Bem, estou sentido a falta deles, pois parece que desistiram de se reunir, o que é realmente uma pena, pois discursos e argumentos, para serem válidos e amplamente aceitos por todos devem sempre passar pelo critério popperiano da falsificabilidade, ou seja, o teste da realidade, da contradição, do contra-argumento.
O que será agora dos capitalistas de Davos se eles não tem opositores dignos desse nome?
Mas, também acho que os altermundialistas precisam aperfeiçoar seus argumentos, pois eles são bem fraquinhos, contraditórios, sem embasamento na realidade, enfim, irracionais.
Em homenagem a eles, mas sentindo sua falta -- pois eles me obrigavam a contra-argumentar a cada ano, vou postar aqui a última grande contra-argumentação que fiz contra essa simpática tribo de irracionais, mais exatamente na passagem de 2008 a 2009, quando eles ainda tinha algo a dizer (mesmo de forma totalmente irracional).
O texto foi publicado como aqui descrito, e segue transcrito mais abaixo.
Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 3/02/2014
1966. “Fórum Surreal Mundial: Pequena visita aos desvarios dos antiglobalizadores”, Brasília, 22 dezembro 2008, 17 p. Consolidação das críticas às idéias surreais do FSM. Publicado em Mundorama, divulgação científica em relações internacionais (27.12.2008; link: http://mundorama.net/2008/12/27/271220081129/). Publicado em Meridiano 47 (n. 101; 27 Dezembro 2008; link: http://mundorama.net/2008/12/31/boletim-meridiano-47-no-101-dezembro2008/); Republicado em Espaço da Sophia (Tomazina – PR, ISSN: 1981-318X, Ano 2, n. 22, p. 1-20, janeiro de 2009). Dividido em duas partes e publicado em Via Política; Reciclando velhas idéias (12.01.2009); Pequena visita aos desvarios dos antiglobalizadores (19.01.2009). Relação de Publicados 886, 887. Academia.edu (https://www.academia.edu/attachments/32900639/download_file).
Fórum Surreal Mundial: Pequena visita aos desvarios dos antiglobalizadores, por Paulo Roberto de Almeida
1. Globalizados contra a globalização: reação freudiana?
E, no entanto, os alegres participantes do piquenique anual da antiglobalização se reunirão para, entre outros objetivos, conspurcar, atacar e combater os próprios mecanismos que possibilitaram, viabilizaram e permitiram todas essas facilidades de informação, de comunicação e de interação recíproca. Não é contraditório? Aliás, não parece completamente estapafúrdia essa revolta irracional contra os seus meios de expressão? Eu – como não pretendo usufruir de minha cota permitida de ilogismo e de irracionalidade – respondo imediatamente que SIM.
Sim, me parece totalmente ilógico e contraditório que pessoas normalmente constituídas, bem informadas, geralmente alfabetizadas (inclusive até o nível universitário) e (que se acredita serem) cidadãos razoáveis no contexto do mundo em que vivemos – ou seja, estudantes e trabalhadores honestos, cumpridores de seus deveres cívicos, promotores de um mundo melhor, ativos na defesa do meio ambiente e dos direitos humanos – consigam revoltar-se contra aquilo mesmo que lhes permite serem exatamente o que são: cidadãos bem informados, participantes, defensores de um mundo melhor para si mesmos e para todos os habitantes do planeta. Em vista disso, apenas posso sorrir ante a perspectiva de ver tantos jovens (e alguns velhos também) reunirem-se para combater a globalização capitalista, logrando, aliás, pleno sucesso em seus empreendimentos antiglobalizadores, justamente tendo como suporte material tudo o que a globalização capitalista lhes ofereceu de melhor. São uns ingratos, para dizer o mínimo. Eu acho que eles também são ingênuos, provavelmente equivocados em suas concepções e intenções e, talvez mesmo, um pouquinho desonestos, pois que se eximindo – como não deveria ocorrer na academia e nas organizações mais sérias – de trazer as provas de suas afirmações tão contundentes contra o capitalismo e a globalização. Deixamos esses aspectos de lado, por enquanto, pois voltaremos a eles no momento oportuno.
Podemos perdoar a inconseqüência política e cultural desses jovens – que parece ser o simples resultado da ignorância e ingenuidade típicas da juventude, ou seja, daquilo que os franceses chamam de naïveté; mas certamente não o tremendo equívoco em que incorrem os mais velhos, que induzem esses jovens a protestar contra o mesmo sistema que lhes permitiu tanta eficiência comunicativa, tanta modernidade organizativa, tanta interação virtual para, finalmente, empreenderem iniciativas ruidosas e totalmente inconseqüentes contra a própria base material de seu tremendo sucesso globalizado. Os jovens antiglobalizadores constituem o mais vibrante exemplo e sustentáculo daquilo mesmo que pretendem combater: a globalização capitalista (forçosamente assimétrica).
