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quarta-feira, 26 de maio de 2021

Sun Tzu para diplomatas - Paulo Roberto de Almeida

 Eis os registros sobre Sun Tzu em meu blog Diplomatizzando; ao final transcrevo meu texto:


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terça-feira, 9 de agosto de 2016

Sun Tzu tem algo a ensinar aos diplomatas? Parece que sim... - uma releitura da Arte da Guerra, por Paulo Roberto de Almeida 



Formação de uma estratégia diplomática
Relendo Sun Tzu para fins menos belicosos

Paulo Roberto de Almeida

Os argumentos constantes do presente ensaio analítico se inserem num conjunto de trabalhos – já feitos ou em preparação – que podem ser enfeixados na categoria dos “clássicos revisitados”, entre os quais um ManifestoComunista adaptado a estes tempos de globalização,[1] e um Moderno Príncipe,[2] que pretende aproveitar os conceitos do florentino para a política atual. Da mesma forma, pode-se reler Sun Tzu e aproveitar os ensinamentos contido na Arte da Guerra[3] para uma reflexão de caráter conceitual sobre a estratégia diplomática – referida simplesmente como ED – no contexto das relações internacionais contemporâneas. A esse título, não se trata de refazer, obviamente, uma “arte da guerra para diplomatas”, e sim tão somente de tecer considerações sobre uma (e não a) estratégia diplomática, com base nos argumentos basicamente filosóficos – e, claro, muitas regras práticas – presumivelmente redigidos pelo conhecido mestre chinês, legitimamente considerado o “pai da estratégia” (no seu caso, militar).

Da diplomacia como um instrumento do Estado
A diplomacia é de vital importância para o Estado. Talvez não tão crucial quanto a defesa do Estado por suas forças armadas, pois destas depende a própria sobrevivência física do Estado. Este pode, teoricamente sobreviver sem manter intensas relações internacionais, ou sem exercer uma diplomacia ativa. Mas ele dificilmente teria vida longa, ou conseguiria preservar seus interesses vitais, sem uma capacitação adequada em matéria de instrumentos defensivos (que são, igualmente, mecanismos ofensivos, credíveis, tanto para a dissuasão quanto para o ataque).
A diplomacia é, todavia, crescentemente relevante não apenas para a defesa dos interesses fundamentais de um Estado, mas sobretudo para se alcançar os objetivos nacionais relevantes de uma nação no contexto contemporâneo, partindo do pressuposto que a sociedade humana e a comunidade das nações se afastam, cada vez mais, do direito da força para aderir à força do direito. O mundo contemporâneo abandonou, progressivamente, os esquemas restritos dos arranjos interimperiais – embora a última instância da política internacional permaneça com as grandes potências – para adentrar no multilateralismo dos esquemas de segurança coletiva consolidados nos instrumentos onusianos. Da diplomacia depende – paralelamente ao exercício potencial do poder militar – a preservação de um ambiente de paz e de estabilidade, tanto quanto de cooperação nos planos bilateral, regional ou multilateral a que aspira todo Estado que privilegia a solução de controvérsias pela via das negociações. Esta é uma condição essencial, hoje indispensável, para o crescimento econômico sustentado, os avanços tecnológicos, o progresso social, a preservação do meio ambiente, enfim, para a prosperidade comum.
Adaptando nossa releitura de Sun Tzu ao contexto diplomático, poderíamos dizer que a arte da diplomacia implica cinco fatores principais, que devem ser objeto de nossa contínua reflexão, com vistas a aperfeiçoá-los e incorporá-los cada vez mais às nossas práticas de servidores do Estado no campo da política externa. Estes cinco fatores são: a doutrina, a interação entre a conjuntura e a estrutura, os condicionantes econômicos e geopolíticos da ação diplomática, o comando e a disciplina. A partir desses cinco fatores é possível elaborar uma “estratégia diplomática”, que será objeto da segunda seção deste ensaio introdutório.

doutrina tem a ver com a concepção mesma da diplomacia, a sua razão de ser. Ela diz respeito aos princípios inspiradores da diplomacia, aos valores que fundamentam a sua ação, às diretrizes que guiam essa ação na prática. Ela também se refere a uma noção clara dos interesses nacionais e aos instrumentos indispensáveis à implementação dos objetivos fundamentais do Estado, cujo pressuposto básico  é, obviamente, o ato de dispor de uma doutrina básica para sua atuação diplomática – sem esquecer uma estratégia militar --  no cenário internacional.
interação entre a conjuntura e a estrutura pode ser vista como o equivalente funcional daquilo que Sun Tzu chamava de tempo. Essa interação supõe a combinação da sincronia e da diacronia – ou seja, o momento presente e a flecha do tempo –, que constituem os dois vetores de atuação diplomática ao longo de um determinado período. Toda diplomacia lida com o aqui e o agora, mas ela o faz tendo em vista as consequências futuras das ações adotadas na presente conjuntura e levando em consideração a herança recebida do passado recente, que imprime sua marca sobre a mente dos diplomatas e determina, em grande medida, a forma como eles vão agir no presente.
Os condicionantes econômicos e geopolíticos representam o fator que Sun Tzu chamava de espaço, isto é, o ambiente concreto no qual devem se movimentar os “exércitos” diplomáticos, em busca da materialização dos objetivos nacionais.
comando atende aos mesmos critérios estabelecidos pelo mestre chinês da arte da guerra para esse conceito. Ele tem a ver com a capacidade exibida pelas lideranças diplomáticas – o estadista, o chanceler, os altos responsáveis pela formulação da doutrina e pela definição das principais diretrizes diplomáticas – de indicar claramente aos membros da comunidade diplomática nacional quais são os objetivos pelos quais eles devem se bater.
Sun Tzu considerava que o comando deveria ter as seguintes qualidades: sabedoria, sinceridade, benevolência, coragem e disciplina. Dessas cinco qualidades, a primeira é certamente necessária ao comandante, assim como a quarta, embora esta deva pertencer mais ao comandante militar do que propriamente ao chefe da diplomacia. Maquiavel certamente descartaria a segunda e a terceira, ou seja, a sinceridade e a benevolência, embora considerasse esta última como um recurso a que o condotier poderia apelar quando estivesse em situação de força, justamente. Quanto à ultima, deve ser considerada mais como uma variante do rigor consigo mesmo do que o exercício da disciplina “contra” seus próprios subordinados, que é o objeto do último fator da arte da diplomacia.
disciplina, no plano da diplomacia, tem a ver com organização e métodos, ou seja, a construção de uma ferramenta burocrática que seja, ao mesmo tempo, eficiente e inovadora, prudente e ousada, preparada no plano da informação e do conhecimento e apta a seguir instruções de forma ordenada e coerente, atuando como uma agência homogênea e uniforme. Isto é possível quando o estamento burocrático-diplomático possui processos de socialização e de construção de um pensamento relativamente unificado e convergente.
Com base nesses cinco fatores, as autoridades diplomáticas de um Estado podem planejar seus objetivos externos – a que chamaremos de “estratégia diplomática – a partir de um conjunto adicional de fatores instrumentais que têm a ver, essencialmente, com a implementação prática desses objetivos, quaisquer que sejam eles. Entre esses fatores figuram os seguintes: a capacidade dos dirigentes diplomáticos em formular metas realistas e adequadas para a mobilização efetiva do estamento profissional diplomático; a avaliação correta dos limites e possibilidades oferecidas pelo sistema internacional para que aqueles objetivos possam ser alcançados; o uso eficiente de todos os mecanismos e instrumentos do sistema internacional – instituições formais, grupos informais, coalizões temporárias de interesse, combinação de iniciativas bilaterais, coordenação regional e exploração dos canais multilaterais – segundo a natureza de algum objetivo específico; coordenação interna das agencias públicas que detêm alguma interface internacional e instruções claras aos agentes diplomáticos nas diversas frentes negociadoras para se alcançar eficácia máxima nas iniciativas diplomáticas desse Estado.
Mesmo sob condições democráticas, e portanto transparentes, a eficiência e a eficácia na ação diplomática de um Estado depende, em parte, do tratamento discreto que possa atribuir a determinados temas de seu interesse crucial na frente externa. Toda negociação diplomática é, por definição, uma barganha entre interesses por vezes convergentes, mas em certa medida contraditórios, quando não divergentes ou opostos (na medida que todo e qualquer acordo sempre implica em custos políticos e econômicos, a começar pela perda relativa de soberania, o que se deve limitar o máximo possível). Daí a necessidade de se encaminhar um determinado tema com base em argumentos de utilidade geral e de benefício recíproco que podem oferecer a base para um entendimento mais próximo dos interesses nacionais.
Esta questão implica também que o trabalho de avaliação deve envolver não apenas os interesses próprios do Estado em questão, mas igualmente os interesses do Estado, ou dos Estados com os quais se negocia, de maneira a permitir as acomodações necessárias. Dito isto, caberia, portanto, passar aos argumentos principais, que têm a ver com a elaboração e a implementação de uma estratégia diplomática (ED). 

