inglês. Ele conta a história de uma “menina-problema” na Inglaterra elitista dos anos 1930. Uma daquelas alunas dispersivas, que não param no lugar e terminam por irritar os mais pacientes professores. A guria ia ser mandada para uma escola de “alunos-problema”, mas sua mãe pediu uma última chance. Foi a um psicólogo, que a deixou por algum tempo sozinha, em uma sala, com uma música ao fundo. Minutos depois, a menina dançava pela sala. O psicólogo chamou a mãe dela e, quando ambos observavam aquela cena, vaticinou: sua filha não é um problema, é uma bailarina.

Essa história sempre mexeu comigo. Qualquer um de nós poderia ser aquela menina. O que ela recebeu não foi muito. Foi uma chance básica de fazer a diferença no mundo. Seu nome era Gillian Lynne. Ela se tornou uma estrela do Royal Ballet, mas essa é apenas a sua história. A vida é feita de infinitas histórias. Todas elas nos dizem para acreditar nas pessoas e no melhor que cada um pode ser. Isso está lá, no coração do projeto moderno, e diz respeito a valores dos quais não deveríamos abrir mão.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Mafias sindicais sao contra o merito - Gustavo Franco

Perdendo no mérito

O Globo, 29/09/2013
Gustavo Franco
Resistência de sindicatos a aceitar a metas de desempenho prejudica produtividade
Parece haver algo de muito suspeito no reino das políticas públicas quando o talento, o das empresas e também o das pessoas, deixa de ser reconhecido e recompensado. A mensagem típica nas medalhas concedidas a estudantes e esportistas, “honra ao mérito”, vem caindo em desuso com enorme velocidade, e dando lugar a uma nova cultura que estramente utiliza os dogmas da inclusão e da igualdade em detrimento de qualquer distinção pelo mérito; premiações e bonificações têm sido crescentemente tratadas como formas neoliberais de discriminação.
Tudo se passa como se a velha cultura do privilégio tivesse absorvido o “politicamente correto”, com temperos de populismo, e criado uma “neoideologia” cujo princípio fundador seria o seguinte: como todos os homens e mulheres são iguais, qualquer diferença de desempenho escolar ou profissional configura a presença de “desigualdade” prévia ao exame que caberia ao Estado corrigir ou compensar.
O princípio será útil para os que precisarem explicar a seu filho adolescente que ele não vai entrar na universidade pública a despeito de uma boa nota do Enem, pois a regra das quotas é tal que seu lugar será de alguém com o desempenho escolar muito pior.
Ouvi uma definição precisa desta patologia outro dia, do professor José Pastore, a propósito da economia em geral e do mundo do trabalho, sua especialidade:
- O que está errado é o tratamento do mérito.
No caminho de nossa maior prioridade, o crescimento, há uma pedra, a produtividade, que permanece estagnada e nossos sindicatos não permitem que seus acordos coletivos incluam cláusulas prevendo remuneração proporcional ao desempenho. De onde pode vir o incentivo a fazer mais e melhor?
As bonificações têm sido um tema muito contencioso, por exemplo, nas negociações com sindicatos de professores, que resistem a esquemas remuneratórios que utilizem metas e avaliações. O noticiário sobre a greve dos professores do município do Rio de Janeiro registrou diversas faixas com dizeres como “abaixo a meritocracia”. A que ponto chegamos.
A qualidade da educação e o aumento da escolaridade são temas cruciais quando se trata de produtividade, e as métricas de desempenho escolar mostram índices ruins para o país em comparações internacionais e, dentro de casa, uma grande diversidade entre municípios. Os estudiosos dizem que não é necessariamente uma questão de mais gasto, mais salário, computador e biblioteca. Tudo isso ajuda, mas a experiência parece mostrar que elementos que cabem dentro do que se designa como “gestão”, e que resultam de transparência, responsabilização e engajamento, têm papel crucial na qualidade do ensino. Não há nada trivial nessa delicada equação de esforços, na qual se constrói o alinhamento de incentivos.
Em um painel recente, o professor Ricardo Paes de Barros lembrou que cada ano adicional de escolaridade representava um acréscimo de cerca de 10% na renda permanente de um indivíduo, um acréscimo que pode chegar a quatro vezes nos casos de conclusão de alguns cursos universitários. Mas demonstrou que essa “taxa de retorno” da educação vem caindo principalmente em decorrência da política agressiva de aumento real do salário mínimo. A curto prazo é bom, pois reduz a desigualdade ao menos enquanto a inflação não destrói aumentos nominais de salários acima do crescimento da produtividade. Mas o incentivo a estudar parece diminuir se as remunerações passam a depender da caneta presidencial e não tanto do preparo e competência do indivíduo, e este será o efeito mais importante num horizonte mais longo.
O governo interrompeu qualquer reforma que envolvesse mais mercado, concorrência e liberdade, e passou a desenvolver uma espécie de clientelismo empresarial
No terreno das empresas a ideia de meritocracia vai pior ainda. O Brasil ocupa a posição 130 de 185 países em termos de “ambiente de negócios”, segundo o Banco Mundial, e a posição 100 em 177 países em “liberdade econômica” segundo o “Wall Street Journal”. E tem estado assim nos últimos cinco ou dez anos sem nenhuma indicação de mudança.
A aversão ao empreendedor vem de longe. Referindo-se ao Segundo Império, o Visconde de Mauá dizia: “tudo gira, move-se, quieta-se, vive ou morre, no bafejo governamental”. Naquele capitalismo preguiçoso e patrimonialista não havia propriamente empresário, risco e empreendedorismo: as empresas eram emanações do Estado. Pior: o fracasso apenas poderia ocorrer por descuido governamental. O lucro era a justa consequência da regulação, e o prejuízo pertencia aos assuntos do governo, que devia sempre assumir a responsabilidade por indenizar os prejudicados pela omissão oficial em ajudar.
A atualidade do diagnóstico de Mauá, ainda que como caricatura, é perturbadora. O esforço para escapar dessa cultura, sobretudo durante a época das grandes reformas seguindo-se ao Plano Real, tinha como eixo básico mais meritocracia e menos privilégio, simples assim, e era subversivo à direita e à esquerda.
No presente momento, é bastante claro que vivemos um retrocesso. O governo interrompeu qualquer reforma que envolvesse mais mercado, concorrência e liberdade, e passou a desenvolver uma espécie de clientelismo empresarial pelo qual políticas e benesses seletivas se generalizaram, a mais importante das quais a proteção contra o demônio da concorrência.
O grande erro aqui talvez seja o de imaginar que todo empresário sempre procura o conforto de um monopólio, ou de uma regulação protetora, e ao oferecer essas coisas, o “capital” (que as autoridades acham que se reduz a meia dúzia de empresários “chapa branca”) estaria cooptado. Estaríamos a um passo de selecionar empresários por concurso público, com direito a estabilidade e benefícios.
É claro que esse governo não entende nada de capitalismo, ou quer inventar um novo e nem percebeu o tamanho das ambições empreendedoras que estão em todos os cantos do país. Suas relações com o capital têm sido tempestuosas, no mínimo, que o digam os milhões de empreendedores que estão suando a camisa nesse cipoal de impostos, fiscais e regulamentações. A mensagem, para esses, é que o campeonato não se decide no campo, na base da habilidade, jogo coletivo e pontos corridos, mas pelos cartolas em função de suas agendas. Basta ver como o governo trata os “times grandes”.