Digo equívoco, porque quero acreditar que esses velhos órfãos da globalização, esses escolhos do anticapitalismo militante, esses falidos profetas de um socialismo ultrapassado, hoje quase surrealista – entre os quais podemos identificar vários acadêmicos de sucesso, todos eles monotonicamente adeptos do pensamento único do altermundialismo, de origem francesa – não sofram de um mal bem mais grave e infinitamente mais prejudicial aos mais jovens, que eu chamaria de desonestidade intelectual. Consiste em desonestidade intelectual o ato de acusar a globalização capitalista de (quase) todos os males do planeta, quando na verdade é a falta de globalização capitalista que provoca os próprios males que os mais jovens dizem pretender combater. Para ser direto, eu sequer preciso provar a desonestidade intelectual desses que proclamam as misérias do capitalismo: basta olhar ao redor de si, ou consultar as tabelas estatísticas de qualquer organismo internacional, para ver onde estão os melhores indicadores de bem estar e de liberdade política e individual, e comparar o quadro com os países que não são, justamente, capitalistas e globalizados.
Mas examinemos a questão com um pouco mais de detalhe, por meio dos argumentos dos antiglobalizadores e altermundialistas (esta última designação é a preferida dos próprios interessados; mas como eles ainda não conseguiram dizer do que seria feito o outro mundo possível, prefiro chamá-los pelo nome que melhor os identifica). De certa forma, eles já nos facilitaram a tarefa, ao enunciar seus argumentos em dois conjuntos de “teses”, que contêm aquilo que pensam sobre o mundo, seus problemas (os do mundo) e as suas propostas (as deles) para salvar esse mesmo mundo do capitalismo perverso e da globalização assimétrica.
2. Objetivos reciclados nos últimos três anos: falta de idéias?
Para poupar trabalho aos mais preguiçosos, ou aos membros do MSI – movimento dos sem internet -, reproduzo novamente aqui abaixo as propostas dos antiglobalizadores. Permito-me, todavia, convidar os interessados a ler os meus comentários a cada um deles no trabalho acima indicado. Aqui estão os nove objetivos de 2006-2007:
2. Pela libertação do mundo do domínio do capital, das multinacionais, da dominação imperialista patriarcal, colonial e neo-colonial e de sistemas desiguais de comércio, com cancelamento da dívida dos países empobrecidos;
3. Pelo acesso universal e sustentável aos bens comuns da humanidade e da natureza, pela preservação de nosso planeta e seus recursos, especialmente da água, das florestas e fontes renováveis de energia;
4. Pela democratização e descolonização do conhecimento, da cultura e da comunicação, pela criação de um sistema compartilhado de conhecimento e saberes, com o desmantelamento dos Direitos de Propriedade Intelectual;
5. Pela dignidade, diversidade, garantia da igualdade de gênero, raça, etnia, geração, orientação sexual e eliminação de todas as formas de discriminação e castas (discriminação baseada na descendência);
6. Pela garantia (ao longo da vida de todas as pessoas) dos direitos econômicos, sociais, humanos, culturais e ambientais, especialmente os direitos à saúde, educação, habitação, emprego, trabalho digno, comunicação e alimentação (com garantia de segurança e soberania alimentar);
7. Pela construção de uma ordem mundial baseada na soberania, na autodeterminação e nos direitos dos povos, inclusive das minorias e dos migrantes;
8. Pela construção de uma economia centrada em todos os povos, democratizada, emancipatória, sustentável e solidária, com comércio ético e justo;
9. Pela ampliação e construção de estruturas e instituições políticas e econômicas – locais, nacionais e globais – realmente democráticas, com a participação da população nas decisões e controle dos assuntos e recursos públicos.
3. Pelo menos um objetivo novo: alguma grande contribuição intelectual?
A segunda coisa que se pode dizer é que o Português dos antiglobalizadores anda tão estropiado quanto a floresta amazônica, pois não é possível admitir que esse “aos” seja o equivalente funcional de “para os”, referindo-se aqui aos “povos originários do mundo”. Fonte de vida “aos” povos originários? Recomendo uma revisão estilística antes de publicar oficialmente esse décimo e último objetivo.
