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sexta-feira, 7 de agosto de 2015

CPI do BNDES: beaucoup du pain sur la planche... (matérias de jornais)

Sérgio Lazzarini é o economista, professor do Insper, autor da expressão, e do livro, Capitalismo de Laços (poderíamos acrescentar: espúrios).
Paulo Roberto de Almeida

Escancarando o capitalismo de laços
Sérgio Lazzarini
O Estado de S.Paulo, 25/06/2015

Dois grandes movimentos recentes têm lançado luz sobre as imbricadas relações empresa-Estado no Brasil. O primeiro, grande parte centrado na Operação Lava Jato, revelou um leque de operações ilícitas envolvendo empresários, gestores públicos e políticos. O segundo, pela ação das agências de controle e do Judiciário, trouxe uma enxurrada de dados sobre contratos e transações com capital público.
Examinemos, por exemplo, o financiamento a empreiteiras no exterior. Logo após o Congresso da República Dominicana pôr à disposição em seu site da internet o contrato de financiamento do país com o BNDES e o STF determinar que não deve haver sigilo nessas operações, o banco resolveu abrir dados sobre as condições de empréstimo. Imediatamente, analistas se debruçaram nos dados, revelando detalhes interessantes e ainda pouco compreendidos. Por exemplo, a maioria dos empréstimos tem prazo em torno de 12 a 15 anos, embora alguns contratos com Cuba destoem por terem prazos de até 25 anos. As taxas de juros estão entre 3% a 6% ao ano, em dólar.
Quando analistas começaram a perguntar por que prazos tão longos e taxas tão baixas - ao menos comparando com os nossos juros locais -, o BNDES se justificou dizendo que as condições são compatíveis com o que outros bancos internacionais fazem em contratos similares. Uma justificativa insatisfatória. Não importa se bancos em outros países praticam taxas baixas. Precisamos saber os benefícios e custos para a economia brasileira antes de embarcar nessa prática. O financiamento desses contratos se dá via Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), que recebe, nesses casos, remuneração atrelada a taxas internacionais. Mas estas são muito mais baixas do que o custo que o próprio governo consegue captar, aqui ou no exterior. E o próprio Tesouro tem coberto rombos no FAT.
Como os dados estavam disponíveis, foi possível ter ideia do custo dessas operações ao Tesouro. Em estudo com Marcos Lisboa e Pedro Makhoul, comparamos as taxas que o BNDES cobra de outros países com as que o Brasil tem de pagar para se financiar com moeda estrangeira sob prazos similares. O resultado: custo de R$ 1,1 bilhão por ano com esses contratos de financiamento. Vale a pena? Diz o BNDES que, apesar de as obras serem no exterior, sua execução é feita por empreiteiras brasileiras articulando uma longa cadeia produtiva local. Justificativa também insatisfatória, já que pode ser possível gerar mais renda aqui, no Brasil, sem ter de bancar altos custos para equiparar taxas praticadas no exterior.
Portanto, ainda há muito a explicar. Mas o ponto é que a maior disponibilidade de dados permitiu não só maior entendimento desses contratos, mas também um debate mais informado e transparente sobre o papel do Estado no apoio de grandes grupos do País. Da mesma forma, as investigações da Lava Jato têm aumentado nosso entendimento de como empresas e partidos triangulam capital para obter benefícios privados com recursos públicos. Com a agravante de que, neste caso, são evidências que podem levar à punição dos envolvidos. A prisão de grandes executivos de empreiteiras demarcou de forma muito saliente o rumo que as investigações podem tomar.
É fato que corrupção e transações opacas no Brasil sempre existiram. Mas, até pouco tempo, o discurso era de que "é assim que o Brasil funciona". Se quisermos mudar o que aí está, muitos diziam, o País correria o risco de parar. É claro, um discurso que interessava tanto a uma elite empresarial entrelaçada com o governo quanto a uma elite política dependente de patrocínio empresarial - o cerne do nosso capitalismo de laços. Com maior pressão para transparência e punição, entretanto, não há mais espaço para esse modelo. É hora de repensarmos nossas estratégias privadas, orientando-as para maior produtividade e menos dependência de suporte público, e as formas de atuação do governo, buscando maior disciplina na análise dos custos e benefícios de suas políticas.

Sérgio Lazzarini
* Professor titular do Insper, é autor de 'Capitalismo de laços' e de 'Reinventando o capitalismo de Estado'.
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CORREIO BRAZILIENSE, 03 Junho 2015
Crédito do BNDES a Cuba teve taxa de 4,44%
http://cliente.linearclipping.com.br/IMGs/2015/6/3/24187055.jpg
US$ 11,9 bilhões
Operações do banco no exterior entre 2007 e 2015

O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) cobrou taxas de juros entre 4,44% e 6,91% ao ano nos polêmicos financiamentos para a construção do Porto de Mariel, em Cuba, que somaram US$ 682 milhões em cinco diferentes contratos. Os encargos são mais baixos do que boa parte das operações feitas com empresas brasileiras. Até agora tratada como sigilosa, a informação consta do site BNDES Transparente, que a instituição colocou ontem em funcionamento.
A novidade foi anunciada pelo presidente do banco, Luciano Coutinho, e o ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Armando Monteiro. Num primeiro momento, o site vai disponibilizar dados de empréstimos feitos a 42 países entre 2007 e 2015, que totalizam US$ 11,9 bilhões. No Brasil são R$ 320 bilhões, distribuídos por 1.753 contratos assinados a partir de 2012.

Antes, as informações eram disponibilizadas em planilhas de Excel, mas o acesso era mais difícil e os dados, limitados a nome da empresa, país de destino, valor e data. "O nível de avanço mostra o compromisso com a transparência e a disposição de esclarecer os órgãos de controle, como Ministério Público e Tribunal de Contas da União (TCU). O banco está desejoso de prestar informações a todos os órgãos do governo e, mais do que nunca, à sociedade", frisou Coutinho.

Nem todas os dados sobre as operações do BNDES, porém, serão publicados. "Há um núcleo que se deve proteger e está apoiado na lei de sigilo bancário", ressaltou Monteiro. "O sigilo diz respeito a informações sobre a intimidade da empresa, estratégias de negócio, situação financeira, estrutura de endividamento, que geralmente, resultam em rating ou nota de crédito da empresa", complementou Coutinho.

Para o presidente da instituição, os custos dos financiamentos a Cuba são "perfeitamente compatíveis com operações creditícias internacionais praticadas no mercado".

No Brasil, os contratos com empresas nacionais são regulados pela Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP), atualmente em 6% ao ano, acrescida de uma taxa de risco. No caso do Programa de Sustentação do Investimento (PSI), que geralmente conta com juros subsidiados, os juros começam em 6,5% ao ano.