Da estratégia diplomática como uma das artes especializadas do Estado
Analogamente a seu equivalente militar, mas nisso talvez destoando um pouco de Sun Tzu, poderíamos dizer que a ED consiste na mobilização de instrumentos políticos, econômicos e militares – ponderados com base numa avaliação comparada e em análises conceituais e factuais sobre as intenções dos demais participantes do jogo diplomático – com vistas à consecução de objetivos nacionais bem definidos, mas sem o recurso à, ou a ameaça do uso da, força militar ou à guerra. Nesse sentido, a ED se opõe à, ou se distingue da, estratégia militar, que pressupõe, de sua parte, o uso ou a ameaça de uso da força bruta, segundo linhas que já foram suficientemente discutidas ao longo da história, desde Sun Tzu até os modernos estrategistas militares, passando por Clausewitz, Henry Kissinger ou Raymond Aron.
No plano puramente conceitual, a formulação de uma ED implica a análise dos fatores contingentes, de obstáculos conjunturais e de barreiras de caráter estrutural que dificultam – em alguns casos até obstaculizam – o atingimento dos objetivos nacionais, tais como definidos pelos estrategistas de um determinado Estado, uma comunidade variada que pode envolver desde estadistas até burocratas do planejamento governamental, passando por representantes da cidadania e consultores independentes (membros da academia, especialistas setoriais, etc.). No plano operacional, a ED pressupõe a mobilização de todos os instrumentos à disposição desse Estado para o atingimento daqueles objetivos, o que implica o uso dos meios propriamente diplomáticos, mas também o apoio das forças armadas e da comunidade econômica do país. 
Todo Estado moderno, atuante, inserido na comunidade internacional, normalmente dotado de órgãos executivos e de planejamento, possui, ou deveria possuir, uma ED. Não se deve, evidentemente, superestimar uma ED: não se trata de algo fixo ou rígido, estruturalmente determinado, mas de uma concepção determinada por fatores conjunturais e até contingentes, concomitante às iniciativas dos Estados e às ações humanas.
Uma ED realista e flexível deve submeter-se, desde logo, a constantes revisões, tantos são os fatores de mudança conjuntural e as alterações no cenário político internacional que influenciam ou impactam os objetivos nacionais de um Estado. Ela deve estar, portanto, sujeita a avaliações regulares por parte de um staff especialmente preparado para essa finalidade e dedicado funcionalmente a esse tipo de tarefa. Não conviria, aliás, que o órgão encarregado da elaboração de uma ED fosse exclusivo e excludente, ou seja, trabalhando unicamente em torno da ED, e sim que ele seja aberto a insumos externos e à colaboração de especialistas e consultores alheios ao próprio órgão, de forma a manter uma atmosfera aberta inovadora, permitindo até revisões radicais da “velha” ED (ou seja, indo temporariamente num sentido contrário à “razão de Estado”). 

Uma ED, ainda que elaborada por um governo determinado, não é, ou não deveria ser, uma concepção e uma ação de um governo, e sim uma iniciativa e uma postura de Estado, ou seja, interessando antes à Nação do que aos partidos e personalidades ocupando temporariamente o poder. Como atividade típica de Estado, a ED deve estar sujeita ao escrutínio de todas as forças, movimentos e grupos de opinião representativos da Nação, ser objeto de discussão e de avaliação quanto a seus fundamentos concretos, seus instrumentos operacionais, seus objetivos explícitos e suas metas implícitas. Normalmente é isso que ocorre em sistemas democráticos, tanto mais intensamente quanto mais abertos e transparentes são os elementos centrais que definem e ajudam a implementar uma ED.
Os processos de concepção, elaboração e de revisão da ED se dão no corpo do Estado, envolvendo as agências voltadas para as relações exteriores, os órgãos de defesa e o governo central, ademais das instâncias voltadas precipuamente para planejamento de políticas e de análises aplicadas; eles passam pelo parlamento e alcançam a sociedade, por meio da opinião pública, devidamente informada pelos órgãos de informação. 

