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sábado, 28 de maio de 2022

Resenha do livro de J.A. Lindgren Alves: É preciso salvar os Direitos Humanos - Carla Vreche (Lua Nova)

Resenha de: LINDGREN-ALVES, José Augusto. 

É preciso salvar os direitos humanos. 

São Paulo: Perspectiva, 2018.

 


Carla Vreche[1]

Revista Lua Novanº 114 - 2022

https://boletimluanova.org/resenha-de-lindgren-alves-jose-augusto-e-preciso-salvar-os-direitos-humanos-sao-paulo-perspectiva-2018/


O atual cenário político internacional é bastante diverso daquele dos anos 1990 e início do século XXI, no qual os direitos humanos eram tidos como tema de importância global. Sem dúvidas, algo está mudando desde então. O ar político que paira sobre nossas vidas pesa com a desvalorização da “última utopia”, aquela que foi considerada a alternativa restante às utopias políticas do século XX (MOYN, 2010). Com discursos que contestam a relevância desses direitos, o crescimento da direita populista e a narrativa do “cidadão de bem” são marcas expressivas de nosso tempo. Intrinsecamente relacionados, esses eventos dão base ao apelo feito por José Augusto Lindgren Alves: É Preciso Salvar os Direitos Humanos! Diplomata de carreira, com extensa experiência em órgãos que tratam da matéria, Lindgren Alves tem fornecido importantes contribuições em suas reflexões e produções, que envolvem aspectos da sua vivência no sistema das Nações Unidas, onde ocupa cargo no Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial (CERD) desde 2002.

Registrada inicialmente em Direitos Humanos como Tema Global (2003) e aprofundada em Direitos Humanos na Pós-Modernidade (2013), o livro É preciso Salvar os Direitos Humanos (2018) reforça sua posição no debate entre universalistas e relativistas e dá tom à sua atitude deliberadamente crítica diante das ameaças à legitimidade dos direitos humanos. Nessa obra, Lindgren Alves aponta a necessidade de retomar a aspiração universalista dos direitos humanos e a urgência de se voltar à atenção para o avanço social, esquecida pelo que chama de “militância multicultural hegemônica”. Composto por uma coletânea de doze textos, escritos entre 1996 e 2016, o livro pode ser dividido em dois grandes blocos. No primeiro deles (capítulos 1 ao 7), estão presentes as ponderações críticas mais amplas ao relativismo cultural e seus efeitos no sistema internacional de direitos humanos. No segundo (capítulos 7 ao 12), são apresentados alguns casos que refletem sua preocupação, ou seja, o esmorecimento da matéria e suas consequências. O argumento central – a necessidade de reforçar a universalidade dos direitos humanos – perpassa todo o trabalho.

Do descrédito crescente que ameaça os direitos humanos, o autor identifica causas múltiplas. Desde a falta de comprometimento por parte de países democráticos e desenvolvidos, como mostra a “guerra ao terror”, até a especialização e crescimento do sistema de direitos humanos, sua crítica principal fica reservada à esquerda, que em nome do direito à diferença estaria causando prejuízos com base em um “modismo panfletário pós-moderno”. Para ele, a “esquerda progressista” errou ao se abrir ao “progressismo liberal pós-moderno” do relativismo, pois isso pouco contribui para a efetividade dos direitos, especialmente econômicos e sociais, mas não só. Deixando em segundo plano as consequências nefastas do neoliberalismo à condição dos sujeitos, a esquerda criou uma brecha que favoreceu o aumento da receptividade da opinião pública – decepcionada com a democracia e os direitos humanos, especialmente pela violência que a assola – à direita populista.

É a partir disso que Lindgren Alves traça sua extensa e forte crítica ao dito “politicamente correto”. Em sua visão, o discurso particularista do “culturalismo das minorias”, defendido pela esquerda e adotado por funcionários da ONU e membros de movimentos sociais e ONGs, favorece um grupo específico em detrimento da totalidade da igualdade propalada. Esse quadro seria o responsável por aumentar preconceitos existentes, enfraquecendo a ideia dos direitos humanos, e também daria base a fundamentalismos e segregacionismos agressivos. O “conformismo mercadológico” da diferença muda o foco de atenção e esconde as reais razões das violações. Para o autor, o discurso falsamente progressista serve a tendências racistas, ultranacionalistas e fascistas, representadas em muito pela direita populista. Universalista convicto, Lindgren Alves defende o respeito às diferenças, mas não o que chama de sua “sacralização”.

O desenvolvimento de mecanismos de controle e documentos internacionais para atender demandas específicas, sem que tenham como pano de fundo a ideia de que são criados para o fortalecimento de direitos universais, em sua opinião, também dá margem a excessos que repercutem no enfraquecimento de um sistema já debilitado. Dificultando a prática do trabalho dos órgãos existentes, esses novos dispositivos propalam deveres e exigem reforços financeiros que tanto os Estados quanto a ONU não possuem condições de sustentar. Através de exemplos de sua observação participante no CERD, Lindgren Alves mostra preocupação com a atenção dada a matérias que considera secundárias, como o que aponta ser a defesa essencialista das culturas, em detrimento de assuntos urgentes na ordem do dia, como terrorismo e refugiados.

Apontadas as principais questões que acredita envolver o atual enfraquecimento e fragmentação dos direitos humanos, o autor defende a realização de uma revisão geral de todo o sistema. Além do reiterado reforço da universalidade da Declaração Universal, destacada em Viena (1993), identifica a necessidade de unificação dos procedimentos de comunicações individuais; de uma observância rigorosa dos mandatos dos organismos; de moderação no uso de iniciativas extra-convencionais; e de aumento da independência dos peritos. Em suma, o sistema deve ser corrigido de modo a eliminar o que identifica como sendo os excessos do “politicamente correto” e suas posturas maximalistas, dando preferência à integração das culturas (e não assimilação) à universalidade dos direitos, ao invés da defesa aguerrida do “multiculturalismo” que o caracteriza no presente.

Assim, o debate engajado de Lindgren Alves produz uma reflexão oportuna ao nosso tempo, quando diariamente procuramos respostas para o avanço da direita populista, o enfraquecimento da esquerda e a desvalorização do discurso dos direitos humanos, tão marcadamente evidentes. E, apesar de alguns de seus exemplos carecerem de maior reflexão, especialmente aqueles ligados ao Brasil – como o da visão branda e positiva que possui da instalação de UPPs no Rio de Janeiro ou do uso dos “direitos humanos” em instrumentos de repressão – a contribuição do autor é importante para o debate entre universalismo relativismo dos direitos humanos, além de compor o conjunto das análises múltiplas e distintas sobre o momento em que vivemos. Sem ainda poder escolher aquela que seria a mais certeira, os textos de É preciso salvar os direitos humanos trazem uma resposta possível desde dentro, em uma reflexão crítica da ONU, da militância dos direitos humanos e também dos partidos de esquerda no processo.

A despeito do tom preocupado, por vezes, bastante cético, e explicitamente indignado, Lindgren Alves termina seu texto com uma esperança latente, apontando não apenas caminhos de recuperação, mas demonstrando experiências empíricas e casos em que a relevância da universalidade dos direitos humanos é evidente. O chamado que faz é substancialmente importante e busca trazer racionalidade à consciência política de uma luta cheia de paixões: como avançar em temas específicos quando não conseguimos ainda consolidar a garantia dos direitos básicos propalados pela Declaração? Entretanto para além da pertinência e importância específica desse texto, que esclarece aspectos do sistema desconhecidos e indica fontes e responsabilidades, chama atenção uma questão não respondida, que parece não ser considerada em sua proposta de revisão universalista. Tendo reconhecido a universalidade, mas também a existência das diferenças, como gerar integração sem assimilação?


Referências bibliográficas

LINDGREN-ALVES, José Augusto. Os direitos humanos como tema global. São Paulo: Perspectiva, 2003.

LINDGREN-ALVES, José Augusto. Direitos humanos na Pós-Modernidade. São Paulo: Perspectiva, 2013.

LINDGREN-ALVES, José Augusto. É preciso salvar os direitos humanosSão Paulo: Perspectiva, 2018.

MOYN, Samuel. The last utopia: human rights in history. Cambridge: Belknap Press of Harvard University Press, 2010.