Segundo especialistas em contas públicas, todo empréstimo com juros abaixo da taxa Selic é subsidiado, ou seja, é o contribuinte brasileiro que paga a conta. Para José Matias-Pereira, professor de economia pública da Universidade de Brasília (UnB), "a transparência é um bom começo, mas o governo continua perdulário e as caldeiras do BNDES continuam fervendo. São empréstimos a taxas mais do que generosas, que não fazem o menor sentido econômico, trazendo ganhos apenas para as empresas e os países beneficiados, com o custo posto nas costas do contribuinte brasileiro".

O Porto de Mariel foi construído pelo Grupo Odebrecht. O financiamento do BNDES foi criticado na época sob o argumento de que os recursos poderiam ter sido empregados na modernização de portos brasileiros, que apresentam graves problemas de ineficiência. Há casos polêmicos também no Brasil. Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal determinou que o banco fornecesse ao Tribunal de Contas da União (TCU) todos os dados sobre operações feitas ao grupo JBS.

Relacoes Brasil-EUA: um recorrente reinicio - Paulo Roberto de Almeida (Sapientia)


Meu mais recente trabalho publicado:
“Relações Brasil-EUA: um recorrente reinício?”,
 Revista Sapientia (ano 4, n. 24, julho-agosto 2015, p. 18-29; 
Relação de Originais n. 2834; Publicados n. 1187.

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Equivocos economicos do PT: Lula e a Loucura Agricola Europeia (2001) - Paulo Roberto de Almeida

Um dia eu acordei invocado, como disse certa vez o estadista de Garanhuns, o inefável capo di tutti i capi. Acordei invocado porque lia regularmente a imprensa brasileira mais cedo (estava em Washington, e tinha 2 hs para trás) do que o costume, e fiquei imediatamente invocado ao ler declarações do eterno candidato do partido esquizofrênico apoiando a loucura agrícola europeia, a política comum em matéria de agricultura que, mais do que prejudicar o Brasil (isso é o de menos, pois somos competitivos mesmo com a PAC), prejudica sobretudo os países africanos.
Pois invocado estava e invocado fiquei. Decidi escrever o artigo que vai abaixo.
Com base nessas minhas críticas, a revista Veja, sem saber de meu status profissional, me contatou para uma entrevista para as Páginas Amarelas. Pronto, foi só dar essa entrevista (que está disponível em meu site, aqui), onde eu dizia mais ou menos as mesmas coisas, que o Itamaraty resolveu me punir com uma advertência baseada na Lei da Mordaça, a coisa mais vergonhosa que possa ter existido na nossa Santa Casa (não a minha punição, isso é o de menos, mas a lei da mordaça).
Em todo caso, para mostrar que bobagens econômicas como as cometidas pelos companheiros não acontecem por acaso, nem de repente, transcrevo aqui o meu artigo e seus complementos.
Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 6 de agosto de 2015


O candidato do PT e a loucura agrícola europeia
(com post-scriptum em 13.10.01)

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 5 de outubro de 2001

Segundo despacho de Paris reproduzido na imprensa brasileira na quinta-feira, 4 de outubro, o candidato Luís Inácio “Lula” da Silva, em viagem pela Europa e depois de ser recebido pelo primeiro ministro francês Lionel Jospin, defendeu o acertado da política agrícola européia.
A afirmação já seria absurda em seu mérito próprio, mas a postura também está equivocada substantivamente, historicamente, funcionalmente. Apenas posso interpretar que o candidato carece de informações adequadas tanto sobre a agricultura européia, como sobre a brasileira, caso contrário não poderia fazer esse tipo de afirmação, mesmo desejando hipoteticamente agradar seu interlocutor.
Vejamos essas afirmações um pouco mais de perto. Segundo Lula:

1) “Do ponto de vista da realidade européia, eles estão corretos.”
Ao contrário, os europeus estão absolutamente errados, mesmo do ponto de vista exclusivamente europeu. Poderia, eventualmente, ser parcialmente correto se os europeus vivessem em circuito fechado, sem qualquer tipo de intercâmbio com o mundo e sem interferir no comércio agrícola mundial. Esta não é a realidade porém, na medida em que eles são relativamente abertos ao comercio mundial, possuindo mesmo um alto coeficiente de abertura externa, de modo geral. O coeficiente apenas do setor agrícola é, contudo, sensivelmente menor, e sabemos instintivamente por que.
Sobretudo do ponto de vista exclusivamente europeu, entretanto, os europeus também estão errados e o candidato Lula parece ignorar que um punhado de agricultores lobistas e outros aproveitadores políticos arrancam um alto preço de seus concidadãos em virtude da “loucura” agrícola comum. Sabe o candidato Lula que os consumidores (cidadãos) europeus poderiam ter um orçamento alimentar reduzido praticamente à metade se não houvesse a PAC e se o comercio agrícola fosse totalmente liberalizado? Esse é o calculo efetuado por diversos economistas independentes, europeus aliás: a cesta de compras da dona de casa européia poderia ser obtida com metade do dinheiro da feira e do supermercado se não existisse a PAC.

2) “São países que passaram por guerras e mais guerras,..”
O candidato Lula sabe quando foi a última guerra que representou ruptura de abastecimento na Europa? Ela terminou em 1945, sendo que a anterior tinha terminado em 1918. É verdade que no pós-guerra, até 1948 em todo caso, o abastecimento ainda não estava completamente regularizado, mas os EUA contribuíram generosamente com doações alimentares no quadro do Plano Marshall. Ou seja, há cinqüenta anos, ou duas gerações completas, que não há nenhuma ameaça de ruptura de abastecimento na Europa, e não se tem noticia de algum europeu ocidental que tenha morrido de fome nesse período de meio século.
O medo de um passado de fome (ocasional e explicável) não poderia de nenhum modo justificar as distorções do presente, sobretudo porque, supostamente, os alimentos viajam melhor e mais barato atualmente do que sessenta ou oitenta anos atrás.

3) Os europeus “não vêem a necessidade de tratar a comida como uma simples mercadoria,...”
Se a comida não pode ser tratada como mercadoria, o que é, ela supostamente deveria ter sido objeto de disposições especiais nos tratados comerciais, a começar pelo GATT, que regula o comercio de bens no plano multilateral desde 1947. Ora, não existem tais dispositivos restritivos, e os bens alimentares são considerados bens como quaisquer outros.
Foi apenas devido a expedientes abusivos e distorcivos, que europeus e americanos lograram extorquir dos demais países participantes do sistema multilateral de comércio uma exceção “temporária” ao comércio agrícola. Ora, essa exceção se prolonga há mais de 50 anos, e hoje nada, absolutamente nada, justifica a continuidade de uma tal situação. Ela penaliza duramente os países mais pobres, justamente aqueles que supostamente o candidato Lula deveria defender e que são os mais dependentes da agricultura, atividade primária por excelência.
Como, nessa linha de pensamento, se chega a defender agricultores abastados contra os interesses da imensa maioria de agricultores pobres do Terceiro Mundo? Isso me parece uma contradição insanável no argumento de Lula, como aliás já se tinha manifestado na aliança pouco santa entre o MST e “agricultores “do tipo do Sr. José Bové. Para voltar ao argumento do candidato, caberia esclarecer que a imensa maioria dos agricultores pobres dos países em desenvolvimento desejam, apenas e tão somente, que seus produtos agrícolas sejam tratados como simples mercadorias, como quaisquer outras. Nada mais do que isto.


