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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Um falso debate e as falsas solucoes

O governo debate um falso problema: o de uma suposta desindustrialização do Brasil, quando o que está havendo é uma perda de competitividade de exportações industriais brasileiras, por problemas "made in Brazil", não derivados de fatores externos.
Todos os problemas que infernizam a cabeça dos burocratas do governo -- e que são objeto de reclamações dos industriais brasileiros, contra a "concorrência desleal" do exterior -- são, foram e continuam sendo problemas criados inteiramente por medidas do governo, e poderiam ser resolvidas por medidas do governo, no âmbito puramente interno.
Mas, não: o governo vai acusar algum problema externo qualquer, vai praticar protecionismo, vai subsidiar os industriais chorões, e nós vamos pagar a conta, sem que os problemas sejam de fato resolvidos. Ou seja, vão adotar as "soluções" erradas, para nosso prejuízo, claro.
Paulo Roberto de Almeida

Documento oficial alerta para desindustrialização

Sergio Leo e Marta Watanabe - Brasília e São Paulo
Valor Econômico, 16/11/2010




O país vive um processo de desindustrialização? O Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio tomou partido nesse debate em documento no qual afirma que o processo existe, é preocupante e ameaça as contas externas. O trabalho, que circula reservadamente na equipe econômica e foi obtido pelo Valor, sugere que o governo deveria criar uma "diretriz" para elevar o saldo comercial, hoje em torno de 9% das exportações, para um nível mínimo de 14%.
No primeiro semestre, o superávit comercial foi de US$ 7,9 bilhões. Para eliminar a necessidade cobrir as contas externas com investimento do exterior, seria necessário saldo de US$ 19,5 bilhões. Segundo o Ministério do Desenvolvimento, o governo deveria estimular exportações, numa clara oposição às intenções do Ministério da Fazenda, que tem proposto controle de importações.
O documento sustenta que é evidente a "reprimarização" da pauta de exportações. No primeiro semestre, a participação dos manufaturados foi de 40,5%, abaixo dos 43,4% dos produtos básicos, "composição que retrocede ao patamar de 2008". A indústria de transformação, que chegou a ter superávit de US$ 31,9 bilhões em 2005, registrou déficit de US$ 13,9 bilhões no primeiro semestre deste ano. Setores como têxteis, confecções, móveis e veículos, que eram superávitários, operam com déficit. O setor de veículos passou de superávit anual médio de US$ 9,1 bilhões (2004-2007) para déficit de US$ 3,1 bilhões em 2009.
O déficit da indústria cresce à medida que aumenta a valorização do real em relação ao dólar. José Velloso Dias Cardoso, diretor da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas (Abimaq), diz que o aço longo de países europeus, por exemplo, chega ao país com preço 40% inferior ao do produto nacional. A mesma tendência ocorre em outros produtos siderúrgicos, como vergalhões e fio-máquina. O preço do aço nacional chega a ser o dobro do chinês, diz Velloso.
De janeiro a setembro, a importação de produtos siderúrgicos somou US$ 3,95 bilhões, quase o dobro dos US$ 2,06 bilhões do mesmo período do ano passado. A indústria metalúrgica ainda tem superávit, mas o saldo caiu de US$ 3,66 bilhões de janeiro a setembro de 2009 para US$ 689,7 milhões nos três primeiros trimestres deste ano.

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terça-feira, 16 de novembro de 2010

Documento oficial alerta para desindustrialização

DEU NO VALOR ECONÔMICO

O país vive um processo de desindustrialização? O Ministério do Desenvolvimento, Industria e Comércio tomou partido nesse debate em documento no qual afirma que o processo existe, é preocupante e ameaça as contas externas. O trabalho, que circula reservadamente na equipe econômica e foi obtido pelo Valor, sugere que o governo deveria criar uma "diretriz" para elevar o saldo comercial, hoje em torno de 9% das exportações, para um nível mínimo de 14%.

No primeiro semestre, o superávit comercial foi de US$ 7,9 bilhões. Para eliminar a necessidade cobrir as contas externas com investimento do exterior, seria necessário saldo de US$ 19,5 bilhões. Segundo o Ministério do Desenvolvimento, o governo deveria estimular exportações, numa clara oposição às intenções do Ministério da Fazenda, que tem proposto controle de exportações.

Desindustrialização preocupa o Ministério do Desenvolvimento

O país vive um preocupante processo de "desindustrialização negativa" que pode ameaçar as contas externas, alerta documento reservado do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC) obtido pelo Valor. O documento, que circula na equipe econômica, diz ser um "fator de preocupação e sinal de alerta" a influência da balança comercial no aumento do saldo negativo nas contas externas, que torna o Brasil cada vez mais dependente de investimentos especulativos. Ele sugere ao governo criar uma "diretriz" para elevar o saldo comercial, em torno de 9% das exportações.

O governo, segundo o MDIC, deveria fixar um "nível mínimo" considerado aceitável para a relação entre saldo comercial e exportações, e apoiar exportadores para garantir esse resultado. No primeiro semestre, essa relação superávit/exportações ficou em 8,8%, para um saldo de US$ 7,9 bilhões. Para eliminar a necessidade de cobrir as contas externas com investimentos em carteira (ações e títulos) do exterior, seria necessário que o superávit no período tivesse sido de US$ 19,5 bilhões, desempenho considerado "inexequível" pelo próprio ministério.

O documento propõe que, após fixado o "nível mínimo aceitável" para o saldo comercial (segundo sugere, no primeiro semestre deveria ter sido 14,3%), o governo adotaria medidas para elevar as exportações de forma a reduzir pela metade a necessidade de financiamento para as contas externas.

Numa clara oposição às intenções do Ministério da Fazenda, que tem proposto medidas de controle das importações no debate interno do governo, o MDIC argumenta, no texto, que a busca de um saldo comercial mais alto deve ser feita com iniciativas de estímulo às exportações, com "medidas estruturantes" - como redução de tributos sobre exportadores, simplificação de procedimentos burocráticos e políticas de incentivo à desvalorização do real.

Baseados no desempenho das exportações no primeiro semestre, os técnicos do ministério previam que as exportações teriam de ter crescido US$ 5 bilhões acima do resultado obtido entre janeiro e junho, ou 35% além do desempenho do mesmo período em 2009. No segundo semestre, o surpreendente desempenho das exportações elevou a previsão de exportações, de US$ 180 bilhões para US$ 195 bilhões, o que reduziria o esforço para obter o superávit maior - o número exato teria de ser recalculado pela equipe econômica.

O documento, concluído em julho, mesmo mês em que, coincidentemente, o Banco Central interrompeu a escalada de alta nas taxas de juros, toma partido no debate se há ou não desindustrialização no país argumentando que é evidente a "reprimarização" da pauta de exportações (predomínio de bens primários, como minério de ferro, soja e grãos). A desindustrialização não se caracteriza pela queda na produção física da indústria, que pode até aumentar, argumenta o estudo. "A característica fundamental do processo de desindustrialização é a perda relativa de dinamismo da indústria na geração de renda e emprego na economia", define o texto.

Para o ministério, a "reprimarização" ameaça o país desde 2007 e ficou evidente no primeiro semestre, quando a participação dos produtos manufaturados (máquinas, veículos, eletrodomésticos) no total das exportações foi de 40,5%, abaixo dos 43,4% da participação de produtos básicos - "composição que retrocede ao patamar de 2008", diz o documento.

Enquanto o Brasil exporta cada vez mais commodities (ferro, soja) do que importa, o comércio de produtos manufaturados segue tendência inversa, e passou, de um superávit em favor do país de US$ 4 bilhões em 1992, para um déficit de US$ 9,8 bilhões em 2007 - valor que subiu para US$ 30,5 bilhões só no primeiro semestre de 2010. O ministério prevê um "déficit histórico", até o fim do ano. A indústria de transformação, que chegou a um superávit recorde de US$ 31,9 bilhões em 2005, passou a ter mais importações que exportações a partir de 2008 e registrou um déficit de US$ 13,9 bilhões no primeiro semestre de 2010.

Setores de "baixa-média" tecnologia como os de têxteis, confecções e móveis, que mantiveram superávits comerciais até o começo da década, já têm déficits ou, como no caso de móveis e indústrias diversas, deverão ter saldo negativo até o fim do ano, prevê o MDIC. No caso de couro e calçados, as vendas de couro têm compensado o déficit no subsetor de calçados.

Outro exemplo da "deterioração" é o segmento de veículos automotores e equipamentos de transporte, considerado de média-alta e alta intensidade tecnológica e que passou de um superávit anual de, em média, US$ 9,1 bilhões entre 2004 e 2007 a um déficit de US$ 3,1 bilhões em 2009, que deve se elevar neste ano. O déficit no primeiro semestre já é maior que o alcançado em todo o ano 2000 por setores de intensidade alta e média-alta, que já eram deficitários, como o de máquinas de informática, elétricas e de comunicação, equipamentos médico-hospitalares, automáticos e de precisão e químicos e artigos de borracha.

Há uma "tendência estrutural de geração de déficits em importantes segmentos da tecnologia de transformação", nota o documento, que classifica essa tendência de "um sinal de alerta para uma possível vulnerabilidade da atividade econômica nacional e para as contas externas do país". Nos últimos três anos, as exportações aumentam a um ritmo inferior ao do crescimento do país e, na falta de medidas compensatórias, o câmbio influencia diretamente a perda de competitividade das vendas da indústria ao exterior, mostra o estudo. Já as importações aumentam acima do ritmo de crescimento da economia, ameaçando o saldo comercial, e os investimentos diretos já não são suficientes para cobrir as necessidade de financiamento do déficit nas contas externas totais.

É um cenário preocupante, "posto que reflete uma dependência de capitais de curto prazo, sujeitos a volatilidade e nervosismos dos agentes financeiros internacionais", alerta o ministério.

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Addendum em 17.11.2010: Este editorial do Estadão, um dia depois que eu fiz meus comentários iniciais, traduz a mesma realidade: o Brasil não é competitivo por fatores puramente internos. Quando é que as lideranças políticas vão reconhecer essa simples realidade? (PRA)

A desindustrialização não se explica só pelo câmbio 

Editorial - O Estado de S.Paulo, 17.11.2010

Finalmente, pelo menos o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDCE) está reconhecendo que existe um processo de desindustrialização no País, que pede uma ação mais afirmativa do governo para conter um processo que só se poderá ampliar sob o efeito da acumulação.
O MDCE constata o que chama de "reprimarização" (predominância de commodities nas exportações) enquanto se registra um déficit nas de produtos industriais. A indústria de transformação, que tinha superávit externo de US$ 31,9 bilhões em 2005, já em 2007 apresentou déficit de US$ 9,8 bilhões, e de US$ 30,5 bilhões no primeiro semestre deste ano.
Podia ser que o déficit se limitasse a setores "trabalho-intensivos", como os produtos têxteis e os móveis, dada a concorrência da China, mas chegou também aos automóveis, cujo superávit médio de US$ 9,1 bilhões, entre 2004 e 2007, passou para um déficit de US$ 3,1 bilhões, no ano passado, que deve ser muito maior neste ano.
A melhoria do poder aquisitivo da população pode ter permitido a compra de bens de maior tecnologia. Mas isso não explica o aumento da importação de produtos siderúrgicos de 70,1% nos nove primeiros meses deste ano, ante o mesmo período de 2009, embora as importações de material elétrico, eletrônico e de comunicações tenham crescido 51,8%. No segundo caso, pode-se falar de efeito renda, mas no primeiro caso isso não pesa. Temos as matérias-primas necessárias no Brasil e instalações siderúrgicas modernas. Não será apenas o efeito câmbio?
Na realidade, não se entende que produtos pesados possam ser importados da Europa por preços menores do que o nacional, levando em conta o custo do transporte e até a tendência de reduzir os preços diante da queda da demanda, observada nos países da União Europeia. A razão é que temos no Brasil um custo de produção maior, em razão da carga tributária, da legislação trabalhista e dos juros, sem falar da menor produtividade. Não podemos esperar que a valorização do real desapareça tão logo (parte dela é vinculada ao sucesso econômico) e seria um grave erro concentrar esforços apenas na correção do câmbio. As mudanças mais urgentes são de outra ordem.
É preciso, antes de tudo, reduzir a carga tributária, o que por sua vez tornará possível uma redução da taxa de juros, que tem sua origem no déficit público. E é preciso haver uma legislação que favoreça as exportações, além de uma política de estímulo à inovação para não dependermos tanto de tecnologia externa.