[1] Doutoranda em Ciência Política pelo IFCH/Unicamp e membra do Conselho Editorial do Boletim Lua Nova. Bolsista FAPESP (nº 2018/16992-6). E-mail: carlavreche@gmail.com

 

segunda-feira, 25 de abril de 2022

Debate sobre livros em Petrópolis, 30/04, "Matrioska de Chita"(poemas), de Cassiana Cardoso, e Os Magadaes, de Luiz de Miranda (novela) - resenha PRA


Neste sábado, 30/04, às 19h30, um encontro literário em Petrópolis com dois autores de romances originais. Não conheço os haicais e outros poemas da Cassiana Lima Cardoso, mas tenho vontade de ler seu livro.

Conheço, e muito bem, Luiz Miranda, meu colega dos tempos da Bélgica, durante a ditadura militar, e o romance que ele fez é ambientado justamente na Bélgica, onde vivemos e convivemos naqueles anos 1970, de terrorismo, repressão e crises econômicas.

Fiz uma resenha de seu livro, que reproduzo abaixo.

3809. “O Balzac da ferrugem na terra dos belgicanos”, Brasília, 3 dezembro 2020, 5 p. Resenha do livro de Luiz de Miranda: Os Magadaes (Rio de Janeiro: Letra Capital, 2020, 120 p.; ISBN: 978-65-87594-19-4). Publicado no Estado da ArteO Estado de S. Paulo (19/12/2020; link: https://estadodaarte.estadao.com.br/magadaes-pra-ea/). Relação de Publicados n. 1478. 


O Balzac da ferrugem na terra dos belgicanos

  

Paulo Roberto de Almeida 

 


  Luiz de Miranda:

Os Magadaes 

(Rio de Janeiro: Letra Capital, 2020, 120 p.; ISBN: 978-65-87594-19-4; formato epub, 1 MB; ISBN: 978-65-990166-3-9)

 

Títulos podem ser crípticos, tanto o do livro quanto o desta resenha. Magadaes são personagens de um conto de Oscar Wilde, “A protected country”, que nascem velhos e se tornam jovens paulatinamente, morrendo quando se tornam crianças, como naquele filme americano Benjamin Button, mas este derivado de um conto de Scott Fitzgerald. Volto ao romance em seguida, assim que terminar de desvendar o título da resenha. O Balzac da ferrugem é o próprio autor do romance, Luiz de Miranda, com quem partilhamos anos felizes na Bélgica, em meados dos anos 1970, enquanto eu dava continuidade a meus estudos de ciências sociais na Universidade de Bruxelas, e ele, já formado, fazia uma tese de doutorado sobre a corrosão, daí a ferrugem, a inimiga mortal das estruturas metálicas e de seus guardiães. “Belgicanos” era como um técnico do Corinthians, Vicente Matheus, chamava os terríveis futebolistas da pequena Bélgica, gigantes selvagens no gramado, como deveriam ser as tribos daqueles dos quais eles descendiam em tempos pré-medievais.

Pois eu e Luiz de Miranda fomos contemporâneos na ULB, ele já com família – a doce e linda Leila, a quem é dedicado o livro, junto com Conrad Detrez, in memoriam, jornalista francófono –, eu leve, livre e solto, andando pela Europa em apoio às campanhas do Front Brésilien d’Information, naqueles anos de chumbo da ditadura militar no Brasil. Como eu era um pobre estudante sem dinheiro, almocei ou jantei várias vezes no apartamento de Luiz e Leila, pois ele tinha uma boa bolsa de doutoramento, e eu tinha de dar um duro lavando pratos, cortando grama ou posando na Académie des Beaux Arts para enfrentar as despesas do dia a dia. Como quase todos os universitários dessa época, em exílio da ditadura ou não, éramos contra o regime, e passávamos boa parte do tempo livre buscando informações sobre o Brasil, curtindo as músicas de Chico Buarque, e formulando hipóteses sobre o final da ditadura militar. 

Como refletido em diversas passagens do romance, eram os tempos da guerra do Vietnã, de tribunal Bertrand Russell sobre os crimes de guerra das tropas americanas, de protestos contra as ditaduras militares latino-americanas, primeiro a do Brasil, depois a do general Pinochet, no Chile e, logo em seguida, a dos militares argentinos, que foram os mais “eficientes” na eliminação dos adversários. Conrad Detrez tinha apoiado os movimentos de esquerda no Brasil e no Chile, e também nos ajudava na transposição para o francês dos textos contra as ditaduras no continente. Mas o que nos atraía, fora dos estudos, eram os passeios pela Bélgica, um pequeno país, que daria para atravessar de carro em pouco tempo, mas que também poderia ser conhecido de bicicleta, como aliás eu fiz, no “plat pays” com certa facilidade, mas com maior esforço nas montanhas das Ardenas, as densas florestas do sudeste da Bélgica que tinham assistido a uma das últimas grandes batalhas da frente ocidental na Segunda Guerra Mundial, quando a Wehrmacht tentou obstar o avanço das tropas americanas em território alemão.

Pois é justamente nas Ardenas belgas que é ambientada a maior parte desta obra de Luiz de Miranda, depois que dois curtos contos dão início ao pequeno livro de 120 páginas, cuja capa tem a reprodução de um curioso quadro do Baron Léon Fredéric, Le Ruisseau (1890), com original no Museu Real de Belas Artes de Bruxelas, que retrata centenas de Magadaes, infantis, nus, banhando-se nas águas frescas de um riacho. O primeiro conto, Genealogia, começa com a viagem da frota de Martim Afonso de Souza que, em 1530, resolve deixar um armeiro, Pero Gonçalves, nas praias da Bahia, a partir de quem começa uma família inacreditável dos mais diferentes personagem que povoaram, anonimamente, ou com certo destaque, as terras e a história do Brasil, passando pela colônia, independência, guerra do Paraguai, coluna Prestes, revolução de 1930 e outros episódios, até a morte do último descendente, 460 anos depois, um traficante do morro do Borel, morto nas mãos da polícia em 1991. O segundo conto, ainda mais curto, Dia da Preguiça, duas páginas e meia de considerações filosófico-religiosas, do tempo relativo de Einstein à reencarnação em pessoas de destaque na sociedade (nenhum mendigo), até terminar com um disco voador pousando displicentemente à beira da estrada. 

A história dos Magadaes, mesmo, começa com um “prefácio à guisa de explicação” no qual o autor tenta nos engabelar dizendo que a história parece fantástica, mas que “é, por incrível que pareça, verdadeira” (p. 19). Ele apela, todavia, para a complacência dos leitores, argumentando que o “artista” é “um eterno fingidor e incompetente contador de casos, porém entusiasta e relativamente honesto” (idem). A história que ele vai contar lhe foi relatada como sendo verdadeira pelo Dr. Dumont, antigo diretor do Asilo dos Lilases, situado em canto recuado das Ardenas belgas, e que abrigou durante várias estações, num tempo situado na primeira metade dos anos 1970, todos os velhinhos protagonistas desta história fantástica, que tenta provar a veracidade da fantástica lenda dos Magadaes (que no entanto nunca aparecem, sendo bem mais apenas uma alegoria). O último capítulo, “Bruxelas, 2016”, dois anos depois da morte do mesmo Dr. Dumont, já coloca o autor num mundo diferente daquele que ele havia frequentado em sua juventude de doutorando: a União Soviética desmoronou, a China da revolução cultural, capitalizou-se, o Vietnã vive em paz com os Estados Unidos e os países da Leste Europeu se incorporaram à União Europeia, que ele descreve como “capitalista, neoliberal, arrogante, direitista, rachada em países de extrema direita, racistas, ao ponto de negar um prato de comida aos refugiados sírios que marcharam mais de duzentos quilômetros, a pé, com seus velhos e coxos” (p. 117). Ao visitar novamente o Asilo dos Lilases constata que ele já tinha desaparecido, substituído por uma plantação de beterrabas. 

Vamos agora ao que interessa, o núcleo dessa história diferente, mas eu não vou desvendar toda a trama, para não impedir ninguém de deliciar-se em sua própria leitura, de um romance que combina bastante Balzac, com seu realismo descritivo, um pouco de Erico Veríssimo, um de nossos melhores escritores psicológicos, e talvez, quem sabe?, Cortazar, com certa tendência a descrever o fantástico com ares de normalidade. Tem tudo isso, numa escrita primorosa de bem cuidada, com palavras e expressões que revelam uma intimidade enorme com a boa literatura, e uma meticulosidade na expressão que deve ser derivada da postura profissional do autor, um “caçador de corrosões”, aqui na alma dos personagens. 

