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domingo, 13 de abril de 2025

Moeda chinesa e riscos sistêmicos da guerra tarifária - Luis Favre

MOEDA CHINESA E RISCOS SISTÊMICOS DA GUERRA TARIFÁRIA 

Limites estruturais da moeda chinesa e os riscos sistêmicos da nova guerra tarifária entre Estados Unidos e China.

Por Luis Favre , 12/04/2025

“A China não está prestes a substituir os EUA na sua hegemonia global, mas o sistema que os EUA construíram pode colapsar sem que nenhum outro esteja pronto para assumir o lugar.”

— Adam Tooze, historiador econômico e professor na Universidade Columbia (EUA), autor de Crashed e Shutdown, obras de referência sobre crises financeiras globais.


Yuan digital e CIPS da China 

Desde 2015, com a criação do sistema CIPS (Cross-Border Interbank Payment System), e a partir de 2020, com o início dos testes públicos do yuan digital (e-CNY), a China tem gerado a expectativa em alguns esquerdistas, de que estaria se preparando para romper com a hegemonia do dólar e do sistema SWIFT. 

Embora ambiciosas do ponto de vista tecnológico, essas iniciativas ainda operam dentro dos limites de um sistema financeiro internacional do qual a economia chinesa continua altamente dependente.

As reformas iniciadas por Deng Xiaoping em 1978 integraram a China ao capitalismo global. A introdução da propriedade privada, a abertura ao investimento capitalista estrangeiro e as facilidades outorgadas pelos Estados Unidos no acesso ao seu mercado — com a concessão anual do status de Nação Mais Favorecida a partir de 1980, transformada em status permanente em 2000, como preparação para a entrada da China na OMC — geraram um crescimento econômico espetacular, transformando o país na segunda maior economia do mundo. 

A adesão formal à Organização Mundial do Comércio se deu em 2001. Desde então, a China tornou-se um centro de manufatura global, atraiu centenas de bilhões em investimentos estrangeiros e acumulou superávits comerciais monumentais. A força da economia chinesa contemporânea deriva diretamente dessa inserção nas cadeias de valor, no comércio internacional e nas finanças globais dominadas pelo dólar.

O yuan digital representa um avanço em infraestrutura monetária, mas seu impacto prático internacional ainda é limitado e assim será por muito tempo. Em 2024, apenas 2,6% das reservas cambiais mundiais estavam denominadas em yuan. As transações comerciais liquidadas em yuan não passam de 5% do total global. Mesmo em acordos bilaterais com países como Rússia, Irã ou Brasil, o dólar ainda prevalece na prática. 

A experiência da Rússia é reveladora: após ser banida do SWIFT e isolada pelas sanções decorrentes da sua guerra de agressão contra a Ucrânia, o país passou a aceitar cerca de US$ 300 bilhões em pagamentos internacionais em yuan, mas agora enfrenta graves dificuldades para utilizar esses fundos, que estão praticamente encalhados no banco central russo, devido à baixa aceitação do yuan fora da esfera financeira chinesa.

O sistema CIPS, promovido por alguns aqui como alternativa ao SWIFT, depende amplamente da própria rede que supostamente pretende substituir. Estima-se que 80% das transações processadas pelo CIPS utilizem mensagens SWIFT. Com cerca de 1.300 instituições participantes, o CIPS ainda é pequeno frente às mais de 11 mil conectadas ao SWIFT.

A exclusão da China do SWIFT, se porventura vier a acontecer, teria consequências globais severas. Cerca de 40% das transações externas da China poderiam ser inviabilizadas. O fornecimento de bens manufaturados seria interrompido, impactando empresas e cadeias de produção nos EUA, Europa, América Latina e África. O comércio global sofreria disfunções comparáveis a um colapso do Canal de Suez.

