Apesar deste blogueiro ser sociólogo, pronuncio-me claramente, neste momento, CONTRA a inclusão das ditas ciências sociais e humanas no programa CsF.
Como os recursos da sociedade são por definição limitados, melhor investir nas carências brasileiras, que não são as de sociólogos, psicólogos, cientistas políticos, historiadores e afins, e sim de engenheiros e cientistas.
As simple as that.
Creio ter deixado bastante clara minha posição.
Paulo Roberto de Almeida
Comentário recebido do leitor André Rozembaum:
Pensei que talvez uma pequeniníssima parte das bolsas, como 2%, pudesse ser destinada a nata da nata dos nossos cientistas "humanos". Concordo que os recursos financeiros sao limitados, e por isso que o governo acertou em priorizar o que temos de extrema carencia.
Mas daí a dizer que estamos bem de ciências sociais e humanas é loucura!
Você ao longos dos seus vários posts diz isso.
Veja por exemplo as "saúvas" freirianas do MEC que você tanto critica, assim como os acadêmicos "marquissistas".Addendum PRA:
Nunca pensei que as Ciências Sociais no Brasil se apresentassem de forma positiva, ou seja, que elas "estão bem". Ao contrário, acho que estamos muito mal, pésimos, mesmo, de CS, e isso tem a ver com a dominância do marxismo vulgar. Nos tempos da brilhantina, isto é, no meu tempo, os marxistas liam Marx; hoje, os marquissistas só lêem uma vulgata mal informada, simplista, incompleta, da contribuição importante que Marx deu para as ciências sociais, mas que foi reduzida por eles a um conjunto de slogans contra o capitalismo e o neoliberalismo que eles sequer estudaram como Marx. Por isso mesmo me oponho a qualquer bolsa para o pessoal da tribo, que escreve como o cidadão ai abaixo, cheio de slogans e poucos argumentos.
Paulo Roberto de Almeida
Ciências com fronteiras: A exclusão das Humanidades pelo MEC
A posição do MEC e a interpretação da Justiça não são simplesmente neutras e técnicas. São seletivas e prescritivas na medida em que expressam, por um lado, interesses sociais, políticos e econômicos, e, por outro, concepções e valores acerca das classificações das ciências e o papel destas no interior de um projeto determinado de sociedade e de desenvolvimento. São essas fronteiras materiais e simbólicas que a análise crítica deve enfrentar e desmistificar.
A disputa a propósito de quem está ou não autorizado a participar do Ciências sem Fronteiras ou que áreas devem ser priorizadas no financiamento de bolsas, intercâmbios e estágios no exterior são reveladoras a respeito da visão de desenvolvimento que o Governo do PT e outros setores abraçam e cultivam. Priorizar as Ciências Naturais e Exatas significa privilegiar uma determinada concepção de desenvolvimento, que é certamente a concepção de certos grupos de interesse. O que está jogo em toda essa polêmica resume-se a questão de definir os parâmetros pelos quais a sociedade deve ser organizada e estruturada para atingir os tão almejados fins do desenvolvimento. Quer dizer, que caminhos o país e a vida das pessoas devem trilhar para alcançar um estágio elevado de bem-estar humano, segurança, conforto e liberdade.
Mas que ideia de desenvolvimento é esta adotada no Ciências Sem Fronteiras? Ora, uma ideia redutora e estreita de “desenvolvimento” que o identifica prioritariamente com crescimento econômico e progresso tecnológico puro e simples. Nesse sentido, desenvolvimento ou sociedade desenvolvida é sinônimo da elevação do PIB, da capacidade produtiva e criativa de indústrias e empresas, aumento da renda per capita e da disponibilidade de recursos humanos hiperqualificados do ponto de vista técnico, etc.. Sem satisfazer esses indicadores e critérios uma sociedade não pode considerar-se desenvolvida, tal qual entende esta concepção tecnicista de progresso.
É no interior dessa visão de desenvolvimento, que a Ciência e suas divisões adquirem um lugar e um papel determinados. Dentro desse paradigma, as Ciências Naturais e Exatas são consideradas as mais aptas para fomentar as condições de desenvolvimento. Elas são indutoras de progresso porque seus resultados e inventos podem ser diretamente aplicados e apropriados pelo Estado e pelas empresas, segundo, obviamente, os interesses estratégicos de dominação política, militar, social e econômica. Por isso, a elas reservam-se as melhores oportunidades de recursos e investimentos.