Desde o primeiro capítulo, estamos numa descrição minuciosa da encantadora mansão do Asilo, situado no vale do rio Semois, cuja linguagem é Balzac puro, com toda a graça que uma descrição retirada do Père Goriot, ou de várias outras novelas da Comédie Humaine, pode ser capaz de servir de fotografia em palavras para nos transmitir o charme vetusto daquela nobre construção do final do século XVIII. Vale transcrever o cenário dessa história, começando pela própria história do imóvel que veio a ser o Asilo: 

Antes de se tornar o que é hoje, a mansão conheceu em seus dias juvenis momentos bem mais felizes. Com efeito, Le Site aux-lilás era conhecido até em França, quando propriedade da família Poussin-de-Tassigny. De linhagem nobre, essa família organizava caçadas para as quais nobres franceses não hesitavam em aceitar o convite do marquês e, principalmente, da belíssima marquesa. Era um casal distinto e elegante, e o senhor marquês era tão exímio na caça ao javali quanto a marquesa o era na caça aos prazeres. 

Como todas as mansões nobres daquela época, o asilo ainda contém um pátio central retangular e perimetrado por colunas que sustentam graciosos arcos trabalhados. No centro do pátio, há uma estátua de Diana, a caçadora, sobre uma fonte de bronze, onde se lê com alguma dificuldade a data de 1782. A mansão possui cerca de dezoito dormitórios, três salões, duas cozinhas e as demais dependências usuais como banheiro, quartos para a criadagem, estábulo e até mesmo um pequena estufa onde Joseph, o jardineiro, apesar da idade, conhece as plantas por nomes por ele batizadas.

Site aux-Lilas foi comprado por uma quantia irrisória ao último descendente da família Poussin-de-Tassigny, o barão Emile Charles Louis Poussin-de-Tassigny, pela Sociedade de Montepios Esperança de Nova Vida. (pp. 21-22)

 

Junto com a descrição das peças habitadas por cada um dos residentes no asilo, o autor vai falando de cada um deles, com suas peculiaridades, e com uma decoração ou móveis eventualmente combinando com seus habitantes, como a grande biblioteca do Dr. Dumont, o médico que ficava tomando notas do comportamento de cada um de seus co-moradores. Havia o velho Homero, um revolucionário do entre guerras, cujo anti-imperialismo visceral se manifestava num projeto pouco secreto de aprender a língua dos vietnamitas para lutar contra os americanos nos campos de batalha do Vietnã. Havia a velha Nicole, que vai justamente ficar jovem ao final da história, e mais o “alquimista” Theo, cujo projeto mais relevante era o de produzir rosas azuis, e ainda o velho Jules, que tinha feito fortuna com diamantes extraídos da colônia do Congo Belga, na região do Alto Katanga (que nunca se entendeu com Homero, por razões obviamente ideológicas). Mais adiante na história, que não ouso revelar em sua integridade para não roubar essa satisfação aos leitores, se fala do velho Nestor, “antigo sacristão, até então completamente casto”, que será desviado de sua longeva virgindade pela devassa Nicole, cujos detalhes cabe pudicamente resguardar. Havia ainda, no asilo, outros velhinhos, “em adiantado estado de senilidade”, no número máximo de vinte pessoas, tal como limitado pela Sociedade Esperança de Nova Vida, mas que não participam do enredo e dos principais episódios relatados no cativante texto de Luiz de Miranda. 

O lado balzaquiano da história está presente em todas as descrições dos principais “atores” da história, dos insetos e animais da natureza ao redor do asilo, dos personagens que eventual entram e saem do relato. O lado “Erico Veríssimo” da escrita passa, em parte, pelo perfil psicológico dos personagens, suas motivações pessoais, a maneira pela qual cada um deles participa do enredo, pelas surpresas que se acumulam de um capítulo a outro, dezenove no total, ademais do último, que sai dos anos 1970 e termina em Bruxelas, em 2016. Mas, antes do capítulo XIX, que é o desfecho da toda a história dos residentes do asilo, figura em menos de duas páginas, um capítulo, não numerado, que remete a “Bruxelas 2012”, que é quando o autor volta à Bélgica e tem um último encontro com o Dr. Dumont, sua fonte principal para quase todos os episódios, já com 92 anos, numa casa alugada em Arlon. Sem revelar o desenlace da estranha história, que pende para o lado do escritor Julio Cortazar, e suas liberdades mágicas de novelista, vale transcrever algumas passagens sobre o depoimento do principal “arquivo vivo” sobre o outrora florido asilo dos lilases, deixando Luiz de Miranda de relatar o que teria sido o destino ulterior dos poucos sobreviventes rejuvenescidos por uma dessas diabruras de romancista: 

Estava [o Dr. Dumont] em péssimo estado físico, magro, calvo, com enorme dificuldade de ouvir e praticamente cego. Mas sua memória parecia estar absolutamente em forma. (...) E não foi, sem uma profunda emoção, que encontrei o Dr. Dumont sentado numa cadeira de rodas, portando óculos escuros. E o que ele me relatou foi deveras impressionante. (...) 

O Dr. Dumont pediu-me que me aproximasse mais de seus olhos para fitar-me com atenção. Creio que viu algo de bom, pois logo em seguida serviu-se de uma chávena de chá e ordenou que eu me sentasse à sua frente, com a condição de não tomar nota de nada. Apenas o escutasse. Fiz o que me pediu, à exceção do gravador de meu celular que registrou toda a conversa. Mesmo com a consciência um pouco pesada, não poderia fiar apenas na minha memória. (pp. 111-12)

 

E o que o Dr. Dumont relatou, durante todas as estações vibrantes do asilo nos distantes anos 1970, até seu incêndio trágico no desenlace da história? Isso está no capítulo XIX, que deixo aos leitores descobrir, depois da breve informação sobre os escombros do asilo e sobre o que adveio aos seus residentes sobreviventes, levados a uma espécie de Jardim das Maravilhas, ocupado por muitos Magadaes. Quanto ao Dr. Dumont, morreu “em profunda solidão, em novembro de 2014, dois anos após nosso derradeiro encontro” (p. 117).

A essa altura, o Asilo dos Lilases já tinha sido convertido em campo de beterrabas. Mas Luiz de Miranda sabe terminar sua história com todos os ingredientes balzaquianos e dos demais autores que imagina lhe tenham sido fontes de inspiração na confecção dessa bela e estranha história dos Magadaes. Eu o sigo, mas seletivamente: 

Estava prestes a chegar ao Asilo dos Lilases. Mas o que lá encontrei foi um campo de beterrabas, alinhado para a próxima colheita. (...)

Uma certa nostalgia invadiu minha alma, ainda mais do que podia imaginar... (...) [L]evantei-me e fui caminhando entre as paqueretes azuis e florzinhas brancas que foram ganhando rostos e dançando. Meu cérebro só percebia cores fantasmagóricas avermelhadas, raios azuis e sons inaudíveis. (...) Eu suava frio, coração em disparada e subitamente uma estranha calmaria jamais sentida invadiu meu ser e me deu uma paz interior jamais sentida. Entrei no carro e retornei a Bruxelas. (pp.. 118-19)

 

Deixo a história completa para ser saboreada pelos leitores curiosos, como foi por mim saboreada, levando-me novamente aos melhores anos de minha vida estudiosa, nos distantes anos 1970 em minha segunda pátria, o país de todos os meus diplomas superiores, a Bélgica de Bruxelas, do “plat pays” e das Ardenas. Vale ler Luiz de Miranda.

 

PS.: Na edição eletrônica deste livro, pode-se ouvir os dois trechos musicais inseridos no capítulo XIX – segunda parte da suíte de Ravel, “Daphnis et Chloé” – e no capítulo final, “Bruxelas 2016”, a suíte de Rimsky Korsakov, “A lenda da cidade invisível de Kitezh”. 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 3809, 3 de dezembro de 2020

 

sábado, 22 de janeiro de 2022

Avraham Milgram (Tito) responde aos equívocos e argumentos inaceitáveis da historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro sobre um tema histórico - Fabio Koifman e Rui Affonso

A Newsletter da Conib – Confederação Israelita do Brasil – publicou recentemente (11/01/2022) uma resenha crítica da historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro ao artigo dos historiadores Fabio Koifman e Rui Afonso, num livro publicado a propósito da controversa questão dos vistos concedidos no Consulado do Brasil em Hamburgo por uma funcionária, em 1939-41, que viria a casar-se com o escritor Guimarães Rosa, Aracy Moebius de Carvalho. 

Nessa resenha Tucci Carneiro tece críticas aos dois historiadores que um dos organizadores do livro, o historiador Avraham Milgram, achou tremendamente injustas, mas não apenas isto, totalmente equivocados e indignas de uma resenhista séria. Avraham Milgram tentou que a CONIB publicasse suas observações a essa resenha distorcida, o que a CONIB recusou fazer, para não "aumentar a polêmica", justificaram-se os editores. 