O planejamento de uma ED implica, antes de qualquer outra ação, tratar dos meios próprios a uma organização diplomática: de nada serve ter uma ED sem a ferramenta que a implementará. Estamos falando aqui de funcionários, equipamentos, recursos, organização, enfim, todos os meios com os quais todo e qualquer Estado leva sua ED da fase de concepção à de aplicação no terreno. Na diplomacia, como na guerra, nada existe estaticamente, ou de forma puramente passiva, mas, sim, compõe-se de interações dinâmicas; os meios precisam ser sempre mantidos, aperfeiçoados, substituídos, instruídos e monitorados.
Diferentemente da guerra, porém, não é preciso ter um planejamento logístico destinado a concentrar forças e operações ofensivas num espaço de tempo delimitado e num terreno previamente estudado. Em outros termos, as ações diplomáticas não necessitam de uma “concentração de fogo” para se lograr alguma vantagem decisiva no calor da batalha. A dinâmica diplomática é mais cumulativa, do que “destrutiva”, e as operações podem ser delongadas em função de uma avaliação contínua e mutável das condições do “terreno”, em função da interação com o “adversário”, que, no ambiente diplomático, não significa uma atitude de confrontação como na guerra e nas demais operações militares. A ED é bem mais intangível do que a EM, baseada no planejamento, certamente, mas em última instância na força bruta. 
Diferente da guerra, também, a conduta diplomática se baseia menos em meios materiais, ou equipamentos “pesados”, e mais em negociações diretas, quase pessoais, entre os atores. Não se trata de “aniquilar” o inimigo, mas sim de convencer e compor com um parceiro, mais que um adversário. A guerra desgasta, se mantida durante muito tempo, ao passo que a diplomacia avança, com a composição de interesses. A “logística” da diplomacia possui uma lógica própria, baseada – aliás, como no caso das operações militares – na presença sobre o “terreno” e na interação constante com o “adversário”; diferentemente, porém, não se trata de vencê-lo, mas de compor com ele um novo terreno de interações e de cooperação. 
Essa presença tem um “preço”, que é o custo da manutenção de representantes diretos – os “agentes avançados” dos serviços de inteligência militar – e do envio de missões temporárias e permanentes, assim como o engajamento pleno em negociações em nível bilateral, regional ou multilateral. Esse preço pode ser o equivalente funcional da manutenção, bastante custosa no âmbito militar, de equipamentos pesados que se destinam, na verdade, a não serem usados, mas que servem basicamente para dissuasão. No caso da diplomacia, a “dissuasão” é na verdade o diálogo e o entendimento, se possível no mais alto nível (mas de ordinário mantida pelo representante permanente, normalmente chamado de embaixador). 
A condução da diplomacia será, evidentemente, diferente, segundo o Estado ostenta um regime político centralizado ou unitário, próximo do autoritarismo, ou se esse Estado exibe características claras de descentralização, com dispersão relativa dos centros de poder e participação de vários atores políticos e sociais. O Estado do mestre chinês da arte da guerra, não obstante a descontinuidade ocasional trazida por uma sucessão extraordinária de dinastias, invasões e de reconstruções sucessivas do sistema político, exibiu notável continuidade na centralização imperial, no limite do despotismo “hidráulico”. Nesse tipo de regime, a condução da diplomacia obedece, simplesmente, à vontade do soberano, com alguma participação dos cortesãos e membros do aparato estatal restrito (antigos mandarins, modernos aparatchiks).

A condução da diplomacia nas modernas condições democráticas se faz sob forte pressão de forças sociais suscetíveis de expressar posições distintas e de influenciar o processo de tomada de decisão no plano externo. A despeito da legitimidade que possam exibir essas demandas, seria conveniente que o Estado, em especial seu aparelho diplomático, preservasse sua latitude de ação e ampla margem de opções, de maneira a escolher as melhores vias – que envolvem alianças ocasionais, coordenações formais e até iniciativas individuais – para alcançar os objetivos nacionais desse Estado. Pode-se inclusive conceber certa autonomia de iniciativa e de ações atribuída ao negociador principal, da mesma forma como se concede pleno poder de comando ao general em seu campo de batalha. Em momentos decisivos, essa autonomia deve ser plena, posto que a autoridade responsável pelo sucesso (ou fracasso) de uma negociação ou iniciativa diplomática é o próprio agente no terreno, não o soberano em sua capital distante.
Em todas essas questões, Sun Tzu tem muito a ensinar aos diplomatas profissionais (e até aos iniciantes). 

Brasília, 5 março 2011.

Resumo: Releitura introdutória do clássico Arte da Guerra, de Sun Tzu, adaptando seus argumentos para o objetivo de formulação de uma estratégia diplomática, necessariamente distinta da concepção militar que presidiu à sua elaboração.



[1] Ver Paulo Roberto de Almeida, Velhos e novos manifestos: o socialismo na era da globalização (São Paulo: Juarez Oliveira, 1999).
[2] Cf. Paulo Roberto de Almeida, O Moderno Príncipe: Maquiavel revisitado (Brasília: Senado Federal, 2010). 
[3] O clássico de Sun Tzu pode ser encontrado facilmente na internet, numa infinidade de edições eletrônicas, em várias línguas e nas mais diferentes traduções e adaptações para o Português, voltadas tanto para o contexto militar quanto para o mundo dos negócios.



quarta-feira, 31 de agosto de 2022

A Arte da Guerra: Sun Tzu - Paulo Roberto de Almeida, in: Jorge Tavares da Silva (coord.) Olhar a China pelos livros

 Um trabalho recentemente publicado, tendo recebido o livro neste 31 de agosto de 2022. A contribuição deveria ser em torno de um livro chinês ou sobre a China, vista, relida, comentada pelos colaboradores em toda liberdade.

Eu escolhi um dos mais antigos livros representativos da cultura chinesa, o manual de Sun Tzu, relido na versão de um moderno Sun Tzu, temática que eu já havia abordado num trabalho de 2010, como informo ao final desta postagem.

Paulo Roberto de Almeida

“A Arte da Guerra: Sun Tzu”, in: Jorge Tavares da Silva (org.), Olhar a China Pelos Livros (Lisboa: Centro Cultural e Científico de Macau; Macau: Universidade de Macau, 2022, 155 p., p. 114-125; ISBN: 978-972-8586-57-7)


A Arte da Guerra: Sun Tzu

 

 

Paulo Roberto de Almeida

Contribuição publicada como “A Arte da Guerra: Sun Tzu” in: Jorge Tavares da Silva (coord.), Olhar a China Pelos Livros (Lisboa: Centro Cultural e Científico de Macau; Macau: Universidade de Macau, 2022, 155 p., p. 114-125; ISBN: 978-972-8586-57-7).

 

 

 

1. O itinerário de Sun Tzu, um perfeito paralelo ao da China contemporânea

Sun Tzu, o contemporâneo, não o clássico – de 25 séculos atrás, nos tempos turbulentos dos Estados Guerreiros – nasceu em Chongqing no dia 1º de outubro de 1949, quando Mao Tsé-tung proclamava o nascimento da República Popular. Sua vida acompanhou, passo a passo, os percalços, turbulências e realizações da administração do Partido Comunista da China, até as comemorações do primeiro centenário do partido, em 2021, quando ele comemorou, com grande satisfação, o anúncio sobre a eliminação da pobreza extrema no país, tudo o que ele tinha aspirado em sua vida de mais de setenta anos de estudos e de atividades como professor. 