Tragedia educacional brasileira (3) - entrevista com Simon Schwartzman

Progresso mal-educado
Entrevista com Simon Schwartzman
Ivan Marsiglia
O Estado de S.Paulo, 14/11/2010

Desenvolvimentistas achavam que a educação no Brasil melhoraria junto com a economia. Não foi assim, diz sociólogo e pesquisador do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS)
O MEC ainda não passou na prova do Enem. Desde que o Ministério da Educação apresentou sua proposta de reformulação do Exame Nacional do Ensino Médio, uma sucessão de erros, tentativas de fraude e problemas de organização tiraram a paz dos estudantes e abalaram o nome do ministro Fernando Haddad nas bolsas de apostas para permanência no cargo na futura gestão Dilma Rousseff.

Em outubro de 2009, o principal instrumento de avaliação dos conhecimentos do ensino médio do governo federal foi cancelado após uma reportagem do Estado revelar que a prova tinha vazado. Em dezembro do mesmo ano, o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), responsável pelas provas, divulgou o gabarito errado e seu presidente pediu demissão.

Em janeiro de 2010, o sistema online do MEC para candidatura a vagas nas universidades federais usando o Enem travou e estudantes levaram até 14 horas para fazer a inscrição. Em fevereiro, um equívoco na digitalização das redações levou à divulgação errada das notas de 915 estudantes.

Em agosto, vazaram dados pessoais de inscritos nos anos de 2007, 2008 e 2009. E, nessa semana, erros no cartão de resposta fizeram a Justiça do Ceará suspender o exame liminarmente - decisão derrubada apenas na sexta-feira pelo Tribunal Regional da 5ª Região. Desempenho nota zero.

Para o sociólogo mineiro Simon Schwartzman, os problemas operacionais e logísticos do Enem escondem a questão que realmente importa. "É a própria ideia do Enem, desse tamanho e com essa escala, que precisa ser discutida", diz o pesquisador do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS), que foi presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) entre 1994 e 1998 e diretor para o Brasil do American Institutes for Research de 1999 a 2002. "O correto seria voltar à ideia inicial do exame, menor e focado na avaliação de competências, não de conhecimentos", defende o especialista.

Na entrevista a seguir, Schwartzman afirma que os ideólogos do desenvolvimentismo no Brasil sempre minimizaram a importância da educação, considerando-a mero corolário do crescimento econômico. E que a superação do gigantesco atraso educacional do país passa não pelo "grande projeto", que nunca vem, mas por investimentos específicos e esforços simultâneos em diversas frentes.

- Como entender a sucessão de problemas na principal prova de avaliação do MEC?

É a própria ideia do Enem que precisa ser discutida. Os problemas operacionais e logísticos que ocorreram são acidentes de percurso, embora não aleatórios - pois quando se tenta fazer algo desse tamanho, com tal escala, está sujeito ao que ocorreu. Falta estrutura ao Inep, que tem demasiadas funções, não possui um quadro de pessoal forte e se meteu a fazer um projeto muito grande, ambicioso demais.

- O que deve ser discutido no Enem?

A questão é: precisamos de um Enem desse tipo? Na experiência de outros países, existe algo semelhante? A resposta é não. Em sua origem, nos anos 90, o Enem era uma maneira de obter um padrão de referência para o ensino médio. Um teste de competência, não de conhecimento - em que se analisa nos alunos a capacidade de raciocínio, o uso da língua, a capacidade de expressão e a de resolver questões. Mas se transformou em uma prova de conteúdo, longa, exaustiva, um vestibular nacional.

- Com esse mesmo argumento, de que o sentido original da prova se descaracterizou, a antropóloga Eunice Durham defendeu o fim do Enem. O sr. concorda?

O correto seria voltar à ideia inicial, focar o exame em competências, e não em conhecimentos. Imagino que esse tamanho de prova, feita em dois dias, tenha sido uma exigência das universidades. O governo deve ter feito um movimento para convencê-las a considerar a prova em seu processo de seleção e elas responderam: "Então coloquem no Enem tudo o que a gente gostaria de avaliar". Está errado.

- Não é assim em outros países?

Europeus e americanos têm sistemas antigos e bem estabelecidos de avaliação do ensino médio. Na França há o baccalauréat (que existe desde 1808, dura cerca de uma semana e inclui provas orais), os ingleses têm o que chamam de A-Level (Advanced Level General Certificate of Education, aplicado desde 1951) e nos EUA existe o SAT (Scholastic Assessment Test, que começou em 1901). Em geral, esse tipo de prova exige que o estudante apresente certo nível de conhecimento da língua e de matemática, para então oferecer diversas opções: geografia, artes, ciências, etc. Depois, as universidades usam os resultados em função dos interesses de cada departamento. O ponto fundamental é que não se manda todo o mundo estudar tudo. Esse é um problema da educação média brasileira: os vestibulares das universidades mais competitivas criaram uma tal pressão em cima do ensino médio que resulta nesse currículo maluco que temos, com 14 matérias. Outra diferença é de logística: na Inglaterra são cinco as instituições encarregadas de preparar as provas, os examination boards. E, nos EUA, o SAT é aplicado por computador, várias vezes por ano. O estudante se inscreve, marca uma hora, vai lá e responde questões em progressão de dificuldade. Por que não adotar uma tecnologia dessas no Brasil? É maluquice juntar 3,5 milhões de pessoas em salas de aula no mesmo dia para responder às provas com caneta.

- Por que, após oito anos de governo FHC e oito de Lula, o Brasil ainda não encontrou um rumo claro para a educação?

Faltou prioridade. Durante muito tempo, boa parte da esquerda brasileira cultivou a ideia de que a educação se resolve sozinha quando a economia estiver bem. Se você pegar a obra de Celso Furtado, o grande teórico do desenvolvimento no Brasil, vai ver que ele não escreveu uma linha sobre educação na vida. O contrário do que diziam os pioneiros do tema nos anos 30: se você resolver a educação, o resto vem. A verdade é que a educação exige um investimento específico, próprio, ainda que sem relação clara com o mercado de trabalho. O exemplo sempre citado é o da Coreia do Sul, que nos anos 60 tinha um nível educacional parecido com o brasileiro e, com investimento pesado em educação básica, média e superior, atingiu um alto patamar de qualidade para toda a população.

- Consta que na Coreia do Sul o enfoque foi na qualidade e não na infraestrutura: as escolas muitas vezes eram grandes galpões onde os estudantes aprendiam em período integral com professores de alto nível e bem pagos. O que se pode tirar da experiência coreana?

Acho que dá para tirar algumas lições. No Brasil, o governo federal sempre colocou mais dinheiro na educação superior. Até hoje é assim. Como a classe média alta a queria para os seus filhos, o pensamento foi: "Vamos dar universidade gratuita para esse pessoal que pressiona muito; o povão que não pressiona, deixa para lá." E nunca houve uma política nacional para a educação básica e média. Até porque ninguém sabia muito bem o que fazer. Não houve um esforço intelectual de se pensar quais seriam os conteúdos, como se monta o sistema, como se equacionam os problemas.

- O ministro Paulo Renato universalizou o ensino básico. Fernando Haddad retomou investimentos em escolas técnicas, nas universidades federais e fez o Prouni. Como o sr. avalia essas duas gestões?

A coisa mais importante da gestão Paulo Renato foi a criação do Fundef, que depois virou Fundeb - e equacionou o financiamento da educação fundamental. Foi essa norma que estipulou a distribuição de recursos conforme o número de alunos. No ensino superior, não acho que ele tenha conseguido muita coisa: o ensino privado cresceu sozinho, pois o sistema público continuou fechado e elitista, tal como foi pensado na reforma de 1968, ainda no período militar. Embora tenha criado o Provão e estimulado uma gestão mais responsável dos recursos pelas próprias universidades, Paulo Renato enfrentou greves e grande resistência política. No caso do governo Lula, houve a criação de algumas universidades, mas em boa parte apenas no papel: instituições que já existiam e apenas mudaram de nome. A política do atual governo tem sido a de dar tudo o que as universidades públicas querem, sem pedir nada em troca. Houve um esforço no Reuni, quando se estimulou que elas a aumentassem o número de vagas, criando cursos noturnos. Mas sem clareza sobre em que áreas, de que maneira, para que tipo de público. E teve o Prouni, uma política que faz sentido, de se usar as vagas do setor privado para responder um pouco à demanda. Curiosamente, antes de Lula, essa ideia de subvencionar o estudo no setor privado era um tabu, não se podia fazer no Brasil.

- Por que o sr. diz que, sem parcerias privadas, a universidade pública 'se acomoda'?

Nós temos no Brasil uma situação em que as universidades são repartições públicas. É o caso da USP. Elas recebem uma porcentagem fixa dos impostos do Estado e não se preocupam em ir além. Não contam com um sistema de incentivos ou busca de resultados - nem acadêmicos, nem de eficiência no uso dos recursos. Em outros países, as universidades públicas são obrigadas a mostrar o que estão fazendo, justificar o que gastam e, em contrapartida, têm flexibilidade para pagar mais ou menos ao professor de acordo com o seu desempenho. Um modelo de gestão muito mais ágil.

- O foco do Brasil hoje deveria ser a educação básica ou a pesquisa de ponta?

Esse é um falso dilema. Uma não pode ser sacrificada pela outra. A educação é uma fronteira ampla de trabalho. Não se pode esperar que um ministro, uma única cabeça, saiba o que fazer. Precisamos de gente competente trabalhando em diversos níveis, em todo o país. Nossa educação básica continua com um desempenho péssimo internacional, em qualquer comparação que se faça. Na pesquisa de ponta, o que temos no Brasil é uma política de valorização da pesquisa acadêmica, que teve um papel importante, formou gente, desenvolveu a pós-graduação - mas relegou a segundo plano a pesquisa aplicada, ligada às política empresarial e pública. É um sistema muito voltado para dentro dele mesmo.

