Da Carta do IEDI de 14 de julho de 2006:
Comércio Externo da China: Efeitos Sobre as Exportações Brasileiras
Em texto de discussão recém-publicado pelo IPEA - Comércio Externo da China: Efeitos Sobre as Exportações Brasileiras -, os professores do Instituto de Economia da UFRJ João Bosco Machado e Galeno Tinoco Ferraz apresentam os resultados de ampla pesquisa sobre os riscos representados pelos produtos chineses para as exportações brasileiras tanto no intercâmbio bilateral entre Brasil e China como em outros mercados relevantes.
Além de examinar as principais características do comércio bilateral entre a China e o Brasil no período 1996-2002, o estudo procurou mensurar os ganhos e perdas da competitividade das exportações brasileiras no mercado chinês entre os biênios 1996-1997 e 2001-2002, a partir as estatísticas de comércio exterior da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad, na sigla em inglês). Utilizando essa mesma base de dados, os autores examinaram igualmente, os efeitos entre os biênios 1996-1997 e 2001-2002, da concorrência dos produtos chineses sobre as exportações brasileiras dirigidas aos principais parceiros comerciais do Brasil (Estados Unidos, União Européia, Argentina, Japão e bloco Ásia-Pacífico), que, em conjunto, respondiam por cerca de três quartos das vendas externas do Brasil no biênio 2001-2002.
Ainda que os determinantes dos ganhos e perdas de competitividade do Brasil frente à China não sejam discutidos e os dados não incluam o período posterior à adesão da China à Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2001, os resultados da análise quantitativa são bastante interessantes e mostram que:
O Brasil ocupa apenas a décima oitava posição entre os maiores fornecedores de mercadorias para China, com participação no mercado de cerca de 1,0% no biênio 2001-2002.
Os fluxos de comércio entre o Brasil e China se apóiam em vantagens comparativas clássicas, com predomínio do comércio do tipo interindustrial.
O Brasil exporta para China produtos básicos – soja em grão, minério de ferro, semimanufaturados de ferro e aço, couros e peles - e importa da China produtos finais com maior valor agregado, como computadores, produtos siderúrgicos acabados e calçados.
Ganhos de competitividade de alguns produtos brasileiros exportados para China resultaram, sobretudo, da capacidade de setores produtivos brasileiros em ampliar a oferta e não de uma política de identificação de novas oportunidades comerciais.
Barreiras comerciais não-tarifárias, em particular, sanitárias, constituem, ao lado, das práticas governamentais de apoio à produção local para substituição de importações, os principais obstáculos para a ampliação das exportações brasileiras para a China, mesmo no caso de produtos com vantagens competitivas globais.
O Brasil perdeu competitividade para a China em todos os mercados relevantes analisados no período em exame, à exceção da Argentina, onde as exportações brasileiras se beneficiam, em particular, de vantagens de localização.
As perdas mais relevantes tanto em termos absolutos como em termos relativos foram verificadas no mercado dos Estados Unidos, respectivamente, US$ 611,4 milhões e 6,3% do valor médio das exportações brasileiras para os EUA. As perdas no mercado norte-americano se concentram em cerca de vinte produtos, com destaque para os produtos do setor calçadista, intensivos em trabalho e com baixa intensidade tecnológica.
A competição mais acirrada entre o Brasil e China verifica-se no comércio de produtos semimanufaturados e manufaturados de baixa e de média-baixa intensidade tecnológica.
Embora assinalem que os dados analisados oferecem apenas um retrato do comportamento do comércio no período analisado e não servem como parâmetro para projetar o desempenho comercial futuro, os autores ressaltam que os efeitos da política industrial e comercial chinesa e da estratégia de substituição de importação de produtos manufaturados sobre as exportações brasileiras já visíveis nos setores de couro e calçado e de óleos vegetais devem atingir, em breve, outros setores, como o setor siderúrgico.
Tais impactos não deverão ficar circunscritos às exportações direcionadas ao mercado chinês, afetando também as vendas externas brasileiras em terceiros mercados, em função do acirramento da concorrência com os produtos chineses, a exemplo do que ocorre com as exportações brasileiras de calçados para os Estados Unidos e para União Européia.
Das conclusões do estudo, destaca-se, portanto, o alerta para as autoridades brasileiras: enquanto a China pratica uma política industrial e comercial ativa, lançando mão de um amplo conjunto de instrumentos para promover a produção doméstica e exportações de produtos industrializados, o Brasil parece se contentar em se especializar na produção e exportação de commodities com baixo valor agregado.
A China não constituiu, entretanto, uma ameaça apenas às exportações do Brasil. Como destacam os autores, o que ocorre com a indústria calçadista brasileira, pressionada também no mercado interno pela concorrência dos produtos chineses, pode vir a se repetir no futuro “em outros setores industriais brasileiros, que não somente os intensivos em mão-de-obra. Tal hipótese parece não estar longe da realidade quando se observa que, nos últimos anos, os manufaturados intensivos em trabalho vêm perdendo importância relativa na pauta exportadora chinesa, concomitantemente ao aumento do peso relativo dos produtos intensivos em P&D.” (p. 112-113).
Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas. Ver também minha página: www.pralmeida.net (em construção).
terça-feira, 18 de julho de 2006
sexta-feira, 14 de julho de 2006
587) Entrevista com embaixador Rubens Ricupero
A América está partida
Por Andréa Wolffenbüttel
Revista Desafios do Desenvolvimento, julho 2006
As tentativas as de ampliação do Mercosul e de criação de uma área sul-americana não deram resultados e parecem estar em declínio e dissolução
O advogado Rubens Ricupero tem vasta experiência em muitas áreas.Perdeu as contas do número de países que visitou e de autoridades com as quais conversou.Professor, embaixador, ex-ministro da Fazenda, ex-secretário do braço da Organização das Nações Unidas que cuida de comércio e desenvolvimento, atual diretor da faculdade de Economia da Fundação Armando Álvares Penteado,de São Paulo, tem cacife para falar sobre política e economia, interna e externa.Nesta entrevista concedida a Desafios,o tema central é a América Latina,que no seu entender passa por um período de desagregação.O cenário observado por Ricupero não é nada bom.Mas ele tem esperança de melhora.
Homem de mil instrumentos
O olhar, de um azul transparente, é tranqüilo. A fala é mansa - em português, francês, inglês, espanhol, italiano ou alemão. Quem passa por ele numa das ruas do bairro de Higienópolis, na capital paulista, onde mora, não diz que Rubens Ricupero, casado, pai de quatro filhos, carrega a bagagem que, de fato, traz nos ombros, na mente e no coração. Em 69 anos de vida, ele fez, e continua a fazer, de tudo. Não é tarefa fácil resumir, em poucas linhas, o currículo do atual diretor da faculdade de Economia da Fundação Armando Álvares Penteado.
Aluno dos cursos de Letras Neolatinas e Economia - que, inquieto, não concluiu -, Ricupero se formou em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Preferiu escapar dos tribunais e se voltou para a carreira de diplomata. Em 1961, quando Juscelino Kubitschek passava o bastão da Presidência da República para Jânio Quadros, estreou como funcionário do Itamaraty. Ali foi, entre outras coisas, chefe da divisão de Difusão Cultural e do Departamento das Américas. Escolhido assessor internacional pelo presidente eleito Tancredo Neves, serviu a seu sucessor, José Sarney. Depois, ocupou as pastas do Meio Ambiente e Assuntos Amazônicos e da Fazenda (quando implantou o Plano Real). Sim, também presidiu o Comitê de Finanças na Conferência de Meio Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas, em 1992, no Rio de Janeiro - a Eco-92.
No exterior, comandou embaixadas brasileiras nos Estados Unidos e na Itália, atuou no Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt) e foi secretário- geral da Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad). Em sala de aula, ensinou Teoria de Relações Internacionais na Universidade de Brasília e lecionou História das Relações Internacionais do Brasil no Instituto Rio Branco, além de ministrar cursos no Peru, Suriname e Gabão. Nesse universo, mais acadêmico, escreveu vários livros sobre política externa, economia e história. Atualmente, além da faculdade de Economia, dirige o Instituto Fernand Braudel, ONG que realiza pesquisas e debates acerca de problemas brasileiros e latino-americanos. Enfim, dizer que Ricupero é um homem de mil instrumentos talvez seja subestimá-lo.
Desafios - Como o senhor vê o momento político que a América Latina atravessa?
Ricupero - Vejo um panorama de fragmentação. Não existe uma proposta agregadora de caráter construtivo nem temas unificadores, como havia na época da Guerra Fria,quando a guerrilha eclodiu na América Central e se falava nos perigos da influência cubana. Eram questões de caráter conflituoso, mas que causavam, senão unanimidade, pelo menos o surgimento de grandes maiorias. Atualmente, a multiplicação de encontros de cúpula não produz mais que pura retórica.Na prática, a tendência é a diferenciação. Os países do norte, México, América Central, Caribe, estão cada vez mais incorporados ao espaço econômico dos Estados Unidos.Essa é uma orientação comercial histórica, hoje acentuada porque a integração se dá também pela imigração. Os grandes contingentes latinos nos Estados Unidos são originários do México,do Caribe e da América Central. Enquanto isso, na América do Sul há diversificação.
Desafios - Como é essa diversificação?
Ricupero - Países como Colômbia,Peru e Equador tendem a se integrar ao mercado norte-americano. Os do sul não têm essa interação, mas não foram capazes de construir alternativa eficaz. As tentativas de ampliação do Mercosul e de criação de uma área sul-americana não deram resultados e parecem estar em declínio e dissolução.Para piorar, dois grandes temas dividem a América Latina. Um é a postura do presidente venezuelano,Hugo Chávez. Outro é o Acordo de Livre Comércio das Américas (Alca), ou projetos semelhantes.
Desafios - O senhor acha que essa fragmentação é conseqüência da história ou da falta de liderança e iniciativa dos governos?
Ricupero - Creio que metade-metade. Nenhum governo, inclusive o brasileiro, apresentou uma proposta convincente, construtiva, de desenvolvimento de todo o continente, por meio não só do comércio mas também de financiamento. O Mercosul é semelhante à Alca, com o Brasil como o país forte em lugar dos Estados Unidos.Não oferece garantias de investimentos para que os mais fracos diversifiquem suas exportações.Mas há também raízes na evolução histórica. No período da Guerra Fria, a América Latina estava mais presente na agenda diplomática mundial do que hoje. Os grandes temas na política atualmente são basicamente quatro: o terrorismo internacional, o radicalismo islâmico, a proliferação de armas de destruição em massa e o conflito entre Israel e palestinos. São tópicos em que a América Latina - talvez o único continente sem ligação com o islamismo - é inteiramente irrelevante.