4) Os europeus “vêm (...) a comida (...) como uma questão de soberania nacional.”
Se abobrinha e cenoura são produtos que integram os cálculos estratégicos de soberania nacional, então temos aqui um sério problema de definição do que seja a soberania de uma nação, sobretudo no caso de países altamente industrializados, não dependentes da produção agrícola para a formação do PIB. O que fazer, por exemplo, em relação à educação e à saúde, para não mencionar a segurança pública, interna e externa?
Como fazem o Vaticano, Andorra, Mônaco e muitos outros países menores, que não conseguem ter, por mais que queiram, autonomia alimentar? Eles dispõem, por causa disso, de menos soberania nacional do que os grandes e melhor dotados de recursos naturais? Como fazem países situados em zonas árticas ou tórridas, que dependem do comércio internacional para o essencial de seu abastecimento alimentar? Eles também são menos soberanos por isso?
Consideremos porém países relativamente maiores como Bélgica ou Países Baixos: se eles amanhã deixassem de produzir, por acaso, alimentos, estariam ipso facto condenados à fome e à privação absolutas? Ou poderiam abastecer-se tranqüilamente com seus vizinhos e mesmo junto a países distantes? A segunda hipótese é a mais correta obviamente. Quando a Inglaterra decretou o livre comercio universal, no hoje distante ano de 1856, ela passou a ser uma importadora líquida de alimentos. Nem por isso, os ingleses deixaram de comer bem, ao contrário, seu padrão alimentar melhorou e se diversificou, com base em compras mundiais. A afirmação do candidato Lula revela aqui uma incompreensão quanto às relações entre auto-produção e soberania nacional, característica mais comum nos economistas da era fascista.

5) “Nós precisamos primeiro cumprir com a nossa parte para depois exigir alguma coisa.”
O que significa o Brasil cumprir primeiro a sua parte? Ficar calado e aceitar a loucura agrícola comum européia? Dizer aos nossos próprios agricultores que tenham um pouco mais de paciência com os “pobres” agricultores europeus, que vivem traumatizados com uma suposta ameaça de desabastecimento alimentar motivada por não se sabe qual guerra possível, ou que estão heroicamente defendendo a soberania nacional européia?
O que teríamos de exigir? Alguma concessão absurda dos europeus? Ou apenas um comércio leal, baseado em simples regras de reciprocidade, segundo as quais nos concordamos em abrir nossos mercados ao camembert e ao foie-gras francês, em troca da abertura dos mercados europeus de grãos e de carnes aos nossos produtos?
Essa “nossa parte” precisaria ser melhor esclarecida, do contrário poderíamos pensar que cometemos algum “pecado original” que o candidato Lula não explicou bem o que seria.

6) “Temos que ter uma boa política agrícola e investimento em tecnologia. É isso que vai nos dar competitividade”.
O que significa ter uma “boa” política agrícola? Uma que seja altamente subsidiada como a européia? Subsidiada a ponto de apresentar distorções e aberrações, quando não fraudes maciças, que fazem, por exemplo, com que uma vaca européia ostente uma renda per capita superior à do brasileiro comum? Uma política agrícola que resulta em fraudes repetidas, que nos confrontam a tomates “milionários”, a porcos e vacas que certamente têm conta em banco (na medida em que o pagamento da PAC é feito por cabeça de animal)?
Seria esse o significado de uma “boa” política agrícola? Seria isso, exatamente, de que o Brasil necessita, para tornar-se “grande e forte” como os europeus? Nesse caso estaríamos repassando dinheiro a uma fração muito pequena de cidadãos, condenando milhões de outros a não contarem com os investimentos necessários em saúde publica, educação de qualidade, estradas pavimentadas, segurança pública adequada etc. Sabemos, por experiência, que qualquer dinheiro que se conceder a uma categoria especial de cidadãos (chamemo-los de produtores) vai ter de sair do mesmo orçamento publico geral, que já é considerado insuficiente, pelo próprio candidato Lula, para os absolutamente indispensáveis investimentos sociais que ele reivindica com razão.
Quanto ao grau de competitividade da agricultura brasileira, ela pode não apresentar o mesmo desempenho da européia em todos ou em determinados setores (ainda que para a maior parte de nossos produtos comercializáveis externamente ela é propriamente imbatível), mas diferenciais de competitividade e de produtividade entre os países (que justamente são o motor do comércio mundial) não podem ser de nenhuma maneira invocados como justificativas para o protecionismo obsceno, sobretudo quando levado às raias do absurdo comercial e do irracionalismo econômico, como acontece com a política agrícola européia.
Infelizmente para o candidato Lula, porém, nossa competitividade agrícola não deixa nada a desejar quando confrontada à da Europa ou dos Estados Unidos, com exceção de poucos setores de notória especialização e de alta intensidade tecnológica. De fato, para ser mais dramática ainda a comparação, é justamente por sermos competitivos que estamos sendo penalizados no acesso ao mercado europeu de alimentos e insumos processados. Apenas podemos ingressar com algumas poucas commodities de baixo valor agregado.
O que faz um candidato como Lula, normalmente identificado com as causas do Terceiro Mundo e dos pobres em geral, defender um absurdo do tamanho da PAC? Que virtudes ele encontrou nessa imensa reserva de mercado que não apenas cerceia nosso direito de concorrer no próprio mercado europeu como também compete deslealmente, à custa de maciços subsídios, com nossos produtos em terceiros mercados? Que sentido existe em ver ricos agricultores europeus deslocando do mercado pobres agricultores africanos, asiáticos e latino-americanos, além do mais em setores tão “sofisticados” como o do açúcar, da carne, dos grãos? Que racionalidade existe em proteger esses abastados agricultores, que depois reivindicam mais subsídios ainda para despejar quantidades absurdas, verdadeiras montanhas, de excedentes agrícolas nesses mesmos países pobres da periferia, que não têm como concorrer com o rico tesouro da União Européia. A palavra está novamente com o candidato Lula...

