A Reconstrução do Itamaraty
Paulo Roberto de Almeida
O governo Bolsonaro, a partir das suas muitas promessas da campanha eleitoral, é certamente excepcional, mas não apenas pelo que deixou de fazer, e sim, sobretudo, pelo que desfez, pelo que destruiu, sem colocar absolutamente nada no lugar.
Lembram-se da privatização de UM TRILHÃO, do fechamento de estatais inúteis, da eliminação do déficit público, das reformas da Previdência, tributária, laboral, educacional, da diplomacia sem ideologia, do comércio exterior idem, da redução do Estado, da diminuição do número de ministérios, do mais Brasil e menos Brasília, da defesa intransigente da soberania, do real nacionalismo, do fim da velha política, de bandido na cadeia e segurança nas ruas, da luta contra a corrupção, da retomada do crescimento e do fim do desemprego, da atração de investimentos, da reconstrução do Mercosul, da abertura econômica e da liberalização comercial?
Tinha muitas outras coisas, mas são estas, das quais me lembro, que eram as mais perfeitamente visíveis e dadas como certas. Em menos de um ano...
Bem, nem quero convidar meus leitores, bolsonaristas — tem algum? — ou anti-bolsonaristas a empreender um balanço honesto do que se fez, e sobretudo do que NÃO se fez. Muito antes da pandemia interromper alguns sonhos impossíveis já se dava como certo que não apenas não haveria cumprimento de promessa, como uma reversão total em certas áreas.
Luta contra a corrupção?
Diminuição dos ministérios?
Fim da velha política?
Reforma tributária?
Privatizações?
Segurança?
Sabemos de uma, em especial, em que só teve destruição, pura e simples, e essa foi no meio ambiente, um ativismo absolutamente excepcional e arrasador: nunca antes em nossa história se desmatou, se queimou, se depredou com tanta volúpia e satisfação, mata virgem e reservas indígenas, sem discriminação; a ordem era passar a boiada.
Mas isso não foi tudo.
Em nenhuma outra área como na política externa e na diplomacia, a destruição se exerceu contra a própria política e contra a própria instituição, com um requinte de deixar qualquer huno corado de vergonha.
Praticamente todas as linhas mestras pelas quais se guiavam todas as políticas externas anteriores — e elas era múltiplas e diferentes —, todas as tradições da antiga diplomacia foram sistemática e deliberadamente postas de lado e substituídas por uma assemblagem insossa e bizarra de ideias exóticas, sem qualquer correspondência com o mundo real ou com os interesses nacionais brasileiros.
Política externa sem ideologia?
Acho que alguém se enganou de slogan.
Como se faz que as únicas viagens e visitas foram com líderes de direita ou de extrema-direita?
Defesa da independência nacional?
E esse “Trump, I love you”?
Soberania nacional? Mas por que o chanceler acidental viajou aos EUA para combinar com o Departamento de Estado os pontos do discurso de Bolsonaro na AGNU de 2019?
Não intervenção nos assuntos internos de outros países? E a Venezuela? E as eleições argentinas?
E esse antiglobalismo ridículo? O anticlimatismo canhestro? A oposição vergonhosa a qualquer direito da mulher nos foros pertinentes da ONU?
E a agenda extremista da Funag, que só convida representantes medíocres do olavismo extremado para falar sem qualquer competência de assuntos que ignoram, o que deve desesperar os preparadíssimos estudantes do Instituto Rio Branco?
A cessação de qualquer contato mais amplo com pesquisadores da área das relações internacionais revela outrossim um introversão ressentida e um enclausuramento auto aplicado jamais visto na história da Fundação.
A eliminação dos dois boletins diários de notícias — clippings da mídia nacional e da internacionais — sobre os temas cruciais de trabalho dos diplomatas representa um censura criminosa em detrimento da qualidade da informação, o alimento diário de todos os servidores do Serviço Exterior.
A intimidação exercida contra todos aqueles que ousam dissentir das orientações esdrúxulas, a maior parte delas ridículas, quando não vergonhosas, constitui o elemento mais grave do atual processo de destruição do Itamaraty, cujas principais diretrizes de políticas são feitas fora da Casa, por amadores ineptos. O chanceler acidental é, provavelmente, o último elo, inferior, na cadeia decisória, e o menos importante de todos.
O Itamaraty como principal centro de formulação e implementação de políticas deixou virtualmente de ser operacional: já se pensa inclusive em contratar assessores externos, um deles amigo da família Trump (por acaso).
Mais grave ainda: várias tomadas de posição da diplomacia bolsolavista em assuntos relevantes — voto sobre sanções unilaterais na ONU, “plano de paz” de Trump para a Palestina, eliminação de um general iraniano no Iraque, mudança da embaixada para Jerusalém, vários outros — JAMAIS fizeram menção aos elementos de Direito Internacional ou de resoluções do CSNU implícitos a esses assuntos e vieram apoiadas em mal traçadas “notas”, redigidas num Português tão canhestro e singularmente desprovido de conceitos próprios à diplomacia que só permitem supor que foram fabricadas fora da Casa, pelos mesmos ineptos que estão destruindo uma diplomacia outrora tida como de excelente qualidade.
Todos esses tristes aspectos da atual política externa e de sua antidiplomacia confirmam que o trabalho de reconstrução do anterior edifício diplomático de prestígio será duro e longo, haja vista a total perda de credibilidade da imagem do Brasil no exterior, e isso bem antes e independentemente da postura lamentável assumida pelo país — na verdade pelo chefe de Estado — na luta contra a pandemia, que se faz à margem de, e até contrariamente a qualquer esforço de coordenação multilateral, um anátema para os novos bárbaros que comandam o atual processo de destruição do Itamaraty e dos seus padrões consagrados de trabalho.
Esse trabalho de reconstrução já começou, inclusive com a participação de diplomatas da ativa, embora não possa ainda ser revelado em seus objetivos e extensão.
No momento oportuno, os ineptos que infelicitam a diplomacia profissional e rebaixam a credibilidade do Brasil no exterior serão afastados, e o trabalho de reconstrução da política externa será conduzido de maneira mais afirmada. As bases desse trabalho são conhecidas de todos, no Brasil e no mundo. Elas emergirão mais cedo do que se pensa.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 12 de julho de 2020