Desafios - O senhor fala de um modo que parece ser azar o Brasil estar distante do conflito islâmico, mas é sorte, não é?
Ricupero - É sorte, mas nos deixa fora da agenda. Não somos atingidos pela violência, mas também não despertamos atenção nem interesse.A preocupação com o desenvolvimento concentra- se nas áreas mais miseráveis do mundo, em 50 países, dos quais 34 estão na África e um único na América, o Haiti.Mesmo Bolívia e Honduras já não se enquadram nessa categoria, a dos mais miseráveis. Assim, a América Latina se encontra um pouco órfã da política mundial.
Desafios - A construção do gasoduto que ligaria as jazidas venezuelanas à Argentina, passando pelo Brasil, não seria um projeto de integração continental?
Ricupero - Sim, para a América do Sul especificamente. Essa é uma idéia antiga de Eliezer Batista (um dos primeiros presidentes da Companhia Vale do Rio Doce, hoje consultor especial da empresa, ex-ministro de Minas e Energia do governo João Goulart e membro do Conselho Coordenador das Ações Federais no governo Fernando Henrique Cardoso) - a integração do miolo do continente, com redes de estradas, de energia, de telecomunicações. Com base na importação de petróleo, gás, carvão e energia elétrica, seria possível criar o que os europeus fizeram com a Comunidade do Carvão e do Aço. O projeto é válido, ainda hoje, em termos conceituais. Infelizmente,não é factível devido à grande insegurança pela radicalização da postura política do presidente venezuelano, Hugo Chávez. Em março deste ano, Chávez tentou impor mudanças a duas empresas petrolíferas estrangeiras, a francesa Total e a italiana Eni, e ameaçou expulsar e expropriar as companhias. O caso da Bolívia foi posterior e criou, obviamente, uma grande insegurança,mesmo na Petrobras, que investiu na Bolívia no contexto de acordos pedidos pelos próprios bolivianos,de Estado a Estado.Na realidade, a Petrobras nunca teve grande interesse pelo gás boliviano por uma razão simples: ele substituiria, em São Paulo, o óleo combustível que a empresa produzia e produz. Foi à Bolívia porque o governo quis assim. Então, no momento em que a Petrobras está representando o Estado brasileiro e é tratada dessa maneira, fica eliminada qualquer possibilidade de parceria.Porque confiança é como diz aquela cantiga infantil: "O anel que tu me destes era vidro e se quebrou".Quebrou, não tem mais como consertar - e quem disse isso foi o ministro Celso Amorim, em depoimento ao Senado.
Desafios - O senhor concebe alguma proposta agregadora para a América Latina?
Ricupero - Bem, eu acho uma tragédia que o gasoduto transcontinental, que era a idéia que mais fazia sentido prático, tenha sido inviabilizado. Então, a meu ver,por enquanto não existe nenhuma proposta integradora possível. O grande projeto, sem viabilidade prática, seria a integração com os Estados Unidos, num acordo em que norte-americanos, como ocorreu com os europeus, aceitassem promover investimentos para corrigir o desequilíbrio de nível econômico entre os países da região.A grande diferença entre o modelo de acordo comercial europeu e o norte-americano é que o europeu sempre foi baseado na idéia de transferências financeiras maciças para os países mais fracos. Os americanos sempre quiseram a integração restrita à liberação do comércio e à abertura de campo aos investimentos privados.
Desafios - Quer dizer que estamos condenados ao "cada um por si"?
Ricupero - Não necessariamente. Há esquemas menos ambiciosos.Uma boa ilustração é a integração entre Peru e Brasil pelas estradas da fronteira do Acre até o Pacífico e pelo fornecimento de gás (porque o Peru tem grandes jazidas).Outro exemplo é o vínculo que vem se formando entre Brasil e Colômbia. Já existe uma siderúrgica brasileira em território colombiano e o país tem interesse no carvão e no petróleo da Colômbia,de boa qualidade. Existe também um bom potencial em matéria de comércio com o México, já explorado por um acordo que pode ser muito ampliado.Não tenho muita esperança na relação que o Brasil tem com a Venezuela.Da Bolívia, então, ni hablar, como se diz em espanhol. Temos de reforçar nossas relações com países que têm os pés mais na terra.
Desafios - O Chile estaria entre esses países?
Ricupero - Sem dúvida.A meu ver, em toda a América Latina, o Chile é o mais próximo de um modelo ideal de amadurecimento político, de eficácia econômica e do Estado, e de uma política social inteligente.Tem fundamentos sólidos.Eu acho o Brasil um pouco perdido, sem projeto.
Desafios - A sensação que se tem é que o Chile atingiu essa maturidade durante a ditadura do general Pinochet. É possível construir um modelo semelhante num ambiente democrático?
Ricupero - Claro que sim. Essa é uma análise equivocada.O Chile sempre foi uma singularidade na América Latina. Não é verdade que no século XIX o Brasil era o único país com um mínimo de estabilidade num continente de revoluções.O Chile, logo depois da independência, na década de 1830, teve um grande dirigente, Diego Portales, um conservador esclarecido que criou um Estado forte e eficaz.Por volta de 1850, havia no Chile um sistema partidário sólido, como o Brasil nunca teve, e sufrágio universal.O golpe militar não tem o mérito do sucesso chileno. O Chile é um Estado muito eficaz, muito melhor do que o brasileiro, comparativamente incompetente.
Desafios - Como o senhor avalia a política exterior praticada pelo Brasil?
Ricupero - Eu concordo com o conteúdo da maioria das linhas da política externa.Sou favorável a que o Brasil pleiteie um posto permanente no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas. Acho brilhante a aliança feita com os outros aspirantes, a Alemanha, a Índia e até o Japão.Nas negociações da Organização Mundial do Comércio (OMC), penso que a união dos países em desenvolvimento no Grupo dos 20 foi um grande êxito. Acho que o Brasil tem posição muito destacada, muito acertada na defesa da liberalização agrícola. A postura contra a Alca foi correta, porque os americanos ofereciam muito pouco acesso ao mercado para produtos agrícolas mais sensíveis ao protecionismo e queriam concessões exageradas em termos de propriedade intelectual,que, naquele momento, inviabilizariam o programa brasileiro de medicamentos genéricos. Isso posto,minha maior crítica é que os responsáveis pela política externa brasileira, não só dentro do Itamaraty, não têm conseguido gerar consenso interno, obter apoio.
Desafios - Como assim?
Ricupero - Há um ano eu escrevi um artigo:"O fim do consenso".Começava lembrando que o doutor Tancredo Neves, com quem trabalhei,disse num discurso que a política externa brasileira conduzida pelo Itamaraty era consenso nacional. Hoje não é mais. E o governo tem responsabilidade em cinco áreas. Primeiro, deu muito mais ênfase à ruptura do que à continuidade. Havia muita coisa na OMC, sobre a Alca, sobre o Mercosul, que vinha do passado e não foi reconhecida. O segundo erro foi transformar a política externa na bandeira de um partido. Partido, substantivo proveniente do verbo "partir", é uma parte,um pedaço - no caso, da opinião pública.A política externa ideal deve reunir o maior número de cidadãos.A terceira área de responsabilidade governamental é a tendência a dar um cunho ideológico a posturas que deveriam ser apresentadas por seus méritos. Por exemplo, a integração da América do Sul pode ser demonstrada como um teorema, não necessita bandeira. A quarta é o papel excessivamente protagonista do presidente. Sua projeção pessoal é útil, mas deveria ter sido usada com moderação para evitar ciúmes internos e externos. O Barão de Rio Branco repetia sempre a frase de um escritor alemão: a inveja é a sombra da glória. Um último problema é a politização, a subordinação da política externa a objetivos de partido, de governo, de um presidente, e não da nação como um todo. Pode parecer que sou um terrível crítico da política externa. Não sou. Eu critico sua incapacidade de gerar consenso.
Desafios - Parece que o senhor é mais crítico da forma do que do conteúdo.
Ricupero - Em política externa, as duas dimensões são inseparáveis.Durante a Primeira Guerra Mundial, o presidente norte-americano Woodrow Wilson quis criar a Liga das Nações,mas não conseguiu vender a idéia, rejeitada pelo Senado. Hoje, a maioria dos historiadores concorda que a política de Wilson era esclarecida. Se os Estados Unidos tivessem entrado na Liga das Nações, talvez a Europa não tivesse caído nas mãos de nazistas e fascistas e a Segunda Guerra Mundial não ocorresse. Com a política externa brasileira, passa algo um pouco semelhante: a baixa capacidade de construir consenso pode inviabilizá-la.
Desafios - Como fica o Mercosul nas atuais condições da América do Sul?
Ricupero - Eu vejo o Mercosul muito fragilizado.Quando se faz um acordo de livre-comércio unindo parceiros de níveis desiguais,o pressuposto é que o acordo concorra para a convergência de todos ao mesmo grau de desenvolvimento. É preciso que os maiores ajudem os menores a diversificar e a ampliar suas exportações. Dentro do Mercosul isso nunca foi feito. Privilegiou- se o comércio, e não o investimento ou o financiamento. Paraguai e Uruguai não conseguiram ter no Brasil a alavanca para se desenvolver. Há outras falhas.A Argentina encontra-se numa fase compreensível de auto-afirmação e quer preservar a indústria que lhe resta. Isso, às vezes, gera conflitos com o Brasil,e aqui se esquece que essas discordâncias se restringem a 10% do intercâmbio e que o Brasil tem um superávit enorme com a Argentina. Outro problema é o conflito entre Argentina e Uruguai. O Brasil tem sido pouco ágil em ajudar esses países a se entender.O Mercosul não vai acabar,mas tampouco vai se realizar no curto prazo.
Desafios - Como sair desse impasse?
