Consultando o site da Revista de História da Biblioteca Nacional -- o
que nunca havia feito antes -- acabei achando, para minha surpresa, um artigo
que me foi solicitado alguns anos atrás, e que não sabia que estava disponível
digitalmente.
Tanto melhor, posso postar aqui.
Reparem bem na cronologia extremamente delongada desse artigo: ele tinha sido preparado em 2004, para uma revista que antecedeu a RHBN, e que ficou parado durante muito tempo, até que os editores decidissem pela sua publicação:
1342.
“Do afastamento à integração: as relações do Brasil com a América Latina, do
século XIX ao século XXI”, Brasília, 15 out. 2004, 8 p. Artigo para a revista Nossa História. Revisto e abreviado em
25/10/2004. Revisto diversas vezes em 12/2004; complementado com ilustrações em
01/2005. Sem definição de publicação na Nossa
História, em virtude de cisão na equipe de redação e criação da Revista de História da Biblioteca
Nacional. Em 10/2005, decisão por retirar o artigo da Nossa História e transferi-lo para a Revista de História-BN. Publicado, sob o título
“Laços Latinos”, chamada de índice “Latinos, uni-vos” e chamada de capa “Os
laços do Mercosul: caminhos da integração latino-americana”, in Revista de História da Biblioteca Nacional
(Rio de Janeiro: ano 1, nº 8, fevereiro-março 2006, p. 76-81; ISSN: 1808-4001).
Paulo Roberto de Almeida
Paulo Roberto de Almeida
Revista de História da Biblioteca
Nacional, 18/9/2007
Depois de séculos de desconfiança, o Brasil e seus vizinhos hispano-americanos começam a trilhar juntos o caminho da integração sob o olhar atento dos EUA
A massa imponente do Brasil – herança do expansionismo
português, consagrado em 1750 pelo Tratado de Madri – sempre provocou
desconfiança entre os seus vizinhos hispano-americanos. Consciente disso, José
Bonifácio, ministro dos Negócios Estrangeiros do regente d. Pedro, tomou a
iniciativa de despachar a Buenos Aires, em maio de 1822, um emissário para
servir às relações do Brasil no Rio da Prata, considerado de grande importância
estratégica pois consistia em porta de entrada para o interior do continente. O
mesmo cuidado teve seu sucessor, o Visconde de Cachoeira, em 1824. Este
instruiu seu representante no Prata a confirmar “que não só a política do
gabinete brasileiro é americana e tem por objeto a sua independência de
qualquer tutela européia, mas que este Governo não desaprova nem maquina contra
as instituições políticas que esses governos adotarem”.
A diferença entre os regimes políticos no continente
marcou no século XIX as relações entre o império brasileiro, vinculado às
dinastias européias, e as repúblicas vizinhas, que tentavam construir um
sistema avesso aos princípios aristocráticos aqui adotados. A política do
Império oscilou entre as intervenções (no Prata) e o isolamento (em relação à
maior parte das demais repúblicas). Isso, porém, não impediu Simon Bolívar de
convidar o governo brasileiro a participar do congresso de 1826, no Panamá,
destinado a discutir os problemas comuns e a traçar as bases de uma possível
confederação entre os novos países independentes. O Brasil julgou melhor
abster-se de comparecer, pelo temor de que fossem discutidas as formas de
governo no continente.
A aproximação com as repúblicas da região, por parte
do Brasil, tomou impulso durante o período regencial (1831-1840). O Brasil não
deveria se afastar do Velho Mundo, mas buscar igualmente estreitar as relações
com as nações do hemisfério. O relacionamento do Brasil com os países vizinhos
foi perturbado, no entanto, pela política de intervenções no Prata, em nome do
equilíbrio político dos dois lados do rio. As marchas e contramarchas da
diplomacia imperial eram justificadas pelos “desmandos” cometidos contra os
interesses de brasileiros nesses países – roubo de gado nas coxilhas do Sul,
por exemplo – e também pelas reclamações contra os caudilhos no poder. Quase
não existiam motivos comerciais que pudessem justificar uma aproximação com as
repúblicas hispânicas, sobretudo as da vertente amazônica e andina (Venezuela,
Grã-Colômbia e Peru).