(815: Washington, 5 outubro 2001, 4 pp)
Paulo Roberto de Almeida

Post-Scriptum de Paulo Roberto de Almeida em 13.10.01:
            Em novas declarações à imprensa, em 11 de outubro, ao retornar de sua viagem à Europa, o candidato do PT reafirmou sua compreensão em relação à loucura agrícola européia, e voltou a cobrar do Governo uma política de apoio à agricultura brasileira.
            Segundo Lula, “subsídio para exportação é prejuízo para os países pobres. Precisamos brigar para que os nossos produtos sejam mais competitivos. Queremos ser competitivos não só na agricultura, mas no aço, no setor têxtil, no de calçados e no de máquinas”.
            A questão, no entanto, não está na falta de competitividade dos produtos agrícolas brasileiros, mas sim no protecionismo europeu e na sua política de concorrência desleal contra esses mesmos produtos em terceiros mercados, mediante maciços subsídios que deslocam a produção brasileira. Se os europeus resolvem subsidiar seus aricultores (ou qualquer outra categoria de produtores nacionais), trata-se de decisão soberana de seus legisladores e, em última instância, de sua população, que aprovará ou não tais políticas (desde que transparentes e mensuráveis, em termos de orçamento público, o que permitiria a discussão de eventuais alternativas ao emprego do dinheiro alocado a uma fração reduzida da população).
            A questão central não é, entretando, de escolhas orçamentárias (ou, chamemos generosamente, de “políticas sociais”), mas de definição de políticas comerciais, e é contra isso que se insurge não apenas o governo brasileiro, mas todos os demais países que praticam uma agricultura não subvencionada. O Brasil não teria nada a objetar à política interna de subsídios europeus, se esta não interferisse diretamente com a liberdade dos mercados (algo que os europeus preconizam com uma certa insistência quando se trata de sua própria produção) e com o estabelecimento de condições uniformes de competição no plano internacional. Esse aspecto do problema não parece ter sido percebido pelo candidato do PT, que continua a reclamar da “falta de uma política agrícola” no Brasil (o que não tem nada a ver com o debate sobre a política comercial européia).
            Podemos, e devemos, certamente, buscar com que “nossos produtos sejam mais competitivos”, como afirma o candidato do PT, mas a questão está em que, a qualquer nível de competitividade dos produtos brasileiros, eles continuarão penalizados pela atual política agrícola européia em seu direito de acessar o mercado europeu. Quanto à competição em terceiros mercados, os produtos brasileiros apenas conseguiriam ser “mais competitivos” do que certos equivalentes europeus, se o Tesouro brasileiro os subsidiasse ainda mais maciçamente do que o fazem os europeus (isto é, a “caixa agrícola” de Bruxelas, que já consome metade do orçamento comunitário). Seria esse o objetivo do candidato do PT: entrar em um guerra de subsídios com o “Tesouro” da União Européia?; essa seria a finalidade de uma política agrícola responsável, no Brasil e no Mercosul?
            Não seria mais simples lutar, nos foros multilaterais, em prol da eliminação dos níveis obscenos de subsídios e do protecionismo agrícola europeu, e assim estabelecer condições verdadeiramente equitativas de competição, na qual a competitividade intrínseca a cada produto possa ser o critério único, ou principal, de seu posicionamento no mercado, em lugar de se ter, como hoje, uma luta desleal entre Produtos nacionais e tesouros? Ou Lula acredita que tamanho (orçamentário, neste caso) é documento? Com a palavra, o candidato do PT.
[Washington, 13.10.01]
(Artigo original da imprensa: 3 de outubro de 2001)

Lula justifica barreiras européias

Hugo Sukman, Correspondente - O GLOBO

PARIS. Depois de se encontrar ontem com o primeiro-ministro da França, Lionel Jospin, em Paris, o candidato do PT à Presidência, Luiz Inácio Lula da Silva, disse entender a posição européia de impor barreiras alfandegárias a produtos agrícolas brasileiros.
- Do ponto de vista da realidade européia, eles estão corretos. São países que passaram por guerras e mais guerras, e não vêem a necessidade de tratar a comida como uma simples mercadoria, mas como uma questão de soberania nacional. Nós precisamos primeiro cumprir com a nossa parte para depois exigir alguma coisa. Temos que ter uma boa política agrícola e investimento em tecnologia. É isso que vai nos dar competitividade - disse.
Durante a viagem de três dias à França, Lula conheceu o sistema de segurança pública. Segundo ele, com adaptações à realidade brasileira, algumas medidas podem ser adotadas em sua futura política de segurança. Lula disse que quer estudar a adoção no Brasil de políticas como a "polícia de proximidade" francesa, que prepara para cada região uma política de segurança específica.
- A diferença entre o salário mais baixo de um policial francês e o mais alto é de apenas duas vezes e meia. No Brasil chega a 20 vezes, o que resulta num policial desmotivado e despreparado - disse Lula, que recebeu uma medalha da Polícia Nacional francesa.
Durante o encontro com o socialista Jospin, o assunto girou em torno das perspectivas de a esquerda chegar à Presidência tanto na França como no Brasil:
Eles têm grandes chances de ganhar as eleições e já ganharam uma vez. Nós temos chances de ganhar também - disse Lula.

Nova manifestação de Lula em 10.10.01, conforme notícias no site do PT:

Lula rebate críticas sobre questão agrícola:

11/10/2001 - Lula: problema da agricultura não está lá fora, mas aqui mesmo

O líder petista Luiz Inácio Lula da Silva respondeu hoje, em entrevista coletiva após seu retorno da Europa, aos ataques dos ministros do governo, Pratini de Moraes e Pedro Malan. Em declarações à imprensa, os ministros acusaram Lula de contrariar os interesses nacionais em solo francês, ao defender o subsídio à agricultura naquele país. Lula ressaltou que defende o princípio de que os países ricos não podem subsidiar as exportações tirando a competitividade dos países pobres. Em seguida, o petista leu trechos de suplemento do Estado de S.Paulo, em que representante de exportadores agrícolas defende que, em vez de criticar o subsídio estrangeiro, autoridades brasileiras deveriam apoiar a produção interna. Lula cita o exemplo do gasto com pedágio, que é maior que o de gasolina, no transporte de cargas, para demonstrar a falta de competitividade do produto brasileiro. “Cuidar da agricultura é dever do Estado, e esta é uma lição de casa que o governo brasileiro desaprendeu”, sentenciou Lula.

“Enquanto este governo não dá, sequer a totalidade do recurso previsto para a agricultura familiar, a multinacional Monsanto conseguiu, para montar o seu projeto em Camaçari, R$ 784 mi emprestados do BNDES, dos quais R$ 259 mi a fundo perdido financiado pelo Finor, para gerar apenas 309 empregos”, denunciou Lula, baseado nos 55% da verba do Pronaf e nos 7,5% do Orçamento da União previsto para a agricultura, liberados este ano. O líder petista afirma que, com esta política, não só perdemos em competitividade, como “iremos matar o que resta de produção de agricultura familiar neste país”.