Ricupero - Simplesmente devemos admitir que há setores que o Brasil não pode abrir, assim como há áreas que os argentinos não podem abrir. É preciso criar flexibilidades. O acordo de salvaguardas entre Argentina e Brasil foi uma boa idéia, uma válvula de escape. Mas falta muita coisa,como a integração do setor de serviços, muito importante; um acordo de investimento, que não existe; e também um de propriedade intelectual.
Desafios - Por que, apesar dos avanços no mercado externo, a participação brasileira no fluxo mundial de comércio está em queda?
Ricupero - China e Coréia vendem mais porque têm melhor capacidade de oferta.Esse é,de longe, o fator mais importante. O Brasil precisa criar um setor produtivo competitivo. Um dos fatores da competitividade é o câmbio - e no nível em que ele está a situação fica difícil. Outros fatores: custo de capital, taxa de juros, carga tributária, custo Brasil... não vai ser fácil mudar o quadro.
Desafios - Mas o país tem progredido muito.
Ricupero - O Brasil tem crescido no comércio mundial porque é muito competitivo em bens dependentes de recursos naturais, ou seja, na agroindústria e nos produtos minerais. A China é muito competitiva em produtos intensivos em mão-de-obra.Onde o Brasil tem avançado? Em todo o agronegócio, desde o complexo soja até setores tradicionais, como os do café e do suco de laranja; e também no ramo mineral, com minério de ferro, ferro-gusa, alumínio, bauxita etc.Poucos brasileiros sabem que um dos produtos mais dinâmicos da nossa pauta é o petróleo, que há dez anos cresce a taxas acima da média. O Brasil exporta petróleo pesado, devido à sua estrutura de refino, e importa petróleo leve. Isso explica o crescimento do volume. O aumento do faturamento deve-se à demanda chinesa, que elevou o preço de muitos produtos. Nos três últimos anos, por exemplo, o minério de ferro registrou a melhor evolução em 50 anos.Mas, como a competitividade brasileira está muito concentrada nos recursos naturais, não conseguimos crescer de verdade, conquistar maior fatia do comércio mundial. A Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad) publica anualmente uma lista dos 40 produtos mais dinâmicos do comércio mundial, quase todos eletroeletrônicos e químicos, justamente os dois grandes déficits brasileiros. Essas questões têm de ser resolvidas ou continuaremos exportando, mas com taxa de crescimento cada vez menor.
Desafios - Qual o futuro das negociações com a Europa?
Ricupero - As negociações de acordos de livre-comércio com os Estados Unidos e a Europa já duram dez anos, o que revela a existência de obstáculos intransponíveis no momento. O problema maior, em ambos os casos, é a agricultura. Mesmo assim, até o fim do ano há esperança de que as negociações da OMC tenham êxito.
Por Andréa Wolffenbüttel
Revista Desafios do Desenvolvimento, julho 2006
As tentativas as de ampliação do Mercosul e de criação de uma área sul-americana não deram resultados e parecem estar em declínio e dissolução
O advogado Rubens Ricupero tem vasta experiência em muitas áreas.Perdeu as contas do número de países que visitou e de autoridades com as quais conversou.Professor, embaixador, ex-ministro da Fazenda, ex-secretário do braço da Organização das Nações Unidas que cuida de comércio e desenvolvimento, atual diretor da faculdade de Economia da Fundação Armando Álvares Penteado,de São Paulo, tem cacife para falar sobre política e economia, interna e externa.Nesta entrevista concedida a Desafios,o tema central é a América Latina,que no seu entender passa por um período de desagregação.O cenário observado por Ricupero não é nada bom.Mas ele tem esperança de melhora.
Homem de mil instrumentos
O olhar, de um azul transparente, é tranqüilo. A fala é mansa - em português, francês, inglês, espanhol, italiano ou alemão. Quem passa por ele numa das ruas do bairro de Higienópolis, na capital paulista, onde mora, não diz que Rubens Ricupero, casado, pai de quatro filhos, carrega a bagagem que, de fato, traz nos ombros, na mente e no coração. Em 69 anos de vida, ele fez, e continua a fazer, de tudo. Não é tarefa fácil resumir, em poucas linhas, o currículo do atual diretor da faculdade de Economia da Fundação Armando Álvares Penteado.
Aluno dos cursos de Letras Neolatinas e Economia - que, inquieto, não concluiu -, Ricupero se formou em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Preferiu escapar dos tribunais e se voltou para a carreira de diplomata. Em 1961, quando Juscelino Kubitschek passava o bastão da Presidência da República para Jânio Quadros, estreou como funcionário do Itamaraty. Ali foi, entre outras coisas, chefe da divisão de Difusão Cultural e do Departamento das Américas. Escolhido assessor internacional pelo presidente eleito Tancredo Neves, serviu a seu sucessor, José Sarney. Depois, ocupou as pastas do Meio Ambiente e Assuntos Amazônicos e da Fazenda (quando implantou o Plano Real). Sim, também presidiu o Comitê de Finanças na Conferência de Meio Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas, em 1992, no Rio de Janeiro - a Eco-92.
No exterior, comandou embaixadas brasileiras nos Estados Unidos e na Itália, atuou no Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt) e foi secretário- geral da Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad). Em sala de aula, ensinou Teoria de Relações Internacionais na Universidade de Brasília e lecionou História das Relações Internacionais do Brasil no Instituto Rio Branco, além de ministrar cursos no Peru, Suriname e Gabão. Nesse universo, mais acadêmico, escreveu vários livros sobre política externa, economia e história. Atualmente, além da faculdade de Economia, dirige o Instituto Fernand Braudel, ONG que realiza pesquisas e debates acerca de problemas brasileiros e latino-americanos. Enfim, dizer que Ricupero é um homem de mil instrumentos talvez seja subestimá-lo.
Desafios - Como o senhor vê o momento político que a América Latina atravessa?
Ricupero - Vejo um panorama de fragmentação. Não existe uma proposta agregadora de caráter construtivo nem temas unificadores, como havia na época da Guerra Fria,quando a guerrilha eclodiu na América Central e se falava nos perigos da influência cubana. Eram questões de caráter conflituoso, mas que causavam, senão unanimidade, pelo menos o surgimento de grandes maiorias. Atualmente, a multiplicação de encontros de cúpula não produz mais que pura retórica.Na prática, a tendência é a diferenciação. Os países do norte, México, América Central, Caribe, estão cada vez mais incorporados ao espaço econômico dos Estados Unidos.Essa é uma orientação comercial histórica, hoje acentuada porque a integração se dá também pela imigração. Os grandes contingentes latinos nos Estados Unidos são originários do México,do Caribe e da América Central. Enquanto isso, na América do Sul há diversificação.
Desafios - Como é essa diversificação?
Ricupero - Países como Colômbia,Peru e Equador tendem a se integrar ao mercado norte-americano. Os do sul não têm essa interação, mas não foram capazes de construir alternativa eficaz. As tentativas de ampliação do Mercosul e de criação de uma área sul-americana não deram resultados e parecem estar em declínio e dissolução.Para piorar, dois grandes temas dividem a América Latina. Um é a postura do presidente venezuelano,Hugo Chávez. Outro é o Acordo de Livre Comércio das Américas (Alca), ou projetos semelhantes.
Desafios - O senhor acha que essa fragmentação é conseqüência da história ou da falta de liderança e iniciativa dos governos?
Ricupero - Creio que metade-metade. Nenhum governo, inclusive o brasileiro, apresentou uma proposta convincente, construtiva, de desenvolvimento de todo o continente, por meio não só do comércio mas também de financiamento. O Mercosul é semelhante à Alca, com o Brasil como o país forte em lugar dos Estados Unidos.Não oferece garantias de investimentos para que os mais fracos diversifiquem suas exportações.Mas há também raízes na evolução histórica. No período da Guerra Fria, a América Latina estava mais presente na agenda diplomática mundial do que hoje. Os grandes temas na política atualmente são basicamente quatro: o terrorismo internacional, o radicalismo islâmico, a proliferação de armas de destruição em massa e o conflito entre Israel e palestinos. São tópicos em que a América Latina - talvez o único continente sem ligação com o islamismo - é inteiramente irrelevante.
Desafios - O senhor fala de um modo que parece ser azar o Brasil estar distante do conflito islâmico, mas é sorte, não é?
Ricupero - É sorte, mas nos deixa fora da agenda. Não somos atingidos pela violência, mas também não despertamos atenção nem interesse.A preocupação com o desenvolvimento concentra- se nas áreas mais miseráveis do mundo, em 50 países, dos quais 34 estão na África e um único na América, o Haiti.Mesmo Bolívia e Honduras já não se enquadram nessa categoria, a dos mais miseráveis. Assim, a América Latina se encontra um pouco órfã da política mundial.
Desafios - A construção do gasoduto que ligaria as jazidas venezuelanas à Argentina, passando pelo Brasil, não seria um projeto de integração continental?
Ricupero - Sim, para a América do Sul especificamente. Essa é uma idéia antiga de Eliezer Batista (um dos primeiros presidentes da Companhia Vale do Rio Doce, hoje consultor especial da empresa, ex-ministro de Minas e Energia do governo João Goulart e membro do Conselho Coordenador das Ações Federais no governo Fernando Henrique Cardoso) - a integração do miolo do continente, com redes de estradas, de energia, de telecomunicações. Com base na importação de petróleo, gás, carvão e energia elétrica, seria possível criar o que os europeus fizeram com a Comunidade do Carvão e do Aço. O projeto é válido, ainda hoje, em termos conceituais. Infelizmente,não é factível devido à grande insegurança pela radicalização da postura política do presidente venezuelano, Hugo Chávez. Em março deste ano, Chávez tentou impor mudanças a duas empresas petrolíferas estrangeiras, a francesa Total e a italiana Eni, e ameaçou expulsar e expropriar as companhias. O caso da Bolívia foi posterior e criou, obviamente, uma grande insegurança,mesmo na Petrobras, que investiu na Bolívia no contexto de acordos pedidos pelos próprios bolivianos,de Estado a Estado.Na realidade, a Petrobras nunca teve grande interesse pelo gás boliviano por uma razão simples: ele substituiria, em São Paulo, o óleo combustível que a empresa produzia e produz. Foi à Bolívia porque o governo quis assim. Então, no momento em que a Petrobras está representando o Estado brasileiro e é tratada dessa maneira, fica eliminada qualquer possibilidade de parceria.Porque confiança é como diz aquela cantiga infantil: "O anel que tu me destes era vidro e se quebrou".Quebrou, não tem mais como consertar - e quem disse isso foi o ministro Celso Amorim, em depoimento ao Senado.
