ONU registrou ação do País contra refugiados
Em cinco anos, o
regime militar expulsou, com ajuda do Itamaraty,
mais de mil argentinos, uruguaios e chilenos
No auge da
repressão no Cone Sul, o Itamaraty e
militares brasileiros devolveram opositores buscados pelos regimes nos países
vizinhos, rejeitaram dezenas de pedidos da ONU para dar asilo a famílias
ameaçadas e ainda forçaram a entidade a enviar esses refugiados para outros
países.
Em cinco anos, o
regime brasileiro expulsou mais de mil argentinos, uruguaios e chilenos, sempre
com cooperação da diplomacia nacional. As informações fazem parte de centenas
de telegramas, relatórios e cartas que estão guardadas nos arquivos da ONU em
Genebra e que o Estado consultou com exclusividade. Elas constituem uma
evidência de que a Operação Condor atuava, numa ação conjunta dos governos,
contra os grupos de esquerda.
No total, 3.300
latino-americanos chegaram ao Brasil entre 1977 e 1982 em busca de asilo
político, fugindo da perseguição em seus países. Mas o status de refugiado
seria dado a apenas 1.380 e todos, sem exceção, seriam transferidos pela ONU a
locais "seguros" a pedido do governo brasileiro. Quase 90% eram
argentinos ou uruguaios.
Em vários
telegramas trocados entre seus escritórios no Rio, em Buenos Aires e na sede,
em Genebra, o Alto Comissariado da ONU para Refugiados (Acnur) alerta para a
recusa do Itamaraty e do governo
brasileiro em aceitar que os opositores permanecessem no País. "O governo
continua a recusar dar asilo ou qualquer outro visto de residência permanente a
nossos refugiados no Brasil", queixava-se em 25 de junho de 1979 Rolf
Jenny, vice- representante regional do Acnur em Buenos Aires.
Pelo direito
internacional, devolver a ditaduras pessoas perseguidas é considerado crime
contra a humanidade. "O Brasil não aplica na prática a lei de asilo
nacional para a esquerda ou não europeus", informava a ONU. Segundo o
telegrama de 25 de junho, Jenny confirmava que a entidade operava em
"posição extraoficial" no País, por exigência do próprio regime
militar brasileiro e num acordo com o Itamaraty.
Além do sigilo em suas atividades, outra condição imposta pelo regime era que a
ONU "fizesse todo o possível" para dar destino aos refugiados -
retirá-los do Brasil.
Em troca, o
governo garantiria seis meses para esses refugiados permanecerem na condição de
"pessoas em trânsito". Mais do que isso, os documentos revelam que o Itamaraty alertava que não haveria
garantias de segurança. Para justificar sua recusa, o governo explicava à ONU
que o Brasil "não era mais um país de imigração e que uma integração de
refugiados era difícil". O argumento se repete em vários comunicados
internos e reuniões entre diplomatas brasileiros e missões da ONU que por anos
tentaram convencer o Brasil a mudar de posição.
Invasão. Já em
1984, num encontro entre a ONU e o então diretor do Departamento de Organismos
Internacionais do Itamaraty, Marcos
Azambuja, o diplomata voltaria a explicar que, diante da "circunstância
econômica do País, o aumento do desemprego e o alto número de pessoas já
ilegais no Brasil", o governo não considera adequado permitir estadia
definitiva de refugiados diante de uma possível invasão".
A ONU não comprou
o argumento -nem em 1984 nem na década de 1970. Para fazer desmoronar a
explicação dada pelo Itamaraty, a
entidade destacava como os portugueses que fugiam de Angola no processo de
descolonização eram aceitos como imigrantes no País. "Deve ser notado,
entretanto, que nos últimos anos dezenas de milhares de portugueses chegaram e
é difícil admitir que não haja a possibilidade para outras poucas centenas de
refugiados", alertaria a entidade em um telegrama de 1978.
Se nas salas do Itamaraty os diplomatas tentavam
apresentar suas posições, documentos da entidade revelam que, nos bastidores, o
Brasil ajudou de forma ativa na perseguição de refugiados de países vizinhos
até o fim da década de 1970 e chegou a fechar acordos para ajudar militares
argentinos a perseguir opositores ao regime de Buenos Aires que tivessem
cruzado a fronteira para o Brasil.
Num telegrama de
dia 28 de março de 1979, a ONU conta como dois refugiados argentinos alertaram
que haviam sido perseguidos no Brasil ao tentar pedir asilo. Um deles havia
reconhecido um dos agentes da inteligência argentina que os seguia. O
representante do regime de Buenos Aires era o mesmo que esse militante havia
encontrado meses antes numa prisão argentina.
"É óbvio que
nossa colônia de refugiados em trânsito no Brasil está mais do que preocupada
sobre os eventos", indicou a ONU. No mesmo telegrama, o Acnur relata como
foi buscar de forma emergencial a ajuda da embaixada da Holanda no Brasil para
aceitar dois argentinos, Horácio de la Paz e Laura de Carli, como refugiados em
Amsterdã. Mas o depoimento desses argentinos ia além. Segundo a ONU, eles
"foram informados de vários argentinos que foram sequestrados no Brasil e
devolvidos a seu país de origem".
Colaboração. Há
outro relato de um refugiado argentino colhido pela ONU, mais um sinal da
colaboração oferecida pelo Brasil aos militares argentinos. Jaime Ori, membro
do conselho superior do Movimento Peronista Montonero, relataria que foi
informado na prisão, ainda em seu país, sobre a "colaboração direta das
autoridades brasileiras no sequestro de argentinos refugiados em território
brasileiro". "Pude ver pastas com documentos e fotos facilitadas por
autoridades militares brasileiras aos militares do 2.º Corpo do Exército, em
Rosario", contou Ori à ONU.