O texto original das críticas infundadas dessa historiadora figura neste URL: https://www.conib.org.br/historiadora-maria-luiza-tucci-carneiro-critica-polemica-sobre-serie-lancada-pela-tv-globo/ (cujo teor é transcrito ao final). Mas a CONIB não quis publicar a réplica do historiador israelense.

Em consequência Avraham Milgram resolveu divulgar suas respostas, que eu recebi, como abaixo. Em nome da honestidade intelectual, publico suas respostas ao artigo, uma vez que a Newsletter da CONIB, tendo feito o agravo, recusou-se a publicar estas respostas.

Paulo Roberto de Almeida


 Resposta à historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro na polêmica sobre a série lançada pela TV Globo, publicada no Newsletter da CONIB em 11 de janeiro de 2022. 

Sou Avraham Milgram, historiador aposentado do Yad Vashem que supostamente não deveria me envolver na "polêmica sobre a série lançada na TV Globo", principalmente por ser um evento que ocorre no Brasil, enquanto eu vivo em Israel. Porém, querendo ou não, me encontro envolvido visto que publicamos, Anat Falbel, Fábio Koifman e eu, o livro Judeus no Brasil história e historiografia – ensaios em homenagem a Nachman Falbel (Rio de Janeiro: Garamond 2021), que inclui o artigo dos historiadores Fábio Koifman e Rui Afonso "Os vistos concedidos no consulado de Hamburgo 1938-1939" pp. 123-156 


 Neste estudo, excepcionalmente documentado, os autores demonstram que todos os vistos outorgados a judeus perseguidos através daquele consulado foram concedidos legalmente de acordo as diretrizes do Itamaraty, pelos cônsul-geral Souza Ribeiro, indubitavelmente antissemita, e pelo vice-cônsul, o prestigiado escritor João Guimarães Rosa que viria a casar com Aracy Moebius de Carvalho, funcionária e secretária do consulado. Um destes vistos concedido a Margarethe Levy, que testemunharia a favor de Aracy no dossiê do Yad Vashem, tinha seu passaporte carimbado com o "J" vermelho, detalhe importante, vejam p. 129, nota 13 e p. 135 do referido artigo. A documentação analisada pelos historiadores, mostra que os procedimentos legais que permitiram a saída de Margarethe Levy, bem como a de outros testemunhos era no entanto desconhecida pela comissão jurídica que reconheceu Aracy como Justa das Nações no início dos anos 1980. Não se trata de inculpar a dita comissão pelo desconhecimento do que hoje nos é revelado pelo artigo documentado em base ao arquivo do Itamaraty, que efetivamente, não se limita a homenagem concedida à Aracy de Carvalho. Diria até que este último é um mero detalhe, importante para a memória e menos para a história. O principal, para aqueles poucos que acompanham esta polêmica, se refere aos procedimentos do Itamaraty, ou seja, a implementação dos vários decretos leis e o emaranhado de diretrizes, ordens, circulares, telegramas que envolviam os cônsules no exterior e não apenas no consulado em Hamburgo no final da década de 1930. Esta complexidade foi destrinchada em grande parte, senão na sua totalidade, no artigo dos dois historiadores o brasileiro Koifman e o português Rui Afonso. Todavia, há questões não resolvidas, que provavelmente jamais serão. Por exemplo, quais foram os motivos que levaram beneficiários de vistos brasileiros legais outorgados em Hamburgo a solicitar o reconhecimento da Aracy de Carvalho como Justa das Nações? Estas e outras questões de teor histórico constituem o trabalho dos historiadores. Saber, conhecer, enriquecer o conhecimento, compreender o comportamento humano, desmistificar crenças e buscar a verdade são a raison d'être de cientistas sociais. É isto que aprenderam nas universidades: questionar, inquirir, escavar arquivos, ler toneladas de papéis velhos, num diálogo constante com o passado para decifrar o presente. Aqui chegamos ao âmago da questão, o confronto e desafio da história vis-à-vis da memória. 

Considerando o estudo publicado de Fábio Koifman e Rui Afonso por um lado e minha expertise sobre o Holocausto por outro, faço os seguintes comentários à crítica da historiadora Tucci Carneiro: 


1. "na mesma ocasião em que foi homenageado o embaixador brasileiro Luiz Martins de Souza Dantas. Ambos, Souza Dantas e Aracy, têm em comum o fato de 2 transgredirem as normas antissemitas das Circulares Secretas impostas pelo governo Vargas a partir de 1937". 


Resposta: Aracy foi homenageada em 1982 e Souza Dantas em 2003, mas o que deve ser salientado é que este último sim transgrediu as normas do Itamaraty a ponto do embaixador ter sido repreendido e enfrentado um processo administrativo, enquanto Aracy nem foi repreendida, e não porque ela agiu na surdina, mas porque efetivamente não houve transgressão da sua parte no que diz respeito às diretrizes que restringiam a concessão de vistos a "semitas". 


2. "Questionar “o heroísmo” de Aracy de Carvalho e a “verossimilhança da narrativa” com a realidade dos fatos, como foi feito em algumas das críticas, pode ainda abrir caminho para o discurso que nega o Holocausto"


Resposta: O trabalho de investigação dos historiadores não tem absolutamente nenhuma relação com a negação do Holocausto, pois a sua pesquisa está inserida na história do Nazismo e da perseguição aos judeus, da política de teor antissemita de restrição a sua entrada no Brasil, e na análise dos procedimentos de concessão de vistos do consulado brasileiro em Hamburgo. Onde exatamente se encontra a má fé e o antissemitismo que motivaria os negadores do holocausto? Seria o caso de verificar no google o que significa negação do Holocausto. Me admira a falta de compreensão de algo tão simples e evidente, além de constituir uma acusação difamatória contra os historiadores Fábio Koifman autor do livro sobre o embaixador Luís de Souza Dantas e Rui Afonso, autor de obras sobre o Justo português, o cônsul Aristides de Sousa Mendes (Um homem bom e Injustiça). 


3. "A historiografia brasileira tem comprovado com base em documentos pesquisados junto ao Arquivo Histórico do Itamaraty que, ao facilitarem os vistos de imigração aos judeus perseguidos pelos nazistas, os diplomatas e funcionários brasileiros em missão no exterior corriam risco de vida, de prisão e, até mesmo, de perderem seus cargos sob pena de sofrerem um processo administrativo como ocorreu com Souza Dantas"


Resposta: Absolutamente errado. Nenhum diplomata brasileiro correu perigo, seja porque usufruíam de imunidade diplomática, seja por conta da Judenpolitik da Alemanha Nazista que visava escorraçar os judeus do território alemão. Nenhum diplomata estrangeiro correu perigo por auxiliar os judeus perseguidos. O cônsul chinês em Viena, Feng Shan Ho, concedeu centenas de vistos para judeus que lhes possibilitaram entrar em Shanghai ao mesmo tempo em que Eichmann se empenhava dia e noite para expulsá-los da Áustria. Eichmann certamente ficou feliz com o procedimento do cônsul chinês, bem como do cônsul-geral dos EUA, John Wiley, que ao testemunhar a brusca e violenta perseguição contra os judeus nas ruas de Viena buscou explorar ao máximo as possibilidades de ajuda humanitária aos requerentes de vistos, empenhando-se em agilizar e facilitar o processo de aprovação desses vistos sem infringir as normas estabelecidas pelo State Department. Algum deles sofreu por isto? Nenhum, com exceção do cônsul português Aristides de Sousa Mendes e o embaixador brasileiro Luís de Souza Dantas, porém não pelos nazistas, foram justiçados por Oliveira Salazar e Getúlio Vargas. 


4. "E, se até o presente momento, conhecemos apenas alguns nomes daqueles que conseguiram os “vistos de salvação” com a ajuda de Aracy, é pelo fato dela não ter autorização para assinar os documentos diplomáticos por ser funcionária da sessão de passaportes do Consulado Geral do Brasil em Hamburgo". 


Resposta: É claro que Aracy não estava autorizada a assinar passaportes, visto que era secretária. No entanto, com os resultados da pesquisa de Koifman e Afonso, conhecemos um número grande de nomes, as circunstâncias e o modus operandi da concessão de vistos brasileiros, todos legais, (vejam pp. 154-156), procedimentos que Aracy não esteve envolvida. 