Segundo Barry Eichengreen, para que uma moeda se torne internacional, são necessárias: estabilidade institucional, conversibilidade plena, profundidade de mercado e confiança jurídica. O yuan falha em todas. A China mantém rígido controle de capitais, um judiciário subordinado ao Partido Comunista e mercados financeiros pouco transparentes.

O dólar mantém sua hegemonia não apenas pelo tamanho da economia americana, mas por oferecer liquidez, previsibilidade e liberdade institucional. A tentativa de instrumentalizar politicamente essa hegemonia pode gerar tensões, mas reforça a centralidade do dólar em tempos de crise.

O impacto global do enfrentamento de Trump contra China, a UE e o mundo

A guerra comercial iniciada por Donald Trump se intensificou em 2025, com tarifas de até 145% sobre produtos chineses. A China respondeu com tarifas de até 125% sobre exportações americanas. Agricultores, industriais e consumidores nos EUA enfrentam aumento de custos, queda de competitividade e inflação.

Mais grave que as tarifas é a imprevisibilidade do governo Trump. A incerteza sobre novas medidas, rupturas institucionais e sanções paralisa investimentos e gera volatilidade nos mercados. O índice global de incerteza econômica atingiu recordes desde abril de 2025.

A China detém mais de US$ 775 bilhões em títulos do Tesouro dos EUA. Embora a venda em massa desses papéis prejudique também suas reservas, o efeito de desvalorização do dólar e aumento dos juros americanos seria considerável. Como alertou o economista Kenneth Rogoff: “A arma dos títulos do Tesouro não é para ser usada facilmente. Mas é como uma ogiva nuclear: o poder está em possui-la, e na ameaça crível de uso.”

Por ora, o comércio está suspenso, com contêineres parados e contratos congelados. Caso o impasse persista, a China poderá redirecionar seu excedente industrial para o Sul Global, gerando um choque competitivo devastador para economias frágeis da Ásia, África e América Latina.

A diretora-geral da OMC, Ngozi Okonjo-Iweala, declarou que uma escalada descontrolada da guerra comercial pode provocar uma queda de até 7% no PIB global, o que equivaleria a uma crise de magnitude histórica.

Para efeito de comparação:

• Durante a Covid-19, o PIB mundial caiu cerca de 3,1% em 2020, segundo o FMI.

• Na Grande Depressão (1929-1933), o PIB global caiu cerca de 15% ao longo de quatro anos.

• A projeção de queda de 7% em poucos trimestres, como alerta a OMC, situaria essa crise entre as mais profundas da era moderna — e o diferencial é que ela seria provocada deliberadamente por escolhas políticas e não por choques naturais ou sanitários.

Conclusão: Um Mundo em Suspensão, sem Hegemonia Substituta

A guerra econômica deflagrada pela administração Trump — com tarifas massivas, ameaças unilaterais e o uso político do dólar — representa um ponto de inflexão para a ordem econômica global. 

Seus impactos não se limitam à China. Para os Estados Unidos a imposição de tarifas elevadas, especialmente sobre produtos chineses, tem contribuído para o aumento da inflação, com expectativas atingindo 4,4% em abril de 2025, o nível mais alto em décadas. O crescimento econômico desacelerou, com projeções do PIB caindo para 0,5% em 2025, em comparação aos 2,8% do ano anterior. Além disso, a confiança do consumidor despencou, com o índice da Universidade de Michigan registrando 50,8 pontos, o segundo nível mais baixo desde 1972. A volatilidade nos mercados financeiros aumentou, refletindo a incerteza gerada pelas políticas comerciais imprevisíveis. Empresas como a Tesla suspenderam pedidos de veículos importados para a China devido às tarifas proibitivas, ilustrando a disjunção nas cadeias produtivas. Larry Summers, ex-secretário do Tesouro dos EUA, alertou que a escalada das tarifas pode levar o país a uma recessão, potencialmente resultando em 2 milhões de perdas de empregos e uma redução de US$ 5.000 na renda familiar média.