Desafios - O senhor concebe alguma proposta agregadora para a América Latina?
Ricupero - Bem, eu acho uma tragédia que o gasoduto transcontinental, que era a idéia que mais fazia sentido prático, tenha sido inviabilizado. Então, a meu ver,por enquanto não existe nenhuma proposta integradora possível. O grande projeto, sem viabilidade prática, seria a integração com os Estados Unidos, num acordo em que norte-americanos, como ocorreu com os europeus, aceitassem promover investimentos para corrigir o desequilíbrio de nível econômico entre os países da região.A grande diferença entre o modelo de acordo comercial europeu e o norte-americano é que o europeu sempre foi baseado na idéia de transferências financeiras maciças para os países mais fracos. Os americanos sempre quiseram a integração restrita à liberação do comércio e à abertura de campo aos investimentos privados.
Desafios - Quer dizer que estamos condenados ao "cada um por si"?
Ricupero - Não necessariamente. Há esquemas menos ambiciosos.Uma boa ilustração é a integração entre Peru e Brasil pelas estradas da fronteira do Acre até o Pacífico e pelo fornecimento de gás (porque o Peru tem grandes jazidas).Outro exemplo é o vínculo que vem se formando entre Brasil e Colômbia. Já existe uma siderúrgica brasileira em território colombiano e o país tem interesse no carvão e no petróleo da Colômbia,de boa qualidade. Existe também um bom potencial em matéria de comércio com o México, já explorado por um acordo que pode ser muito ampliado.Não tenho muita esperança na relação que o Brasil tem com a Venezuela.Da Bolívia, então, ni hablar, como se diz em espanhol. Temos de reforçar nossas relações com países que têm os pés mais na terra.
Desafios - O Chile estaria entre esses países?
Ricupero - Sem dúvida.A meu ver, em toda a América Latina, o Chile é o mais próximo de um modelo ideal de amadurecimento político, de eficácia econômica e do Estado, e de uma política social inteligente.Tem fundamentos sólidos.Eu acho o Brasil um pouco perdido, sem projeto.
Desafios - A sensação que se tem é que o Chile atingiu essa maturidade durante a ditadura do general Pinochet. É possível construir um modelo semelhante num ambiente democrático?
Ricupero - Claro que sim. Essa é uma análise equivocada.O Chile sempre foi uma singularidade na América Latina. Não é verdade que no século XIX o Brasil era o único país com um mínimo de estabilidade num continente de revoluções.O Chile, logo depois da independência, na década de 1830, teve um grande dirigente, Diego Portales, um conservador esclarecido que criou um Estado forte e eficaz.Por volta de 1850, havia no Chile um sistema partidário sólido, como o Brasil nunca teve, e sufrágio universal.O golpe militar não tem o mérito do sucesso chileno. O Chile é um Estado muito eficaz, muito melhor do que o brasileiro, comparativamente incompetente.
Desafios - Como o senhor avalia a política exterior praticada pelo Brasil?
Ricupero - Eu concordo com o conteúdo da maioria das linhas da política externa.Sou favorável a que o Brasil pleiteie um posto permanente no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas. Acho brilhante a aliança feita com os outros aspirantes, a Alemanha, a Índia e até o Japão.Nas negociações da Organização Mundial do Comércio (OMC), penso que a união dos países em desenvolvimento no Grupo dos 20 foi um grande êxito. Acho que o Brasil tem posição muito destacada, muito acertada na defesa da liberalização agrícola. A postura contra a Alca foi correta, porque os americanos ofereciam muito pouco acesso ao mercado para produtos agrícolas mais sensíveis ao protecionismo e queriam concessões exageradas em termos de propriedade intelectual,que, naquele momento, inviabilizariam o programa brasileiro de medicamentos genéricos. Isso posto,minha maior crítica é que os responsáveis pela política externa brasileira, não só dentro do Itamaraty, não têm conseguido gerar consenso interno, obter apoio.
Desafios - Como assim?
Ricupero - Há um ano eu escrevi um artigo:"O fim do consenso".Começava lembrando que o doutor Tancredo Neves, com quem trabalhei,disse num discurso que a política externa brasileira conduzida pelo Itamaraty era consenso nacional. Hoje não é mais. E o governo tem responsabilidade em cinco áreas. Primeiro, deu muito mais ênfase à ruptura do que à continuidade. Havia muita coisa na OMC, sobre a Alca, sobre o Mercosul, que vinha do passado e não foi reconhecida. O segundo erro foi transformar a política externa na bandeira de um partido. Partido, substantivo proveniente do verbo "partir", é uma parte,um pedaço - no caso, da opinião pública.A política externa ideal deve reunir o maior número de cidadãos.A terceira área de responsabilidade governamental é a tendência a dar um cunho ideológico a posturas que deveriam ser apresentadas por seus méritos. Por exemplo, a integração da América do Sul pode ser demonstrada como um teorema, não necessita bandeira. A quarta é o papel excessivamente protagonista do presidente. Sua projeção pessoal é útil, mas deveria ter sido usada com moderação para evitar ciúmes internos e externos. O Barão de Rio Branco repetia sempre a frase de um escritor alemão: a inveja é a sombra da glória. Um último problema é a politização, a subordinação da política externa a objetivos de partido, de governo, de um presidente, e não da nação como um todo. Pode parecer que sou um terrível crítico da política externa. Não sou. Eu critico sua incapacidade de gerar consenso.
Desafios - Parece que o senhor é mais crítico da forma do que do conteúdo.
Ricupero - Em política externa, as duas dimensões são inseparáveis.Durante a Primeira Guerra Mundial, o presidente norte-americano Woodrow Wilson quis criar a Liga das Nações,mas não conseguiu vender a idéia, rejeitada pelo Senado. Hoje, a maioria dos historiadores concorda que a política de Wilson era esclarecida. Se os Estados Unidos tivessem entrado na Liga das Nações, talvez a Europa não tivesse caído nas mãos de nazistas e fascistas e a Segunda Guerra Mundial não ocorresse. Com a política externa brasileira, passa algo um pouco semelhante: a baixa capacidade de construir consenso pode inviabilizá-la.
Desafios - Como fica o Mercosul nas atuais condições da América do Sul?
Ricupero - Eu vejo o Mercosul muito fragilizado.Quando se faz um acordo de livre-comércio unindo parceiros de níveis desiguais,o pressuposto é que o acordo concorra para a convergência de todos ao mesmo grau de desenvolvimento. É preciso que os maiores ajudem os menores a diversificar e a ampliar suas exportações. Dentro do Mercosul isso nunca foi feito. Privilegiou- se o comércio, e não o investimento ou o financiamento. Paraguai e Uruguai não conseguiram ter no Brasil a alavanca para se desenvolver. Há outras falhas.A Argentina encontra-se numa fase compreensível de auto-afirmação e quer preservar a indústria que lhe resta. Isso, às vezes, gera conflitos com o Brasil,e aqui se esquece que essas discordâncias se restringem a 10% do intercâmbio e que o Brasil tem um superávit enorme com a Argentina. Outro problema é o conflito entre Argentina e Uruguai. O Brasil tem sido pouco ágil em ajudar esses países a se entender.O Mercosul não vai acabar,mas tampouco vai se realizar no curto prazo.
Desafios - Como sair desse impasse?
Ricupero - Simplesmente devemos admitir que há setores que o Brasil não pode abrir, assim como há áreas que os argentinos não podem abrir. É preciso criar flexibilidades. O acordo de salvaguardas entre Argentina e Brasil foi uma boa idéia, uma válvula de escape. Mas falta muita coisa,como a integração do setor de serviços, muito importante; um acordo de investimento, que não existe; e também um de propriedade intelectual.
Desafios - Por que, apesar dos avanços no mercado externo, a participação brasileira no fluxo mundial de comércio está em queda?
Ricupero - China e Coréia vendem mais porque têm melhor capacidade de oferta.Esse é,de longe, o fator mais importante. O Brasil precisa criar um setor produtivo competitivo. Um dos fatores da competitividade é o câmbio - e no nível em que ele está a situação fica difícil. Outros fatores: custo de capital, taxa de juros, carga tributária, custo Brasil... não vai ser fácil mudar o quadro.
Desafios - Mas o país tem progredido muito.
Ricupero - O Brasil tem crescido no comércio mundial porque é muito competitivo em bens dependentes de recursos naturais, ou seja, na agroindústria e nos produtos minerais. A China é muito competitiva em produtos intensivos em mão-de-obra.Onde o Brasil tem avançado? Em todo o agronegócio, desde o complexo soja até setores tradicionais, como os do café e do suco de laranja; e também no ramo mineral, com minério de ferro, ferro-gusa, alumínio, bauxita etc.Poucos brasileiros sabem que um dos produtos mais dinâmicos da nossa pauta é o petróleo, que há dez anos cresce a taxas acima da média. O Brasil exporta petróleo pesado, devido à sua estrutura de refino, e importa petróleo leve. Isso explica o crescimento do volume. O aumento do faturamento deve-se à demanda chinesa, que elevou o preço de muitos produtos. Nos três últimos anos, por exemplo, o minério de ferro registrou a melhor evolução em 50 anos.Mas, como a competitividade brasileira está muito concentrada nos recursos naturais, não conseguimos crescer de verdade, conquistar maior fatia do comércio mundial. A Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad) publica anualmente uma lista dos 40 produtos mais dinâmicos do comércio mundial, quase todos eletroeletrônicos e químicos, justamente os dois grandes déficits brasileiros. Essas questões têm de ser resolvidas ou continuaremos exportando, mas com taxa de crescimento cada vez menor.
Desafios - Qual o futuro das negociações com a Europa?
Ricupero - As negociações de acordos de livre-comércio com os Estados Unidos e a Europa já duram dez anos, o que revela a existência de obstáculos intransponíveis no momento. O problema maior, em ambos os casos, é a agricultura. Mesmo assim, até o fim do ano há esperança de que as negociações da OMC tenham êxito.
quinta-feira, 13 de julho de 2006
586) Conquistas e desafios do Chile
Conquistas e desafios chilenos
Por Jacques Marcovitch
Jornal Valor Econômico, 13/07/2006, pág. A11
O Chile é quase uma unanimidade positiva em todas as avaliações sobre a América Latina. Desde 1990 vem se destacando na região como o país que mais compatibiliza indicadores de crescimento econômico e distribuição de renda, sem falar na estabilidade política ensejada pelos governos de sua Concertação partidária.