- O sr. diz que a educação nunca esteve na órbita do desenvolvimentismo brasileiro. Tanto a presidente eleita, Dilma Rousseff, quanto seu adversário no segundo turno, José Serra, são considerados desenvolvimentistas. Se é assim, quando haverá o grande projeto que diminua o gap histórico do país na educação?

Não existe "grande projeto". É preciso trabalhar muito e em várias frentes. O Brasil tem boas experiências, que podem ser aprofundadas. Na educação básica, Minas Gerais aplica uma política de contratos de gestão nas escolas, em que se definem metas e se avaliam resultados. Vários estados do país já adotam o período de seis horas nas escolas - que é o tempo necessário às crianças. Precisamos falar de programas e métodos de ensino. É intolerável que um menino de 8 anos em uma escola não saiba ler e escrever, quando há metodologia estabelecida para isso. As faculdades de pedagogia não ensinam como se ensina: ficam discutindo teorias sociológicas ou sei lá o quê. Há que se aumentar o salário dos professores e criar sistemas que associem desempenho a remuneração. A hora é esta.

Universidades estrangeiras: selecao pelo merito

Nao vi nenhuma menção a "cotas raciais" nesta matéria sobre seleção de candidatos ao terceiro ciclo em outros países...
Paulo Roberto de Almeida


Caminhos estrangeiros de acesso à universidade
Fernanda Godoy, Deborah Berlinck, Graça Magalhães-Ruether, Priscila Guilayn e Janaina Figueiredo O Globo, 14/11/2010

Em seis países, modo de seleção se divide entre aplicação de exames como o Enem ou avaliação do histórico escolar
Depois de dois anos consecutivos com fraudes e confusões no Enem, especialistas voltam os olhos para experiências de outros países para garantir o acesso à universidade. Há dois caminhos mais comuns: um teste similar ao Enem, como o realizado nos EUA, porém mais descentralizado, ou a primazia das notas do histórico do aluno na escola.

Nos Estados Unidos, país com a maior concentração de universidades de alta qualidade, há mais de cem anos as principais instituições, reunidas no College Board, organização sem fins lucrativos, decidiram aplicar exames padronizados aos candidatos à admissão.

O SAT Reasoning Test (antes conhecido como Scholastic Aptitude Test), com questões de matemática, compreensão de texto e redação, é aplicado atualmente pelo Educational Testing Service, com base em Princeton, e que também aplica outros testes, como o TOEFL (de língua inglesa), em mais de 180 países. Normalmente, os alunos fazem o teste duas vezes, no começo e no final da high school (o equivalente ao ensino médio).

Nos últimos anos, ganhou força um teste alternativo, o ACT (American College Testing), criado em 1959 e aceito por universidades de todo o país, mas especialmente popular em alguns estados, como Michigan, Flórida e Califórnia. Os números estão praticamente empatados: este ano, 1.568.835 fizeram o ACT - com prova de ciência, além de inglês e matemática - e 1.547.990 passaram pelo SAT.

Notas altas são indispensáveis para entrar nas universidades de elite, como as Ivy League: Brown, Columbia, Cornell, Dartmouth, Harvard, Penn, Princeton e Yale. A nota máxima do SAT é 2.400 pontos. O candidato tem o direito de optar entre apresentar todos os resultados ou apenas o melhor, tanto no SAT como no ACT.

Mas nota não é garantia de vaga, e as universidades americanas se valem de outros critérios para selecionar alunos, como o envolvimento em atividades extracurriculares, comunitárias e esportivas. É de praxe as universidades pedirem um texto - e agora também um vídeo - de apresentação, no qual o candidato explique por que gostaria de entrar na instituição e que contribuição ele traz.

Na França, em princípio, para universidade, não há exames: valem as notas da escola. Mas, de acordo com a reputação da universidade, a seleção é dura.

No Instituto de Ciências Políticas em Paris, o SciencesPo, por onde passou a nata da política francesa, como o ex-presidente Jacques Chirac, o funil da seleção é estreitíssimo. O SciencesPo diz que não tem limite para o número de alunos. O critério é o nível dos candidatos.

Em 2009, por exemplo, foram admitidos 1.225: 415 por teste, 302 por um procedimento internacional (estrangeiros), 381 por terem obtido notas muito boas nos estudos anteriores e 127 por ter CEP (Certificado de Estudos Políticos).

Dez semestres à espera de vaga
Quem quer uma vaga em qualquer universidade alemã precisa fazer o exame de conclusão do ensino (Abitur) com boas notas e empacotar as malas para ir viver na cidade onde for possível uma vaga. Como não há vestibular (apenas em alguns cursos, como Arquitetura, Arte ou Música, há provas de aptidão), a disputa por vaga é como a competição por emprego - os melhores têm prioridade.

Para os cursos cobiçados, como medicina ou psicologia, os candidatos só têm chances se tiverem a melhor média possível. Nas universidades mais disputadas, como Berlim e Munique, nem isso é garantia. Muitos precisam candidatar-se várias vezes.

Munique leva em consideração a nota e o tempo na lista de espera. O tempo médio de espera para o curso de economia na Universidade Humboldt é de dez semestres.

Embora as universidades alemãs sejam gratuitas (cobram apenas taxa semestral de cem a 500 euros), os altos preços dos aluguéis fazem da universidade um privilégio dos mais ricos.

Apenas 33% das crianças que frequentam a escola primária terminam os estudos em uma universidade. A maioria segue a educação profissionalizante.

Na Espanha, em novembro do ano passado foi aprovada uma nova prova de acesso à universidade, conhecida como Exame de Seletividade. O exame é preparado por um comitê formado pelas universidades, professores do bachillerato (equivalente ao ensino médio) e representantes das comunidades autônomas (regiões espanholas). Quando as provas estão prontas, as comissões universitárias fazem público o número e tipo de perguntas e os critérios de pontuação, para que os alunos se preparem.

São quatro provas: Língua Castelhana e Literatura; Idioma Estrangeiro; História da Filosofia ou História da Espanha; além de alguma disciplina do bachillerato.

Há uma quinta prova (de segunda língua oficial) no caso das comunidades autônomas com idioma próprio. Também há uma específica dependendo da área escolhida.

Na Argentina, em 1985, o governo argentino criou o Ciclo Básico Comum (CBC), que substituiu as antigas e tradicionais provas para entrar na Universidade Nacional de Buenos Aires, a mais importante do país. Formado por seis matérias (duas comuns a todas as faculdades, duas determinadas pela orientação escolhida pelo aluno e duas específicas da carreira), o CBC é obrigatório para quem quer entrar na UBA.

Existe ainda um sistema de educação à distância pelo qual o aluno pode estudar sozinho e fazer as provas do CBC. As demais faculdades estatais do país têm sistemas variados (provas e cursos similares ao CBC). A maioria das faculdades particulares não realiza provas de admissão.

No Chile, desde 2003 existe a chamada Prova de Seleção Universitária (PSU), aplicada por todas as universidades do país para selecionar novos estudantes.

No início, a ideia do governo chileno era que a PSU fosse um mecanismo transitório, prévio à implementação de um novo Sistema de Ingresso à Educação Superior (SIES). No entanto, até hoje o SIES não saiu do papel. A PSU é realizada na primeira quinzena de dezembro e tem quatro provas.

Numa prova de múltipla escolha, a cada quatro respostas incorretas é descontada uma resposta correta, e a pontuação varia entre 150 e 850 pontos. Cada carreira tem um número de vagas disponíveis, e o ingresso dos novos alunos depende do resultado da prova e da média de suas notas no ensino médio. Os alunos com melhor rendimento recebem uma bolsa, e o resto, tanto da educação pública como da privada, pagam uma mensalidade, que depende de cada carreira.

Celso Amorim: entrevista-final (ou quase...)

Se ouso formular algumas observações à  entrevista do ministro Celso Amorim, faria apenas as retificações abaixo, não de opinião, mas como statements of fact. Ou seja, vou limitar-me a expor alguns fatos.
[Comentários PRA: entre colchetes e em itálico.]
Observo apenas que não sou, nem nunca fui um especial apreciador da Alca: um acordo visivelmente desequilibrado, proposto pelos EUA em seu benefício, obviamente. Mas quem assinou a declaração de Miami, comprometendo o Brasil com a Alca, foi o presidente Itamar Franco, supostamente sob recomendação de seu chanceler, o mesmo que agora dá entrevista dizendo que foi bom não ter a Alca (embora eu considere que as suas razões, ligadas à crise americana, são totalmente erradas). Acordos comerciais são sempre negociáveis, como aliás fizeram vários países da região, negociando acordos de acesso ao mercado americano -- com reciprocidade, claro -- depois que três altivos e soberanos países (Brasil, Argentina e Venezuela) implodiram a Alca (como aliás era a intenção desde o início). Considero, por acaso, que é melhor ter mais comércio, em geral, do que menos comércio, mesmo com o "império". Essa coisa de comércio "sul-sul" e uma "nova geografia comercial" me parece uma auto-limitação sem qualquer sentido prático: do ponto de vista dos empresários (que são os que exportam, não o governo, vale lembrar), mercados são mercados, estejam onde estiverem, ao sul, ao norte, embaixo, em cima, dentro, fora, anywhere. As simple as that...
Paulo Roberto de Almeida

ENTREVISTA DA 2ª: CELSO AMORIM
ELIANE CANTANHÊDE - COLUNISTA DA FOLHA
Folha de S.Paulo, 15.11.2010

Sempre digo que Pelé só teve um; igual a Lula não vai ter
AINDA ASSIM, CHANCELER DIZ QUE DILMA PODE FAZER UM GOVERNO "EXTRAORDINÁRIO", DÁ COMO CUMPRIDA SUA MISSÃO NO CARGO E DEFENDE POLÍTICA EXTERNA, QUE DEFINIU COMO "ALTIVA E ATIVA"

"Não lamento nada." Com essa frase, dita em francês e emprestada de Edith Piaf, o ministro Celso Amorim, 68, termina oito anos à frente do Itamaraty defendendo de forma enfática sua política, que batizou de "altiva e ativa".
Mantém as críticas aos EUA, carrega nas tintas ao pintar o protagonismo do Brasil no comércio e na política externos e defende a posição que o país teve em casos polêmicos, como mediar o acordo nuclear do Irã.
Ele diz que cumpriu sua missão e que seria "incapaz" de se candidatar a permanecer no governo Dilma Rousseff. Compara o presidente a Pelé e vaticina: "Igual a Lula não vai ter, mas não quer dizer que Dilma não vá fazer um governo extraordinário".

Folha - O sr. é candidato a continuar no cargo?
Celso Amorim - Fiquei muito contente com a vitória da Dilma, mas eu seria incapaz de me colocar como candidato.

FSP: Se fosse convidado, ficaria?
Eu me sinto bem, considero minha missão cumprida. Agora, se me pedirem conselho, estou disposto a dar.

FSP: Por exemplo...
Acho que o próximo ministro deve ser um profissional e a gente deve continuar trabalhando na renovação. Precisamos de gente mais nova.
[É um fato: gente mais nova é sempre mais suscetível de obedecer sem questionamentos às ordens de cima, inclusive porque depende dos mais velhos para promoção, ou de apenas um mais velho...]