5. "Aracy, além dos vistos, conseguia forjar passaportes sem o “J” vermelho que, se mantidos, denunciariam a identidade judaica do seu portador às autoridades consulares e nazistas"


Resposta: Absolutamente errado. Mesmo aqueles judeus que testemunharam alegando que Aracy "forjava passaportes sem o 'J' vermelho", entraram no Brasil com o 'J' vermelho nos seus passaportes, inclusive aqueles poucos que solicitaram seu reconhecimento no Yad Vashem. Aracy forjava passaportes sem o 'J' vermelho? Efetivamente, nas toneladas de livros de história sobre o Holocausto jamais foi mencionado ou reconhecido algo do gênero. E os nomes "Sara" e "Israel" apostos nos passaportes com o mesmo objetivo de identificar a origem judaica dos seus portadores? Pergunto, Aracy também fazia-os desaparecer dos passaportes dos judeus? Se assim fosse, seria porque haviam filo-semitas, corruptos ou antinazistas no ministério do Interior do 3o. Reich...! Nem um e nem outro. Não tenho outro termo para definir este argumento senão fake news


6. "No entanto, se contabilizarmos as assinaturas do cônsul Guimarães Rosa nas Fichas Consulares de Imigração emitidas entre 1938 e 1942, certamente teremos uma dimensão aproximada dos judeus salvos pelo casal. Algumas destas fichas estão disponíveis na Base de Dados Arqshoah: www.arqshoah.com." 


Resposta: O fato das assinaturas de Guimarães Rosa constarem nos passaportes não atesta que estes vistos foram outorgados ilegalmente contra as diretrizes do Itamaraty, para um melhor entendimento, é necessário ler o artigo dos dois historiadores acima mencionado. 


7. "Pergunto: os críticos negam (ou desconhecem?) a veracidade dos testemunhos sob a guarda do Yad Vashem, assim como as gravações realizadas pelo projeto coordenado por Steven Spielberg junto a Shoah Foundation, as pesquisas da historiadora Mônica Raisa Schpun (autora do livro “Justa”) e as entrevistas gravadas pela equipe Arqshoah/Leer-USP?" 


Resposta: Muito pelo contrário. Os historiadores não só não negam os testemunhos como estes últimos corroboram e comprovam o que Koifman e Afonso alegam sobre a legalidade dos vistos concedidos aos autores dos testemunhos. Por exemplo, na p. 135 (idem nas pp. 146-147): "Não por acaso, no depoimento de Margarethe Levy, que se encontra no dossiê do Yad Vashem, ela mencionou o depósito que o casal realizou em troca da concessão de um visto, como também a transferência de valores de outros judeus alemães que obtiveram visto naquela oportunidade, exatamente os que o cônsul informou e solicitou instruções ao MRE. Mais do que isso, Souza Ribeiro ainda anotou nos passaportes do casal Levy, conforme as ordens que recebeu: Temporário—Visado conforme o que dispõe o artigo 280 do decreto no. 3.010, de 10 de agosto de 1938. Temporário para ser regularizado no Brasil. Foi efetuado o depósito de 98:860$000 (noventa e oito contos, oitocentos e sessenta mil reis) no Banco do Brasil em S. Paulo, dinheiro proveniente do Estrangeiro, conforme carta de 26-9-1938 desse Banco, arquivado neste Consulado Geral. (Ass.) S. Ribeiro"

Quem não conhece e nega os conteúdos dos testemunhos do dossiê do Yad Vashem é Tucci Carneiro. Mas nunca é tarde para conhecer e estudar este dossiê, assim como a documentação do Itamaraty! E não seria demasiado a Tucci Carneiro ler (e aprender) com o artigo mencionado, nem que fosse para tomar conhecimento da seriedade, profundidade e densidade documental que há nele, e jamais julgar às cegas. 


8. "Ressalto aqui o valor pedagógico da série Passaporte para a Liberdade que, certamente, serve de alerta para os perigos do antissemitismo assumido como política do Estado alemão entre 1933-1945, e reforça a importância da solidariedade em tempos sombrios." 


Resposta: Este é um ponto a favor de Tucci Carneiro que ela soube pontuar. Como ultimamente a Globo afirmou, se trata de uma série de ficção, e neste contexto, como Tucci Carneiro, eu também estimo o valor educativo da minissérie televisiva para informação e formação ética e civil das gerações de hoje e futuras. O que incomoda a autora da crítica à crítica é a desmistificação da concessão ilegal de vistos referida à Aracy, que enfraquece o teor historiográfico - ideológico e denunciativo - de Tucci Carneiro que etiquetou a predominância absoluta do antissemitismo nas elites políticas do Estado Novo. Todavia, se o leitor quiser compreender como foi possível a presença do discurso oficial sigiloso antissemita (ideologia) no milieu do Itamaraty e consulados no exterior, paralelamente a predominância de muitas ambiguidades e da permissividade relativa na concessão de vistos (práxis), o artigo de Fabio Koifman e Rui Afonso é um prato cheio. Exemplo de historiografia inteligente e honesta. 


Avraham Milgram 


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Historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro critica polêmica sobre série lançada pela TV Globo

A recente polêmica sobre a série Passaporte para Liberdade, lançada pela TV Globo em 20 de dezembro de 2021, coloca em dúvida as ações salvacionistas de Aracy Moëbius de Carvalho reconhecida como “Justa entre as Nações”. Este título lhe foi concedido pelo Yad Vashem em Jerusalém, em 8 de julho de 1982, na mesma ocasião em que foi homenageado o embaixador brasileiro Luiz Martins de Souza Dantas. Ambos, Souza Dantas e Aracy, têm em comum o fato de transgredirem as normas antissemitas das Circulares Secretas impostas pelo governo Vargas a partir de 1937.
Questionar “o heroísmo” de Aracy de Carvalho e a “verossimilhança da narrativa” com a realidade dos fatos, como foi feito em algumas das críticas, pode ainda abrir caminho para o discurso que nega o Holocausto.
A historiografia brasileira tem comprovado com base em documentos pesquisados junto ao Arquivo Histórico do Itamaraty que, ao facilitarem os vistos de imigração aos judeus perseguidos pelos nazistas, os diplomatas e funcionários brasileiros em missão no exterior corriam risco de vida, de prisão e, até mesmo, de perderem seus cargos sob pena de sofrerem um processo administrativo como ocorreu com Souza Dantas. E, se até o presente momento, conhecemos apenas alguns nomes daqueles que conseguiram os “vistos de salvação” com a ajuda de Aracy, é pelo fato dela não ter autorização para assinar os documentos diplomáticos por ser funcionária da sessão de passaportes do Consulado Geral do Brasil em Hamburgo. Na documentação do Arquivo Histórico do Itamaraty no Rio de Janeiro, não há indícios do envolvimento direto de Guimarães Rosa com as ações salvacionistas de Aracy, pois certamente, os devidos cuidados foram tomados pelo casal, tendo em vista as restrições impostas pelo Itamaraty. Aracy, além dos vistos, conseguia forjar passaportes sem o “J” vermelho que, se mantidos, denunciariam a identidade judaica do seu portador às autoridades consulares e nazistas.
No entanto, se contabilizarmos as assinaturas do cônsul Guimarães Rosa nas Fichas Consulares de Imigração emitidas entre 1938 e 1942, certamente teremos uma dimensão aproximada dos judeus salvos pelo casal. Algumas destas fichas estão disponíveis na Base de Dados Arqshoah: www.arqshoah.com. Aliás, este é o contexto histórico que dá sustentação à construção da narrativa   da série Passaporte para Liberdade criada por Mario Teixeira com a colaboração da inglesa Rachel Anthony e a direção de Jayme Monjardim.
Ainda que baseada em fatos reais registrados pelo Yad Vashem, uma novela ou filme tem a permissão de adentrar ao campo da ficção, desde que não abra caminhos para o negacionismo e não fragilize o valor dos testemunhos dos sobreviventes do Holocausto.  Sabemos que a narrativa da série Passaporte para Liberdade baseou-se nos testemunhos registrados no Yad Vashem e em documentos pesquisados no acervo da família Tess para reconstituir a história de Aracy e de Guimarães Rosa em Hamburgo, Além destes registros, recorreram também à assessoria de historiadores e sobreviventes do Holocausto com o objetivo de evitar a distorção dos fatos e favorecer os discursos negacionistas que atentam contra a veracidade do Holocausto.
Ao colocarem em dúvida as ações salvacionistas de Aracy (tratadas como “mito” por falta de comprovação), extrapola-se o campo da crítica historiográfica, investindo contra o valor dos testemunhos daqueles que foram salvos graças aos vistos concedidos (e assinados) por Guimarães Rosa durante o período em que ele esteve à frente do Consulado Brasileiro de Hamburgo: 1938-1942. Pergunto: os críticos negam (ou desconhecem?)  a veracidade dos testemunhos sob a guarda do Yad Vashem, assim como as gravações realizadas pelo projeto coordenado por Steven Spielberg junto a Shoah Foundation, as pesquisas da historiadora Mônica Raisa Schpun (autora do livro “Justa”) e as entrevistas gravadas pela equipe Arqshoah/Leer-USP?
Como já escrevi, “os caminhos de liberdade abertos por Aracy e Guimarães Rosa garantiram a preservação da vida de milhares de cidadãos que, naquele momento, emergiam como vítimas da ignorância nazista. Pelas trilhas dos excluídos transitaram grupos heterogêneos que, segundo a classificação totalitária, não eram dignos de continuar vivendo na sociedade alemã. As intermináveis filas de refugiados nos oferecem uma verdadeira tipologia da exclusão, delineada pelo emprego da violência, do terror, da pseudociência, da censura e da mentira, entre tantos outros artifícios totalitários.”
Ressalto aqui o valor pedagógico da série Passaporte para a Liberdade que, certamente, serve de alerta para os perigos do antissemitismo assumido como política do Estado alemão entre 1933-1945, e reforça a importância da solidariedade em tempos sombrios.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