O maior investimento na formação e qualificação de recursos humanos no campo das ditas “ciências duras” ganha prioridade sobre todos os demais por conta do comprometimento do Governo do PT e das instituições de apoio e fomento com uma determinada visão de progresso, assim como pela força dos interesses estratégicos que o Governo, seguindo o modelo técnico-desenvolvimentista e sua política de coalizão, assume para manter sua governabilidade – esse comprometimento pode ser observada no conjunto de outras disputas em que o Governo está envolvido, como por exemplo a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte.
As Ciências Humanas são, desse modo, escamoteadas porque seu saber e formação não se coadunam tão intimamente com esta concepção de desenvolvimento e com os interesses dos atores hegemônicos (Estado e Mercado) neste processo. Elas seriam “ciências moles”, imprecisas e teóricas, e o progresso necessita de “ciências duras”, fálicas e masculinas, as únicas que, como diz o qualificativo, são capazes de serem suficientemente viris e ativas para fecundar o desenvolvimento numa sociedade. Como se pode deduzir, a analogia com o machismo e androcentrismo na ideia de “ciências duras e moles” não é nada gratuita e acidental – o que reforça o argumento de a ciência existe num contexto de valores, representações e repertórios culturais.
A dificuldade e os preconceitos que as Ciências Humanas sofrem para obter o devido reconhecimento de seu estatuto e valor científico é bem mais o resultado de avaliações políticas e culturais cristalizadas e compartilhadas em instituições de poder dominantes (Estado e Mercado) do que o produto de avaliações científicas e epistemológicas sérias. O valor e as classificações das ciências ganham o seu sentido particular e hierarquizante em razão das representações sociais que se tem acerca da potencialidade delas no interior de concepções culturais específicas sobre progresso, desenvolvimento e bem-estar humano, assim como pelo papel que elas cumprem numa divisão de trabalho mais ampla sob a finalidade de atingir os objetivos produtivistas e quantitativos do crescimento econômico – PIB, renda per capita, etc..
Restringir o programa CsF aos estudantes oriundos da área tecnológica e biomédica é uma decisão política, no sentido de que o Governo, o mercado e as instituições de fomento enxergam nessas áreas os subsídios técnicos e humanos capazes e necessários de alavancar o desenvolvimento econômico de uma sociedade a partir da criação de tecnologia e da formação de quadros hiperqualificados para o mercado e suas necessidades.
O problema, portanto, não reside na questão de medir qual ciência é superior ou mais relevante do que a outra, o problema está na concepção de desenvolvimento abraçada e partilhada pelo MEC, e flagrantemente expressa no Ciência Sem Fronteiras. A exclusão das Ciências Humanas do CsF é resultado de um modo tecnocrático e desenvolvimentista de conceber o progresso de uma sociedade. Nesta concepção de desenvolvimento, o sucesso de uma sociedade é medido pela elevação das riquezas que um país produz mais do que a forma e o grau com que ele a distribui; mais pela quantidade e exploração de recursos que ela capaz de realizar do que pela qualidade dos serviços públicos básicos que oferece; mais pela industrialização do que pelo impacto que ela causa nas condições ambientais e de existência das pessoas; mais pelo progresso tecnológico e quadros qualificados que possui do que pelo grau de participação política e social das pessoas na vida pública.
O que temos de criticar veementemente é esta visão que privilegia unilateralmente indicadores quantitativos e economicistas em detrimento de outros indicadores de caráter mais qualitativos e sociais. Estes últimos podem ser reunidos naquilo em que o economista Amartya Sen chamou de expansão das “liberdades substantivas” e das capacitações para o agir autônomo das pessoas – o que envolve, segundo Sen, desde as liberdades políticas e econômicas básicas ao desenvolvimento de condições para evitar subnutrição e a mortalidade precoce e capacidades de promoção da autonomia e participação ativa das pessoas na vida política da sociedade (educação, liberdade de expressão, etc.).
Se pensarmos como economista indiano e ganhador do Nobel de economia, defendendo que o desenvolvimento é essencialmente um processo de expansão das liberdades reais de que as pessoas desfrutam, então as Ciências Humanas possuem um papel central e pertinente como “indutoras” das condições de desenvolvimento. Os obstáculos na expansão das liberdades reais e na efetivação das capacidades humanas são resultados, em larga medida, de fenômenos humanos, isto é, de processos, instituições e estruturas sociais que modelam o destino das pessoas, suas chances de vida e oportunidades.