FSP: O embaixador Antônio Patriota?
Ele tem plenas condições, mas não é o único.

FSP: Como o sr. virou chanceler?
Eu nem conhecia o Lula. Nunca soube por que optou por mim, nunca perguntei.
Ele costumava dizer que eu tinha caspa, então, devia ser um pouco mais popular. Adivinha qual a primeira pessoa para quem eu liguei quando o Lula foi eleito em 2002? Foi para o Fernando Henrique Cardoso. Mas o Lula é uma figura excepcional, você conta três ou quatro líderes políticos como ele no século.

FSP: E como vai ser sem Lula?
Sempre que me perguntam isso digo que Pelé só teve um, mas o Brasil foi cinco vezes campeão. Igual a Lula não vai ter, mas isso não quer dizer que a Dilma não vá fazer um governo extraordinário e uma política externa muito boa.

FSP: Qual foi o maior acerto da política externa?
Quando o presidente me indicou publicamente, eu tinha de dizer umas palavras rápidas ali. Eu tinha falado umas duas vezes com Lula, não tinha combinado nada, não tinha estudado o programa do PT, e, aí, eu disse que a política externa seria altiva e ativa. Essas palavras, que eu disse quase por acaso, acabaram entrando para o programa do PT e da presidente. Era uma questão de atitude.

FSP: Antes não era altiva e ativa?
Tenho 50 anos de Itamaraty e vi gente muito boa, muito competente, mas com aquela atitude que um secretário-geral de muito tempo atrás traduzia assim: "Política externa dá bolo". Então, é melhor cuidar da burocracia e evitar bolo.

FSP: O que poderia dar bolo?
Quando nós fizemos o G20 comercial em Cancún e quando começamos a brigar contra a Alca e todos os vizinhos pareciam muito atraídos pela Alca, inclusive a Argentina. Ela morreu em Miami, sabe por quê? Porque foi quando conseguimos chegar a uma Alca que serviria ao Brasil, que não cerceasse a nossa capacidade de escolha de um modelo de desenvolvimento, e aí não interessava mais para os outros. Matamos a Alca sem dar um tiro.
[Brigar contra a Alca? Mas foi Celso Amorim, como chanceler de Itamar Franco, que aceitou integralmente o menu da Alca. Diga-se de passagem, foi surpreendente ver o Brasil aceitar, em dezembro de 1994, um compromisso de negociar, até 2005, e implementar depois disso, uma zona de livre-comércio hemisférica. Ou seja, o chanceler de Lula estava desfazendo aquilo que foi feito pelo chanceler de Itamar Franco; o que aliás se deu também em relação aos acordos de promoção e proteção de investimentos, metade dos quais foi assinada por Celso Amorim, que depois se voltou contra sua "criatura" diplomática; notável coerência intelectual.
Mas, "brigar contra a Alca", é uma expressão muito pouco diplomática; significa que havia, pois, uma atitude beligerante. Ela precedia, aliás, o governo Lula: no governo FHC, o futuro SG-MRE Samuel Pinheiro Guimarães já proclamava que a Alca iria matar o Mercosul e impedir o desenvolvimento do Brasil; certo exagero, claro, mas a intenção já estava declarada e a decisão tomada.
Pode-se inclusive perguntar qual é o "modelo de desenvolvimento" do Brasil sem a Alca: a situação de não-Alca trouxe qual modelo de desenvolvimento?
Pode-se também simplesmente esclarecer que um acordo de livre-comércio está longe de ser um modelo de desenvolvimento: seria pretender que o rabo do comércio abanasse o cachorro do desenvolvimento. Nenhum economista sério acredita nesse tipo de argumento.]

FSP: Isso tudo não foi um pouco de teatro? A intenção não era matar a Alca desde o início, por uma questão ideológica?
Olhando em retrospectiva, foi melhor mesmo não ter tido a Alca. A crise nos EUA demonstrou isso. Nós ficamos mais protegidos, tivemos mais liberdade. E pudemos investir na política Sul-Sul.
[Achar que um acordo de livre-comércio, destinado basicamente a ampliar comércio e atrair investimentos produtivos pode "transmitir crise" é uma extrapolação que poucos economistas se arriscariam a fazer. Isso equivaleria a dizer que uma crise na Alemanha vai inevitavelmente se propagar pelos outros 26 países membros, e que portanto melhor seria não ter integração, não ter livre-comércio internamente à UE, pois uma crise na Alemanha, algum dia, seria prejudicial a todos os seus membros.
Não sei quem é capaz de acreditar nisso e deixar de lado todos os benefícios potenciais do livre-comércio e da atração de investimento. Pois é: Grécia, Portugal, Espanha e outros candidatos são malucos: eles preferem perder a liberdade, insistir numa política Sul-Norte, em lugar de ficar quietinhos no seu lugar, desfrutando de sua liberdade com outros países iguais a eles. Gente maluca...]

FSP: Mas o Brasil ficou sem Alca, sem a Rodada Doha e sem acordos bilaterais.
Nosso comércio cresceu com o mundo todo, o Brasil é a oitava economia do mundo, está entre os dez maiores cotistas do FMI. Tinha um acordo prontinho entre EUA e União Europeia para nos enganar de novo, como sempre. Só sobravam migalhinhas. Quem disse "não" foi o G20, em 2003, e não há quem não reconheça que quem liderou o G20 foi o Brasil.

FSP: E o viés ideológico, as picuinhas contra os EUA?
Logo no início, o presidente Lula condenou a invasão do Iraque, mas sem confrontacionismos inúteis, tanto que ele teve uma boa relação com [George W.] Bush, como tem com [Barack] Obama.

FSP: Como foi o início, com o sr., Marco Aurélio Garcia e Samuel Guimarães mandando?
Foi tudo empírico, intuitivo. O presidente muitas vezes tinha uma intuição do que devia fazer, mas foi preciso formular aquilo em termos diplomáticos, e isso exige alguma experiência.
[A jornalista esqueceu do fichamento de americanos em aeroportos brasileiros, decretado por um juiz maluco, em total ilegalidade, medida derrubada por um tribunal de instância superior e prontamente restabelecidade, em sua ilegalidade, por medida administrativa, sem amparo legal, pelos ministérios da Justiça e das Relações Exteriores. Uma medida claramente discriminatória, quando a lei americana se aplicava erga omnes, ou seja, não era dirigida especificamente contra brasileiros.]

FSP: E a questão de princípios, de democracia, de direitos humanos?
Pode ter tido aqui uma repercussão de alguma coincidência infeliz...

FSP: O sr. considera coincidência infeliz o presidente e ministros às gargalhadas com os irmãos Castro no dia da morte de um dissidente cubano?
O fato de ele ter morrido quando o presidente estava lá era imprevisível, você chame como quiser chamar.

FSP: Não equivale a Lula comparar a resistência iraniana a chororô de time derrotado?
Não me cabe comentar declarações do presidente.

FSP: O que o Brasil ganha ao mediar o acordo nuclear do Irã?
Quando o Obama fala na inclusão da Índia no Conselho de Segurança [da ONU] todos captaram que não é possível fazer uma reforma sem o Brasil. Quando se discute clima, comércio, chamam o Brasil, a Índia e a China. O único terreno em que havia ainda uma certa reserva de mercado era a questão da paz e da segurança. Foi por isso que a ação do Brasil e da Turquia no Irã incomodou. Os países ocidentais diziam: "Vai lá". Ninguém acreditava que o Irã aceitasse os três pontos da carta do Obama, e ele aceitou.

FSP: Por que o Brasil se omite de condenar países que desrespeitam os direitos humanos?
Eu sei o quanto essas coisas são manipuladas. No ano em que os EUA faziam acordos comerciais com a China, a China desaparecia das resoluções de direitos humanos. Se no ano seguinte não tinha mais acordo comercial com a China, a China voltava para as resoluções. E agora não entra mais. Há sete países que convivem com situações crudelíssimas e jamais são mencionados. Por quê? Porque têm bases americanas ou outros interesses.

FSP: O Brasil está exercitando o "soft power" ao financiar países de todos os continentes?
Em geral, está financiando empresas brasileiras, e o que o Brasil gasta é ínfimo. Nossa cooperação técnica é comparável talvez à de um pequeno país europeu, tipo Áustria. Você não pode estar entre as dez maiores economias do mundo, querer uma política ativa na OMC e esperar que esses países te apoiem sem nada em troca. É também querer que esses países assumam um risco na hora de você brigar com os Estados Unidos e com a União Europeia.

FSP: A Áustria não tem milhões de miseráveis, como o Brasil.
Uma coisa não elimina a outra. Não vi nenhuma crítica à ajuda ao Haiti.

FSP: O mundo vive nova bipolaridade, entre EUA e China?
Não acho que saímos de uma bipolaridade para cair em outra. O mundo hoje é muito mais complexo. Por mais que a China seja importante, precisa do Brasil para discutir clima. Por mais que os EUA sejam importantes, precisam do Brasil e outros para discutir comércio e finanças. Não há mais como haver políticas impositivas.

FSP: A China é aliado do Brasil nos Bric, mas ao mesmo tempo competidor comercial direto.
Nosso saldo comercial com a China deve chegar a US$ 7 bilhões neste ano, enquanto temos um deficit de US$ 5 bilhões com os EUA, que é o maior superavit dos EUA no mundo. Então, vamos convir que a China não é o nosso grande problema.

FSP: Se o sr. pudesse voltar atrás, o que faria diferente?
Vou falar como a Edith Piaf: "Je ne regrette rien" [Eu não lamento nada].

Leia a íntegra da entrevista
folha.com.br/po830614

RBPI: special issue on Lula's Foreign Policy (sure, there is one...)

O Instituto Brasileiro de Relações Internacionais – IBRI tem a satisfação de anunciar o lançamento da edição especial da Revista Brasileira de Política Internacional – RBPI intitulada

Emerging Brazil under Lula: an assessment on International Relations (2003-2010)

O objetivo central deste número é apresentar um grande painel da ação internacional do Brasil ao longo dos últimos oito anos. Compõem a edição especial os seguintes artigos:

Editorial: An Assessment of the Lula Era, por Amado Luiz Cervo & Antônio Carlos Lessa
Brazil’s Rise on the International Scene: Brazil and the World, por Amado Luíz Cervo
Brazilian External Sector so far in the 21st century, por Renato Baumann
Brazil and the Economic, Political, and Environmental Multilateralism: the Lula years, por Paulo G. Fagundes Visentini & André Luiz Reis da Silva
When emergent countries reform global governance of climate change: Brazil under Lula,por Ana Flávia Barros-Platiau
Security issues during Lula’s administration: from the reactive to the assertive approach,por Rafael Antonio Duarte Villa & Manuela Trindade Viana
Brazil’s strategic partnerships: an assessment of the Lula era (2003-2010), por Antônio Carlos Lessa
A New Strategic Dialogue:  Brazil-US Relations in Lula’s Presidency (2003-2010), por Cristina Soreanu Pecequilo
Brazilian foreign policy towards South America during the Lula Administration: caught between South America and Mercosur, por Miriam Gomes Saraiva
The new Africa and Brazil in the Lula era: The rebirth of Brazilian Atlantic Policy, por José Flávio Sombra Saraiva
Emerging Global Partnership: Brazil and China, por Niu Haibin
International Thought in the Lula Era, por Raúl Bernal-Meza
Brazilian Foreign Policy under President Lula (2003-2010): an overview, por Celso Amorim

O número especial pode ser adquirido na Loja do IBRI.