Simon Schwartzmann sobre Edmar Bacha e Bolivar Lamounier

Sobre: Edmar Bacha, No país dos contrastes, Selo Real, 2021; 

Bolívar Lamounier, De onde, para onde, Global, 2018; Antes que me esqueça, Desconcertos, 2021 

Mineiros autênticos

Simon Schwartzmann

 O Estado de São Paulo, 10 de dezembro de 2021

Diferentes de mim, Bolívar Lamounier e Edmar Bacha, que acabam de publicar suas histórias[1], são mineiros de verdade.  Bolívar nasceu em Dores do Indaiá, e lembra com afeto as casas coloniais, as pescarias no rio e o isolamento que fazia da cidade parte do sertão mineiro. Edmar lembra da pequena Lambari do Sul de Minas, do sobrado em que morava, do sanduíche que comia no Bar do Juca e do apito do trem que chegava à cidade ao anoitecer.  

Foi em Dores, nos anos 20, que Francisco Campos fundou uma Escola Normal, uma das primeiras do país, onde a mãe se formou como professora rural e na qual matriculou o filho para estudar nas “classes anexas” em que a melhor pedagogia da época era adotada. O pai era um pequeno fazendeiro e comerciante, da família Lamounier de Itapecerica que incluía médicos, políticos e músicos. 

Lambari, em comparação, era uma cidade mais moderna, parte do “circuito das águas” que recebia os turistas das cidades grandes em seus hotéis e cassinos. Do lado da mãe, que era diretora da escola local, Edmar vem de uma família de origem portuguesa, os Lisboa, na qual o culto da literatura era personificado na tia Henriqueta. Os Bacha são de origem libanesa, que começaram a chegar ao Brasil no final do século 19 em busca de novas oportunidades. Ambas as famílias se mudaram para Belo Horizonte e, no início dos anos 60, Bolívar e Edmar se encontraram na Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, um no curso de sociologia e política, outro em economia.

Nenhum fazia parte da “tradicional família mineira” que controlava a política, as terras e os recursos do Estado. Nem da grande massa, incluindo antigos escravizados que, terminado o ciclo do ouro do século 18, ficou isolada nas pequenas aldeias e roças do interior, em uma economia que mal garantia a sobrevivência. Mas faziam parte de um grupo significativo de pessoas que, pelo empreendedorismo e sobretudo pela educação, buscavam participar do progresso que emanava do Rio de Janeiro e São Paulo e aos poucos, pelo rádio pelas estradas, ia chegando ao interior, atraindo os mais inquietos, ou mais necessitados, para as capitais. Eram, pode-se dizer com algum exagero, sucessores dos aventureiros que vieram para Minas em busca do ouro, participaram da Inconfidência, escreviam poesia e liam às escondidas os livros proibidos da imensa biblioteca do cônego de Mariana.

Estudar sociologia, política e economia era também sair da rota tradicional dos cursos de direito, medicina e engenharia, preferidos pelos filhos das famílias tradicionais. A Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, com seu programa de bolsas de estudo, criou entre os estudantes um ambiente efervescente em que novas ideias e estilos de vida eram experimentados, a militância política atraia a quase todos, e de onde tantos saíram para voos mais altos. Bolívar e Edmar, nos anos 60, foram entre os primeiros cientistas sociais brasileiros a partir para os modernos cursos de doutorado nos Estados Unidos – Universidade da Califórnia e Yale – rompendo com a tradição francesa que predominava na geração mais velha. 

De volta ao Brasil, nos anos 70, ajudaram a organizar novos cursos de pós-graduação que iriam formar as futuras gerações – o Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, por Bolívar, e o departamento de economia da Universidade de Brasília, por Edmar. Mais tarde Bolívar ajudou a organizar o CEBRAP, dirigido por Fernando Henrique Cardoso, e depois fundou o IDESP, outro instituto independente de pesquisas sociais em São Paulo. Edmar, depois de Brasília, foi um dos fundadores do curso de pós-graduação em economia da PUC do Rio de Janeiro.

Mas foi na produção intelectual e na vida pública que ambos deram continuidade à inquietação mineira que traziam das origens. Bolívar, ainda estudante, participou dos movimentos estudantis, chegou a ser preso pela ditatura militar, e escreveu sua tese de doutorado criticando a tradição autoritária dos intelectuais brasileiros, à direita e à esquerda. Fez parte da Comissão Afonso Arinos, que na década de 80 procurou produzir, para o Brasil, uma Constituição moderna e fundada em princípios de justiça social e liberdade econômica, e em seus inúmeros livros e artigos, foi sempre um defensor da democracia parlamentarista. Edmar, que no início se aproximou dos economistas desenvolvimentistas como Celso Furtado, passou depois a dar prioridade aos temas da liberdade e abertura da economia e do Estado eficiente, como os melhores caminhos para sair do círculo vicioso do atraso, da desigualdade e da pobreza. Foi presidente do IBGE, de onde, nos anos 80, participou do frustrado Pano Cruzado, e finalmente, nos anos 90, foi um dos principais organizadores e mentores intelectuais do Plano Real. 

É um conforto ver que ambos continuam remando contra a corrente, escrevendo e falando na busca dos melhores caminhos para o Brasil moderno, que ainda acham viável, se livre das tentações populistas e reacionárias que mobilizam a tantos. Autênticos mineiros.


[1] Edmar Bacha, No país dos contrastes, Selo Real, 2021; Bolívar Lamounier, De onde, para onde, Global, 2018; Antes que me esqueça, Desconcertos, 2021

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

O diplomata e o soldado: Celso Lafer sobre a obra de Raymond Aron (Revista 451, 2019)

Um ensaio que eu não conhecia, e que escapou da coletânea de textos que organizei para o patrono das Relações Internacionais do Brasil (mas ela só foi até 2017), publicada em 2018: Celso Lafer, Relações internacionais, política externa e diplomacia brasileira: pensamento e ação (Brasília: Funag, 2018, 2 vols.).

Paulo Roberto de Almeida

Relações Internacionais

O diplomata e o soldado

Ex-chanceler brasileiro analisa a importância de Raymond Aron no campo das relações internacionais

Celso Lafer

Quatro Cinco Um, 01/04/2019


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O filósofo francês Raymond Aron em 1986 Erling Mandelmann/Gamma-Rapho
Aron, Raymond
Paz e guerra entre as nações 
Tradução de Sérgio Bath
WMF Martins Fontes • 980 pp • R$ 119,90

Raymond Aron (1905-83) foi um pensador de grande envergadura em muitos campos do conhecimento das ciências humanas. O seu ponto de partida foram as obras de cunho universitário que elaborou na década de 1930 dedicadas à filosofia da história, à analise em profundidade dos limites da objetividade histórica, e às condições da existência histórica. 

Como aconteceu com tantos pensadores europeus que foram seus contemporâneos, o turbilhão da Segunda Guerra Mundial alterou a sua vida.  No plano intelectual, levou-o a uma abrangente e interdisciplinar reflexão de “observador engajado” sobre as rupturas que caracterizaram o século 20. Empenhou-se em  esclarecer e explicar a dinâmica dos múltiplos setores da sociedade moderna — como por exemplo, as relações sociais, as relações de classe, os regimes políticos, as discussões ideológicas — valendo-se do seu aprofundado domínio da filosofia, da sociologia e da ciência política. Um dos campos a que se dedicou com maestria foi o da especificidade das relações interestatais. 