Qualifiquemos, com alguns números, estas afirmações. Nos últimos 15 anos, o Chile cresceu a uma taxa média anual de 5,7%, quase o dobro do que foi conseguido na ditadura de Pinochet. Este simples registro já invalida um equívoco mais ou menos generalizado, segundo o qual a solidez econômica é um legado precioso do regime de arbítrio às forças democráticas. Acrescente-se que, durante a ditadura, o índice de pobreza entre os chilenos passava de 38% e hoje se encontra na casa dos 19%. Isso evidencia claramente as opções de um e de outro regime.
Quase todas as crianças do Chile concluem a educação primária e aproximadamente 90% chegam ao fim do segundo grau. Houve notável incremento em recursos pedagógicos, remuneração de professores e tempo dedicado à aprendizagem. A democracia permitiu que 70% dos estudantes universitários fossem os primeiros, em suas famílias, a chegar ao ensino superior. Quatro, em cada grupo de dez jovens, ingressam na universidade. Mesmo assim, algumas deficiências no ensino secundário levaram à rua um milhão de estudantes, em marchas de protesto, logo em seguida à posse de Bachelet.
Os governos democráticos triplicaram os gastos sociais, que hoje absorvem 70% das despesas públicas. Na América Latina, durante a confusa década de 90, o Chile foi o único país a diminuir o déficit habitacional. Em 2006, é novamente o único em condições de garantir que, dentro de oito anos, este déficit será eliminado.
Embora a sua Lei de Responsabilidade Fiscal ainda esteja em tramitação, o Chile tem uma carga tributária moderada e adota procedimentos macroeconômicos inibidores da explosão de gastos e da inflação. A dívida pública entre 1990 e 2005 reduziu-se de 45% para 9% do PIB. Isso foi obtido sem prejuízo de uma política anticíclica em matéria de gastos, ou seja, mais flexível em casos eventuais de recessão, visando garantir sempre os níveis de produção e empregabilidade.
Em recente visita a Santiago, que coincidiu com o transcurso dos cem dias do novo governo, pudemos testemunhar as reações ao compromisso firmado por Bachelet de adotar 36 medidas para este período. A oposição, naturalmente, referindo-se ao envio ao Congresso de projetos do governo anterior, disse que "o executivo somente acrescentou a cereja numa torta já pronta". A Fundação Chile 21 reconheceu que as metas foram cumpridas em sua maior parte. Esta foi também a opinião expressa pela mídia local.
A maior preocupação detectada em nossos contatos foi com a segurança energética. O Chile importa 72% (gás, óleo, carvão) da energia que consome a cada ano. Os cortes no fornecimento de gás natural pela Argentina impõem a expansão da capacidade interna de geração de energia. A situação é delicada e a população continuará, nos próximos quatro anos, a enfrentar elevado custo de energia elétrica.
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Quase todas as crianças do Chile concluem a educação básica, cerca de 90% terminam o segundo grau e quatro em cada 10 jovens vão para universidade
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O presidente Lagos aprovou uma legislação positiva sobre a matéria, mas cabe a Michelle Bachelet definir e executar urgentemente um Plano de Segurança Energética de longo prazo, evitando que o problema se alongue até a próxima década. É bem nítido para a sociedade que o Chile não pode seguir como dependente dos humores argentinos e dos seus imprevisíveis critérios no fornecimento de gás natural. Constatamos ali ambiente de espanto e revolta com o fato de o governo boliviano exigir da Argentina que mantenha os cortes e não redirecione gás para o Chile.
Há outros desafios. Vários anos depois da crise asiática, o Chile ainda guarda seqüelas, com largas faixas da classe média reduzidas à pobreza. As lideranças ouvidas e a própria administração reconhecem o despreparo nacional para o enfrentamento desta situação e propõem que se busquem medidas preventivas em face das incertezas na economia mundial.
Uma surpreendente fragilidade é a deficiência do sistema nacional de inovação no Chile. Os investimentos na área situam-se em níveis confessadamente baixos. Os avanços, quando os há, não são adequadamente resguardados por meio de patentes. A intenção do novo governo é aumentar em 50% os gastos em pesquisa e desenvolvimento e promover uma guinada de grande impacto: "Não se trata de fazer pequenas mudanças. Trata-se de criar uma nova política", afirma o programa de governo de Bachelet.
No mesmo documento é de ostensivo pragmatismo o capítulo referente às relações vicinais. Ali se confirma, por sinal, definição de política externa firmada recentemente pelo ex-chanceler brasileiro, Celso Lafer, segundo a qual o objetivo de toda política exterior é "traduzir necessidades internas em possibilidades externas". Para o Chile, o comércio internacional é chave mestra do desenvolvimento e daí o seu polêmico apoio, agora reafirmado, à criação da Área de Livre Comércio das Américas.
Chama atenção a ênfase conferida às relações com os Estados Unidos. Na formulação dos pontos de convergência com a grande potência do Norte, o Chile situa o projeto da Alca em patamar semelhante ao da defesa da democracia e do respeito aos direitos humanos. O Mercosul é mencionado sem qualquer destaque, e apenas como parte de compromissos multilaterais em que figuram os vínculos com a OEA, a ONU e a OMC.
Em conclusão, cabe enfatizar que a higidez democrática, obtida com grande habilidade pelos sucessivos governos da Concertação, está bem refletida no acordo para eliminar, em definitivo, o rescaldo institucional do período autoritário. Foi criado um novo estatuto para as Forças Armadas, restituindo-se plenamente a autoridade da presidência da República. O exército deixou de ser o único fiador da ordem e agora existe uma justiça constitucional para garantir a efetiva supremacia da Carta Magna. Consolida-se uma agenda para neutralizar o que o programa de Bachelet aponta, com todas as letras, como "a persistente intervenção militar na política".
Instituiu-se um arcabouço legal para evitar desvios éticos em campanhas eleitorais e no funcionamento da administração. Somente pessoas físicas, e não mais empresas, poderão fazer doações a candidatos. Foi aprovada a obrigatoriedade de declaração patrimonial para todos os servidores públicos, inclusive autoridades do Executivo, Legislativo e Judiciário. Sob muitos aspectos, principalmente em matéria de equilíbrio institucional, o Chile faz por merecer o acentuado e crescente grau de aprovação dos mais exigentes observadores da agenda latino-americana.
Jacques Marcovitch é professor de Estratégia Empresarial e de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo da qual foi Reitor. Autor da trilogia Pioneiros & Empreendedores e dos livros Universidade Viva e A Universidade (Im)possível, entre outros.
Por Jacques Marcovitch
Jornal Valor Econômico, 13/07/2006, pág. A11
O Chile é quase uma unanimidade positiva em todas as avaliações sobre a América Latina. Desde 1990 vem se destacando na região como o país que mais compatibiliza indicadores de crescimento econômico e distribuição de renda, sem falar na estabilidade política ensejada pelos governos de sua Concertação partidária.
Qualifiquemos, com alguns números, estas afirmações. Nos últimos 15 anos, o Chile cresceu a uma taxa média anual de 5,7%, quase o dobro do que foi conseguido na ditadura de Pinochet. Este simples registro já invalida um equívoco mais ou menos generalizado, segundo o qual a solidez econômica é um legado precioso do regime de arbítrio às forças democráticas. Acrescente-se que, durante a ditadura, o índice de pobreza entre os chilenos passava de 38% e hoje se encontra na casa dos 19%. Isso evidencia claramente as opções de um e de outro regime.
Quase todas as crianças do Chile concluem a educação primária e aproximadamente 90% chegam ao fim do segundo grau. Houve notável incremento em recursos pedagógicos, remuneração de professores e tempo dedicado à aprendizagem. A democracia permitiu que 70% dos estudantes universitários fossem os primeiros, em suas famílias, a chegar ao ensino superior. Quatro, em cada grupo de dez jovens, ingressam na universidade. Mesmo assim, algumas deficiências no ensino secundário levaram à rua um milhão de estudantes, em marchas de protesto, logo em seguida à posse de Bachelet.
Os governos democráticos triplicaram os gastos sociais, que hoje absorvem 70% das despesas públicas. Na América Latina, durante a confusa década de 90, o Chile foi o único país a diminuir o déficit habitacional. Em 2006, é novamente o único em condições de garantir que, dentro de oito anos, este déficit será eliminado.
Embora a sua Lei de Responsabilidade Fiscal ainda esteja em tramitação, o Chile tem uma carga tributária moderada e adota procedimentos macroeconômicos inibidores da explosão de gastos e da inflação. A dívida pública entre 1990 e 2005 reduziu-se de 45% para 9% do PIB. Isso foi obtido sem prejuízo de uma política anticíclica em matéria de gastos, ou seja, mais flexível em casos eventuais de recessão, visando garantir sempre os níveis de produção e empregabilidade.
Em recente visita a Santiago, que coincidiu com o transcurso dos cem dias do novo governo, pudemos testemunhar as reações ao compromisso firmado por Bachelet de adotar 36 medidas para este período. A oposição, naturalmente, referindo-se ao envio ao Congresso de projetos do governo anterior, disse que "o executivo somente acrescentou a cereja numa torta já pronta". A Fundação Chile 21 reconheceu que as metas foram cumpridas em sua maior parte. Esta foi também a opinião expressa pela mídia local.
A maior preocupação detectada em nossos contatos foi com a segurança energética. O Chile importa 72% (gás, óleo, carvão) da energia que consome a cada ano. Os cortes no fornecimento de gás natural pela Argentina impõem a expansão da capacidade interna de geração de energia. A situação é delicada e a população continuará, nos próximos quatro anos, a enfrentar elevado custo de energia elétrica.
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Quase todas as crianças do Chile concluem a educação básica, cerca de 90% terminam o segundo grau e quatro em cada 10 jovens vão para universidade
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O presidente Lagos aprovou uma legislação positiva sobre a matéria, mas cabe a Michelle Bachelet definir e executar urgentemente um Plano de Segurança Energética de longo prazo, evitando que o problema se alongue até a próxima década. É bem nítido para a sociedade que o Chile não pode seguir como dependente dos humores argentinos e dos seus imprevisíveis critérios no fornecimento de gás natural. Constatamos ali ambiente de espanto e revolta com o fato de o governo boliviano exigir da Argentina que mantenha os cortes e não redirecione gás para o Chile.