Azeredo da Silveira: depoimento ao Cpdoc - lancamento de livro

Cariocas, fluminenses, flamenguistas, vascainos, passantes no Rio e fauna variada de turistas acidentais...
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Paulo Roberto Almeida
www.pralmeida.org
diplomatizzando.blogspot.com

Azeredo da Silveira, Lançamento no Rio, quinta-feira
Visite o site do livro: http://silveiradepoimento.com.br/site/

Foro Social de SP? Por que não um FS Piaui, um FS Maranhao?

Tomei conhecimento de que os antiglobalizadores possibilistas -- eles estão sempre dizendo que "um outro mundo é possível", um "outro Brasil", etc. -- estão propondo uma outra cidade de São Paulo, através de um self-proclaimed "Fórum Social São Paulo".
Eu, pessoalmente -- o que já é uma redundância --, acho que SP está bastante bem, como está, e proponho que os "possibilistas" antiglobalizadores se concentrem lá onde isso vai de fato fazer diferença, nesses lugares dominados por velhas ou novas oligarquias, onde a qualidade de vida é muito inferior a de SP.
Não acho que uma outra SP é necessária ou urgente, mas sem querer desviar os paulistanos antiglobalizadores de suas tarefas, eu só queria que eles me explicassem o que significa, exatamente, construir "uma nova cultura política baseada na horizontalidade das relações, na união e no respeito à diversidade das pessoas e organizações"?
Essa "horizontalidade das relações" não lhes parece um convite meio pornográfico, uma coisa a ser feita entre quatro paredes, sem todos esses voyeurs que pululam em SP?
Eis a carta de princípios deles, muito parecida com a do Fórum Social Mundial, cujos"fundamentos" -- se é que os têm -- eu já desmantelei em meu mais recente livro: Globalizando: ensaios sobre a globalização e a antiglobalização (ver no meu site pessoal, seção livros pessoais).
E esse "fortalecimento e a articulação da sociedade civil como ator político autônomo"? Estão querendo botar todo mundo na praça para discutir? Quantos milhões exatamente?
Sei não, está me cheirando coisa de derrotados eleitorais...
Paulo Roberto de Almeida

Aqui os princípios surrealistas...
1 - O Fórum Social São Paulo é uma iniciativa política de organizações da sociedade civil que atuam nessa região metropolitana e acreditam que “outra cidade é possível, necessária e urgente”. (…)
2 - O Fórum Social São Paulo é parte do processo do Fórum Social Mundial, lançado em Porto Alegre em 2001, reivindicando-se de sua Carta de Princípios.
Nela destacam-se, entre outros pontos:
- a construção de uma nova cultura política baseada na horizontalidade das relações, na união e no respeito à diversidade das pessoas e organizações;
- o fortalecimento e a articulação da sociedade civil como ator político autônomo;
- o estímulo a ações que visem o atendimento das necessidades humanas, na perspectiva de superação do atual paradigma econômico e social.
Necessitamos uma civilização que, contra a desigualdade, promova a justiça social; que contra a lógica da competição e do individualismo, afirme a vida cívica, a participação política e uma lógica de inclusão e solidariedade; e que, frente à devastação do planeta, defenda sua integridade para todas as gerações futuras.
3-  O Fórum Social São Paulo não se vincula a partidos, governos, instituições religiosas ou organizações sociais.


Pelo menos no que concerne o item 3, posso dizer com todas as letras que é mentira...
Paulo Roberto de Almeida

domingo, 14 de novembro de 2010

Uma alianca entre o Brasil e os EUA?: proposta de Moises Naim...

Um otimista incurável, claro. Ele tem razão quanto ao fundo, embora quanto à forma muita coisa poderia ser dita.
Na verdade, os establishmentos políticos e diplomáticos, nos dois países, são muito conservadores, de certo modo até reacionários, para considerar as propostas revolucionárias de Naim, sem mencionar o potencial protecionista em ambos os países.
Não creio que os conservadores-reacionários que estão no poder nos dois países empreendam a política que ele propõe. Mas que seria interessante, isso seria.
Só não sei se seria factível, inclusive por razões objetivas, que tem pouco a ver com o conservadorismo de lado a lado...
Paulo Roberto de Almeida
 

Dilma y Barack: una pareja irresistible

MOISÉS NAÍM
El País, 14/11/2010

Una sólida alianza de Brasil y EE UU puede transformar toda la región
 
En junio de 2003, el nuevo presidente de Brasil viajó a Washington para conocer a George W. Bush. La víspera de esa reunión, publiqué una columna en el Financial Times donde exhortaba a Bush a ser tan audaz con Brasil como lo estaba siendo con Irak. Solo que, en el caso de Brasil, le pedía que en vez de buscar un cambio de régimen, hiciese todo lo posible por apuntalar al Gobierno de Luiz Inácio Lula da Silva. Le proponía a Bush que hiciera a Lula una oferta que este no pudiese rehusar: un amplio y generoso acuerdo comercial, un sólido respaldo a los programas sociales que el brasileño había prometido en su campaña, y que dejara claro a los mercados financieros internacionales (que en esos momentos aún veían a Lula con suspicacia) que la Casa Blanca sí creía en el ex líder sindical y que le daría su irrestricto apoyo. Ese pacto entre los dos gigantes del continente, escribía yo entonces, podía transformar de manera muy profunda no solo Brasil, sino toda la región. Si ambos países se comprometían a reducir sus restricciones al comercio internacional y a defender juntos la democracia en el continente, e invitaban a los vecinos a unirse a esa alianza, desencadenarían una positiva revolución económica y política en el hemisferio. Para el resto de los países, quedar excluido de un acuerdo de esta magnitud impondría costes prohibitivos.

En aquella columna también reconocía que era muy fácil burlarse de mi propuesta... y de mi ingenuidad.
Esa primera reunión entre Lula y Bush fue muy exitosa y el conservador estadounidense y el laborista brasileño sorprendieron al mundo con su muy cordial relación inicial. Pero no pasó nada más. No hubo ningún interés de la Casa Blanca en hacerle propuestas concretas a Brasil. Y afortunadamente, Lula no necesitó de Washington para impulsar el enorme progreso que registró su país durante su presidencia. Pero siete años más tarde, mi idea sigue siendo válida.
Una alianza sólida de Brasil y Estados Unidos puede ser una de las innovaciones geopolíticas más importantes de estos tiempos. Y quizá la más viable. No se trata de que los soldados brasileños vayan a morir en las arbitrarias guerras de los estadounidenses, o de que Brasilia se supedite a los dictados de Washington. Esos tiempos ya pasaron y Estados Unidos ni siquiera cuenta ahora con el apoyo incondicional de aliados tradicionales, como los ingleses o los canadienses. Se trata de llegar a una serie de acuerdos -muy posibles- sobre temas esenciales para ambos países y para el resto del mundo: de las relaciones comerciales al cambio climático, de las reformas de las finanzas y el comercio internacional a la proliferación nuclear o la manera en la que el mundo manejará las inevitables dislocaciones producidas por el creciente poder económico y político de China, India y, por supuesto, Brasil. Es obvio que ambos países deberán hacer concesiones y que a la superpotencia del norte y al gigante del sur no les será fácil aceptar algunas de las condiciones del otro. Pero de eso se trata. De entender que estos compromisos son un precio que vale la pena pagar por forjar una alianza que puede tener un enorme impacto positivo.
Mi propuesta, entonces, es que Dilma Rousseff, la próxima presidenta de Brasil, haga a Barack Obama una oferta tan atractiva que este no se pueda darse el lujo de rechazarla. Por muchas razones, Obama va a ser mucho más receptivo a esta oportunidad de hacer historia que su predecesor. Para los brasileños esto supone un cambio difícil: dejar de creer que lo que le conviene a los Estados Unidos es malo para Brasil. A veces es así, y los intereses de uno chocan con los del otro. Pero en muchos otros casos no. De hecho, los temas donde hay intereses comunes son más numerosos e importantes que aquellos en los que hay, y seguirá habiendo, diferencias irreconciliables.
Conozco bien la lista de las objeciones y obstáculos a esta propuesta. Y sé que sigue siendo una ingenuidad. Pero no es mal ejercicio que la próxima presidenta de Brasil piense con audacia en cómo revolucionar la relación de su país con EE UU. El potencial de bienestar y progreso que se desencadenaría si esta ingenuidad se transforma en una realidad es demasiado grande como para que Rousseff ni siquiera la imagine y la explore. El escepticismo a veces puede ser mucho más oneroso y cegador que la ingenuidad.
mnaim@elpais.es

A desconcentracao do saber cientifico: monopolio do saber nao existe

Na imediata sequencia do post anterior, permito-me colocar aqui a ficha e o próprio texto desta minha resenha que despertou a ira do "dono" da tese, e que viu seu livro desmantelado pela avaliação que dele fiz (o que significa também dizer que sua professora orientadora foi incompetente, e os membros da banca idem...).
O autor publicou uma réplica que achei melhor não "treplicar". A matéria que publiquei no post anterior faz isso por mim.


1690. “A produção do conhecimento nas sociedades contemporâneas: a concentração e as desigualdades são inevitáveis?”, Brasília, 25 novembro 2006, 11 p. Nova resenha de Fernando Antonio Ferreira de Barros: A tendência concentradora da produção de conhecimento no mundo contemporâneo (Brasília: Paralelo 15 – Abipti, 2005, 307 p.), aproveitando algumas idéias da primeira (1536). Parcerias Estratégicas (Brasília: CGEE; nº 23, dezembro 2006; ISSN: 1413-9375; p. 435-446; link: http://www.cgee.org.br/parcerias/p23.php). Relação de Publicados n. 733. O autor respondeu a minha resenha por artigo de réplica, “A tendência concentradora da produção de conhecimento no mundo contemporâneo, Réplica, Fernando Antônio Ferreira de Barros”, na mesma revista Parcerias Estratégicas (Brasília: CGEE; nº 25, dezembro 2007; ISSN: 1413-9375; p. 291-300; link: http://www.cgee.org.br/parcerias/p25.php).

Segue a íntegra  de minha resenha: 

A produção do conhecimento nas sociedades contemporâneas:
a concentração e as desigualdades são inevitáveis?

Fernando Antonio Ferreira de Barros:
A tendência concentradora da produção de conhecimento no mundo contemporâneo
(Brasília: Paralelo 15 – Abipti, 2005, 307 p.)