Empenhado em preservar seus laços de integração com a
Europa, o Brasil raramente aderiu às iniciativas “americanistas” empreendidas
por essas repúblicas, como a convocação de conferências pan-americanas por
ocasião de ameaças externas. Havia pouca unidade de propósitos entre os vários
Estados em que se tinha dividido a região, como também eram escassas as
possibilidades de cooperação entre regiões e países especializados em poucas
matérias-primas. Depois do rompimento, em 1830, da federação da Grã-Colômbia,
seguiu-se, em 1839, o das províncias unidas da América Central, que compreende
hoje Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua e Costa Rica. Nessa mesma
época, a primeira guerra do Pacífico (1837-1839) opôs o Chile ao Peru e à
Bolívia, então confederados.
Na segunda metade do século, o continente foi abalado
pelas guerras platinas (1851-52), pela guerra do Paraguai (1865-1870) e pela
segunda guerra do Pacífico (1879-1883), opondo novamente o Chile ao Peru e à
Bolívia. Na vertente econômica, as elites estavam divididas entre o
livre-comércio, que seduzia os liberais, e a idéia protecionista, defendida por
conservadores presos a uma ordem econômica tradicional. Outros encontros
americanos foram realizados no final do século XIX – em Lima (1877-1879), em
Caracas (1883) e em Montevidéu (1888-1889) – mas tiveram caráter basicamente
jurídico. O isolamento brasileiro acentuou-se nessa época, em função do
desastroso reconhecimento, em 1863, do regime fantoche que Napoleão III
implantou no México, com a designação, como monarca, do infeliz arquiduque
austríaco Maximiliano, depois fuzilado pelos nacionalistas mexicanos, bem como
em função da guerra do Paraguai, que suscitou esforços de mediação entre os
vizinhos.
A aventura francesa no México, que resultou num
completo desastre, abriu caminho para a idéia de uma “união latino-americana”,
mas após a guerra civil guerra civil nos Estados Unidos (1861-65), a nova
potência do hemisfério setentrional deu início a um movimento de penetração
econômica e comercial que desafiaria a hegemonia britânica em todo o
continente. Um projeto de canal transoceânico foi negociado com a Nicarágua
desde 1849, ao mesmo tempo em que se fazem propostas à Nova Granada (Colômbia),
com o mesmo objetivo. A expansão industrial e a nova retórica expansionista dos
Estados Unidos confirmam que a política norte-americana não seria muito diferente
da praticada pelas demais potências européias, tornando os países da região
reticentes a qualquer projeto de integração com o Gigante do Norte.
A diplomacia imperial voltada para o velho continente,
a despeito da crescente importância das repúblicas americanas nas relações
externas, teria de equacionar os interesses reais do Brasil com o projeto de
projeção internacional: se é certo que o fornecimento de produtos de consumo e
de bens de produção e os capitais para a cobertura dos déficits provinham
essencialmente da Grã-Bretanha, o grande mercado consumidor do principal
produto de exportação, o café, situava-se nos Estados Unidos.
As reuniões continentais se fariam, doravante, na
capital do país mais importante do hemisfério. Enquanto as conferências
hispânicas reuniam, se tanto, meia dúzia de representantes, os encontros de
Washington passaram a juntar delegados de duas dezenas de países da região. A
mudança era vista com simpatia no Brasil: os Estados Unidos tinham sido a
primeira nação a reconhecer o novo Estado independente em 1824. Além disso, ao
não ostentar a arrogância imperial da velha Inglaterra, gozavam de um
indiscutível crédito político junto às elites brasileiras, que admiravam seu
progresso industrial, e se tinham convertido, na segunda metade do século, num
importante parceiro comercial.
Na última década do século XIX, foi criado, por
iniciativa dos Estados Unidos, um Escritório Comercial das Américas, embrião da
futura União Pan-americana (1928) e, depois, em 1948, Organização dos Estados
Americanos (OEA). A despeito da grande distância entre as pretensões iniciais
dos Estados Unidos e de seus parcos resultados práticos, a nova entidade
resultou da I Conferência Internacional Americana, realizada em Washington de
outubro de 1889 a abril de 1890, tendo o Brasil nela ingressado como monarquia
e terminado como república. Os Estados Unidos pretendiam criar uma união
aduaneira para promover o intercâmbio hemisférico, dispondo inclusive de uma
moeda comum. O governo imperial era reticente em relação a vários dos temas da
conferência de Washington, em especial, já nessa época, no que se refere à
possibilidade de abertura comercial e à propriedade intelectual.