Seu pai, Sun Pin, por uma dessas coincidências históricas, tinha nascido em Shanghai, na mesma data da fundação do Partido, na zona francesa da mais internacional cidade da República da China, dez anos depois da derrocada da última dinastia do milenar Império do Meio. Estas foram apenas duas das coincidências entre o itinerário da família Sun e a história da China, envolvendo três gerações. O avô de Sun Tzu, Sun Wu, tinha nascido em 1883, em Pinkiang, uma pequena cidade da província de Heilongjiang (Manchúria), nas imediações onde foi fundada por oficiais russos do czarismo a cidade de Harbin, a mais industrial da China, ao final do Império e no início da República. Sun Wu foi um dos últimos aprovados nos concursos para mandarins imperiais, antes que a imperatriz Cixi terminasse o sistema em 1905, num esforço para modernizar o velho império do Meio. Suas funções também vieram a termo com a revolução de 1911.

Dispensado de suas ocupações, Wu decide viajar para a província de Kwangtung, então em rápido desenvolvimento, nas proximidades da possessão inglesa de Hong Kong e da colônia portuguesa de Macau. Foi admitido como professor numa escola da cidade, ao mesmo tempo que dava aulas particulares de filosofia e letras clássicas, para uma clientela de jovens estudantes recrutados na burguesia comerciante local. Dominando o inglês, começa também a estudar francês, sozinho, lendo romances de Balzac e de Émile Zola. Ao casar-se, no final de 1917, ouviu as primeiras reverberações da revolução bolchevique, provocando agitação entre os operários. 

Armado de seu conhecimento de línguas, Sun Wu decide mudar-se para a internacional Shanghai, , por sinal administrada por um consórcio de cônsules estrangeiros. Foi em Shanghai que conheceu um jovem estudante chinês, recém-retornado de Paris, Chu Enlai, que o ajuda a conseguir um emprego no consulado francês da cidade. Foi também nessa cidade que nasceu seu filho Sun Pin, no mesmo dia em que Chu Enlai e outros convertidos ao bolchevismo fundavam o Partido Comunista, em 1921. 

Foi Chu Enlai que fez com que Sun Wu retornasse a Cantão, onde estava a base da III Internacional Comunista, para servir de como intérprete de Borodin, enviado de Moscovo pelo Komintern, ao lado do indiano Roy, ambos buscando provocar uma revolução comunista na confusa República da China, já disputada por senhores da guerra e por dirigentes do Kuomintang, o partido nacionalista fundado por Sun Yat-Sen. Conhecendo russo, inglês, francês, cantonês e mandarim clássico, Wu acompanhou todas as manobras políticas, bastante contraditórias, que uniam e separavam comunistas chineses e nacionalistas do Kuomintang, os enviados do Komintern e os senhores da guerra.

A tentativa de tomada do poder nas cidades provinciais da China pelo PCC, sob ordens do Komintern, no final de 1927, foi um completo fracasso, objeto da repressão brutal do general Chiang Kai-shek, que já controlava o Kuomintang. Sun Wu, com sua mulher e o pequeno Sun Pin, foge novamente para Shanghai e obtém um posto de auxiliar no Consulado americano, então em expansão. Shanghai, ao início dos anos 1930, era uma cidade fascinante, com todo os tipos de homens de negócios e aventureiros, espiões e mulheres fatais, hotéis de luxo e cortiços sórdidos, além obviamente de todos os tipos de tráficos, de drogas, de ativos financeiros, até de pessoas. O pequeno Sun Pin passa a frequentar a escola inglesa, mas também toma aulas de francês e de russo com o pai, completadas ainda pelas letras clássicas chinesas. A vida transcorria mais ou menos tranquilamente para a família Sun, mas os japoneses, depois de conquistarem várias cidades na sua Manchúria natal, tomam o controle de toda a província em setembro de 1931, estabelecendo o Estado fantoche do Manchukuo, com o último imperador colocado a seu serviço até praticamente 1945; eles também se tornam cada vez mais agressivos em Shanghai, estendendo o seu enclave muito além dos limites fixados consensualmente pelos cônsules estrangeiros. 

Sun Wu, para escapar do assédio de agentes do Japão, que tentavam transformá-lo em um espião a seu serviço, resolve se mudar para Nanquim, onde estava instalada a capital da República da China controlada pelo Kuomintang de Chiang Kai-Shek. Não durou muito sua nova residência: dois anos depois, no final de 1937, a partir de novas provocações, tropas japonesas desencadeiam uma ofensiva geral contra a China, em todas as frentes, tomando Pequim, Shanghai e iniciando a ofensiva contra Nanquim no final desse ano. O [bombardeio] bombardeamento? contra a capital do Kuomintang foi brutal, seguida da ofensiva terrestre. 

O jovem Sun Pin estava estudando os clássicos chineses na biblioteca Jiangnan, no momento dos bombardeamentos. Ao sair, tocado pelos alarmes, não sabia para onde ir, tamanha era a confusão em todos os lados. Engolfado pela destruição e pelos incêndios, Pin não conseguiu mais voltar para casa: levado pela multidão desesperada, acabou sendo arrastado para um quartel do Exército. Desconhecia o paradeiro da família e só muito tempo depois veio a saber que Sun Wu e sua mãe tinham morrido nos terríveis ataques japoneses.

Transportado em comboio militar, acabou deslocado para Chongqing, a nova capital da China do Kuomintang. Começou ali uma carreira militar involuntária, nunca como soldado de combate, sempre como auxiliar técnico, nas traduções para o russo e o inglês. A chegada dos britânicos e dos americanos foi providencial no itinerário futuro de Sun Pin; integrado ao Exército nacionalista como tradutor em várias línguas, ele chegou inclusive a ajudar no quartel dos militares americanos em Chongqing, comandados a partir de 1943 pelo general Joseph Stilwell. Ao final da guerra, continuou nas mesmas funções, já servindo ao Exército nacional. A guerra civil, a inflação galopante e a corrupção do regime de Chiang Kai-shek foram os traços dominantes dos quatro anos seguintes. 

Ao final, o regime se desfez, e a vida de Sun Pin passou por tantas turbulências quanto as que haviam marcado o itinerário de Sun Wu. Seu primeiro e único filho, Sun Tzu, nasceu no hospital militar de Chongqing, no dia 1º de outubro de 1949, quando as tropas do Exército Popular de Libertação já tinham controlado a cidade; as forças do generalíssimo Chiang Kai-shek tinham buscado refúgio em Taiwan, a partir de Nanquim. 