Notícia de imprensa, 11.10.01, Agência Estado:

http://www.estadao.com.br/agestado/noticias/2001/out/11/222.htm
<http://www.estadao.com.br/agestado/noticias/2001/out/11/222.htm>

Para Lula, Malan e Pratini "venderam o Brasil"

São Paulo - O presidente de honra do PT e virtual candidato da legenda à Presidência, Luiz Inácio Lula da Silva, rebateu hoje as críticas feitas a ele pelos ministros da Fazenda, Pedro Malan e da Agricultura, Pratini de Moraes. "Nem Malan nem o Pratini têm autoridade moral para falar em defesa nacional. Eles fazem parte dos que venderam o Brasil e conseguiram destruir em seis anos o que levou 60 anos para ser construído", disse.
Na quarta-feira, Malan considerou "lamentável" a declaração de Lula de apoio aos subsídios agrícolas feita durante viagem à França. Dias antes, Pratini disse que Lula era "quinta coluna da agricultura". Hoje, Lula reafirmou suas declarações feitas em solo francês.  Afirmou que cada país tende a adotar políticas para defender seus interesses, o que o Brasil não tem feito. Lula criticou os subsídios, mas considerou legítima a tentativa dos franceses de defender seus interesses.
"Subsídio para exportação é prejuízo para os países pobres. Precisamos brigar para que os nossos produtos sejam mais competitivos. Queremos ser competitivos não só na agricultura, mas no aço, no setor têxtil, no de calçados e no de máquinas", afirmou.  Para Lula, cuidar da agricultura "é um dever do Estado. Lição de casa que o nosso governo não tem feito." Lula e o deputado federal Aloizio Mercadante, também secretário de relações internacionais do PT, retornaram terça-feira da Europa, onde estiveram reunidos com autoridades da França, Portugal e Itália.
Eles consideraram a agenda de compromissos realizados diversificada e de "alto nível". Ambos defenderam a necessidade de aprofundar as relações entre a União Européia e o Mercosul.
Ana Paula Scinocca

Equivocos economicos do PT: Um Outro Brasil seria possivel? Talvez, mas nao com os companheiros - Paulo Roberto de Almeida

Desde quando sigo as esquizofrenias econômicas companheiras, sempre desprezei as bobagens mais elementares que eles propagandeavam nos anos 1980: calote da dívida, nos banqueiros, nacionalização de atividades "estratégicas", denúncia dos acordos comerciais, dos acordos com o FMI e outras bobagens do gênero.
Com base no besteirol politico-econômico dos seus "economistas" e suas promessas mirabolantes, os companheiros e seu eterno candidato foram derrotados três vezes nas campanhas eleitorais presidenciais de 1989, 1994 e 1998. Mas, em 2001, sentindo que daquela vez a coisa poderia mudar, eles juntaram os poucos economistas que tinham no partido para formular o programa "Um Outro Brasil é Possível", que foi amplamente distribuidos aos true believers, aos beatos, ao já convertidos e aos ignaros e principiantes.
Assim que saiu, eu me dediquei a criticar cada uma das proposições feitas, mostrando sua ingenuidade, inocuidade, ou perversidade do ponto de vista de uma saudável política econômica.
Aqui está a minha peça analítica, na qual eu desmantelo cada uma das propostas feitas por eles.
Nunca chegaram a aplicar no primeiro governo Lula, que preferiu preservar o receituário dito "neoliberal" -- que eles desprezavam mas não ousavam trocar, pois não tinham nada de coerente ou consistente para colocar em seu lugar, e assim deixaram o que já funcionava -- que estava em funcionamento em 2002, para só começar a mexer no segundo mandato.
Quando apareceu a gerentona abruttie, foi tudo um desastre, como se constata hoje.
Pois bem, a origem do desastre está aqui.
Transcrevo apenas o esquema e a introdução, remetendo depois ao linkk onde se encontra o meu artigo completo, que se estende a duas dezenas de páginas.
Paulo Roberto de Almeida


O PT e as relações econômicas internacionais  do Brasil
Análise do programa econômico “Um outro Brasil é possível”

Paulo Roberto de Almeida



Espaço Acadêmico (Maringá: UEM, a. I, n. 6, nov. de 2001; http://www.espacoacademico.com.br/006/06almeida.htm).
Sumário:

Nota preliminar

1. Introdução: características gerais do programa e metodologia desta análise
2. Características gerais do processo de desenvolvimento brasileiro
3. A política externa alternativa frente a certos impasses da realidade internacional

4. A blindagem internacional do neoliberalismo e a globalização financeira

5. Integração hemisférica “imperialista” e a questão da Alca

6. Soberania dos países da América Latina, os EUA e o Brasil

7. A globalização financeira e a abertura comercial

8. O que seria um modelo de desenvolvimento solidário?: sem mercados?

9. Alguma receita milagrosa para reduzir a vulnerabilidade externa?


Nota: Os argumentos e comentários desenvolvidos no presente trabalho expressam, única e exclusivamente, as opiniões pessoais do autor, não tendo qualquer relação com posições ou políticas de qualquer instituição pública, às quais o autor possa estar vinculado por motivo de sua condição profissional. O autor esclarece, igualmente, que não se encontra filiado, nem nunca esteve, a qualquer agremiação partidária, brasileira ou estrangeira, e que suas reflexões críticas refletem mais sua formação acadêmica, enquanto sociólogo, do que “incorporação de idéias” adquiridas no desempenho de obrigações profissionais enquanto servidor público especializado na diplomacia.


Nota preliminar:
         Os comentários críticos, por vezes acerbos, ao chamado “programa econômico do PT” foram redigidos sem qualquer espírito antagonista, por um observador externo bastante simpático às causas que o PT representa em termos de políticas públicas e de correção das tremendas desigualdades sociais existentes no Brasil. Para que não pairem dúvidas sobre a predisposição do autor em colaborar com um debate de alto nível sobre as propostas aqui contidas (ou outras que o PT apresente e submeta a debate público), esclareço que tenho sido eleitor (eventual ou ocasional, segundo as circunstâncias) dos candidatos do PT nos últimos 20 anos, sem no entanto jamais abdicar de uma postura crítica (ou dotada de um certo ceticismo sadio), como convém a qualquer cidadão consciente, em relação às posições adotadas ou às políticas preconizadas pelo PT para o Brasil.
         Como estou convencido de que o PT será um dia chamado a exercer o poder no Brasil e que, para que tal ocorra, ele deve buscar apresentar políticas econômicas sólidas e totalmente consistentes com uma moderna economia de mercado – como a que existe hoje no Brasil –, tomei a decisão unilateral (uma vez que não sou formalmente filiado ao partido) de apresentar minha contribuição a esse esforço de “PT-education”, isto é, de aperfeiçoamento da qualidade dos programas e propostas submetidas pelo PT à opinião pública e à sociedade brasileira de um modo geral. Trata-se de uma decisão puramente voluntária, consistente com a simpatia acima referida, e que não responde a qualquer demanda de qualquer instância dirigente do PT.