A orelha do livro apresenta o que parece ser, ao mesmo tempo, a maior virtude e a maior fraqueza deste livro importante. Ela começa afirmando o seguinte, com o que concordamos inteiramente: “O conhecimento técnico-científico representa no mundo contemporâneo [não apenas nele, diríamos nós] uma base fundamental para o desenvolvimento socioeconômico das nações. Sua maior ou menor utilização nas estruturas organizacionais e produtivas de cada sociedade pode ser um dos fatores explicativos dos diferentes graus de desenvolvimento alcançados”. Até aí pode-se concordar com o autor, ou com quem elaborou a orelha, mas logo em seguida vem o argumento que justifica o título do livro: “Sua produção e apropriação [isto é, do conhecimento técnico-científico] encontram-se, entretanto, muito concentradas num grupo de países mais desenvolvidos”.
Minha discordância fundamental do autor, devo adiantar desde logo, localiza-se nesta premissa inicial e fundamental, vale dizer, a que dá sentido ao título e sustenta toda a argumentação da obra. Mas o livro tem várias outras qualidades, que vou agora enfatizar, antes de voltar para uma crítica substantiva, na segunda parte desta resenha.

O autor e sua obra
Doutor em sociologia pela UnB e integrante do corpo técnico do CNPq há mais de duas décadas, o autor possui várias obras nessa mesma área, entre elas o livro Confrontos e contrastes regionais da ciência e tecnologia no Brasil, resultado de sua dissertação de mestrado. Sua orientadora nesta tese de doutoramento, a prefaciadora Ana Maria Fernandes, enfatiza sua concordância com algumas teses do autor – e não poderia ser de outro modo –, como o papel do Estado no processo de desenvolvimento científico e tecnológico e na reversão dessas tendências concentradoras, com base nas conhecidas teses do economista coreano Ha-Joon Chang, em Chutando a Escada. O apresentador Lynaldo Cavalcanti destaca por sua vez, que no Brasil “as autoridades têm dedicado atenção quase exclusiva à geração de conhecimento científico, com negligência à sua apropriação, traduzida em novos produtos, serviços e mercados”. Seguindo o autor, porém, o apresentador conclui que, “não obstante os intensos esforços dos países, a distribuição regional dos poderes científico e tecnológico, bem como de desenvolvimento econômico e social, não mudou de forma significativa nos últimos 20 anos” (p. 16-17). Ora, o que caracteriza os últimos 20 anos de desenvolvimento científico e tecnológico no plano mundial é, precisamente, a gradual emergência de países antes dependentes tecnologicamente – Coréia do Sul, China, Índia, vários outros asiáticos, alguns latino-americanos, como o Brasil – nesse panorama antes monótono, dominado tradicionalmente por um punhado de líderes tecnológicos da OCDE.
Em sua introdução, o autor parece concordar com a tese de que, a despeito da dispersão global da produção do conhecimento na atualidade, “as desigualdades de riqueza tendem a persistir, ou mesmo a aumentar”, fazendo com que, as perspectivas de mudança no quadro da capacidade de pesquisa sejam “muito remotas” (p. 23). Ele também acha que essa tendência concentradora da produção e apropriação do conhecimento científico e tecnológico no mundo contemporâneo pode ser a base de uma “nova divisão internacional do trabalho mais rígida, que poderá implicar maior desigualdade de riqueza e exclusão social no contexto mundial” (p. 23). Como ele enfatiza corretamente, “não existem fórmulas mágicas que possam garantir saltos qualitativos a curto prazo para o progresso técnico-científico almejado” (p. 25).
Para montar sua análise, o autor conduziu uma série de entrevistas com dezoito personalidades brasileiras e internacionais dessa área, com base num roteiro de dez grandes questões cobrindo os campos principais de sua pesquisa (nomes e perguntas figuram em dois dos três anexos, sendo o terceiro a agenda de propostas e recomendações efetuadas no projeto “Inventando um futuro melhor”, que o Interacademy Council sugeriu como forma de para reforçar a C&T em todos os países.
O livro compõe-se de cinco capítulos e três anexos, como listados a seguir. O primeiro dá o quadro teórico da produção de conhecimento e sua organização social, com as tendências atuais a uma maior aproximação entre ciência e tecnologia, à pesquisa em rede e a um maior controle e participação social nos rumos de C&T. O capítulo termina, porém, sublinhando a concentração espacial dessa produção nos países desenvolvidos.
O segundo capítulo traça, justamente, o balanço das tendências e características da produção em C&T nos países avançados. Nos EUA, por exemplo, onde ocorreu uma notável constância dos investimentos em P&D de 1960 a 2000, em torno de 2,7% do PIB, observou-se uma tendência à duplicação dos esforços voltados para a pesquisa básica, uma estabilidade na pesquisa aplicada e uma diminuição nos gastos com o desenvolvimento, consoante, provavelmente, a passagem do país de uma sociedade industrial avançada para uma sociedade pós-industrial ou de serviços. Ao longo desse período, o governo federal tem sua importância diminuída no financiamento em quase três vezes, ao passo que aumenta significativamente a participação da indústria, e em menor proporção a das universidades e instituições não-governamentais. É patente, igualmente, a concentração de C&T nos EUA, com um terço da produção científica mundial, em 1988, e mais de dois quintos das patentes registradas nos EUA em 1990 (não exclusivamente americanas, portanto). Não há dúvida de que a tríade mundial nessa área é representada pelos EUA, UE e Japão e o autor enfatiza as principais diferenças entre eles nas diversas vertentes do complexo C&T.
O terceiro capítulo trata da C&T nos países em desenvolvimento, com destaque para China, Índia e Brasil. Uma primeira abordagem enfatiza a precariedade extrema da África nesse particular, o que não configura nenhuma novidade. Não há dúvida, tampouco, de que o Estado é o principal motor dos investimentos nos três grandes do mundo em desenvolvimento, em contraste com a predominância do setor privado na tríade dos desenvolvidos. Os três grandes atores em desenvolvimento também se esforçam para aumentar os investimentos em P&D em proporção do PIB e mesmo que os valores da China possam ser relativamente modestos, as cifras envolvidas, dado o enorme PIB alcançado, já são propriamente gigantescas. A execução de P&D nos três países também é diferenciada, com uma maior proporção para as universidades no caso do Brasil e uma predominância dos institutos nacionais no caso da Índia e em menor proporção no caso da China.
O capítulo quarto enfatiza as desigualdades científicas tecnológicas no contexto da globalização, destacando o autor, em epígrafe, uma frase do SG-ONU Kofi Anan, seßgundo a qual o mundo atualmente é muito mais desigual do que há 40 anos. Este é o pressuposto do trabalho, que associa a tendência à globalização a um agravamento da crise econômica, explicada segundo duas visões alternativas, a dos regulacionistas e a dos neoschumpeterianos. A bibliografia citada é classicamente acadêmica, no sentido mais tradicional da palavra, com a complementação oferecida pelas estatísticas de gastos em P&D, de registros de patentes e entrevistas com os especialistas da área. Parecem naturais, nesse contexto, as críticas à privatização da pesquisa e as “possíveis interferências negativas dos interesses do mercado no direcionamento e apropriação da pesquisa científica” (p. 207). A análise do papel das multinacionais tende a enfatizar seus efeitos negativos, considerados ainda mais sérios no caso dos países em desenvolvimento, que tiveram de fazer os ajustes liberalizantes requeridos pela globalização. As desigualdades entre os países ricos e os em desenvolvimento são maiores no plano tecnológico (patentes) do que no científico, ainda assim avassaladoras.
O foco do quinto e último capítulo é, precisamente, o da concentração espacial da produção de conhecimento, que o autor acredita esteja tendencialmente em expansão. O autor reconhece a interdependência tecnológica existente entre os países avançados, mas prefere acompanhar os que enfatizam que essa “dispersão” se dá, basicamente, dentro da tríade desenvolvida. Ou seja, as empresas multinacionais podem contribuir para a capacitação tecnológica dos países menos desenvolvidos, mas isso não chega a ser “um fato transformador no quadro de enormes desigualdades relativas à produção tecnológica no contexto mundial” (p. 253). O autor não é totalmente negativo quanto às tendências futuras, mas acredita que uma reversão da concentração só poderia ocorrer, no caso dos países em desenvolvimento, a partir de um papel mais ativo dos governos nacionais: o Estado nacional “continua sendo o ator fundamental na condução desse importante processo de capacitação técnico-científica e no estabelecimento e na execução de medidas que poderão trazer mudanças mais significativas no atual mapeamento mundial, regional e nacional da concentração da produção científica e tecnológica” (p. 264).
As conclusões retomam muitos dos argumentos já expostos acima, com algumas seleções capciosas. Por exemplo, enfatizar o lado negativo da globalização: apenas porque em meia centena de países as pessoas são mais pobres do que eram uma década atrás (e a África responde muito por isto), não quer dizer que a humanidade está mais pobre, ao contrário, pois apenas a China e a Índia concentravam algumas centenas de milhões de miseráveis extremos que foram alçados a uma condição de pobreza modesta. A ênfase na concentração, igualmente, não deveria eludir o fato de que a produção própria dos países em desenvolvimento também está crescendo. O autor recorre ao já citado economista coreano Ha-Joon Chang, que acredita que os países desenvolvidos querem impedir os em desenvolvimento de alcançá-los nos planos industrial, científico ou tecnológico, esquecendo este, talvez, que o seu próprio país desmente a hipótese. As perspectivas não parecem animadoras, portanto, e a única maneira de revertê-las, na visão do autor, seria pelo empreendimento de ações dirigidas pelas autoridades políticas, uma vez que os mercados seriam incapazes de reverter a tendência à concentração.
Este é o livro e suas premissas, apresentados de maneira relativamente objetiva. Cabe agora empreender uma avaliação qualitativa em torno dos principais argumentos.