Mas indo à substância da matéria, parece-me que os antiglobalizadores têm se mostrado tremendamente preconceituosos contra todos os habitantes da Amazônia que não se encaixem em nenhuma das categorias inscritas nesse objetivo, aliás, contra eles mesmos, que virão das grandes metrópoles do Brasil e do mundo e que não são, em sua grande maioria, povos originários. A Amazônia comporta hoje um bocado de gente que não é nem originária, nem indígena, nem afrodescendente, nem tribal, nem ribeirinha, sendo cidadãos emigrados de outras regiões do Brasil e de outros países e que ali vivem e trabalham honestamente. Reivindicar todas aquelas coisas apenas para esses “originários” me parece um tremendo reducionismo étnico ou racial, um pouco como ocorre com esses movimentos racialistas pelos direitos de certas minorias e que pretendem introduzir oficialmente o apartheid no Brasil. Coisa feia, antiglobalizadores!
Mas o quê, mesmo, eles pretendem reivindicar? Está lá, dito claramente assim: “territórios, línguas, culturas, identidades, justiça ambiental, espiritualidade e bom viver”. Território implica a noção de direitos sobre um patrimônio fundiário e isso parece que já está regulado na Constituição e na legislação pertinente, bastando fazer apelo a um advogado ou aos cartórios de registro para assegurar esses direitos. Língua é algo tão vivo que me parece supérfluo ou inócuo reivindicar direitos sobre qualquer uma delas: enquanto existirem povos usando uma língua como instrumento de comunicação ela será preservada; mas é também algo que se transforma com o tempo, acompanhando os destinos de seus detentores. É certo que as línguas indígenas – ou dos “povos originários do mundo” como preferem os antiglobalizadores – vêm sendo submetidas a um duro processo de enxugamento, que corresponde, também, à própria transformação cultural das sociedades originárias, como resultado da pressão terrível sobre elas exercida pela cultura materialmente dominante, que é a do homem urbano (ou talvez capitalista, como prefeririam os antiglobalizadores).
Este é um desafio partilhado por quase todos os “povos originários do mundo” em qualquer canto do planeta, e ele corresponde a forças históricas quase irresistíveis, já que é difícil colocar esses “povos originários” numa redoma e impedi-los de manter contato com outras culturas e civilizações, sobretudo quando estas chegam a eles pela via da invasão territorial ou dos meios de comunicação. Por outro lado, o próprio ato de pretender preservar esses povos originários em seu estado “originário” pode não representar algo progressista ou desejável; ao contrário, pode ser algo regressista ou mesmo reacionário, já que implicando o congelamento desses povos numa das fases evolutivas do seu desenvolvimento cultural – geralmente correspondendo, em linguagem pré-histórica, à era do paleolítico superior -, o que, por outro lado, provocaria muita “injustiça ambiental” e muito “mau viver”, para usar, no sentido inverso, outros dois conceitos dos antiglobalizadores.
Constatemos, em primeiro lugar, que quem está, exatamente, determinando essa defesa contra toda e qualquer mudança nos meios de vida, nas identidades e na cultura não são, para ser mais preciso, os “povos originários do mundo”, mas sim uma tribo de brancos intelectualizados que se reúnem todo ano para proclamar objetivos para o mundo todo, inclusive para os “povos originários do mundo” (que, obviamente, não são eles). Questionemos, em segundo lugar, o direito desses brancos exóticos de traçar uma lista de objetivos para os “povos originários do mundo”, sem que estes tenham se reunido e decidido democraticamente o que pretendem fazer: ficar com suas culturas, línguas e identidades originais, ou integrar-se progressivamente ao chamado mainstream civilizacional, que significa, simplesmente, o Brasil do século XXI, com todas as suas misérias e grandezas, realizações e frustrações, justiças e injustiças. Assim é o mundo, e a nós cabe tomá-lo como ele é, para melhorá-lo progressivamente, em favor de todos, e não apenas dos “povos originários do mundo”.
Deixo de lado, por fim, o objetivo da “justiça ambiental”, posto que ela não está definida positivamente e não deve ser clara em que consiste, mesmo para o mais tarimbado antiglobalizador. Talvez algum jurista altermundialista possa elaborar a respeito, e eu me reservo o direito de comentar sua inovação jurídica posteriormente. Quanto aos termos “espiritualidade e bom viver”, deixo à imaginação dos leitores tentar descobrir o que é isso, exatamente, pois não me parece que mereçam maiores comentários, pela indefinição conceitual ou substantiva. Pergunto, aliás, como “exigir” espiritualidade de alguém?