Ora, se não podemos falar em sociedade desenvolvida se nela vigoram, de maneira persistente e seletiva, dominações, desigualdades e restrições que impactam enormemente o exercício dos direitos e o desenvolvimento das capacidades pessoais, então, a contribuição das Ciências Humanas é indispensável e inestimável para reverter tal quadro. O entendimento, com clareza e profundidade, de fenômenos humanos, como a reprodução da pobreza, da violência, da ineficiência institucional, os conflitos entre grupos, a exploração e injustiça econômica, os dramas interpessoais, a desigualdade e marginalização social, a privação de direitos em razão de estigmas e preconceitos, entre tantos outros, somente é possível mediante um consistente conhecimento e pesquisas pertencentes ao campo das Ciências Humanas. Esses conhecimentos podem ser convertidos em políticas públicas e reformas políticas. No entanto, a contribuição das Ciências Humanas não se esgota em oferecer informações úteis que servirão de matéria para políticas sociais.
As Ciências Humanas proporcionam um exercício intelectual formidável de desvelamento e questionamento das suposições tácitas e ponto de vistas morais em que se fundamentam determinadas visões de mundo – como a noção de desenvolvimento aqui criticada. Revelar as opacidades subjetivas e causais do comportamento e pensamento humanos, situando-os histórica e socioculturalmente, é o seu principal mérito. O esclarecimento que as Ciências Humanas proporcionam é um esclarecimento não tanto da ordem da previsão e do controle dos fenômenos mas da reflexividade dos sujeitos sobre si mesmos, suas vidas, crenças e ações – o que pode servir tanto numa escala individual quanto, também, numa escala coletiva para governos comprometidos com reformas e movimentos sociais engajados na luta por transformações sociais.
Portanto, por mais enervante que seja a exclusão das Ciências Humanas do CsF, em vez do ressentimento, a crítica deve alimentar-se do comprometimento público que as Ciências Humanas possuem com o avanço e fortalecimento da emancipação humana em todos os seus sentidos. Este comprometimento obedece uma convicção intelectual e ética iniludível acerca do papel do conhecimento das Humanidades em geral e das CH em particular para esclarecer, de um lado, os mecanismos e estruturas sociais responsáveis que dificultam alcançar uma situação de maior emancipação, liberdade e dignidade compartilhadas e, de outro, revelar os pressupostos tácitos que governam as tentativas políticas de superação e solução desses mesmos mecanismos e estruturas.
Além da função crítica, as pesquisas e conhecimentos em Ciências Humanas podem contribuir para alargar o escopo do que entendemos por desenvolvimento e progresso, contemplando temas, indicadores e metas costumeiramente negligenciados e invisibilizados pela pujança e feitiço dos números e taxas econômicas. Um bom exemplo de desenvolvimento – entendido num sentido mais civilizatório do que economicista – propiciado pelas Ciências Humanas pode ser observado no debate acerca dos Direitos Humanos, igualdade, direito à diferença, políticas afirmativas e outros tantos temas que avançaram em nossa sociedade graças a ação de movimentos sociais e de trabalhos e teorias produzidos nas Humanidades. Em matéria de reconhecimento social obtivemos, nas últimas décadas, um inegável ganho civilizatório, alavancado, em certo medida, por trabalhos em Ciências Humanas. Foram esses trabalhos e seus resultados conceituais e práticos que permitiram o desenvolvimento de uma atitude de maior sensibilidade e compreensão diante da alteridade e das formas sociais de opressão e inferiorização de grupos específicos – mulheres, negros, pobres, imigrantes, homossexuais, índios, etc..
De uma maneira decisiva, podemos afirmar que as Ciências Humanas contribuem com o desenvolvimento de uma sociedade na medida em que elas podem fornecer, a um só tempo, um conhecimento aplicável e reflexivo sobre os fenômenos e questões que esta sociedade busca resolver e, também, acerca das implicações dos valores, compreensões e aspirações em nome dos quais esta sociedade ou grupos dela pensam e agem. O investimento em conhecimentos orientados para a explicação dos fatos humanos e para o esclarecimento dos valores que as pessoas e grupos assumem e praticam em suas percepções e aspirações é um fator indispensável para qualquer sociedade que se pretenda desenvolvida num sentido mais pleno da palavra. Engenharias e tecnologias ajudam a construir e fazer crescer um país, mas não produzem por si mesmas compreensões capazes de impulsionar um processo de autoentendimento sobre o país, seus dilemas e ambições.
A exclusão reiterada das Ciências Humanas no programa Ciências sem Fronteiras abre mais um flanco para reflexão e crítica a propósito dos rumos que o Governo tem adotado como diretrizes do projeto nacional de desenvolvimento. Apostar numa concepção de desenvolvimento que abre mão de “pensar e entender o Brasil” para além das categorias econômicas mais redutoras e autoreferenciadas é bem mais do que um equívoco ultrapassado, é antes e fundamentalmente um equívoco bastante perigoso e ameaçador.