A crítica
O título do livro já representa uma tese: obviamente, a de que a produção do conhecimento tende a se concentrar. Onde, exatamente? Nos países avançados, claro. A tese do livro, aliás defendida na Universidade de Brasília, deve recolher o assentimento de muitos colegas do autor. Em geral, acadêmicos das universidades públicas, que são as que concentram a produção do conhecimento (não no mundo contemporâneo, mas pelo menos no Brasil), tendem a pensar segundo as linhas convencionais, que dividem o mundo em produtores e consumidores de conhecimento especializado, com tendências ao monopólio e à concentração.
Como seria de se esperar, eles também devem partilhar várias outras teses do autor, que são relativamente tradicionais na academia brasileira, a começar pela própria divisão entre países desenvolvidos e em desenvolvimento e a exploração destes últimos pelos primeiros. Não existe qualquer critério legitimamente racional que possa justificar a separação entre as duas categorias de países, a não ser certa preguiça mental dos seus formuladores, o conservadorismo das instituições internacionais, a acomodação política dos próprios países em desenvolvimento e algumas evidências prima facie que tenderiam, aparentemente, a justificar essa divisão que já tem mais de meio século.
 Entre essas evidências, ademais dos conhecidos indicadores relativos à renda, disponibilidade de bens e outros critérios de bem-estar, em geral, se situariam aqueles relativos à produção de ciência e tecnologia em bases propriamente nacionais. Que seja: a autonomia tecnológica, de fato, representa um poderoso indicador de riqueza e poder; mas as linhas divisórias entre os países, nesse particular, são bem mais matizadas do que o simples agrupamento dos membros da ONU em duas ou três categorias de países – havia também o grupo dos socialistas, que desapareceu de forma melancólica na grande transição ao capitalismo dos anos 1990 – o que permitiria circunscrever, inclusive porque é apenas indiretamente que a produção de conhecimento está correlacionada à renda per capita. Em outros termos, a relação não é causal, mas circunstancial, sendo bem mais dependente da educação do que da renda.
A divisão entre os vários grupos de países remonta aos primeiros tempos da ONU, quando se tratava de organizar as agências e comissões setoriais da ONU e suas agendas de prioridades. Do lado mais importante estavam as responsabilidades pela paz e pela segurança internacionais, a cargo, em última instância, de um pequeno grupo de países encastelados, como resultado da Segunda Guerra Mundial, no Conselho de Segurança. Pode-se dizer que os EUA, a França e o Reino Unido, estes dois últimos dispondo de vastos impérios coloniais, constituíam, efetivamente, países desenvolvidos. Mas o que dizer da Rússia e da China, devastadas no conflito, possuindo imensos contingentes populacionais na miséria, contribuindo minimamente, não apenas para os fluxos globais de comércio, finanças e tecnologia, mas, sobretudo, para o estoque global de saberes acumulados nos planos científico e tecnológico? Tratou-se de uma decisão eminentemente política e militar como sabemos.
Do outro lado, a agenda da ONU sempre revelou uma preocupação primordial, quase obsessiva, pode-se dizer, com a questão do desenvolvimento. Cabe lembrar que, nas últimas seis décadas, a ONU ocupou-se bem mais de desenvolvimento do que de paz e de segurança, sendo que suas incursões neste terreno foram bem menos felizes, dada a relutância de grandes e pequenas potências em aceitar intromissão em suas querelas internas ou nos conflitos inter-estatais nos quais estivessem envolvidas. A ONU tem registro de poucas operações de peace-making e bem mais de peace-keeping, quando os maiores danos já foram cometidos contra as populações inocentes. Mas, tampouco sua ação no campo do desenvolvimento foi muito mais feliz, já que passadas várias décadas ditas de desenvolvimento (e muitos bilhões de dólares destinados à cooperação oficial – bilateral e multilateral – ao desenvolvimento), poucos países alteraram radicalmente as condições de partida, e os poucos que o fizeram, não parecem dever nada à ONU ou aos programas oficiais de ajuda ao desenvolvimento. Aqueles poucos países que de fato conseguiram fazer o “salto de barreira” – se é que existe algum – entre a condição anterior de “subdesenvolvidos” para a de “desenvolvidos”, pouco parecem dever à ajuda externa e muito menos aos programas da ONU. Tanto a Coréia do Sul quanto Cingapura, os dois exemplos mais conspícuos, devem suas trajetórias em direção à prosperidade mais ao investimento produtivo – com base na poupança doméstica e na tecnologia importada, legalmente ou não – do que à ajuda externa, de qualquer tipo.
Daí o ceticismo com que devem ser recebidas essas obras que tendem, com uma aborrecida repetição, a dividir o mundo entre os produtores de conhecimento – que seriam, ipso facto, os concentradores – e os demais, em princípio classificados como em desenvolvimento. O modelo adotado é bem mais evidente nas escolas econômicas ditas desenvolvimentistas, que continuam a ver o mundo segundo a estrutura centro-periferia. Mas ele também se reproduz nessas análises sobre a produção científica e tecnológica no plano mundial, que tendem a considerar como um dado fixo que a produção de conhecimento, tanto científico quanto prático, isto é, tecnológico, tende a se concentrar cada vez mais num pequeno grupo de países. A tese é tão auto-induzida quanto sua equivalente no plano do desenvolvimento econômico: como os países atualmente ricos são os que mais produzem tecnologia avançada e seus produtos derivados, essa situação só pode ter tido origem na concentração de recursos, capitais e outros fatores nesses países, em detrimento e com a “colaboração involuntária” dos demais, que transferiram recursos e excedentes – a famosa “extração de mais-valia” da tradição marxiana – para os paises do centro, identificados a dominadores e exploradores.
Como estes países “centrais” e “produtores” de conhecimento mantêm políticas e programas de capacitação tecnológica e de qualificação científica, conclui-se, então, que foi devido a essas políticas e programas que eles conseguiram se desenvolver. Daí à criação de novos programas e políticas, sob a égide da ONU (e suas agências) ou dos países mais ricos que prestam cooperação oficial ao desenvolvimento, vai um pequeno passo que é alegremente dado por todos esses “cooperadores” e “cooperados”, com resultados altamente insatisfatórios, como já constatado depois de seis décadas de ativa assistência aos países menos desenvolvidos, especialmente africanos. Nenhum deles conseguiu de fato se desenvolver, para dizer o mínimo. A mesma situação se reproduz, no plano nacional, em matéria de políticas macroeconômicas setoriais tendentes a “produzir” o tão aspirado desenvolvimento: políticas agrícolas, industriais, tecnológicas e muitas outras ainda, como constatado na experiência latino-americana. Não se pode dizer que o resultado tenha sido magnífico, muito pelo contrário, ao ponto de um conhecido economista do chamado “mainstream” – Gustavo Franco, em uma das suas Crônicas da convergência: ensaios sobre temas já não tão polêmicos (Rio de Janeiro: Topbooks, 2006, 598 p.). – ter clamado por uma “política não-industrial”.
O fato é que os países hoje desenvolvidos o são não necessariamente em virtude da aplicação de políticas industriais e tecnológicas, ou da implementação de programas governamentais nessas áreas, mas simplesmente em razão de terem conseguido chegar, desde muito cedo, a uma situação de virtual educação universal, bem mais nos ciclos básico e internediário (inclusive técnico-profissional) do que necessariamente no ciclo superior (que emergiu gradualmente e naturalmente a partir da capacitação prévia e ampla nas fases precedentes). O processo pode ter variado aqui e ali, mas nenhum deles chegou ao píncaro sem ter feito antes o dever de casa nas etapas elementares.
Compreende-se, por outro lado, a obsessão com o processo de desenvolvimento – econômico ou tecnológico – dos países ditos retardatários, já que os últimos dois séculos (grosso modo a partir da aceleração das duas primeiras revoluções industriais) conheceram o fenômeno, ao qual os historiadores econômicos dão o nome de “grande divergência”, ou seja, a defasagem crescente entre os níveis de desenvolvimento dos países avançados industrialmente, de um lado, e todos os demais, de outro. Como esse é um fato empiricamente verificável, tende a se considerar essa divergência como algo irrecorrível, inevitável ou tendencialmente agravante, não colmatável pela simples força dos mercados ou da evolução natural das sociedades. Mas, como revelado em alguns trabalhos de Jared Diamond – como em Germes, Armas e Aço, por exemplo – dotados de maior escopo geográfico e abrangência histórica, não há nada de inevitável nesse curso da história. De fato, o processo de divergência parece estar sendo revertido sob nossos olhos, operando-se atualmente uma relativa convergência entre os níveis de desenvolvimento industrial, de renda disponível e de conhecimento auto-gerado, pelo menos em relação a alguns dos atores participantes da grande divergência dos últimos dois ou três séculos, como podem ser, com grande visibilidade, a China e a Índia.
Esses dois países – juntamente com o Brasil – estão justamente no âmago do terceiro capítulo deste livro de Fernando Barros, que constitui uma tentativa acadêmica (relativamente bem sucedida, nesse contexto) para identificar os fatores indutores da “grande divergência” científica entre “concentradores”, de um lado, e os “penalizados”, de outro. China e Índia, precisamente, foram os grandes “divergentes” dos séculos XIX e XX, não necessariamente porque tenham sido dominados, humilhados e expropriados pelos mais ricos – o que também se passou, reconheçamos – mas porque perderam, em algum momento de suas histórias respectivas, a capacidade de continuar inovando nos terrenos tecnológico e militar e se deixaram, assim, dominar e expropriar pelos mais ricos, ou mais capazes militarmente. Considerar que o processo histórico tenha sido o inverso do que realmente foi – isto é, que os mais ricos só se tornaram ricos porque “extrairam” riquezas dos explorados – representaria considerar que basta vontade política para se tornar imperialista, independentemente de uma “acumulação primitiva” (que sempre é propriamente nacional) em capacitação industrial e militar.
O fato é que, a partir das duas últimas décadas do século XX esses dois países convergem, novamente, em direção a padrões de industrialização e a níveis de produção científica mais próximos dos países da OCDE, bem mais rapidamente do que foi o caso nesse período de relativa estagnação (ou mesmo retrocesso, para a China) dos dois séculos anteriores. Um dos problemas da análise conduzida por Fernando Barros em torno do desempenho científico e tecnológico – em geral muito rudimentar – dos países em desenvolvimento é que ele parte de uma suposta tendência dos governos desses países, nas duas últimas décadas, a “se alinhar a programa de ajustamento estrutural e [a] medidas de estabilização de suas economias” (p. 122), supostamente concordes com ditames dos mercados globais. Estas reformas se teriam traduzido “numa maior abertura das economias nacionais [desses países] aos investimentos externos, na eliminação de barreiras protecionistas para toda uma série de produtos manufaturados, na passagem do modelo de substituição de importações para a promoção das exportações, na expansão do setor privado, sobretudo de empresas multinacionais”. “Todas essas medidas de liberalização e privatização”, continua o autor, “implicaram numa redução dos investimentos que o Estado mantinha para determinados setores como a educação e a ciência e a tecnologia” (p. 122).
O problema desse tipo de análise é que China e Índia, nas duas últimas décadas, fizeram exatamente isso que ele parece considerar como fatores negativos e que os problemas dos países mais pobres, com sua inserção econômica internacional e sua dependência tecnológica, não data, em absoluto, das fases de ajuste estrutural e de abertura externa, mas são problemas estruturais que atravessam décadas, senão séculos. Como diria Nelson Rodrigues, o subdesenvolvimento não se improvisa, é uma obra de séculos. A mesma falta de visão histórica abrangente que aparece ao se pretender datar a preeminência econômica, tecnológica e militar dos países mais ricos a partir de suas eventuais fases imperialistas (já que os EUA não se conformam ao padrão europeu de dominação direta de outros povos), se reproduz aqui ao especular que o “esmagamento” das capacidades de pesquisa de países em desenvolvimento poderia ser devido aos ajustes estruturais, à la Consenso de Washington, da fase recente.
Que os países mais pobres – notadamente os africanos – continuem a divergir em relação ao desempenho dos mais avançados, não elimina o fato de que grande parte dos países emergentes, entre eles o Brasil (malgrado sua medíocre taxa de crescimento econômico nessa fase, justamente), caminha no sentido de colmatar as diferenças mais gritantes de desenvolvimento – de renda, de capacitação industrial e de inovação tecnológica – em relação aos países mais ricos. Falar de uma tendência à concentração do conhecimento no mundo contemporâneo, como evidenciado no título deste livro, parece, assim, uma contradição nos termos, e isso a mais de um título. Ainda que as desigualdades sejam um fato, a tendência é desconcentradora, paradoxalmente.
O paradoxo é apenas aparente, uma vez que os frutos do progresso científico e tecnológico, a despeito do que afirmam os antiglobalizadores, tendem a se disseminar rapidamente pelo mundo, acompanhando a deslocalização de empresas e a integração de mercados propriciados pela terceira onda de globalização capitalista (as duas primeiras tendo ocorrido, obviamente, na era dos descobrimentos marítimos e na fase de ascensão do capitalismo industrial que precedeu à belle Époque, ou seja, antes da Primeira Guerra Mundial). Hoje em dia – e isso é válido também para o mais pobre dos países africanos, à condição que ele tenha acesso à internet – a maior parte do estoque de conhecimento científico acumulado pela humanidade está livremente disponível a quem tiver acesso às redes eletrônicas de dados.
Nesse sentido, o mundo nunca foi tão “igualitário” como atualmente – ainda que as pressões à desigualdade e a certa tendência concentradora sejam processos residuais –, mas isso não é, necessariamente, uma perversidade dos “produtores de ciência”, e sim o resultado da incapacidade dos mais pobres em acompanhar o ritmo da pesquisa e do desenvolvimento científico e tecnológico para fins produtivos. O que sempre distinguiu, basicamente, os países entre si – sem falar aqui de desenvolvidos e em desenvolvimento – foram os diferenciais de produtividade do trabalho humano, algo intrinsecamente ligado à capacitação educacional de cada um, não à sua capacidade “extratora” de recursos de uns pelos outros.
A visão conspiratória transparece da adesão do autor às teses de Ha-Joon Chang (Chutando a escada), que acha que os países desenvolvidos querem impedir os menos avançados de alcançá-los e por isso recomendam receitas neoliberais que eles mesmos não seguiram nos seus processos de industrialização. Os fundamentos metodológicos e empíricos desse tipo de raciocínio já foram contestados por diversos autores que não deixaram de apontar suas inconsistências lógicas e históricas, o que não impede sua boa recepção nos meios acadêmicos opostos ao mainstream economics.
As teses desenvolvimentistas, por sua vez, já receberam muitas ressalvas, mas suas bases continuam intactas, como revelado no movimento anti-globalizador. O autor não diz, exatamente, que “um outro mundo científico é possível”. Mas ele talvez gostasse que isso ocorresse segundo as vias tradicionais do investimento estatal e da coordenação das agências públicas com o capital privado. Talvez falte um pouco de confiança na capacidade da própria sociedade se organizar para produzir o saber científico, mas isso começa pela impulsão da educação de base, não necessariamente pelo pródigo apoio à superestrutura algo elitista da comunidade científica. Em todo caso, poucos cientistas acadêmicos dos países em desenvolvimento – como revelado em diversas entrevistas conduzidas pelo autor – parecem confiar na capacidade de suas indústrias nacionais, assim como dos próprios mercados, de forma similar ao que sempre ocorreu nos países desenvolvidos, de colmatar as brechas que os separam destes últimos em matéria de produção e apropriação de conhecimento científico-tecnológico.
O que parece uma constante histórica, na verdade, não é tanto o aprofundamento da brecha científica e tecnológica entre os países, mas, aparentemente, as lamúrias sobre a concentração de saberes nessa área e uma falta de confiança básica na capacidade dos países ditos periféricos de diminuir a distância na produção de ciência e tecnologia. A crer em muitos autores desses países, as desigualdades, quaisquer que sejam suas razões, devem continuar no futuro previsível, configurando assim uma situação estrutural. Este resenhista acredita que a história desmentirá esse tipo de visão pessimista.