Sun Pin foi levado a Pequim e contratado para dar aulas na Academia Militar então em reconstrução. Chu Enlai, amigo de seu pai, era, então, o primeiro-ministro do governo comunista. Como Sun Wu, passa a servir de intérprete, mas desta vez de prisioneiros de guerra americanos capturados na ofensiva chinesa na segunda fase da guerra da Coreia. Ficou longe da família durante quase dois anos, até ao armistício de julho de 1953. Voltou a Pequim, para reencontrar sua mulher e o pequeno Sun Tzu, com quatro anos de idade, instalados numa pequena residência militar nos arredores de Pequim. 

Nos dez anos seguintes, Sun Pin leva uma pacata vida de professor de línguas e de cultura clássica na Academia Militar. Mas, alguém como ele, conhecedor de línguas e oficiais estrangeiros em Shanghai e em Chongqing, não conseguiria escapar do clima de xenofobia provocado pela Grande Revolução Cultural, a partir de 1965. Todos os letrados e críticos de Mao se tornaram suspeitos: Deng Xiaoping perdeu o seu cargo de Secretário-Geral do partido em 1966. O próprio Exército Popular passou por um expurgo geral, sob o comando de Lin Piao, que se tornou o preferido de Mao. Não só as aulas foram interrompidas em todas as universidades e escolas médias, como professores passaram a ser enviados para aldeias distantes da capital, nas províncias recuadas do interior, onde deveriam ser submetidos à campanha de “educação socialista”. Sun Pin foi um desses enviados para trabalhar sob as ordens de camponeses numa das aldeias mais pobres.

Em 1967, Sun Tzu, tinha os mesmos 18 anos do seu pai quando este escapou da morte que vitimou seu avô em Nanquim, em 1937; sem poder ingressar numa universidade, ficou recolhido com sua mãe na mesma residência militar, estudando por sua própria conta, durante as turbulências causadas pela Revolução Cultural. Quando tanques soviéticos invadiram a Tchecoslováquia no ano seguinte, Sun Pin estava recolhendo estrume natural para adubar as culturas agrícolas numa das fazendas coletivas. 

Sun Tzu nunca mais tornou a ver o seu pai; muito tempo depois, soube que tinha falecido de “causas naturais”, em torno de 1971, o mesmo ano em que o comandante do Exército de Liberação, Lin Piao, morreu misteriosamente num acidente aéreo, tentando fugir da China, depois de também conspirar contra Mao. Deng Xiaoping voltou ao poder, ajudado por Chu Enlai, amigo do avô de Tzu. Recém-promovido a vice-presidente da China em 1973, Chu procurou saber onde estava Sun Pin, filho do seu amigo Sun Wu. Ficou consternado ao saber do desaparecimento precoce de Pin, que não teria mais do que 50 anos, como tinha sido o caso de seu antigo protegido em Shanghai, vítima da barbárie japonesa em Nanquim. Chu conseguiu localizar a esposa, nos registos da Academia Militar, e então chegou ao neto de Wu, cujo nome representou uma feliz surpresa. Poucos meses antes de morrer, em 1976, quando a Revolução Cultural também se aproximava do fim, Chu recomendou a Deng que Sun Tzu fosse aproveitado na própria Academia Militar. 

Foi apenas em 1979, quando Deng Xiaoping finalmente conseguiu assentar o seu poder, que Sun Tzu foi recebido por ele. Sabedor da história do avô, simpático ao partido, e do pai, nascido junto com o partido, depois professor na Academia Militar, lamentou sua morte na sua província de origem, no Sichuan. Um filho de Deng tinha ficado paralítico por causa da violência da Revolução Cultural, por isso ele se interessou pela vida de Sun Tzu, também fascinado pelo nome. Deng, que tinha sido comandante de um dos destacamentos do Exército Vermelho, sabia o valor das lições do grande estrategista chinês da arte da guerra. Assim foi que, aos 30 anos, sem nunca ter pertencido ao partido, o jovem Sun Tzu foi admitido na mesma cadeira do pai, sob promessa de terminar os estudos superiores e ingressar futuramente no partido, se conseguisse ser admitido. Sua vida começava de novo.

 

2. Sun Tzu e a nova Arte da Guerra, desta vez contra a pobreza

Ao ganhar a cadeira que tinha sido a de seu pai na Academia Militar, quase vinte anos antes, Sun Tzu foi recebido, pelo corpo docente da instituição, com certa condescendência, mas também com alguma ironia, previsivelmente em função do seu nome. Afinal, ter o mesmo nome do mais famoso estrategista militar de toda a história da China, quiçá do mundo, trazia uma carga de responsabilidade intelectual que o jovem professor não estava certo de possuir. Com efeito, ele deveria, em princípio se limitar ao ensino de línguas estrangeiras e das letras clássicas chinesas, colaborando nas demais atividades de formação de oficiais para o EPL. Ao mesmo tempo, como planejado, ele retomava, ou iniciava, estudos de graduação em Letras e História na Universidade de Pequim, ainda em fase de reconstrução curricular depois da devastação conduzida pelos seguidores de Mao, nos quinze anos anteriores. 

O ambiente político começou a se clarificar a partir dos anos 1980. Deng Xiaoping tinha retomado com força a direção do país, depois de sua terceira reabilitação, após o afastamento definitivo da viúva de Mao e da “quadrilha de Shanghai”. O povo chinês estava cansado da luta de classes e das batalhas ideológicas e parecia se conformar com o slogan de que não importava a cor do gato, preto ou branco, bastando que soubesse caçar ratos. 

Com todas as leituras em várias línguas que tinha feito, Sun Tzu conhecia mais do mundo, sem nunca ter saído da China, do que a maioria dos quadros do partido e a quase totalidade dos militares, eles mesmos confusos sobre se o inimigo principal era o império capitalista dos Estados Unidos ou o social imperialismo da União Soviética. Decide então estudar a fundo economia e história, perfeitamente consciente de que os problemas da China não estavam exatamente nos dois imperialismos rivais e sim na imensa pobreza do país. A China estava saindo de décadas de equívocos políticos e de erros de gestão, desde a campanha das Cem Flores e do Grande Salto Para a Frente, do final dos anos 1950. Ela tinha agora de se concentrar no problema do seu atraso relativo e absoluto em relação às grandes potências da época.

Sun Tzu era cobrado, pelos colegas de Academia, sobre quando retomaria a obra do seu ilustre antecessor: perguntavam-lhe se seria capaz de oferecer um novo conceito estratégico sobre a natureza da guerra na era das armas nucleares. Decidiu, então, estudar seriamente a obra de Sun Tzu, o estrategista clássico, mas não apenas seu manual, e sim tudo o que tinha sido escrito em torno dele. Pediu à biblioteca da Academia que adquirisse, na China, em Hong Kong, em Macau, diversas versões, em várias línguas, do pequeno guia, assim como obras adaptando as estratégias e táticas de Sun Tzu ao mundo dos negócios e da economia. Armou-se com toda aquela parafernália e durante meses refletiu sobre o que tinha lido e, também, sobre como adaptar o que aprendera aos tempos e necessidades da China que ressurgia sob os novos lemas de Deng Xiaoping. E o que fez o Sun Tzu do final do século XX? 