Há outros desafios. Vários anos depois da crise asiática, o Chile ainda guarda seqüelas, com largas faixas da classe média reduzidas à pobreza. As lideranças ouvidas e a própria administração reconhecem o despreparo nacional para o enfrentamento desta situação e propõem que se busquem medidas preventivas em face das incertezas na economia mundial.
Uma surpreendente fragilidade é a deficiência do sistema nacional de inovação no Chile. Os investimentos na área situam-se em níveis confessadamente baixos. Os avanços, quando os há, não são adequadamente resguardados por meio de patentes. A intenção do novo governo é aumentar em 50% os gastos em pesquisa e desenvolvimento e promover uma guinada de grande impacto: "Não se trata de fazer pequenas mudanças. Trata-se de criar uma nova política", afirma o programa de governo de Bachelet.
No mesmo documento é de ostensivo pragmatismo o capítulo referente às relações vicinais. Ali se confirma, por sinal, definição de política externa firmada recentemente pelo ex-chanceler brasileiro, Celso Lafer, segundo a qual o objetivo de toda política exterior é "traduzir necessidades internas em possibilidades externas". Para o Chile, o comércio internacional é chave mestra do desenvolvimento e daí o seu polêmico apoio, agora reafirmado, à criação da Área de Livre Comércio das Américas.
Chama atenção a ênfase conferida às relações com os Estados Unidos. Na formulação dos pontos de convergência com a grande potência do Norte, o Chile situa o projeto da Alca em patamar semelhante ao da defesa da democracia e do respeito aos direitos humanos. O Mercosul é mencionado sem qualquer destaque, e apenas como parte de compromissos multilaterais em que figuram os vínculos com a OEA, a ONU e a OMC.
Em conclusão, cabe enfatizar que a higidez democrática, obtida com grande habilidade pelos sucessivos governos da Concertação, está bem refletida no acordo para eliminar, em definitivo, o rescaldo institucional do período autoritário. Foi criado um novo estatuto para as Forças Armadas, restituindo-se plenamente a autoridade da presidência da República. O exército deixou de ser o único fiador da ordem e agora existe uma justiça constitucional para garantir a efetiva supremacia da Carta Magna. Consolida-se uma agenda para neutralizar o que o programa de Bachelet aponta, com todas as letras, como "a persistente intervenção militar na política".
Instituiu-se um arcabouço legal para evitar desvios éticos em campanhas eleitorais e no funcionamento da administração. Somente pessoas físicas, e não mais empresas, poderão fazer doações a candidatos. Foi aprovada a obrigatoriedade de declaração patrimonial para todos os servidores públicos, inclusive autoridades do Executivo, Legislativo e Judiciário. Sob muitos aspectos, principalmente em matéria de equilíbrio institucional, o Chile faz por merecer o acentuado e crescente grau de aprovação dos mais exigentes observadores da agenda latino-americana.
Jacques Marcovitch é professor de Estratégia Empresarial e de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo da qual foi Reitor. Autor da trilogia Pioneiros & Empreendedores e dos livros Universidade Viva e A Universidade (Im)possível, entre outros.
585) O mal que uma vaca-sagrada pode fazer: Celso Furtado e o disparate da microeconomia
Vacas-sagradas são aquelas pessoas que atingiram um tal grau de excelência em suas áreas respectivas, que elas se tornam verdadeiras referências para o campo de estudos ou atividades a que elas se dedicam. Viram mitos, pessoas inatingíveis e inatacáveis e tudo o que elas digam, o que pode eventualmente incluir coisas anódinas ou até besteiras completas, é acatado com respeito, repetido na imprensa e aceito com toda a reverência que essas vacas-sagradas exiebm na vida diária.
É uma pena, pois que algumas dessas vacas-sagradas podem fazer muito mal a um país.
Vejam, por exemplo, a transcrição abaixo de depoimento de Celso Furtado, no qual ele diz que o Brasil está dominado pelo neoliberalismo e que "Essa coisa microeconômica é um disparate completo".
É realmente uma pena, pois o dinheiro da aposentadoria dele, todo o dinheiro que movimenta e sustenta o governo, como qualquer outra pessoa no Brasil e no mundo, toda a riqueza que movimenta as relações, em quaisquer instâncias que se possa conceber, tudo isso deriva dessa "coisa microeconômica".
Sem ela, não haveria empregos, renda e riqueza, pois a macroeconomia apenas se dedica à organização das melhores condições possíveis para o exercício da microeconomia pelos agentes econômicos, os ÚNICOS que criam valor na sociedade.
É uma pena que Celso Furtado, uma vaca-sagrada, pensasse assim...
O CDES e o consenso que não é neoliberal
Maria Inês Nassif
jornal Valor Econômico, 13/07/2006
"Como você pode dirigir uma sociedade sem saber para aonde vai?" Essa questão foi colocada pelo economista Celso Furtado, pouco antes de morrer, em uma mensagem em vídeo, gravada em sua residência, em agosto de 2004, para os participantes da mesa redonda "Diálogo social, uma alavanca para o desenvolvimento", promovida pelo Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES). A intervenção trazia palavras de estímulo ao trabalho a que se propunha o Conselho, de elaborar uma agenda nacional de consenso entre os vários atores sociais lá representados, mas era entremeada por ceticismo. "A hegemonia do pensamento neoclássico/neoliberal acabou com a possibilidade de pensarmos um projeto nacional; em planejamento governamental, então, nem se fala... O Brasil precisa se pensar de novo, partir para uma verdadeira reconstrução. Para mim, o que preza é a política. Essa coisa microeconômica é um disparate completo. (...) Não espero que haja o milagre da superação desse pensamento pequeno, pois hoje em dia não tem ninguém que lidere essa luta ideológica. Todo mundo foge dessa confrontação ideológica. Planejar o presente e o futuro do país passou a ser coisa do passado."
As palavras de estímulo aos integrantes do conselho foram uma incitação à coragem: "Temos que ter coragem política. Coragem política é um fenômeno social que decorre do estado da sociedade. Ter coragem política na ditadura é uma coisa. Outra, muito diferente, é ter coragem política na complexa e instável realidade em que vivemos. Considero fundamental que a coragem política seja posta a serviço das autênticas causas do povo brasileiro".
A mensagem de Furtado, atualíssima nesse período de campanha - os candidatos podem tomar a frase na abertura da coluna como um conselho - faz parte do acervo do CDES, escondido nos meandros da política institucional. Assim como outros tesouros. O principal deles é a "Agenda Nacional de Desenvolvimento", um trabalho concluído no ano passado, em plena crise política, e relegado a mais uma contribuição aos papéis que se avolumam nas gavetas do governo. Recentemente, a Agenda foi retomada pelo novo ministro responsável pelo CDES, o das Relações Institucionais, Tarso Genro, que promete uma negociação em torno de uma "concertação nacional" semelhante à feita no Chile, onde partidos de centro-esquerda elaboraram um programa mínimo de desenvolvimento que está acima das disputas políticas.
Projeto de país é, antes de tudo, uma ação política
A Agenda foi encaminhada à Fundação Getúlio Vargas, para que tome o formato de um programa de desenvolvimento. Vai ser discutida em audiências públicas. Genro também tem levado o assunto à discussão dos partidos. Talvez, nesse trabalho de negociação, seja útil ao ministro recuperar a experiência do CDES na formulação de consensos. Ela foi relatada por Ronaldo Coutinho Garcia, do Ipea, num paper que brevemente será publicado pelo instituto, intitulado "O CDES e a construção da agenda nacional de desenvolvimento: um relato". Garcia foi assessor da secretaria-executiva do Conselho durante todo o período em que a Agenda foi construída.
A construção da Agenda, e ela própria, remetem a algumas reflexões. A primeira delas é que o diálogo entre as diversas classes sociais é possível. O CDES tem 90 conselheiros, 50% deles empresários (da indústria, do comércio, do agronegócio, das finanças e serviços). Ainda assim, o fórum conseguiu negociar consensos que fogem à mesmice da agenda câmbio-juros-ajuste fiscal - até porque, se partisse da máxima de que o mercado regula tudo, não conseguiria chegar a nenhum projeto de desenvolvimento. Portanto, a segunda lição é a de que o consenso neoliberal é relativo: há uma ansiedade social por um projeto de país que permita queimar etapas de desenvolvimento, incluir o maior número de brasileiros e reduzir a desigualdade social e a pobreza. Essa ansiedade não passa necessariamente pela "agenda intocável" do mercado.
A outra reflexão que deve ser feita é por que o consenso foi possível nesse fórum de debates, entre representantes de diversos segmentos sociais, e é praticamente impossível na arena da política institucional. Se esse diálogo ocorre de um lado, e não consegue fluir de outro, é porque existe uma obstrução na representação política, que está sendo incapaz de fazer a ligação das ansiedades da sociedade com o Estado. Isso ocorre também em função da hegemonia ideológica do liberalismo. Ao pasteurizar os partidos em torno de uma agenda de mercado, obrigou a troca do embate ideológico pela simples luta política pela máquina administrativa federal. O que está em jogo é o controle da máquina que alimenta partidos e, dentro deles, políticos que concorrem às eleições em todos os níveis. A luta política se reduz a isso.
O bloqueio político a negociações da sociedade civil já se fazia notar no início do governo Lula. Quando foi criado o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, o Congresso reagiu fortemente à iniciativa. Entendeu o CDES como uma tentativa do governo de eliminar a necessidade de negociação interna no Legislativo e, portanto, de reduzir o poder de barganha dos parlamentares. O Conselho começou a ser esvaziado daí, mas, a partir de 2004, tomou a elaboração da Agenda como um desafio. Enfrentou sucessivas duchas de água fria. A maior delas foi a reação do presidente Lula à Agenda, no momento em que ela foi entregue oficialmente à autoridade máxima da nação. Não houve nenhuma manifestação de que daria prosseguimento ao exercício de consenso dos conselheiros. No lugar disso, fez uma profissão de fé nas regras intocáveis: o câmbio flutuante flutua, não vai haver populismo na política econômica etc., etc.