4. Os “sábios” da antiglobalização: mais bem dotados que os jovens?
Creio que meus comentários, antes e agora formulados, bastam quanto a esse primeiro bloco de argumentos. Em todo caso, como já escrevi bastante sobre os anti e suas idéias surrealistas, permito-me remeter os interessados no aprofundamento de minhas contestações a essas propostas ingênuas a vários outros trabalhos meus que se encontram livremente disponíveis numa pequena bibliografia pessoal que elaborei a partir dos meus escritos dos últimos anos. Eles não esgotam, obviamente, tudo o que tenho a dizer (e já disse) sobre o processo de globalização e seus descontentes; mas podem dar uma idéia de quão longe da realidade se encontram os antiglobalizadores “originários” (que precisariam ser reciclados ou substituídos por representantes mais inteligentes ou intelectualmente mais preparados). Eis a compilação a que me refiro: “Pequena Bibliografia Pessoal sobre a Globalização (e seus descontentes)”; (no link:http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/1964BiblioGlobalizacao.pdf).
Pois bem, como são poucas (e inconsistentes, como vimos) as “idéias” dos antiglobalizadores, vou me permitir ajudá-los neste momento de tensão pré-encontro, retomando – e praticamente “desenterrando” – algumas outras propostas de alguns dos seus mais lídimos representantes, que tinham sido formuladas e apresentadas cerca de quatro anos atrás, mais exatamente no dia 1o. de fevereiro de 2005, sob a forma de um “manifesto” sob o titulo de “Doze Propostas para Outro Mundo Possível” (procurem nos arquivos do FSM, por favor, que eu já perdi o link original). Esse manifesto era apresentado como “produzido por ativistas e intelectuais durante o Fórum Social Mundial com propostas para a construção de um outro mundo”.
Os signatários desse manifesto “para um outro mundo” foram 19 eminentes antiglobalizadores (ou que passam por tal), personalidades que continuam a freqüentar os conclaves do FSM a cada ano e que continuam a pontificar sobre a globalização assimétrica e o capitalismo perverso. São eles: Adolfo Pérez Esquivel; Aminata Traoré; Eduardo Galeano; José Saramago; François Houtart; Armand Matellar; Boaventura de Sousa Santos; Roberto Sávio; Ignácio Ramonet; Ricardo Petrella; Bernard Cassen; Samuel Luis Garcia; Tariq Ali; Frei Betto; Emir Sader; Samir Amin; Atílio Borón; Walden Bello e Immanuel Wallerstein. À época eu não comentei suas doze sugestões, seja por falta de tempo, seja porque eu já tinha feito em julho de 2004 (preventivamente, portanto), um texto “Contra a anti-globalização: contradições, insuficiências e impasses do movimento antiglobalizador”, publicado de forma fragmentada nas Colunas de Relnet , de julho a dezembro de 2004, e depois, de forma parcial, em diversos números do Meridiano 47, de julho de 2004 a maio de 2005 (vide recomendações de leitura, ao final).
No ano seguinte, em janeiro de 2005, o FSM foi realizado, como todos sabem, em Caracas, ocasião na qual eu também perpetrei um texto contendo os “Resultados antecipados do Foro de Caracas: um exercício de futurologia garantida…”, elaborado obviamente antes da realização do jamboree bolivariano e publicado em um dos meus blogs em 15 de janeiro (link: http://paulomre.blogspot.com/2006/01/165-resultados-antecipados-do-foro-de.html). Como eu tinha ficado devendo, portanto, meus comentários às doze propostas dos antiglobalizadores eminentes, eu me permito neste momento completar a lacuna pela transcrição integral dessas propostas, seguidas imediatamente de meus comentários sintéticos, reservando a uma outra ocasião uma elaboração mais sofisticada intelectualmente, à altura da respeitabilidade dos sábios antiglobalizadores (mas que não me parecem melhor dotados do que os jovens que costumam produzir mais transpiração do que inspiração nesses conclaves aborrecidos pela repetição das mesmas idéias surrealistas).
Resumindo suas (poucas) idéias, os sábios propunham o cancelamento da dívida pública dos países do sul, a taxação internacional das transações financeiras e o desmantelamento progressivo dos paraísos fiscais, jurídicos e bancários. Pediam, ainda, a proibição de todo o tipo de patente do conhecimento e seres vivos, assim como da privatização de bens comuns da humanidade, em particular a água. Diziam que estavam se expressando a título estritamente pessoal e que não pretendiam falar em nome do FSM, afirmação que pode ser tomada pelo seu valor face (mas que cabe receber cum grano salis, posto que eles são considerados os maîtres-à-penser do movimento antiglobalizador). Mas como o Fórum tem se notabilizado por uma notável falta de idéias, pode-se considerar que suas propostas representam, sim, propostas do FSM, mesmo que não tenham sido distribuídas oficialmente para discussão no conclave amazônico. Como imagino que vários desses sábios ali comparecerão, permito-me comentar agora suas idéias de 2005, esperando que elas não tenham piorado desde então.