A China, por sua vez, também não sai ilesa. Embora o governo tenha reforçado políticas voltadas à substituição de importações e fortalecimento do mercado doméstico, esse ainda representa apenas cerca de 38% da demanda da indústria nacional. O PIB per capita chinês, de aproximadamente US$ 13 mil em 2024, é significativamente inferior ao dos países desenvolvidos — menos da metade do europeu e cerca de um quinto do norte-americano — o que limita severamente o poder de compra interno. A taxa oficial de desemprego urbano era de 5,4% em março de 2025, o maior nível em dois anos, com destaque para a faixa etária de 16 a 24 anos, que enfrenta um desemprego de 16,9%, evidenciando as dificuldades de absorção de jovens no mercado de trabalho.

O impacto da guerra comercial sino-americana não se limita aos dois protagonistas. Países como Japão, Coreia do Sul, Índia e os membros da ASEAN se veem pressionados a redefinir seus posicionamentos econômicos e estratégicos. A Índia, por exemplo, tem buscado capturar parte do fluxo de investimentos redirecionados por empresas que buscam diversificar sua presença industrial fora da China — uma política conhecida como “China + 1”. Japão e Coreia, por sua vez, mantêm laços econômicos profundos com a China, mas dependem dos Estados Unidos para sua segurança, o que os coloca em constante equilíbrio tático. No Sudeste Asiático, países como Vietnã, Indonésia e Malásia tentam atrair cadeias produtivas globais deslocadas pela disputa, ao mesmo tempo em que evitam hostilizar qualquer das partes. Já o Brasil se encontra diante de uma oportunidade delicada: reforçar sua posição como fornecedor confiável de alimentos, minerais e energia, sem se alinhar automaticamente a nenhuma potência. O governo Lula tem atuado com prudência diplomática, mantendo o comércio com a China enquanto evita gestos que possam ser interpretados por Washington como alinhamento automático. 

A combinação de guerra comercial e excesso de capacidade industrial pressiona o governo chinês a buscar novos mercados para seus produtos. Isso alimenta preocupações globais com dumping, e já levou União Europeia, Brasil, Índia e México a adotarem ou considerarem medidas antidumping contra produtos chineses — especialmente aço, têxteis, veículos elétricos e painéis solares. Um redirecionamento maciço das exportações, diante do bloqueio parcial dos EUA, pode provocar choques de competitividade devastadores nos países do Sul Global. Nesse cenário, a ideia de que o mercado interno chinês possa compensar o recuo nas exportações parece, ao menos no curto prazo, mais desejável do que plausível.

A novidade desta crise, no entanto, não é apenas a escala da destruição econômica potencial — estimada pela OMC em até 7% de queda no PIB global — mas o fato de que ela ocorre sem a perspectiva clara de uma nova hegemonia capaz de restaurar a ordem. Após a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos emergiram como potência dominante, oferecendo capital, segurança, instituições e uma moeda confiável. Mesmo com desgaste cada vez maiores esta posição dominante persiste e se Trump não recuar, a erosão desta dominação sera bem maior. Por outro lado, nenhuma dessas condições está hoje disponível em Pequim.

Em vez de uma transição de hegemonia, o mais provável é que o mundo mergulhe em um período de fragmentação econômica e instabilidade institucional. Comércio regionalizado, moedas paralelas, cadeias de suprimento menos eficientes e um crescimento global mais baixo podem se tornar a norma. 

A China pode ampliar sua influência, sobretudo sobre países do Sul Global, mas isso ocorrerá em um cenário de competição multipolar e multilateral, com desconfiança sistêmica — e não como substituta da "ordem americana".

Como escreveu o historiador Adam Tooze, “a China não está prestes a substituir os EUA na sua hegemonia global, mas o sistema que os EUA construíram pode colapsar sem que nenhum outro esteja pronto para assumir o lugar.”

Luis Favre

12/04/2025