1. Introdução: características gerais do programa e metodologia desta análise


O Instituto Cidadania, entidade vinculada ao Partido dos Trabalhadores (PT), tornou público, em 4 de julho de 2001, um programa de propostas econômicas que, embora claramente identificadas como emanando de um grupo de economistas e de líderes políticos de sua corrente majoritária, logo ficou conhecido como “programa econômico do PT”. O documento, “Um outro Brasil é possível”, bem articulado e denotando um raro senso, no PT, no sentido de tentar conciliar os constrangimentos da realidade econômica com medidas suscetíveis de aplicação controlada num futuro programa de governo do partido, foi bem recebido pelos observadores, que viram no texto uma tentativa de aggiornamento por parte de um movimento que, durante vinte anos, exibiu fortes doses de irrealismo econômico e de voluntarismo político militante, ambos identificados com teses socialistas e estatizantes.
O programa  apresenta diversas medidas suscetíveis de aplicação controlada, sem novos choques ou tentativas de superação rápida das dificuldades estruturais da economia brasileira. Ele também representa um sensível progresso em relação ao hipercriticismo econômico praticado no passado, ainda que continue a ostentar o alto grau de indefinição que tem caracterizado desde sempre as críticas da oposição às orientações econômicas do governo (críticas genéricas do tipo: “é preciso de um outro modelo econômico”, “é necessário um projeto nacional de desenvolvimento”, sem nunca explicitar claramente, no entanto, em que consistiriam esses alegados esquemas de reforma global ou reorientação radical de políticas).
A seção III do programa, relativa a “metas e compromissos”, apresenta um elenco de medidas de bom senso, que no entanto carecem de um estudo de factibilidade econômica, sobretudo no sentido de se examinar sua adequação orçamentária e compatibilidade com o balanço de pagamentos. As medidas propostas são aparentemente consistentes, ainda que não de todo coerentes entre si o tempo todo, pois que alguns trade-offs sempre têm de ser operados na administração da política econômica. A despeito desses progressos sensíveis na busca de uma política econômica “razoável” – supostamente suscetível de ser aceita, não pelo chamado mainstream economics, mas pela opinião pública em geral e pelos “capitalistas nacionais” em particular –, o texto apresenta ilusões e equívocos do ponto de vista da política diplomática e das realidades econômicas e políticas do contexto regional e internacional, que justamente constituem o objeto principal desta análise e o ponto central das observações críticas que são aqui formuladas.
Um certo sentido de “injustiça” poderia assim revelar-se, na medida em que não são aqui destacadas, por razões tanto de espaço como de enfoque analítico, as inegáveis contribuições de valor que o texto contém, para um debate de alto nível sobre os rumos do desenvolvimento e os impasses econômicos atuais. As virtudes do documento não são contudo destacadas para não agregar ainda mais aos já extensos comentários feitos aos pontos considerados equivocados nos posicionamentos adotados pelos autores do texto. Outras observações feitas não se prendem necessariamente a temas substantivos, mas referem-se a questões percebidas como pouco claras ou mesmo contraditórias num texto que tem a pretensão de não ser unicamente uma proposta econômica, mas um verdadeiro documento político, quando não “filosófico”.
De fato, o documento é abrangente, diversificado e mesmo “totalizador”. Ainda assim, algumas tentativas de se “distinguir” das políticas atuais – apenas para apresentar uma face diferente “disso que está aí” – contribuem muitas vezes para dar um tom mais retórico do que realista ao documento. Nesse sentido, o texto ganharia se tentasse dar maior concisão e objetividade às medidas propostas, sem as muitas considerações de caráter quase filosófico que apresenta.
Uma explicitação quanto ao “método”, ao início deste esforço analítico, impõe-se como obrigação: o texto será lido e comentado linearmente e topicamente, sem preocupação com seu enfoque global e sem considerações de ordem política mais geral, uma vez que não se pretende “questionar” o direito e a vocação do PT a ter uma política e uma plataforma alternativa de governo. Grande parte das críticas e questionamentos aqui formulados são apresentados em forma de perguntas: elas denotam o que o público bem informado gostaria de saber sobre essas propostas ou que tipo de dúvidas economistas realistas ainda mantêm em relação a um documento que traz substância ao importante debate sobre políticas governamentais.
Finalmente, para fins de controle das citações, cabe remeter ao texto integral do documento, disponível no link: http://brnt5sp228.digiweb.com.br/noticias.asp?id=152. O presidente do PT em exercício no momento da campanha eleitoral para a presidência do partido, José Genoino, a ele referiu-se em termos elogiosos, embora precavidos (artigo no site do PT, ao abrigo da chapa 20): “O documento dos economistas do PT constitui-se numa importante contribuição para o debate partidário que antecede o processo de definição do programa para a candidatura presidencial nas eleições de 2002. Mas, para desfazer confusões criadas pela imprensa, é necessário registrar que não se trata de um documento oficial, já que não foi aprovado por nenhuma instância partidária.”
Vale observar, contudo, que por ocasião da campanha eleitoral para a presidência do PT, entre julho e setembro de 2001, as propostas contidas nesse documento foram objeto de pesadas críticas das diversas chapas que não a do grupo majoritário que terminou elegendo o candidato José Dirceu. Uma aproximação à reflexão desse grupo de economistas, acusado de “flexibilizar” as posições tradicionais do PT em matéria econômica como forma de “ganhar a confiança da burguesia”, pode ser encontrada no artigo coletivo “A Reconstrução da Nação”, assinado por quatro de seus integrantes: Guido Mantega, Paul Singer, Jorge Mattoso e Reinaldo Gonçalves e publicado na revista Teoria & Debate (São Paulo; Fundação Perseu Abramo, ano 13, nº 43, janeiro-março 2000).