5. Mais uma dúzia de propostas para um outro mundo possível: será possível?
A proposta é redundante, chega tarde e traz a marca de uma visão equivocada do que constitui a dívida externa. Desde meados dos anos 1980, pelo menos, os países do G7, os membros do Clube de Paris e os sócios mais influentes das instituições de Bretton Woods vêm aprovando – aprofundando a cada ano – mecanismos de redução negociada e menus de redução unilateral da dívida dos países mais pobres. Dizer que ela já foi paga várias vezes constitui, obviamente, uma visão totalmente política do problema, que não corresponde às condições contratuais. A relação, obviamente, é recíproca e não se tem notícia de países tomadores de crédito que tenham contraído dívidas para se submeter voluntariamente à tutela dos credores. Os juros da dívida pública, inclusive, ostentam os menores níveis do mercado e podem ter aspectos concessionais, como é o caso da relação entre muitos credores e os países mais pobres. A anulação da dívida pública comprometeria um sistema que ocupa um nicho não atendido pelo sistema de mercado de créditos a taxas comerciais.
Os propositores, provavelmente, não têm idéia de como funcionam os diversos mercados de créditos, e o atendimento de sua proposta simplesmente prejudicaria o conjunto dos tomadores públicos, que são todos os países em desenvolvimento que não possuem sistemas de financiamento sofisticados ou abastecidos. Para o Brasil, por exemplo, que é um país ao mesmo tempo tomador e credor, a implementação dessa medida representaria um enorme prejuízo nos negócios empreendidos por empresas brasileiras no exterior, que contam com financiamento público (BNDES ou outro).
Essa iniciativa, especialmente na forma proposta originalmente pelo seu suposto patrono, já foi inclusive renegada pelo economista James Tobin, que deu, involuntariamente, o nome à associação francesa que está na origem do movimento antiglobalizador, a ATTAC (Association pour la Tobin Tax en Appui aux Citoyens). Tobin havia feito a proposta no quadro dos movimentos cambiais erráticos que se seguiram à quebra do sistema de Bretton Woods de taxas estáveis, mas logo constatou sua inaplicabilidade prática, em virtude da impossibilidade de se separar os fluxos de ativos reais voltados para o investimento e a produção, daqueles puramente especulativos. Este é o problema central de toda taxação sobre transações financeiras: ela pune indistintamente movimentos positivos e outros de qualquer natureza, o que introduz, simplesmente, não um fator dissuasivo aos movimentos erráticos – que se realizam de qualquer maneira – mas um custo adicional aos legítimos tomadores de recursos nos mercados de créditos.
O Brasil, decididamente, seria prejudicado pela introdução desse tipo de medida mal concebida e impossível de ser aplicada em bases universais, como aliás já escrevi em um pequeno texto (“Interessa ao Brasil uma taxa sobre os movimentos de capitais?”, Meridiano 47, n. 47, junho 2004, p. 12-15; link:http://www.mundorama.info/Mundorama/Meridiano_47_-_1-100_files/Meridiano_47.pdf). Considerando-se que existem brasileiros entre os 19 sábios do FSM, se a proposta fosse introduzida, eles estariam, conscientemente ou não, prejudicando a posição do Brasil enquanto tomador de recursos nos mercados financeiros internacionais. Ingenuidade ou simples ignorância?
De fato, os paraísos fiscais constituem um problema para governos e empresas e cidadãos honestos, na medida em que eles não apenas subtraem recursos que, de outra forma, poderiam estar integrados aos circuitos normais da vida econômica, como também podem ser utilizados pelo crime organizado e pelos habituais defraudadores das administrações tributárias nacionais. O problema está em que, num sistema de soberanias ilimitadas, cada país está livre para determinar seu sistema tributário e as alíquotas a serem aplicadas às operações financeiras conduzidas em suas jurisdições. Nenhum outro Estado ou organização pode obrigar os paraísos fiscais a incorporar mecanismos ou alíquotas contra sua vontade e interesse nacional (que é, obviamente, o de ganhar alguns trocados – ou milhões – à margem dessas operações fictícias). Eles podem, teoricamente, ser submetidos a sanções por iniciativa dos Estados que se sentirem prejudicados por sua atitude oportunista e desleal no plano fiscal. Mas o fato é que esse tipo de prática vai continuar enquanto Estados predadores pretenderem manter níveis impositivos e mecanismos extratores intrusivos e extorsivos do ponto de vista das empresas e cidadãos; daí a “utilidade” dos paraísos fiscais como válvulas de escape, mesmo para contribuintes honestos na maior parte do tempo.