Paz e guerra entre as nações insere-se neste âmbito da sua dedicação às relações internacionais. Teve como estímulo o ineditismo da existência das armas nucleares. Foi o complemento reflexivo da sua atividade jornalística, na qual, a partir da segunda metade de 1940 até a sua morte, notabilizou-se como comentarista e editorialista regular de política internacional na grande imprensa francesa — tarefa que exerceu concomitantemente e sem prejuízo da sua atividade de grande professor universitário.

Paz e guerra foi redigido em 1960-1961 e publicado na França em 1962. A primeira edição brasileira data de 2002. Foi publicada na coleção clássicos do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI), sob os auspícios da Editora da Universidade de Brasília e da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.

A edição beneficia-se de uma qualificada apresentação de Antonio Paim e contém um prefácio do próprio Aron à tradução brasileira. Aron, cabe lembrar, teve presença em nosso país como assíduo colaborador de O Estado de S. Paulo

Esteve entre nós em duas ocasiões. A primeira em 1962, quando deu conferências em universidades brasileiras — dentre elas, uma na Faculdade de Direito da USP, à qual assisti. Nela, começou apontando a unidade do campo diplomático: “Pela primeira vez os homens vivem uma só e mesma história. A humanidade está unificada pelos seus conflitos, pela técnica e também por seus problemas”. A segunda foi em 1980, tendo Aron participado de um simpósio na Universidade de Brasília dedicado à sua obra (“Raymond Aron na UnB”), do qual participei, e proferindo conferências em São Paulo e no Rio de Janeiro.

Economia e futebol

A presente edição agrega à anterior um substancioso texto seu de 1983, que serviu como apresentação à 8ª edição francesa, assim como seu prefácio de 1966 à 4ª edição francesa. Paz e guerra entre as nações é um livro notável. 

Em contraste com tantos livros de teoria das relações internacionais, escritos e pensados sob a perspectiva da Guerra Fria e da rivalidade Estados Unidos/União Soviética e que se tornaram obsoletos já na década de 1990, com o término das polaridades definidas — Leste/Oeste e, nas suas brechas, a Norte/Sul —, a grande obra de Aron retém plena a atualidade.

As relações internacionais se desdobram sob a sombra da guerra, um camaleão científico-tecnológico 

Permanece como um mapa de conhecimento para o estudo e a avaliação das relações internacionais, graças aos instrumentos analíticos que oferece e elabora com rigor e qualidade. 

Aron argumenta que a singularidade do campo, que o diferencia de outras áreas das ciências sociais, é que ele está permeado pela situação limite paz/guerra; e que, no âmbito das relações interestatais, como ele diz recorrendo a Max Weber, existe a ausência  de uma instância que detenha o monopólio da violência legítima, em contraste com o que ocorre no plano interno dos Estados. Daí a importância que atribui a dois personagens qualificados como simbólicos: o diplomata e o soldado como os representantes por excelência  das coletividades estatais. 

Aron evidentemente não ignora  que a sociedade internacional é mais ampla do que a sociedade interestata, como aponta no livro e nos seus prefácios que integram a edição brasileira. Engloba o sistema econômico mundial e os fenômenos transnacionais que a influencia e impacta.

Isto não afasta, contudo, no entender de Aron, a singularidade sistêmica das relações interestatais, que não se amoldam à predominância causal da economia. É o que observa com a sua autoridade de marxólogo, que está aliás, em consonância com a análise de Bobbio sobre as insuficiências do marxismo para um abrangente trato das relações internacionais e da guerra. 

Na discussão dos níveis conceituais da compreensão do campo, Aron aponta que não cabe a analogia nem com a economia nem com o futebol. O tema unificador da primeira é o desafio da escassez, e o seu problema é a da escolha dos meios de superá-la e de distribuir os resultados alcançados. O futebol tem regras, juiz, e o preciso objetivo dos times é ganhar a partida travada no interior de um campo delimitado com um número fixo de participantes. Não são estas características do campo das relações internacionais.

Este se desdobra sob a sombra da guerra. Ao tema, Aron dedicou um pioneiro livro em 1951, Les guerres en chaîne [As guerras em cadeia], um acurado exame da Primeira Guerra Mundial — dos equívocos diplomáticos que a desencadearam e da surpresa técnica dos novos armamentos que a prolongou. Na sequência de Paz e guerra escreveu, inspirado pelo pensamento de Clausewitz, os dois volumes de Penser la guerre [Pensar a guerra], em 1976.

Moldura

A guerra, observa Aron, é um camaleão. Assume sempre novas formas, inclusive e muito especialmente na sua dimensão científico-tecnológica. A indeterminação a priori das suas formas é um dado que paira sobre o campo das relações internacionais. Daí as distintas modalidades de paz e as tipologias sugeridas por Aron em Paz e guerra: paz de equilíbrio, de hegemonia, de império, de impotência, de satisfação — e o papel que no seus âmbitos desempenham a persuasão e a subversão. 

Estas, por sua vez, assumem características próprias, à luz das constelações diplomáticas que levam em conta as polaridades prevalecentes no sistema interestatal e da homogeneidade ou heterogeneidade dos Estados que o compõem — vale dizer, o maior ou menor grau de mútuo reconhecimento e a ação dos atores que nele operam, com maior ou menor empenho na estabilidade. 

É nesta moldura ampla que Aron vai destacar uma característica singularizadora das relações internacionais: a pluralidade dinâmica dos objetivos concretos configuradores das políticas externas dos Estados que compõem o sistema estatal. Entre estes objetivos figuram a segurança, o desenvolvimento, o bem estar, o prestígio, a afirmação de valores e, consequentemente, o papel das afinidades e das discrepâncias quanto às formas de conceber a vida em sociedade. O maior ou menor peso destes objetivos varia de acordo com as circunstâncias. 

É isso que faz do conceito de interesse nacional, norteador da política externa, algo plurívoco e, por vezes, esquivo. Por esse motivo, a racionalidade dos objetivos das condutas das políticas externas é circunscrita pela escolha de certas premissas que norteiam o seu processo decisório. Daí um componente de indeterminação da ação estratégica-diplomática que pode variar no tempo. Um exemplo atual é a diferença entre a conduta da política externa dos Estados Unidos no governo Trump, oposta à diplomacia de seu antecessor, Barack Obama.

Os objetivos da implementação de uma política externa estão vinculados aos meios de que dispõe um Estado no âmbito de um sistema interestatal que obedece à lógica de uma distribuição de poder individual, mas desigual, entre os seus integrantes.

Aron trata dos meios na moldura do que denomina determinantes e regularidades sociológicas. Entre elas: o espaço, referente à inserção geográfica e territorial de um país num mundo finito mas planetariamente unificado, para o bem e para o mal, pela técnica, por seus conflitos e por seus múltiplos problemas; o número, que é o componente demográfico das pessoas que se distribuem e que se acomodam, ou não, no espaço dos territórios dos múltiplos Estados que integram o sistema interestatal; os recursos, que, numa acepção abrangente, cobrem o conjunto dos meios materiais e de conhecimento de que dispõe uma coletividade estatal; e a natureza das nações e dos regimes, que ajuda a entender o modo de ser e de agir dos atores estatais, os sujeitos da história diplomática.  

Maquiavel e Kant

Destaquei nesta minha leitura de Paz e guerra entre as nações alguns dos aspectos que considero relevantes para a compreensão do campo das relações internacionais, mas evidentemente não fiz justiça e não dei conta da abrangência analítica e conceitual de um livro de quase mil páginas. 

Aron desenvolveu uma ética de prudência e de equilíbrio entre excessos que me inspirou quando tive a oportunidade de conduzir o Itamaraty

Quero concluir com uma rápida consideração sobre o que Aron discute na última parte de seu livro — “Praxeologia” —, na qual examina as antinomias com as quais se confrontam os responsáveis pela condução da política exterior: em síntese, o enfrentamento tanto do problema maquiavélico quanto do problema kantiano. 

O problema maquiavélico diz respeito ao realismo dos meios legítimos da condução de política externa, que, no limite, comportam o uso da força. É o tema de preservação do Estado como uma unidade independente no âmbito do sistema interestatal. Para ele aponta o inciso I do artigo 4º da Constituição brasileira, que positiva os princípios que regem as relações internacionais do país: independência nacional.

O problema kantiano é o da busca da “paz perpétua” e de um princípio de razão abrangente regulador da humanidade, que substitua a “moral de combate”. Algo que está igualmente positivado na Constituição de 1988, também no artigo 4º: defesa da paz (inciso VI), solução pacífica de conflitos (VII) e cooperação entre os povos para o progresso da humanidade (IX).