Leiam o meu texto neste link:
https://www.academia.edu/5837790/819_O_PT_e_as_rela%C3%A7%C3%B5es_econ%C3%B4micas_internacionais_do_Brasil_an%C3%A1lise_do_programa_econ%C3%B4mico_Um_outro_Brasil_%C3%A9_poss%C3%ADvel_2001_

Equivocos economicos do PT - Fabio Giambiagi e o Fome Zero (2001)

Nelson Rodrigues, um reacionário inteligente, dizia que o subdesenvolvimento não se improvisa: é obra de séculos.
Sem dúvida.
Os equívocos econômicos do PT tampouco se improvisam: é fruto de mentes desorganizadas desde a origem. Eu chamo muitos desses equívocos econômicos de "crimes econômicos", porque além de provocarem despesas indevidas, erradas, mal direcionadas, mal implementadas e geridas, elas provocam perdas enormes para todo o país, ao abrigo do conceito que os economistas chamam de "custo-oportunidade", ou seja, a melhor utilização possível dos parcos recursos disponíveis -- eles são escassos por definição, em face de todas as necessidades potenciais -- na atividade ou investimento de maior retorno possível. Ou seja, quando se deixa de fazer o dispêndio correto, as perdas são muito maiores do que o simples montante nominal do dinheiro: se trata de uma perda enome, porque se deixou de colocar esse dinheiro numa atividade de maior retorno.
O PT sempre foi especialista em equívocos e também em crimes econômicos.
Para provar isso, vou colocar aqui o texto de meu amigo Fabio Giambiagi, que está publicando um novo livro -- Capitalismo, Modo de Usar --, a propósito do Fome Zero, que foi o primeiro (mas não o único, nem o último, infelizmente) dos mais clamorosos equívocos econômicos e políticos do governo lulo-petista, tanto que foi logo abandonado.
Paulo Roberto de Almeida

Atenção: este texto é de 18 de outubro de 2001, ou seja, muito antes de começar o governo do PT...


  O projeto Fome Zero do PT

                                                                                                Fabio Giambiagi[1]

 

Nos tempos do reinado dos conservadores na Inglaterra, o “Labour” apresentou-se ao eleitorado com um programa que foi qualificado por um comentarista mordaz como “the longest note of suicide of the History”. Algo similar pode ser dito sobre Projeto Fome Zero de 118 páginas divulgado pelo Instituto Cidadania e apresentado pelo candidato Luis Inácio da Silva, Lula: é uma listagem de desejos com potencial para fazer o país quebrar em 15 dias.


O trabalho tem alguns méritos. Faz-se uma listagem dos programas federais existentes; contribui para difundir uma série de boas iniciativas locais; dá ênfase ao tema da indigência, o que é louvável em um quadro onde se pode tender à acomodação diante da miséria; destaca, corretamente, que é recomendável adotar políticas públicas estruturadas para atacar a indigência; e apresenta algumas propostas interessantes para lidar com a pobreza, como a criação de um Ministério que centralize as iniciativas sociais. Entretanto, o documento tem vários problemas. Antes de sermos acusados de “desenvolver um raciocínio próprio de um tecnocrata insensível”, convém esclarecer que todo mundo é a favor do fim da fome, mas apenas boas intenções não credenciam um partido a solucionar o problema. Portanto, ninguém tem o monopólio das boas intenções. Passemos a listar os problemas do documento:


i)ele adota a teoria conspiratória da História. Na página 16, por exemplo, afirma-se que “a manutenção da pobreza e de níveis agudos de fome é o grande “calcanhar de Aquiles” para o “sucesso” do sistema capitalista na sua versão global”. Um crítico disse recentemente que para o PT “os empresários são como a sogra: têm que ser tolerados”. O PT nasceu com um viés contra o capitalismo, doença que costuma acometer os partidos de esquerda na sua infância e que se cura com o tempo. Entretanto, assim como alguns cônjuges, em momentos de menor auto-controle, soltam a língua contra as sogras, alguns membros do PT às vezes não conseguem conter certos preconceitos como os da frase acima. Na página 19, menciona-se “a existência de interesses políticos e econômico–comerciais em manter certas pessoas famintas e em alimentar outras. Trata-se da existência de um ‘mercado da fome’, suprido pelas empresas transnacionais ligadas aos alimentos e apoiado pelos governos nacionais e organizações internacionais de fomento”. O leitor não entende muito bem, mas fica com a impressão de que o Instituto da Cidadania julga que no Brasil há fome por culpa dos EUA, de “empresas transnacionais” (saudade dos anos 60?) como o Mc Donalds e do Banco Mundial. É inacreditável que tamanha patacoada forme parte do programa de Governo do primeiro colocado nas pesquisas para a Presidência da República;
ii)o documento parte da premissa de que é possível solucionar o problema da miséria no Brasil em 4 anos. É uma ilusão achar que problemas que nos acompanham há décadas vão ser resolvidos até 2006. Qualquer abordagem do problema da miséria no Brasil tem que partir do pressuposto de que a solução disso será um processo, em que o melhor que se pode esperar é que a cada Governo o nível de pobreza seja menor que no anterior, para que, em um prazo razoável (uma geração) o país possa cantar vitória contra a indigência. Acabar com a miséria em 4 anos simplesmente não é viável;
iii)o texto propõe uma política assistencialista e não uma solução estrutural. Como alguns críticos apontaram, o documento deveria ter valorizado mais iniciativas corretas que as próprias administrações petistas estão adotando com êxito, como o Bolsa-Escola, que ataca o problema da miséria mas é acompanhado de mais educação, o que tende a fazer com que a geração dos filhos não sofra dos males da dos pais. As soluções do documento conservam o problema, gerando um mega-assistencialismo perpétuo;
iv)o PT parte de uma visão distributivista da questão social, que nos condenaria a sermos eternamente um país pobre; se o distributivismo fosse solução para todos os problemas, a crise do Afeganistão seria muito fácil de resolver: bastava dar recursos para todo mundo. A grande questão é: que recursos? O desafio é como ampliar a oferta de bens e serviços do país, induzindo a uma retomada do crescimento que leve os empresários a contratar mais mão-de-obra e melhorar a renda e isso será impossível com um programa como o do PT que requer elevar a carga tributária a quase 40 % do PIB;
v)o documento teima em negar a necessidade de enquadrar a solução dos problemas dentro das restrições orçamentárias. O que o PT na página 26 denuncia como a “hegemonia da área econômica sobre a social”, é tão somente o reconhecimento de que dinheiro não dá em árvore e que não se pode distribuir o que não existe. No dia em que no Brasil os gastos sociais voltarem novamente a não levar em conta os limites do Orçamento, estarão escancaradas as portas para o retorno da alta inflação;
vi)há uma apologia da existência de benefícios sem ônus, o que corresponde à prevalência da ótica de que o cidadão tem que ter muitos direitos e poucos deveres. Na página 46, critica-se a exigência de tempo de contribuição para receber os benefícios da aposentadoria (princípio criticado por corresponder à noção de “seguro atuarialmente equilibrado”) e logo depois defende-se a explosiva proposta de fazer uma reforma da Previdência que “reconhecesse também o trabalho informal não-agrícola como critério legitimador do direito previdenciário, desvinculando-o do critério hoje prevalecente que é do tempo de contribuição”. Trata-se de conceder aposentadoria a quem não pagou para fazer jus a ela e custear isso com “financiamento do sistema tributário regular”. Isso significa que a partir de 2003 haveria milhões de pessoas de 60 anos ou mais pleiteando uma aposentadoria mesmo sem ter recolhido para o INSS e que seria financiada por novos impostos. O leitor não tenha dúvida: financiar aposentadorias sem contribuições prévias mediante novos impostos é a melhor forma de matar a produção.
vii)há uma contradição entre o teor do texto e a realidade que ele retrata. O documento como um todo trata da miséria como se o país estivesse à beira do abismo e de uma convulsão social. Entretanto, os dados de Sônia Rocha que o próprio documento expõe na página 74 mostram o contrário: uma redução sistemática e significativa da proporção de indigentes ao longo de toda a década de 90 e especialmente a partir do Plano Real. O PT insiste há anos em desqualificar o Governo FHC como se o Brasil fosse o Zaire, mas o que os dados mostram é que a situação social do país melhorou desde 1993. O documento também faz ênfase na proposta de barateamento da alimentação para a população mais pobre, embora seja obrigado a reconhecer “en passant” que esse barateamento já está ocorrendo. Em outras palavras, falta ao PT uma visão de processo, admitir que houve avanços sociais importantes e entender que a História não vai começar em 2003;
viii)há uma enorme superficialidade no uso dos números; na página 81, fala-se em “recuperação do salário mínimo” sem uma única vírgula do impacto disso sobre as contas da Previdência; na página 85 defende-se o piso de 100 dólares para o salário mínimo, o que, a preços de hoje, implicaria elevar o mesmo de R$ 180 para R$ 275, aumentando em 53 % o piso de remuneração da despesa do INSS. Se, para não afetar a pirâmide de remunerações, todos os 20 milhões de segurados da Previdência Social recebessem um “delta” de R$ 95 nos treze pagamentos feitos por ano, teríamos uma despesa adicional de R$ 95 x 13 x 20 milhões = R$ 25 bilhões (2 % do PIB). Conservando o desinteresse pelos números, na página 86 menciona-se de passagem uma medida para aumentar a despesa previdenciária em algo “da ordem de 2 % do PIB” para a auto-ocupação, sem que os autores se dignem informar como essa despesa poderia ser financiada (que, convém dizer, soma-se ao efeito de 2 % do PIB da elevação do salário mínimo para US$ 100, o que os autores parecem não ter lembrado na hora de calcular os custos); a despreocupação atinge o clímax quando na página 102 o adicional de R$ 20 bilhões (da ordem de outros 2 % do PIB!) é qualificado como um valor “pequeno”;
ix)as restrições externas são solenemente ignoradas. Na página 85, defende-se “um novo modelo econômico que priorize o mercado interno”, como se o Brasil pudesse se dar ao luxo de passar a exportar menos. Resta saber onde é que o Deputado Aloísio Mercadante - que corretamente tem enfatizado a importância de diminuir o déficit em transações correntes - estava quando o partido aprovou esse documento que incorpora conceitos ultrapassados dos quais não se ouvia falar há pelo menos 20 anos; e
x)o maior pecado do documento é a negligência com que é tratada a questão do financiamento dos programas. Essa negligência se traduz em três coisas. Primeiro, há 115 páginas de propostas e apenas 3 sobre os custos. Segundo, na tabela da mensuração do valor dos programas (página 101) não há nenhuma referência ao impacto da elevação do salário mínimo para US$ 100 nem da ampliação da aposentadoria para a auto-ocupação, este último avaliado em 2 % do PIB na página 86 e aquele estimado por nós em mais 2 % do PIB. Ou o PT elimina do programa propostas como a do salário mínimo de R$ 275 (US$ 100) e a da aposentadoria sem contribuição prévia; ou lista todos os custos na tabela do financiamento – e soma para explicitar quanto vai dar. O que não é possível é prometer o paraíso e no momento de avaliar os custos mencionar apenas os 2 % do PIB que o documento assume e varrer os 4 % do PIB restantes “para baixo do tapete” como se fossem meros detalhes. Terceiro, os autores não levam em consideração a existência de recursos vinculados: eles afirmam que dos R$ 20 bilhões das suas propostas, boa parte do custo poderia vir de remanejamentos (página 102) pois os gastos sociais são “da ordem de 45 bilhões ao ano”. Ocorre que os atuais gastos sociais estão indo para coisas específicas. Se o PT cria mais R$ 20 bilhões de despesas, para “remanejar” recursos vai ter que desativar programas que hoje recebem recursos muitas vezes vinculados. De duas uma, então: se a idéia é criar novas despesas, não vai haver remanejamento; e se vai haver remanejamento, tem que se dizer de que programas vão sair os R$ 20 bilhões. A pergunta é: o que o futuro Governo vai remanejar para ter a verba que lhe permita criar cupons de alimentação? Vai diminuir, por exemplo, os recursos para tratamento de AIDS? Ou o montante para a reforma agrária? Na tabela do financiamento, é “esclarecido” que a fonte de recursos será o “Tesouro”. Como o Ministro da Fazenda não é um mágico, resta saber qual vai ser o imposto que irá aumentar. É inadmissível que um partido político que pretende chegar ao Poder adote um programa onde se diz que o financiamento de uma despesa adicional bilionária virá do “Tesouro”, como se este fosse a caixa do David Coperfield de onde surgem objetos a partir do nada.

O programa em questão não passa de um instrumento de marketing. O PT abriga quadros de uma esquerda moderna, que poderia, uma vez no Poder, dar uma contribuição para a melhoria das políticas sociais, sem perder a preocupação com a necessidade de preservar a austeridade fiscal. Não nos enganemos, porém: não é essa a visão que aparece espelhada nos programas divulgados pelo PT até agora. De Juscelino Kubitschek seus inimigos diziam que “não vai ganhar; se ganhar, não vai tomar posse; se tomar posse, não vai governar”. Felizmente, o Brasil evoluiu e obviamente se Lula tiver mais votos, tomará posse. Porém, parodiando aquela frase, pode-se dizer que “se ele vencer, não respeitará o programa; e se respeitar o programa, vai fracassar”. O Projeto Fome Zero é uma iniciativa superficial, conceitualmente questionável, sem fontes de financiamento, que eleva o gasto público em torno de R$ 70 bilhões (6 % do PIB) e que trata as questões orçamentárias com uma leveza que beira a irresponsabilidade. Se Lula ganhar e cometer o erro de tentar implementar um programa que eleve a despesa pública nessa proporção, vamos chamar as coisas pelo que são: o Fome Zero não será um projeto de renda mínima e sim um projeto de inflação máxima.


[1] Economista, co-autor do livro “Finanças públicas-Teoria e prática no Brasil” (Editora Campus).