O desmantelamento sugerido pelos sábios do FSM pode significar alguma iniciativa truculenta da parte dos Estados “normais” da comunidade internacional, o que obviamente apresenta problemas no plano da legalidade internacional e do direito soberano de cada Estado adotar a estrutura tributária que melhor lhe convenha. Aliás, eles querem atuar bem mais sobre os efeitos do que sobre as causas: existem paraísos fiscais para responder a certas “necessidades” econômicas, assim como existem traficantes de drogas para responder à proibição oficial e para atender os “clientes”.
Talvez a solução mais conveniente, ou pelo menos mais racional, esteja numa coordenação fiscal internacional apontando na direção de alíquotas moderadas e mecanismos menos intrusivos do ponto de vista dos agentes econômicos primários. A experiência ensina que medidas truculentas como as sugeridas pelos sábios acabam resultando em mais fraudes fiscais, fuga de capitais e outras práticas nefastas no plano fiscal nacional. Os sábios confirmam, indiretamente, sua visão autoritária, dirigista e estatizante do sistema econômico, o que em todos os lugares levou a distorções e à exportação de riquezas. Eles provavelmente acham que os sistemas ultra-intrusivos e centralizados ao extremo conformam o modelo ideal de governança: a História ensina que o contrário costuma ser o verdadeiro.
Talvez os sábios pudessem acrescentar também: uma casa, um carro, conta em banco, milhas ilimitadas, vale-refeição, uma visita por ano a Paris e outra a Nova York. Incrível como esse pessoal tem uma capacidade imitativa extraordinária: eles são capazes de imitar o discurso de qualquer político em campanha eleitoral. Como não dizem absolutamente nada sobre como pretendem conceder todas essas bondades e benesses aos felizes habitantes do seu outro mundo possível, podemos ignorar totalmente esta quarta proposta, por inoperante e puramente demagógica.
Os sábios estão mal informados: a OMC é tão capaz de impor regras de livre comércio quanto a Igreja é capaz de assegurar a castidade ou a abstinência de seus seguidores. A expressão “todas as formas de comércio justo” é completamente vazia de significado no mundo do comércio real, o que talvez não seja do conhecimento dos sábios, já que eles vivem exclusivamente no âmbito universitário ou das ONGs, sem contato de qualquer tipo com a esfera econômica. Quanto aos temas para os quais eles pedem exclusão dos acordos de liberalização, provavelmente não sabem que vários deles já fazem parte das ofertas ou da situação real de “exploração” de serviços em muitos dos países membros da OMC. No campo da educação, por exemplo, nenhuma regra constitucional poderia impedir as universidades de Harvard ou de Yale de se instalarem no Brasil, se assim o desejassem (o que seria excelente para a competição entre instituições de qualidade), bastando uma autorização do MEC e a conformidade dessas universidades com as regras em vigor no Brasil.
Incrível como mesmo os mais reconhecidos sábios têm horror à competição no mundo da ciência e cultura e preferem manter sistemas fechados e excludentes, o que, por si só, já constitui um insulto à inteligência e à universalidade do conhecimento. Esses sábios deveriam ser coerentes com o que propõem e começar por não aceitar mais nenhum convite das universidades européias ou americanas que os cortejam (talvez indevidamente, ou por excesso de generosidade com figuras “exóticas”).
O que eles propõem é absolutamente contraditório com o que dizem defender. Os EUA não vão retornar à “agricultura campesina”, seja lá o que isso queira dizer, nem os europeus vão renunciar aos gordos subsídios que sustentam artificialmente sua agricultura, em detrimento dos verdadeiros campesinos africanos ou asiáticos. Por outro lado, os subsídios à exportação não são, ao contrário das subvenções internas, os mais importantes nem os mais nocivos a um comércio agrícola verdadeiramente “justo” (para empregar um conceito que eles apreciam). Os sábios também parecem contraditórios com seu apego à ciência, ao rejeitar a priori, sem qualquer fundamento científico, os OGMs ou outras inovações que possam ser introduzidas para melhorar a produtividade agrícola de capitalistas e campesinos e atender à segurança alimentar de todos os povos do planeta. Seu obscurantismo nessa matéria revela preconceito e uma atitude propriamente reacionária em relação aos avanços responsáveis da ciência.