A primeira orientação foi a de que, como professor de humanidades, não deveria se ocupar de qualquer elemento militar a partir do manual de estratégia de seu famoso homônimo: a Academia estava repleta deles e não teria nada de muito inteligente a propor no tocante à defesa da China. A nova Arte da Guerra que ele pretendia propor seria um combate contra o inimigo principal da China e dos chineses: a miséria extrema, a pobreza generalizada do seu povo. No início dos anos 1980, americanos, europeus e japoneses eram dezenas de vezes mais ricos do que os chineses, e suas indústrias e laboratórios eram muito mais avançados, sua infraestrutura mais moderna. O grande objetivo da nova China deveria ser o de tirar centenas de milhões de chineses de uma miséria abjeta, levá-los primeiro a uma situação de pobreza aceitável, para depois, bem depois, construir uma condição de bem-estar moderado na sociedade. Esta foi a sua missão de trabalho, este foi o seu projeto de país, esta era a sua Arte da Guerra.

De facto, a única ofensiva que a China precisaria de empreender seria a guerra contra o mais antigo problema do mundo: a penúria extrema, a escassez generalizada, a privação dos bens mais elementares: a comida, a água potável, saúde preventiva, educação de massa de boa qualidade. Por acaso, as políticas preconizadas por Deng Xiaoping diziam mais ou menos a mesma coisa, sob o slogan das quatro modernizações: na agricultura, a base da economia chinesa, pois 82% da população ainda era rural; na indústria, monopolizada pelo Estado, em grandes empresas ineficientes e tecnologicamente atrasadas; na ciência e na tecnologia, bases de qualquer transformação produtiva e aumento de produtividade; e na defesa, pois a China ainda vivia num ambiente hostil, com problemas de fronteiras em todas as partes. 

Partindo dessas premissas, Sun Tzu se pôs a compor uma nova Arte da Guerra, desta vez contra a pobreza. Para isso, subiu nos ombros de um gigante, ou seja, o Sun Tzu de 2.500 anos atrás, na época dos Estados Guerreiros, quando seus soberanos estavam constantemente em guerra entre si. Tomando como base as exatas treze lições de seu ilustre ancestral, o que o Sun Tzu contemporâneo fez foi dar uma nova interpretação àquelas antigas lições. A nova versão da Arte da Guerra coincidiu e espelhou a ascensão irresistível da nova China. Eis suas novas lições.

 

2.1. O fator crucial na vida do Estado

A sobrevivência de um governo, a estabilidade de um Estado não depende de sua capacidade de sobreviver a ataques internos ou externos apenas pela força das armas. Indo à raiz do problema, a força das armas não pode ser exercida por um povo fraco, desnutrido, sem as condições mais elementares de uma vida produtiva, sem um mínimo de dignidade no seu bem-estar; isto significa, precisamente, dispor de certa consciência na defesa de sua situação de vida, sem o que o povo não poderá defender o seu soberano. Não se fazem bons soldados com escravos, com servos de gleba ou camponeses miseráveis. Bons soldados, oficiais competentes, líderes habilidosos no manejo das armas são, antes de tudo, súditos que se aproximam do status de cidadãos, conscientes de seus deveres e obrigações, mas também de seus direitos, como ensinava Confúcio. Este grande sábio, contemporâneo do antigo Sun Tzu, também discorreu sobre as obrigações dos dirigentes para com a situação do povo. Foi por isso que o antigo Sun Tzu colocou a Lei Moral à frente de todas as outras condições na vida de um grande Estado. O novo Sun Tzu refletiu sobre essas lições e as acolheu.

 

2.2. Da responsabilidade dos dirigentes no comando do Estado

A base de todo empreendimento do Estado, seja a arte da guerra, seja a edificação de grandes obras públicas, seja ainda o provimento de segurança e justiça ao povo, é constituída pela disponibilidade de recursos suficientes e bem distribuídos por todo o território da nação. Não se pode ir para a guerra, sem as ferramentas da ofensiva e sem a intendência e a logística da retaguarda. Da mesma forma, não se garante justiça para o povo, infraestrutura e cuidados de saúde e educação sem uma economia minimamente próspera. Cabe, portanto, aos donos do poder competência no provimento de todos esses bens públicos, antes de sequer pensar em qualquer empreendimento guerreiro. Esta foi a segunda grande lição do novo Sun Tzu, que de certa forma refletia exatamente o que Deng Xiaoping estava fazendo na direção do país.

 

2.3. Como vencer a pobreza sem diminuir a riqueza

O velho Sun Tzu ensinava, na terceira lição – “Da arte de vencer sem desembainhar a espada” –, que não é preciso destruir tudo. Cabe controlar a impaciência, o açodamento e a irritação. Pois esta é também a lição para eliminar a pobreza entre o povo: não se consegue elevar a condição dos mais pobres tirando dos mais ricos o que aqueles não têm. Não se tira do estoque para distribuir, pois a fonte dessa riqueza vai secar e não vai ser capaz de repor o que foi tirado. O que há a fazer é enriquecer os mais pobres, não empobrecer os mais ricos. Esta é a lição elementar de todo soberano consciente de que é preciso atuar sobre os fluxos, não sobre os estoques. Os pobres, que são muitos, não podem esperar melhorar sua vida tirando dos ricos, que são poucos, e muito mais propensos a esconder sua riqueza do que os pobres em construir novas e contínuas fontes e para novas riquezas. Sun Tzu aconselhava o soberano a bem conhecer o seu povo, não com base em teorias abstratas, mas sim a partir de um conhecimento prático. Esta foi a terceira grande lição do mestre ao seu discípulo.

 

2.4. Como organizar os agentes públicos para combater a pobreza

O antigo Sun Tzu recomendava – no capítulo sobre a arte de manobrar as tropas – que, na determinação das táticas corretas, o bom estrategista levasse em consideração, nesta ordem, os seguintes fatores: a sondagem, ou seja, o conhecimento perfeito do terreno e dos agentes com os quais se vai interagir, os próprios e aqueles sobre os quais não se tem controle; em segundo lugar, a estimativa da quantidade, ou seja, o maior número de dados e informações possíveis, com vistas a passar à fase seguinte; esta é o cálculo, ou seja, como combinar todos os fatores de que se dispõe, recursos humanos e materiais, para melhor ordenar suas forças para o combate principal, que é a luta contra a miséria e a pobreza do seu próprio povo; em quarto lugar, o novo Sun Tzu colocava o equilíbrio das probabilidades, que na moderna análise econômica significa o custo-oportunidade, isto é, onde melhor empregar seus recursos para o máximo de retorno possível; finalmente, cabe colher os frutos de todas as ações anteriores e, novamente, fazer uma nova avaliação do que se aprendeu e do que poderá ser feito da melhor forma da próxima vez. Dessa forma, o novo Sun Tzu seguia o antigo mestre.