Paulo Roberto de Almeida
(Brasília, 1687, 25 novembro 2006)

A desconcentracao do saber cientifico (contra certos "concentracionistas")

Poucos anos atrás, desconstrui a tese universitária de um acadêmico brasiliense, dizendo que todos os seus argumentos estavam fundamentalmente errados, o que significa desmantelar sua banca e desmentir todos os professores que dela fizeram parte também.
Simplesmente publiquei uma resenha de sua tese editada e... o mundo caiu abaixo: o acadêmico clamou contra a minha resenha, invocou os membros da banca e fez questão de publicar uma réplica de minha resenha (o que já é sumamente ridículo). Deixei passar, embora pudesse ter feito uma tréplica e ter desmantelado, mais uma vez, seus argumentos. Não vale a pena dialogar com mentes obtusas.
Vou postar, em seguida, minha resenha e outras informações sobre essa diatribe acadêmica.
Por enquanto faço questão apenas de transcrever matéria traduzida da Economist, que diz exatamente o que eu dizia alguns anos atrás: que em lugar da tremenda concentração e "monopólio do saber", como pretendia o cientista brasiliense em questão, existe de fato uma desconcentração e um crescimento da ciência e da inovação em países que ele chamava de "periféricos" (outra palavrinha a que tenho ojeriza).
Fiquem com o artigo agora.
Paulo Roberto de Almeida

O novo regime científico mundial

Relatório da Unesco revela que ‘aristocracia’ ocidental da ciência está perdendo espaço para nações em ascensão, como China, Índia e Brasil

The Economist, 14/11/2010
CHá vinte anos, a América do Norte, a Europa e o Japão produziam quase toda a ciência mundial. Eles eram os aristocratas do conhecimento técnico, liderando um regime de vários séculos. O que eles produziam era reinvestido em seus complexos industriais, militares e médicos para impulsionar a inovação, a produtividade, o poder, saúde e prosperidade.
Todas as coisas boas, contudo, chegam ao fim, e o reinado desses aristocratas científicos está começando a parecer frágil. Em 1990, eles eram responsáveis por mais de 95% do trabalho de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) mundial. Em 2007, esse número já havia caído para 76% – segundo o relatório da Unesco de 2010. O quadro que este estudo sobre a ciência mundial revela é a de um Ocidente em declínio e Oriente e Sul em ascensão, espelhando as mudanças econômicas ocorrendo mundo afora. Os sans culottes da ciência estão em marcha.
GERD é bom
Comparações entre a competência científica de países geralmente começam com os gastos. Uma medida disso é o GERD (Gross Domestic Expenditure on R&D), que mede os gastos em Pesquisa e Desenvolvimento baseados no PIB. Mundialmente, o GERD somou $1,15 trilhões em 2007 (ultimo ano que o relatório da Unesco mediu). Isto significa um aumento de 45% comparado a 2002. Em adição a isso, nestes cinco anos, o total da Ásia subiu de 27% para 32%. O gráfico abaixo apresenta os índices do GERD em sete diferentes países e na União Europeia:
GERD
A parcela de riqueza nacional gasta em Pesquisa e Desenvolvimento também é útil para comparar economias de tamanhos diferentes – particularmente na medida em que a excelência científica tende a se concentrar em áreas pequenas do mundo, permitindo que pesquisadores de países pequenos como Singapura desafiem aqueles de nações maiores, como os Estados Unidos. Em 2007, o Japão gastou 3,4% de seu PIB em P&D; os Estados Unidos, 2,7%; a União Europeia, coletivamente, gastou 1,8%, e a China, por sua vez, gastou 1,4%. Muitos países, visando à melhora de sua posição científica no mundo, querem aumentar estes números. A China planeja chegar a 2,5%, e Barack Obama gostaria de levar os Estados Unidos para os 3%.
O número de pesquisadores também cresceu em todo lugar. A China está prestes a superar os Estados Unidos e a União Europeia na quantidade de cientistas. Cada um teve aproximadamente 1,5 milhões de pesquisadores, considerando um total global de 7,2 milhões em 2007. Ainda assim, o número de cientistas por cada milhão de pessoas permanece relativamente baixo na China. E a Índia, que perde apenas da China em tamanho populacional, tem apenas um décimo dos pesquisadores. Isso é uma anomalia surpreendente para um país que se tornou o maior exportador de serviços de tecnologia de informação e é o terceiro maior produtor de farmacêuticos – atrás apenas de Estados Unidos e Japão. Confira abaixo os índices de publicações científicas em diferentes países e na União Europeia:
Publicacoes_Cientificas
Ter uma grande quantidade de cientistas, contudo, não importa se eles não forem produtivos. Um indicativo de proeminência científica é o quanto os pesquisadores de um país produzem. Individualmente, os Estados Unidos ainda lideram com alguma folga. Porém, a quantidade de publicações mundiais norte-americanas, que englobava 28% em 2007, está caindo. Em 2002, era de 31%. A parcela coletiva da União Europeia também caiu de 40% para 37%, enquanto a da China mais que dobrou para 10% e a do Brasil cresceu 60%, de 1,7% da produção mundial para 2,7%.
O tamanho da população da Ásia leva a Unesco a concluir que o continente se tornará “o continente cientificamente dominante nos próximos anos”. Mas a citação de artigos em língua inglesa de veículos chineses em outras publicações permanece baixa. Isso pode ser tanto porque a ciência chinesa é pobre quanto porque pesquisadores nos Estados Unidos, Europa e Japão têm um preconceito histórico quanto a citar uns aos outros. Um trabalho norte-americano tipicamente foi citado 14,3 vezes entre 1998 e 2008, enquanto os chineses foram citados apenas 4,6 vezes – mais ou menos o mesmo que os trabalhos publicados na Índia e menos que os publicados na Coreia do Sul.
Para os aristocratas da ciência, muito disso sugere que as guilhotinas estão próximas. Mas a história não termina aí. O que também conta é o nível do sucesso dos países em utilizar o conhecimento que geram. Um jeito de analisar isso é contar quantas patentes um país produz. Isso pode ser traiçoeiro. Um relatório recente da Thomson Reuters, uma firma de informação que também serve de fonte para muitos dados da Unesco sobre publicações científicas, sugere que as patentes chinesas cresceram 26% entre 2003 e 2009 – muito mais rápido que em qualquer outro lugar. Por esta medida, a China irá se tornar a maior registradora de patentes em 2011. Há um obstáculo, contudo. Burocratas em escritórios de patente chineses pagam mais por artigos que “aprovam”. Como resultado, há uma montanha de patentes chinesas de qualidade dúbia.
A última tentativa da Unesco de observar patentes se focou nos escritórios nos Estados Unidos, Europa e Japão, uma vez que são considerados de “alta qualidade”. Nesses escritórios de patentes, os Estados Unidos dominaram, com 41,8% das patentes mundiais em 2006, uma parcela que só caiu levemente em relação aos quatro anos anteriores. O Japão teve 27,9%, a União Europeia 26,4%, a Coreia do Sul teve 2,2% e a China 0,5%.
As perspectivas para o investimento em P&D pelas empresas parecem promissoras na maioria das nações emergentes, contudo. Entre 2002 e 2007, o investimento em negócios como parte do GDP cresceu rapidamente na China, na Índia, em Singapura e Coreia do Sul (ainda que o aumento na Índia seja em relação a uma base baixa). Mas ao menos um aristocrata está contra-atacando, uma vez que o investimento cresceu rapidamente no Japão.
Embora muito disto pareça motivo de preocupação para o velho regime, há um outro padrão que merece ser observado: o da crescente colaboração internacional. Graças às viagens baratas e a ascensão da internet, cientistas estão achando mais fácil que nunca trabalhar juntos. De acordo com Sir Chris Llewellyn-Smith, presidente do grupo responsável por outro relatório sobre a ciência mundial (a ser publicado no início do ano que vem pela Royal Society, a mais antiga instituição científica), mais de 35% dos artigos em publicações de liderança são produtos de colaboração internacional, em relação aos 25% de 15 anos atrás – algo que tanto o antigo quanto o novo regime podem celebrar.