Algumas das razões para a oposição latino-americana
aos projetos dos Estados Unidos se situavam no terreno econômico: além da
superioridade industrial, havia o forte protecionismo agrícola, o que tornava
ilusória qualquer zona de livre-comércio. Outras restrições eram de natureza
política, como as intervenções dos Estados Unidos, para “proteger cidadãos e
propriedades” no continente. A Argentina tinha fortes motivos para opor-se aos
Estados Unidos por causa da competição nos mercados internacionais de produtos
agrícolas, mostrando-se ainda contrária ao pan-americanismo, em virtude de
sentir-se européia e não americana. O projeto de um espaço econômico
hemisférico começou, em todo caso, sua marcha secular.
O novo regime instalado em 1889 no Brasil, contribuiu
para reconciliar o país politicamente com os vizinhos hispano-americanos,
introduzindo ainda princípios alternativos de política externa, como o
pan-americanismo. Nas demais regiões cresciam as apreensões em relação à
política expansionista dos Estados Unidos, reforçada a partir da guerra
hispano-americana de 1898 – quando a Espanha se vê amputada de Cuba, de Porto
Rico e das Filipinas –, confirmada depois pelas ocupações e intervenções
armadas no Caribe e na América Central. No Brasil, entretanto, o barão do Rio
Branco, movido por uma concepção diplomática baseada no equilíbrio de poderes com
a Argentina (de fato uma disputa pela hegemonia regional), operou, a partir de
1902, uma política de aproximação com os Estados Unidos.
Logo em seguida o presidente Theodore Roosevelt
(1901-1909) proclamou seu “corolário” à doutrina Monroe, com o objetivo de
justificar o papel de polícia que os Estados Unidos pretendiam impor a seu
entorno geográfico imediato. Nas próximas décadas, o Brasil e a Argentina
passaram a competir entre si para estabelecer com os Estados Unidos uma
“relação especial” que sempre se revelou ilusória, esperando igualmente
ostentar, na América do Sul, um “padrão de civilização” que os Estados Unidos e
as potências européias pretendiam exibir com exclusividade.
Nova York emergiu como o grande centro financeiro para
a região e, em breve, para o mundo. Este movimento foi reforçado pela Primeira
Guerra Mundial (1914-1918) e no decorrer dos anos 1920, quando volumes
importantes de investimento diretos passaram a ser carreados para o setor
primário e para a indústria de transformação – como mineração, agricultura e
processamento de alimentos – de quase todos os países da América Latina. Depois
de inúmeras tentativas de se consagrar, no direito americano, o princípio da
não-intervenção nos assuntos internos, os Estados Unidos finalmente concederam
mudar a posição a partir do governo de Franklin D. Roosevelt (1933-1945), que
proclamou a “política da boa vizinhança” e rejeitou os aspectos mais rudes da
política anterior.
A emergência dos regimes ditatoriais de Mussolini na
Itália e de Hitler na Alemanha, que ameaçavam os equilíbrios regionais e a
própria paz mundial, provocará novos esforços diplomáticos dos Estados Unidos
em prol da “solidariedade hemisférica”. O movimento só seria consagrado na
conferência interamericana do Rio de Janeiro, em janeiro de 1942, que se seguiu
ao ataque japonês à frota americana do Pacífico, em Pearl Harbor. Ainda assim
houve uma importante deserção, a da Argentina, que se manteve simpática ao
regime nazista até quase o momento de sua derrocada.
Após a Segunda Guerra (1939-1945), as relações
internacionais desses países continuaram a ser dominadas pelo gigante
norte-americano, uma vez que o início do que se chamou Guerra Fria determinou
uma nova ofensiva diplomática, acoplada a programas de cooperação militar, por parte
dos Estados Unidos. Washington não atendeu, porém, aos reclamos desses países
em favor de um “Plano Marshall” para a região, a exemplo do que os Estados
Unidos faziam então, como ajuda, à Europa arrasada pela guerra.