Genro tenta trazer à luz a Agenda do CDES. Não existem sinais de que haja trânsito para esse assunto na arena política. Esse é um bloqueio e tanto a qualquer tentativa de fazer transitar esse exercício de consenso do Conselho, mas é impossível abrir mão da política na construção de um projeto para o país. Nenhum projeto de desenvolvimento prescinde da política porque ele é, fundamentalmente, um projeto político.
É uma pena, pois que algumas dessas vacas-sagradas podem fazer muito mal a um país.
Vejam, por exemplo, a transcrição abaixo de depoimento de Celso Furtado, no qual ele diz que o Brasil está dominado pelo neoliberalismo e que "Essa coisa microeconômica é um disparate completo".
É realmente uma pena, pois o dinheiro da aposentadoria dele, todo o dinheiro que movimenta e sustenta o governo, como qualquer outra pessoa no Brasil e no mundo, toda a riqueza que movimenta as relações, em quaisquer instâncias que se possa conceber, tudo isso deriva dessa "coisa microeconômica".
Sem ela, não haveria empregos, renda e riqueza, pois a macroeconomia apenas se dedica à organização das melhores condições possíveis para o exercício da microeconomia pelos agentes econômicos, os ÚNICOS que criam valor na sociedade.
É uma pena que Celso Furtado, uma vaca-sagrada, pensasse assim...
O CDES e o consenso que não é neoliberal
Maria Inês Nassif
jornal Valor Econômico, 13/07/2006
"Como você pode dirigir uma sociedade sem saber para aonde vai?" Essa questão foi colocada pelo economista Celso Furtado, pouco antes de morrer, em uma mensagem em vídeo, gravada em sua residência, em agosto de 2004, para os participantes da mesa redonda "Diálogo social, uma alavanca para o desenvolvimento", promovida pelo Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES). A intervenção trazia palavras de estímulo ao trabalho a que se propunha o Conselho, de elaborar uma agenda nacional de consenso entre os vários atores sociais lá representados, mas era entremeada por ceticismo. "A hegemonia do pensamento neoclássico/neoliberal acabou com a possibilidade de pensarmos um projeto nacional; em planejamento governamental, então, nem se fala... O Brasil precisa se pensar de novo, partir para uma verdadeira reconstrução. Para mim, o que preza é a política. Essa coisa microeconômica é um disparate completo. (...) Não espero que haja o milagre da superação desse pensamento pequeno, pois hoje em dia não tem ninguém que lidere essa luta ideológica. Todo mundo foge dessa confrontação ideológica. Planejar o presente e o futuro do país passou a ser coisa do passado."
As palavras de estímulo aos integrantes do conselho foram uma incitação à coragem: "Temos que ter coragem política. Coragem política é um fenômeno social que decorre do estado da sociedade. Ter coragem política na ditadura é uma coisa. Outra, muito diferente, é ter coragem política na complexa e instável realidade em que vivemos. Considero fundamental que a coragem política seja posta a serviço das autênticas causas do povo brasileiro".
A mensagem de Furtado, atualíssima nesse período de campanha - os candidatos podem tomar a frase na abertura da coluna como um conselho - faz parte do acervo do CDES, escondido nos meandros da política institucional. Assim como outros tesouros. O principal deles é a "Agenda Nacional de Desenvolvimento", um trabalho concluído no ano passado, em plena crise política, e relegado a mais uma contribuição aos papéis que se avolumam nas gavetas do governo. Recentemente, a Agenda foi retomada pelo novo ministro responsável pelo CDES, o das Relações Institucionais, Tarso Genro, que promete uma negociação em torno de uma "concertação nacional" semelhante à feita no Chile, onde partidos de centro-esquerda elaboraram um programa mínimo de desenvolvimento que está acima das disputas políticas.
Projeto de país é, antes de tudo, uma ação política
A Agenda foi encaminhada à Fundação Getúlio Vargas, para que tome o formato de um programa de desenvolvimento. Vai ser discutida em audiências públicas. Genro também tem levado o assunto à discussão dos partidos. Talvez, nesse trabalho de negociação, seja útil ao ministro recuperar a experiência do CDES na formulação de consensos. Ela foi relatada por Ronaldo Coutinho Garcia, do Ipea, num paper que brevemente será publicado pelo instituto, intitulado "O CDES e a construção da agenda nacional de desenvolvimento: um relato". Garcia foi assessor da secretaria-executiva do Conselho durante todo o período em que a Agenda foi construída.
A construção da Agenda, e ela própria, remetem a algumas reflexões. A primeira delas é que o diálogo entre as diversas classes sociais é possível. O CDES tem 90 conselheiros, 50% deles empresários (da indústria, do comércio, do agronegócio, das finanças e serviços). Ainda assim, o fórum conseguiu negociar consensos que fogem à mesmice da agenda câmbio-juros-ajuste fiscal - até porque, se partisse da máxima de que o mercado regula tudo, não conseguiria chegar a nenhum projeto de desenvolvimento. Portanto, a segunda lição é a de que o consenso neoliberal é relativo: há uma ansiedade social por um projeto de país que permita queimar etapas de desenvolvimento, incluir o maior número de brasileiros e reduzir a desigualdade social e a pobreza. Essa ansiedade não passa necessariamente pela "agenda intocável" do mercado.
A outra reflexão que deve ser feita é por que o consenso foi possível nesse fórum de debates, entre representantes de diversos segmentos sociais, e é praticamente impossível na arena da política institucional. Se esse diálogo ocorre de um lado, e não consegue fluir de outro, é porque existe uma obstrução na representação política, que está sendo incapaz de fazer a ligação das ansiedades da sociedade com o Estado. Isso ocorre também em função da hegemonia ideológica do liberalismo. Ao pasteurizar os partidos em torno de uma agenda de mercado, obrigou a troca do embate ideológico pela simples luta política pela máquina administrativa federal. O que está em jogo é o controle da máquina que alimenta partidos e, dentro deles, políticos que concorrem às eleições em todos os níveis. A luta política se reduz a isso.
O bloqueio político a negociações da sociedade civil já se fazia notar no início do governo Lula. Quando foi criado o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, o Congresso reagiu fortemente à iniciativa. Entendeu o CDES como uma tentativa do governo de eliminar a necessidade de negociação interna no Legislativo e, portanto, de reduzir o poder de barganha dos parlamentares. O Conselho começou a ser esvaziado daí, mas, a partir de 2004, tomou a elaboração da Agenda como um desafio. Enfrentou sucessivas duchas de água fria. A maior delas foi a reação do presidente Lula à Agenda, no momento em que ela foi entregue oficialmente à autoridade máxima da nação. Não houve nenhuma manifestação de que daria prosseguimento ao exercício de consenso dos conselheiros. No lugar disso, fez uma profissão de fé nas regras intocáveis: o câmbio flutuante flutua, não vai haver populismo na política econômica etc., etc.
Genro tenta trazer à luz a Agenda do CDES. Não existem sinais de que haja trânsito para esse assunto na arena política. Esse é um bloqueio e tanto a qualquer tentativa de fazer transitar esse exercício de consenso do Conselho, mas é impossível abrir mão da política na construção de um projeto para o país. Nenhum projeto de desenvolvimento prescinde da política porque ele é, fundamentalmente, um projeto político.
584) Teoria da jabuticaba em acao: sempre nos surpreenderemos com a inacreditavel capacidade do Congresso (e do Executivo) em criar mais algumas...
Estamos sempre sendo pegos de surpresa. Leiam a matéria abaixo transcrita do jornalista econômico do Estadão, Rolf Kuntz, a propósito de algumas jabuticabas que vem sendo regadas, colhidas e distribuídas, fartamente, pelos nobres congressistas e outros luminares do Executivo.
Seja na inarredável capacidade de transformar uma lei ruim (a reserva de mercado para jornalistas) em algo pior ainda, seja nessa aberração gastronomica que consiste em enfiar mandioca, contra a nossa vontade, no pão nosso de cada dia, seja aprovando a reserva de mercados para "masturbadores sociais" (perdão, sociólogos e "filósofos") nas escolas do ciclo médio, seja inventando todos os dias mais e mais trambolhos obrigatórios - e que custam dinheiro do contribuinte -- ou em muitas outras coisas mais, nossos legisladores e dirigentes políticos provam todo dia uma verdade singela:
- Não há nada que esteja tão ruim que não possa piorar um pouco mais.
O Brasil é a própria materialização da lei de Murphy, com requintes de crueldade, pois não se trata apenas de coisas que "dão errado". Isso não: se trata de buscar deliberadamente coisas erradas, e da forma mais estúpida possível.
Um último aviso: meu artigo sobre a Teoria da Jabuticaba II, foi publicado no site do Instituto Millenium, neste link.
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MÍDIA & CONGRESSO
A caixinha de surpresas do Legislativo
Por Rolf Kuntz em 11/7/2006
Observatório da Imprensa, neste link.
Não é só o futebol. Toda a vida é uma caixinha de surpresas, principalmente para quem se julga informado pelos jornais, tevês e rádios. De repente, na terça-feira, dia 4, o Senado aprovou regras adicionais para a profissão da jornalista. Pela nova lei, jogadores, técnicos e juizes de futebol ficarão proibidos de trabalhar como comentaristas, se não tiverem diploma de comunicadores. Assessores de imprensa também terão de ser diplomados. Quantos leitores, mesmo entre os jornalistas, sabiam desse projeto antes de sua aprovação?
O público é surpreendido com freqüência pela aprovação de projetos desconhecidos até a votação final no Congresso. Na mesma semana, foi aprovada a lei de diretrizes para a formulação da política nacional da agricultura familiar. A lei define as áreas de ação dessa política – pesquisa, seguro, crédito, previdência etc. – e atribui ao presidente da República a função de regulamentar sua aplicação.
É uma lei importante e de conteúdo polêmico, mas sua tramitação não havia sido acompanhada pelos meios de comunicação. Um dia depois de aprovada, só o Valor publicou matéria sobre o assunto.
Também não basta o registro ocasional de certos temas, como se pauteiro, repórter e editor apenas cumprissem a obrigação de assinar o ponto. Na semana passada, jornais mencionaram o projeto de lei sobre o uso obrigatório de fécula de mandioca na produção de pães. A notícia saiu porque industriais e padeiros, diante da omissão da imprensa, decidiram fazer mais barulho.