 

2.5. Das muitas formas de combater a pobreza

A quinta lição do velho Sun Tzu é a de que o método direto pode até ser usado para entrar em batalha, mas para assegurar a vitória na guerra são necessários métodos indiretos. O mesmo conceito é necessário na luta contra a pobreza: não se pode atacá-la de frente, pois ela é apenas o resultado de uma condição subjacente, que deve ser enfrentada; o provimento direto de bens, o subsídio ao consumo são apenas medidas paliativas que se esgotam em si mesmas, sem produzir os resultados esperados, que são a criação de capacidade própria para prover os seus bens a partir do trabalho produtivo, não a satisfação do consumo imediato, o que pode ser requerido em situações extremas. Uma combinação adequada de métodos diretos e indiretos de combate à pobreza oferece as melhores possibilidades de uma atuação efetiva. A luta pela eliminação da miséria e pela redução da pobreza tem muito a aprender com o grande mestre da antiguidade.

 

2.6. Distinguir as diversas formas de pobreza no contexto do ambiente

Todas as nações possuem seus pontos fracos e fortes, como ensinou o velho mestre na sua lição sobre “o cheio e o vazio”. Até mesmo a pobreza pode ser um fator positivo na luta contra a pobreza, pois significa que, ao definir a política e a ação, pode-se contar com muitos trabalhadores a um custo relativamente baixo, o que indica a escolha de formas intensivas de trabalho, relativamente ao capital. Mas, existem partes da sociedade que já possuem certa intensidade de capital, e não faz sentido obrigar tais empresas a trabalhar com o fator abundante, quando elas possuem capacidade de avançar ainda mais na trilha do capital e do conhecimento. Do ponto de vista do país como um todo, isso significa que a agricultura, a que mais ocupava trabalhadores e famílias até os anos 1980, não podia ser imediatamente capitalizada, tanto por problemas de emprego e produção, como de êxodo rural, dada a baixa capacidade das cidades em habitação e equipamentos urbanos. Mas, a indústria, sim, poderia se tornar o principal fator de crescimento econômico, não importando se sua administração estivesse a cargo de empresas estatais, empreendedores privados, grandes e pequenos, ou pelos investimentos estrangeiros, que também deveriam ser admitidos: o importante era a criação de empregos. O novo Sun Tzu captou exatamente o que o velho mestre queria ensinar aos antigos donos do poder.

 

2.7. A formulação da estratégia de combate à pobreza

A formulação de uma estratégia não pode começar na capital, entre funcionários de Estado, antes, sim, depois de um perfeito conhecimento do terreno em que se vai atuar, e em pleno contato com a população local. Ela não pode obviamente ser única e uniforme, mas adaptada aos ambientes locais e tipos de especialização produtiva pré-existentes. Não se pode achar que, ao descarregar capitais, equipamentos e projetos importados numa determinada região, o crescimento brotará automaticamente do chão, como arroz em terreno irrigado; os assessores e conselheiros devem ser aqueles já residentes na região, que saberão dizer onde estão exatamente os problemas e as dificuldades ressentidas pelo povo. Os novos mandarins do Estado devem ser de preferência da mesma província e da região contemplada no projeto parcial, que deve ser o mais flexível possível, apto a acomodar-se a novas situações em contato com a população local. Não existe uma única estratégia nacional de crescimento, sequer de combate à miséria e à pobreza. Diversos estratagemas são mobilizados nesse duro e duplo combate.

 

2.8. Mudar as condições dos pobres, atuando sobre a infraestrutura

Os pobres conhecem muito bem quais são as dificuldades locais, que geralmente estão nas coisas mais elementares: água potável, esgotos, saneamento básico, meios de defesa contra epidemias frequentes, vias de circulação, atendimento preventivo ou hospitalar em saúde, escolas ao alcance das crianças, mercados conectados aos locais de produção, serviços de pagamentos e de comunicação e outras melhorias nos vilarejos. Materiais e mão-de-obra podem ser obtidos localmente, com a importação de engenheiros e canalizações e cabos buscados na província. A iniciativa, no campo das infraestruturas deve sempre partir das condições locais, não de planos grandiosos desenhados na capital; numa etapa posterior, com boa infraestrutura local, ela se conectará mais facilmente às redes provinciais e nacionais. 

 

2.9. Da importância da geografia para as manobras corretas

O conhecimento de cada um dos ambientes nos quais se pretende atuar é condição essencial para a elaboração de qualquer projeto de combate à pobreza; os mais pobres são os que mais conhecem, justamente, a geografia local e já exploram, por vezes de maneira não sustentável, os recursos existentes no seu entorno. Não convém transformar a natureza de forma radical, pois não se tem um conhecimento preciso do impacto que isso terá sobre a variedade de formas de vida animal ou vegetal; a ocupação desordenada do solo e o esgotamento dos mananciais produzirá danos futuros imprevisíveis no momento do estabelecimento humano. A maior parte dos acidentes naturais não é geralmente natural, mas derivada da ação humana. A 9ª lição do antigo mestre foi compreendida e adaptada por seu discípulo contemporâneo.

 

2.10. Da educação: o valor do capital humano na topografia do crescimento

Das várias calamidades que podem afetar a eficiência e a moral de um exército, o velho Sun Tzu colocava entre as mais relevantes a insubordinação e a desorganização; elas são o efeito da ignorância, que nem sempre está restrita à população mais pobre, objeto dos esforços do Estado para a melhoria de suas condições, mas podem igualmente atingir os “planejadores” da capital, teoricamente preparados, mas atuando no desconhecimento das condições locais. Daí resulta que a formação de capital humano é um processo contínuo e permanente, em todos os níveis de educação e em todos os estratos da população. A eliminação da miséria depende, em primeiro lugar, de estender às mais humildes aldeias do interior o mesmo tipo de educação básica de que dispõem as populações citadinas; escolas técnico-profissionais devem funcionar em estreito vínculo com o ciclo médio nas aglomerações locais e provinciais; e, independentemente do desempenho relativo dos estudantes à escala nacional, os melhores alunos de cada escola local devem receber bolsas para dar continuidade a seus estudos de nível superior. Mérito e competência são os critérios básicos de seleção, assim como deve ocorrer nas forças armadas, nos tempos do antigo Sun Tzu, e nos do seu moderno sucessor. 