Brasil e Argentina continuaram a se opor em várias
áreas, pelo menos até meados dos anos 50. Neste período, estimulados pelo
processo europeu de integração, decidiram impulsionar um projeto similar na
região. Resultou desse esforço o primeiro tratado de Montevidéu (1960), que
criou a Associação Latino-Americana de Livre-Comércio, com sede na capital
uruguaia. Ao mesmo tempo a revolução cubana (1959) passou a condicionar ainda
mais a política americana para a região, pois o novo regime de inspiração
socialista vem introduzir um aspecto novo no relacionamento hemisférico: o da
possibilidade de rompimento com o campo ocidental e a adoção de uma via não
capitalista de desenvolvimento.
O cenário estava dado para a sucessão de golpes
militares nos anos 60, em grande medida apoiados ou inspirados pelos Estados
Unidos, o que reduziu as possibilidades de avanços no processo de integração
regional, embora permitindo uma cooperação entre os novos regimes ditatoriais
na luta contra o “comunismo”. Foi este o caso da Operação Condor, programa
informal de cooperação entre os exércitos e polícias políticas dos países do
cone sul que consistiu, na maior parte das vezes, em troca de informações sobre
seus respectivos opositores políticos e movimentos de guerrilha, mas que
derivou, em algumas oportunidades, em assassinatos políticos e
desaparecimentos, como ocorreu nos casos das ditaduras militares do Chile e da
Argentina.
Depois de décadas de afastamento, o Brasil e a
Argentina, redemocratizados em meados dos anos 1980, retomaram o projeto
integracionista, primeiro em escala bilateral, depois no âmbito sub-regional. O
Mercosul surgiu em 1991, passando a ser visto, pela diplomacia brasileira, como
base da integração sul-americana. A despeito da expansão do comércio
intra-regional ao longo da década, de acordos de associação com outros países
da região (Chile e Bolívia, em 1996; Peru, em 2003; Equador e Colômbia, em
2004) e da decisão política pela plena incorporação da Venezuela, no final de
2005, e possivelmente da Bolívia em 2006, o Mercosul continua a enfrentar
dificuldades para firmar-se como união aduaneira.
Os Estados Unidos, gigante hemisférico, exercem grande
força de atração sobre quase todos os países. Primeiro pela possível extensão
dos acordos do Nafta (Estados Unidos, Canadá e México) aos demais latino-americanos.
Depois, a partir de 1994, pela proposta de uma área de livre comércio (Alca). E
finalmente por uma rede de acordos bilaterais ou plurilaterais, extraindo
concessões desses países em troca de promessas de acesso ao mercado americano.
Como já tinha ocorrido há mais de um século, Brasil e Argentina continuam a
manifestar relutância em relação à integração hemisférica, em virtude dos
mesmos problemas antes detectados: a economia dominante pretende acesso
irrestrito aos mercados latino-americanos, ao mesmo tempo em que não cogita
desfazer-se do seu próprio protecionismo agrícola.
Uma Comunidade Sul-Americana de Nações, constituída
por iniciativa do Brasil, passou a oferecer, a partir de dezembro de 2004, a
possibilidade de consolidar a integração comercial por meio da coordenação
política entre os chefes de Estado, mas a diplomacia brasileira continua a
enfrentar dificuldades para concretizar esse projeto. A falta de “excedentes de
poder” – basicamente, a capacidade de projetar forças estratégicas e oferecer
recursos para cooperação – e a desconfiança dos demais países em relação a uma
“liderança” não de todo consensual – evidenciada na oposição da Argentina e do
México à pretensão de uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU – mantêem o
status quo na região.
E quanto à política dos Estados Unidos? Tudo indica
que os governos americanos continuarão a ostentar sua tradicional “negligência
benigna” em relação aos países da América do Sul.
Paulo Roberto de Almeida é
doutor em ciências sociais, diplomata de carreira e autor de Formação da
diplomacia econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no
Império (Editora Senac, 2005).