Os sábios não devem conhecer legislação de propriedade intelectual, pois em nenhum país do mundo o conhecimento é patenteável. Seres vivos podem, sim, ser objeto de proteção, por instrumentos adequados, se cumprirem os requisitos fixados na legislação. Tecnologias proprietárias têm sido responsáveis pela maior parte dos novos medicamentos, que salvam a vida das pessoas e melhoram suas vidas. Talvez os sábios pretendam ou possam pessoalmente ficar à margem dessas possibilidades de bem-estar e se abster de usar novos medicamentos.
Quanto aos bens comuns, eles certamente se submetem a alguma regulação, nacional ou multilateral, o que não impede sua exploração em regime de concessão, cujos termos são a rigor estabelecidos com vistas ao bem comum, justamente. Apenas um preconceito contra empresas privadas leva os sábios a excluírem preventivamente essa possibilidade de exploração eficiente, cost-effective, de certos bens comuns. Não se sabe de uma empresa privada que não esteja interessada em ampliar sua clientela, mesmo para “bens comuns”. O que os sábios refletem, implicitamente, é um tremendo preconceito contra o lucro, obviamente, o que totalmente ridículo em pessoas que são supostamente razoavelmente instruídas em matéria econômica (ou não?).
Nada a objetar quanto ao primeiro objetivo. Sérias preocupações quanto ao segundo, posto que esses povos não permanecerão eternamente indígenas, a menos que os sábios pretendam fazer deles objetos de museu, preservados em uma redoma que os impeça de se integrarem às sociedades nacionais. Esses sábios se consideram tutores dos povos indígenas.
Nada a objetar. Os sábios só ficam nos devendo uma descrição mais acurada do que eles entendem por “outro modelo de desenvolvimento”, sem o que fica difícil criticar, mais uma vez, suas “idéias” surreais. Sobriedade energética pode querer dizer muitas coisas, inclusive com novas tecnologias desenvolvidas por empresas privadas, que eles tão zelosamente querem expulsar de todo e qualquer domínio “público”. O controle democrático dos recursos naturais é uma frase generosa, que pode tanto querer dizer parlamentos nacionais, quanto ONGs, mas estas geralmente escapam de qualquer controle democrático, pois são de caráter privado e não costumam prestar contas à sociedade.
Tremendo autoritarismo, pois existem países que definem sua segurança com base em alianças militares e que preferem delegar certas tarefas a tropas estrangeiras, instaladas em bases nacionais. Japão e Alemanha, por exemplo, não pretendem se nuclearizar e preferem se colocar ao abrigo do guarda-chuva nuclear dos EUA. Os sábios vão exigir que esses dois países deleguem sua segurança a tropas da ONU?
Os sábios deveriam encaminhar sugestões detalhadas aos órgãos nacionais de regulação audiovisual ou apresentar casos concretos de abuso nas instâncias de defesa da concorrência. Atitude louvável essa, embora a mesma postura não se aplique no caso de entidades puramente estatais, sempre julgadas benéficas por princípio.
Reformar essas instituições deve fazer permanentemente parte da agenda dos governos responsáveis, já que essas instituições tendem a se converter em dinossauros esclerosados, cuidando unicamente do seu próprio interesse e do seu pessoal. Curiosamente, as instituições de Bretton Woods e a OMC não estão entre as mais mal geridas, bastando constatar que os piores casos de má administração de recursos, excesso de pessoal e desvios de função – quando não duplicação de iniciativas nas mesmas áreas – se encontram bem mais nas organizações da área social e cultural e nas de assistência aos países pobres.
Quanto à segunda sugestão, acredito que poucos delegados do Sul estariam de acordo em retirar a maior parte das organizações internacionais de suas sedes em países do Norte. Mas sempre se pode tomar a iniciativa de consultar os interessados.
Conclusão
O que constato, de fato, é que os antiglobalizadores, e seus sábios, adoram o pensamento único, pois que nenhuma entidade, ou personalidade individual, que não concorde com seus princípios algo esquizofrênicos é convidada a falar ou debater em seus conclaves sempre ruidosos e inconclusivos. Deve fazer mais de dez anos que eles nos prometem um outro mundo possível, e na verdade a única coisa que eles conseguem aprovar, como resultado desses encontros, é uma agenda que conseguiria tornar o mundo atual pior do que ele já é. Com efeito, todas as suas recomendações vão a contrário senso das tendências econômicas e científicas contemporâneas, tal como observadas no mundo real; não nesse outro mundo possível de que eles falam, mas do qual não conseguem entregar a receita.