 

2.11. Das diferentes frentes e terrenos de combate à pobreza

No seu 11º capítulo, o antigo Sun Tzu listou não menos de nove variedades de regiões, em função das quais o comandante do exército vai determinar o tipo de manobra aplicável a cada uma delas. Não é muito diferente num programa nacional de combate à miséria e à pobreza, que justamente não pode ser nacional, a não ser em intenção e em resolução. Cada região ou cada situação local constituirá uma frente específica de combate à pobreza, que vai exigir soluções adequadas, ou seja, definidas em função de uma matriz própria de suas fortalezas e fraquezas, vantagens e desvantagens segundo uma avaliação própria a cada uma delas. Certas propostas, como infraestruturas básicas, serviços elementares do Estado poderão ser uniformes, ainda que calibrados segundo a demografia e a cultura local. A definição das vantagens comparativas relativas, para fins de especialização produtiva, só deve ser feita após um exame pormenorizado daquela matriz específica. O próprio ritmo pode variar, mas não o objetivo final.

 

2.12. Do uso de recursos externos no combate à pobreza, mas sem pirotecnia

Não existe importação de soluções para o combate à miséria e à pobreza, a não ser no nível da infraestrutura mais elementar e nos meios de elevar a qualidade do capital humano. O próprio pessoal dedicado à tarefa de qualificar educacionalmente a população visada deve ser selecionado e treinado localmente. Não pode haver xenofobia ou nacionalismo na captação de recursos externos, isto é, o capital estrangeiro, mas não exatamente o financiamento em si, e sim preferencialmente sob a forma de investimentos diretos. Enclaves com facilidades fiscais podem ser usados para fins limitados e temporariamente, abrindo-se depois todo o país ao investimento e, sobretudo, à competição estrangeira, que é a melhor forma de elevar a produtividade do sistema produtivo local. O capital estrangeiro não precisa de facilidades temporárias e sim de estabilidade de regras e garantias de tratamento equitativo. A intensa e estratégica participação no comércio internacional é a melhor pirotecnia que pode ser concebida.

 

2.13. Como identificar as diferentes etapas de combate à pobreza

O combate à miséria e à pobreza, a eliminação de suas fontes primárias e a construção de estruturas sustentáveis e sustentadas de crescimento, com transformação produtiva, são como as diferentes fases de uma guerra de longa duração, compreendendo períodos de atrito, de enfrentamento direto e o estabelecimento das condições permanentes de vida normal, sem mais dependência de ajuda externa. Assim como no plano nacional, a superação da pobreza, em âmbito regional ou provincial, requer o mesmo quadro formal de requisitos de desenvolvimento sustentado, que são as políticas macroeconômicas ou setoriais. Mesmo que algumas das primeiras políticas – fiscal, monetária e cambial, inclusive de investimentos – sejam de competência nacional, e não regional, a adaptação dos requerimentos às condições locais pode ser feita. As diferentes etapas de combate à pobreza exigem, portanto, certa estabilidade de regras para o exercício da atividade produtiva, a existência de um ambiente de negócios competitivo e aberto a todos os tipos de empreendimentos (locais, nacionais e estrangeiros), uma boa governança no plano administrativo e da justiça, uma alta qualidade do capital humano e grande abertura aos capitais e investimentos estrangeiros. O novo Sun Tzu não concebe tais requerimentos como tendo de ser implementados sucessivamente, e sim como as diferentes partes de um mesmo conjunto de políticas que se aplicam simultaneamente. O antigo Sun Tzu aprovaria inteiramente esse tipo de estratégia integrada.

 

O que Sun Tzu aprendeu no combate à pobreza, o que a China realizou

Tendo formulado, a partir das lições do antigo mestre, suas treze recomendações de políticas a partir de um longo processo de estudos, pesquisas, reflexões e diversos exercícios de redação continuamente refeitos, o moderno Sun Tzu, sem fazer parte de qualquer comissão de planejamento ou estrutura burocrática do Estado, teve a satisfação de constatar que suas ideias coincidiam, em grande medida, com as políticas que estavam sendo efetivamente aplicadas nos níveis nacional, regionais e locais, ao longo de três planos quinquenais e de diversos programas de capacitação tecnológica, especialmente a partir dos anos 1990, estendendo-se nas duas primeiras décadas do novo século e novo milênio. Ao reler as lições que formulou numa nova versão da Arte da Guerra, o moderno Sun Tzu teve orgulho ao constatar que o velho e homônimo mestre ainda tinha o que ensinar aos chineses do século XXI.

Nos setenta anos do estabelecimento da República Popular, que correspondiam aos seus próprios 70 anos de idade, e nos cem anos de comemoração da fundação do Partido Comunista, que corresponderiam aos 100 anos que seu pai poderia ter alcançado, se não tivesse desaparecido aos 50 anos, Sun Tzu constatou, com satisfação, que o Estado chinês anunciou, com legítimo orgulho, que o país estava eliminando a miséria extrema e a pobreza evitável exatamente no meio dessas duas datas, em 2020. As políticas implementadas para tal efeito refletiam, em grande medida, aquelas mesmas que ele se empenhou em propor, a partir de uma leitura reflexiva da obra do homônimo estrategista de há mais de 2.500 anos. 

Sun Tzu pensou igualmente em seu avô, Sun Wu, que não tinha chegado a conhecer, mas de quem tinha herdado o gosto pelas línguas estrangeiras, renovado por seu pai, Sun Pin, que se empenhou em lhe transmitir esse legado intelectual. Sun Tzu experimentou grande satisfação e prazer intelectual ao ver confirmadas as melhores expectativas que ambos, pai e avô, mantiveram nas grandes realizações do povo chinês, novamente guindado à vanguarda científica, cultural e tecnológica da humanidade. 

Sun Tzu, legítimo herdeiro das melhores tradições da mais antiga civilização da história, segundo os próprios chineses, sentia-se um perfeito cidadão do mundo, inclusive e sobretudo porque transportava o nome do mais universal dos seus compatriotas. Com ele, a China tinha vencido a verdadeira guerra de todos os povos, contra a miséria e a pobreza. 

 

2251. “Formação de uma estratégia diplomática: relendo Sun Tzu para fins menos belicosos”, Brasília, 5 março 2011, 8 p. Sun Tzu revisitado com o objetivo de traçar uma estratégia diplomática. Publicado na Espaço Acadêmico (ano 10, n. 118, março 2011, p. 155-161; ISSN: 1519-6186; link: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/12696 ; pdf: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/12696/6714). Republicado em Mundorama (7/03/2011). Postado no blog Diplomatizzando (09/08/2016; link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/08/sun-tzu-tem-algo-ensinar-aos-diplomatas.html), disseminado no Facebook (https://www.facebook.com/paulobooks/posts/1213684358695012). Relação de Publicados n. 1023.