Na interação entre os dois problemas, Aron desenvolveu uma ética de prudência e de equilíbrio entre excessos. Foi uma lição que me inspirou nas duas ocasiões em que tive oportunidade de conduzir o Itamaraty.

sábado, 26 de dezembro de 2020

1889: a República se apresenta ao mundo; Resenha de Sandra Brancato: Arquivo Diplomático do Reconhecimento da República - Paulo Roberto de Almeida

 1889: A REPÚBLICA SE APRESENTA AO MUNDO

Paulo Roberto de Almeida 

 

BRANCATO, Sandra Maria Lubisco (coord.):

Arquivo Diplomático do Reconhecimento da República

(Brasília: Ministério das Relações Exteriores; Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; 1º. volume: 1989, 222 p.; 2º. volume: 1993, 251 p.)

 

 

Em 19 de novembro de 1889, o Ministro das Relações Exteriores Quintino Bocaiuva expedia a seguinte circular aos governos dos países com os quais o Brasil mantinha relações diplomáticas:

Senhor Ministro,

O exército, a armada e o povo decretaram a deposição da dinastia imperial e a extinção do sistema monárquico representativo; foi instituído um Governo Provisório que logo entrou no exercício de suas funções e que as desempenhará enquanto a Nação soberana não proceder à escolha do definitivo pelos seus órgãos competentes; este Governo manifestou ao Sr. D. Pedro de Alcântara a esperança de que ele fizesse o sacrifício de deixar com sua família o território do Brasil e foi atendido; foi proclamada provisoriamente como forma de governo da nação brasileira a República Federativa, constituindo as Províncias os Estados Unidos do Brasil.

O Governo Provisório, como declarou na sua proclamação de 15 do corrente, reconhece e acata todos os compromissos nacionais contraídos durante o regime anterior, os tratados subsistentes com as Potências estrangeiras, a dívida externa e interna, os contratos vigentes e mais obrigações legalmente estatuídas.

No Governo Provisório, de que é chefe o Sr. Marechal Manoel Deodoro da Fonseca, tenho a meu cargo o Ministério das Relações Exteriores, e é por isso que me cabe a honra de dirigir-me a Vossa Excelência, assegurando-lhe que o mesmo Governo deseja manter a relações de amizade que tem existido entre os dois países e pedindo o reconhecimento da República dos Estados Unidos do Brasil.

 

Num bom retrato do que, já então, se podia classificar de caráter ecumênico das relações internacionais do Brasil, um documento interno da Chancelaria brasileira informava ao mesmo Ministro Quintino Bocaiuva que os governos visados pela Circular eram, na ordem e grafia ali estabelecidas, os seguintes: 

“Hespanha, Russia, Grã-Bretanha, Allemanha, Austria-Hungria, Italia, Belgica, Portugal, S.ta Sé, França, Suecia e Noruega, Paises-Baixos, Suissa (ao Presidente), Dinamarca, Rep.a de Venezuela, Chile, Peru, Estados Unidos da America, Rep.a Oriental do Uruguay, Republica Argentina, Paraguay, Bolivia, Guatemala, Columbia, Rep.a do Salvador, Rep.a Dominicana, Nicaragua, Costa rica, Haïti, Honduras, Equador, Imperio de Marrocos, Imperio da China, Reino da Servia, Reino da Romania, Imperio da Turquia e Imperio do Japão, Rep.a de San Marino e Reino da Persia”.

Outra circular, com o mesmo texto, acrescentava finais específicos para o México e para o Congo, neste último caso para o “Sr. Administrador Geral da Repartição dos Negócios Estrangeiros do Estado Independente do Congo”, Estado que nada mais era do que uma ficção geopolítica inventada pelo Rei Leopoldo, da Bélgica. Ficaram fora da Circular, por razões não esclarecidas, a Grécia e o Egito, países com os quais o Brasil mantinha relações consulares, através do Rio de Janeiro e de Alexandria, respectivamente. De grandes potências a nações praticamente vassalas das primeiras, o universo das relações interestatais no final do século XIX comparece nas listas da Chancelaria brasileira, testemunhando sua grande abertura internacional e precoce vocação para o pragmatismo político.  

Em todo caso, esses eram os países envolvidos no relacionamento externo do Império dirigido por Pedro II e aos quais a nova República americana se dirige para solicitar reconhecimento diplomático. Com algumas exceções, são também esses os países que comparecem nos dois volumes do Arquivo do Reconhecimento da República, obra de referência documental cuja divulgação, iniciada na comemorações do centenário da República, foi tornada possível graças à capacidade de iniciativa e ao empenho pessoal demonstrados pela Profa. Sandra Brancato, do Curso de Pós-Graduação em História da PUC/RS, tanto na coleta do material de arquivo original como em sua organização para publicação pelo Ministério das Relações Exteriores.  As exceções são poucas, em alguns casos por situações compreensíveis como a ausência de contatos diretos (Haiti, República Dominicana, Reinos da Sérvia e da Romênia ou a já mencionada ficção congolesa), em outros provavelmente pelas mesmas razões, mas produzindo lacunas mais lamentáveis, com é o  caso do Japão ou da Turquia.  

Não obstante, a coletânea de documentos relativa aos 36 países objeto da seleção conforma um panorama altamente ilustrativo da densidade das relações diplomáticas do respeitado Império brasileiro, herança que terá de ser retomada e desenvolvida pelo novo regime. Não são poucas as dificuldades iniciais, como demonstrado por diversos expedientes intercambiados com potências monárquicas da velha Europa: finalmente, a jovem República podia ser considerada como ilegítima, pois que resultante de um golpe de Estado militar contra uma dinastia que possuía numerosos vínculos familiares no velho continente. Em contraste, a obtenção do reconhecimento foi bastante mais fácil no hemisfério americano – objeto do primeiro volume da coletânea – já que o regime monárquico brasileiro é que era a avis rara num continente republicano.

Assim, é instrutivo seguir as diversas démarches empreendidas pela diplomacia brasileira junto a algumas monarquias europeias. O Império da Alemanha, por exemplo, manteria apenas relações oficiosas, até que o Congresso Constituinte se tivesse pronunciado sobre a nova forma de Governo. O da Áustria-Hungria, cujo Imperador Francisco José tinha laços de parentesco com D. Pedro II, não poderia senão ter sentido o “mais profundo pesar” pela proclamação da República. Mas, terminados os trabalhos da Assembleia Constituinte, em fevereiro de 1891, os dois Impérios reconhecem oficialmente o Governo republicano. Mais atribuladas foram as condições de retomada das relações com a velha Rússia dos Czares. O representante brasileiro em São Petersburgo era o mais sincero possível: “É preciso que o Governo da República se compenetre de que as simpatias da Rússia pelo Brasil tinham por único fundamento as nossas antigas instituições monárquicas que supunha tão sólidas como as próprias. Uma vez estas desaparecidas, entramos, para o Czar, no rol das nações cuja amizade tem por base, não a paz mas o armistício, estando nas mútuas relações substituída a simpatia pelo desdém mais ou menos aparente segundo os interesses em jogo”. Em outras oportunidades, pequenos contenciosos bilaterais, como em relação à França e às fronteiras do Brasil com a Guiana, ou até mesmo particulares, como no caso de uma companhia belga, prejudicaram o andamento das negociações ou retardaram o desfecho inevitável, na medida em que o novo regime se consolidava no Brasil e a volta da monarquia se afastava no horizonte.

A República passará bastante bem pelo seu batismo internacional e já em 1892 o relacionamento diplomático era normal com praticamente todos os países selecionados na coletânea. Os dois volumes constituem um guia bastante útil para o pesquisador especializado e reforçam a cooperação acadêmica que o Itamaraty vem ensaiando, desde alguns anos, com a universidade. Eles estão disponíveis junto à PUC/RS ou ao Centro de Documentação do Ministério das Relações Exteriores.

 

 

[Paris, 386: 07.01.94]

 

386. “1889: a República se apresenta ao mundo”, Paris, 7 janeiro 1994, 4 pp. Resenha do livro de Sandra Maria Lubisco Brancato (coord.): Arquivo Diplomático do Reconhecimento da República (Brasília: Ministério das Relações Exteriores; Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; I° volume: 1989, 222 p.; II° volume: 1993, 251 p. 133-135). Publicado na Revista Brasileira de Política Internacional (Brasília: vol. 37, n. 2, julho-dezembro 1994, pp. 133-135). Relação de Publicados n. 167.