Eu espero, no que me concerne, que este pequeno manual das irrealidades dos antiglobalizadores possa contribuir para que eles reflitam sobre a realidade do mundo concreto, não daquele imaginado por eles e que pouco tem a ver com as relações sociais, políticas e econômicas efetivamente existentes na maior parte dos países. O que deveriam fazer os antiglobalizadores (mas o que eles provavelmente não farão) seria aproveitar o Fórum Social Mundial de 2009, em Belém, para fazer um balanço honesto dos seus dez anos de pregações surrealistas e tirar as lições de por que suas receitas e recomendações – com exceção, obviamente, das mais óbvias, relativas a direitos humanos e sustentabilidade ecológica – não vêm sendo implementadas por praticamente nenhum governo do planeta, mesmo aqueles supostamente mais comprometidos com as suas causas.
Pode-se, a rigor, estabelecer um benchmark com base em suas recomendações – tal como examinadas neste trabalho e em textos anteriores – e verificar em que medida os governos aparentemente mais comprometidos com os princípios e causas do FSM implementam, de fato, as medidas preconizadas pelos antiglobalizadores. O primeiro teste é, evidentemente, o da própria globalização. Ninguém há de recusar a realidade, por exemplo, de que Cuba e Coréia do Norte são países pouco globalizados – junto com outros, como Síria e Iran, que também controlam a internet e a imprensa -, comparativamente com Costa Rica e Coréia do Sul, e isso poderia servir de benchmark para um balanço do bem estar social, dos direitos à livre informação e de todas as demais liberdades individuais ou coletivas em todos esses países. O contraste seria tão flagrante que eu não tenho nenhuma dúvida quanto ao resultado desse teste.
Em face desse tipo de realidade, eu me pergunto o que é que os sábios e seus seguidores da antiglobalização aprovarão em Belém. Talvez uma repetição maquiada das teses aqui examinadas. Creio que teremos mais do mesmo (até o próximo Fórum Surreal Mundial), posto que eles sairão convencidos de que suas propostas podem funcionar na prática. Ainda não se viu nada disso, mas eles não perdem a esperança.
Imagino que os mais jovens o façam por ingenuidade ou ignorância das coisas do mundo. Imagino também que os mais velhos – sindicalistas, professores e outros últimos crentes na verdade revelada – o façam por autismo político e incapacidade de enfrentar a realidade. Quanto aos sábios, que teoricamente podem dispor de todo o conhecimento acumulado desde sempre nas academias e centros de pesquisa, acredito que eles continuam a repetir as mesmas idéias surrealistas e os mesmos equívocos na área econômica, não por acreditarem em seus argumentos, mas apenas para disporem de uma tribuna fácil para suas perorações inúteis. Isto não constitui apenas uma forma de auto-engano; mas se trata, provavelmente, de desonestidade intelectual, o que é imperdoável a cidadãos escolarizados além do terceiro ciclo. Enfim, ninguém gosta de desmantelar seus sonhos e utopias. Acho que os sábios também não…
Algumas recomendações de leitura:
- “Contra a anti-globalização: Contradições, insuficiências e impasses do movimento antiglobalizador”. Publicado de forma fragmentada em Meridiano 47 (disponível em formato integral no link:http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/1297ContraAntiGlobaliz.pdf).
- “Fórum Social Mundial: nove objetivos gerais e alguns grandes equívocos”, Meridiano 47 (n. 78, janeiro 2007, p. 7-14; link:http://boletim.meridiano47.googlepages.com/Meridiano78.pdf).
- “A distribuição mundial de renda: caminhando para a convergência?”, Meridiano 47 (n. 74, setembro 2006, p. 20-29; link:http://boletim.meridiano47.googlepages.com/Meridiano74.pdf).
- “A globalização e seus descontentes: um roteiro sintético dos equívocos”, Espaço Acadêmico (n. 61, junho 2006; link:http://www.espacoacademico.com.br/061/61almeida.htm).
- “A globalização e seus benefícios: um contraponto ao pessimismo”, Espaço Acadêmico (n. 37, junho 2004; link: http://www.espacoacademico.com.br/037/37pra.htm).
- “A globalização e as desigualdades: quais as evidências?”, In: Paulo Roberto de Almeida, A Grande Mudança: conseqüências econômicas da transição política no Brasil (São Paulo: Códex, 2003; link:http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/859GlobalizDesig.pdf).
Paulo Roberto de Almeida é Doutor em ciências sociais, diplomata de carreira, professor no Mestrado em Direito do Centro Universitário de Brasília – Uniceub (pralmeida@mac.com). Os argumentos aqui apresentados correspondem única e exclusivamente às posições pessoais do autor, não tendo qualquer relação com as entidades a que ele se encontra vinculado.