Esse projeto é uma das obras-primas do atual presidente da Câmara dos Deputados, Aldo Rebelo. Na formulação original, era muito mais ambicioso. Durante a tramitação, foi emendado e o uso obrigatório da fécula de mandioca ficou limitada aos pães.
Durante a maior parte do tempo a imprensa desprezou o tema. Mas não se pode tratar um projeto desse tipo como assunto menor. Na sua forma inicial, a proposta afetava toda a indústria de massas e, naturalmente, restringia os direitos do consumidor. Quem quisesse, por exemplo, comer um macarrão decente seria obrigado a comprar o produto importado. Decidiu-se mudar o texto, restringindo seu alcance, mas a violência não foi eliminada.
Se for aprovado, esse projeto poderá valer como precedente para qualquer imposição igual ou mais grave. Detalhe: uma norma não deixa de ser autoritária por ter sido aprovada pelos congressistas.
Cobertura insuficiente
Mas a falha do noticiário não resulta apenas de erros de julgamento de pauteiros, editores e repórteres. Também reflete a cobertura insuficiente da atividade legislativa. Jornalistas econômicos dão pouca atenção ao trabalho dos congressistas, enquanto repórteres políticos quase só se dedicam às questões eleitorais e partidárias. De modo geral, os projetos são acompanhados com regularidade somente quando há um intenso confronto entre governo e oposição. Os demais ficam na sombra, seja qual for sua importância objetiva. Quem tem seguido, por exemplo, a tramitação do projeto sobre normas para acordos internacionais de comércio?
Durante muito tempo, predominou na imprensa a cobertura de endereços. O noticiário dependia essencialmente de setoristas em ministérios, casas legislativas, autarquias e companhias estatais. O setorista da Fazenda nem sempre se preocupava com as atividades de outros ministérios econômicos. Esse padrão era ruim, mas as deficiências eram compensáveis, quando um editor com espírito de repórter (bicho cada vez mais escasso) fazia o meio de campo.
O estilo de cobertura mudou. A especialização, hoje, é mais por assunto do que por endereço. Mas falta, com freqüência, a percepção do detalhe, só possível quando se acompanham, por exemplo,a atividade técnica nos ministérios e o trabalho das comissões na Câmara e no Senado.
O noticiário é prejudicado tanto por problemas de critério quanto por deficiências de organização. O leitor é duplamente lesado – como consumidor de informações e como cidadão. Como consumidor, paga por um serviço deficiente. Como cidadão, fica sujeito a receber de leis importantes como fatos consumados, porque os meios de comunicação pouco ou nada informaram, antes, sobre os projetos.
Seja na inarredável capacidade de transformar uma lei ruim (a reserva de mercado para jornalistas) em algo pior ainda, seja nessa aberração gastronomica que consiste em enfiar mandioca, contra a nossa vontade, no pão nosso de cada dia, seja aprovando a reserva de mercados para "masturbadores sociais" (perdão, sociólogos e "filósofos") nas escolas do ciclo médio, seja inventando todos os dias mais e mais trambolhos obrigatórios - e que custam dinheiro do contribuinte -- ou em muitas outras coisas mais, nossos legisladores e dirigentes políticos provam todo dia uma verdade singela:
- Não há nada que esteja tão ruim que não possa piorar um pouco mais.
O Brasil é a própria materialização da lei de Murphy, com requintes de crueldade, pois não se trata apenas de coisas que "dão errado". Isso não: se trata de buscar deliberadamente coisas erradas, e da forma mais estúpida possível.
Um último aviso: meu artigo sobre a Teoria da Jabuticaba II, foi publicado no site do Instituto Millenium, neste link.
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MÍDIA & CONGRESSO
A caixinha de surpresas do Legislativo
Por Rolf Kuntz em 11/7/2006
Observatório da Imprensa, neste link.
Não é só o futebol. Toda a vida é uma caixinha de surpresas, principalmente para quem se julga informado pelos jornais, tevês e rádios. De repente, na terça-feira, dia 4, o Senado aprovou regras adicionais para a profissão da jornalista. Pela nova lei, jogadores, técnicos e juizes de futebol ficarão proibidos de trabalhar como comentaristas, se não tiverem diploma de comunicadores. Assessores de imprensa também terão de ser diplomados. Quantos leitores, mesmo entre os jornalistas, sabiam desse projeto antes de sua aprovação?
O público é surpreendido com freqüência pela aprovação de projetos desconhecidos até a votação final no Congresso. Na mesma semana, foi aprovada a lei de diretrizes para a formulação da política nacional da agricultura familiar. A lei define as áreas de ação dessa política – pesquisa, seguro, crédito, previdência etc. – e atribui ao presidente da República a função de regulamentar sua aplicação.
É uma lei importante e de conteúdo polêmico, mas sua tramitação não havia sido acompanhada pelos meios de comunicação. Um dia depois de aprovada, só o Valor publicou matéria sobre o assunto.
Também não basta o registro ocasional de certos temas, como se pauteiro, repórter e editor apenas cumprissem a obrigação de assinar o ponto. Na semana passada, jornais mencionaram o projeto de lei sobre o uso obrigatório de fécula de mandioca na produção de pães. A notícia saiu porque industriais e padeiros, diante da omissão da imprensa, decidiram fazer mais barulho.
Esse projeto é uma das obras-primas do atual presidente da Câmara dos Deputados, Aldo Rebelo. Na formulação original, era muito mais ambicioso. Durante a tramitação, foi emendado e o uso obrigatório da fécula de mandioca ficou limitada aos pães.
Durante a maior parte do tempo a imprensa desprezou o tema. Mas não se pode tratar um projeto desse tipo como assunto menor. Na sua forma inicial, a proposta afetava toda a indústria de massas e, naturalmente, restringia os direitos do consumidor. Quem quisesse, por exemplo, comer um macarrão decente seria obrigado a comprar o produto importado. Decidiu-se mudar o texto, restringindo seu alcance, mas a violência não foi eliminada.
Se for aprovado, esse projeto poderá valer como precedente para qualquer imposição igual ou mais grave. Detalhe: uma norma não deixa de ser autoritária por ter sido aprovada pelos congressistas.
Cobertura insuficiente
Mas a falha do noticiário não resulta apenas de erros de julgamento de pauteiros, editores e repórteres. Também reflete a cobertura insuficiente da atividade legislativa. Jornalistas econômicos dão pouca atenção ao trabalho dos congressistas, enquanto repórteres políticos quase só se dedicam às questões eleitorais e partidárias. De modo geral, os projetos são acompanhados com regularidade somente quando há um intenso confronto entre governo e oposição. Os demais ficam na sombra, seja qual for sua importância objetiva. Quem tem seguido, por exemplo, a tramitação do projeto sobre normas para acordos internacionais de comércio?
Durante muito tempo, predominou na imprensa a cobertura de endereços. O noticiário dependia essencialmente de setoristas em ministérios, casas legislativas, autarquias e companhias estatais. O setorista da Fazenda nem sempre se preocupava com as atividades de outros ministérios econômicos. Esse padrão era ruim, mas as deficiências eram compensáveis, quando um editor com espírito de repórter (bicho cada vez mais escasso) fazia o meio de campo.
O estilo de cobertura mudou. A especialização, hoje, é mais por assunto do que por endereço. Mas falta, com freqüência, a percepção do detalhe, só possível quando se acompanham, por exemplo,a atividade técnica nos ministérios e o trabalho das comissões na Câmara e no Senado.
O noticiário é prejudicado tanto por problemas de critério quanto por deficiências de organização. O leitor é duplamente lesado – como consumidor de informações e como cidadão. Como consumidor, paga por um serviço deficiente. Como cidadão, fica sujeito a receber de leis importantes como fatos consumados, porque os meios de comunicação pouco ou nada informaram, antes, sobre os projetos.
terça-feira, 11 de julho de 2006
583) "França fará ‘campanha’ a favor do capitalismo": estava mais do que na hora...
Incríveis, esses irredutíveis gauleses. A revolução que foi feita para acabar com o feudalismo e implantar o capitalismo e o domínio da burguesia já completou exatos 217 anos (neste próximo 14 de julho) e só agora eles estão pensando em promover o capitalismo?
Parbleu! Como eles estão atrasados esses franceses.
Pois eu diria que a revolução, na verdade, atrasou o domínio do capitalismo, consolidando nos franceses apenas a mania de fazer greves (aliás, uma palavra francesa).
Bem, acho que vai demorar mais uns duzentos anos para os franceses aceitarem definitivamente o capitalismo.
Enquanto isso, não faltará matéria prima para reportagens desse tipo, para brilhantes análises sociológicas sobre o "mal francês" e também oportunidades para impulsionar programas desse tipo, de promoção do capitalismo, mas por via estatal, bien sur et pour cause...
França fará ‘campanha’ a favor do capitalismo
BBC, 10.07.2006, 16h44
O governo da França quer diminuir a hostilidade que os seus cidadãos têm em relação ao capitalismo. Para isso, está sendo criado um novo instituto que promoverá a educação da população sobre assuntos financeiros e de negócios. O Conselho para a Difusão da Cultura Econômica será lançado ainda este ano e estará subordinado ao Ministério da Fazenda francês.
O objetivo do novo organismo é utilizar os meios de comunicação populares – como televisão, imprensa escrita e até jogos de computador – para educar os franceses sobre finanças.
Uma pesquisa feita recentemente revelou que grande parte da população não entende nem mesmo os jargões mais simples do mundo dos negócios. Na ocasião, o ministro da fazenda, Thierry Breton, lamentou, em um discurso, a "falta significativa de cultura econômica da França".
Atitude positiva
Os ministros franceses querem que a população tenha uma atitude mais positiva em relação à economia. O governo está com dificuldades para promover uma reforma econômica no país. Alguns ministros, como o candidato à presidência Nicolas Sarkozy, defendem um rompimento radical com o modelo econômico corporativista francês.
Há o temor de que a participação do Estado é grande demais nos negócios, o que prejudicaria o dinamismo do setor empreendedor. Recentemente, a atitude dos franceses em relação ao setor privado piorou ainda mais, depois que o governo se viu obrigado a abandonar um plano de criação de empregos, devido a protestos em massa.
A medida, que visava reduzir o desemprego entre os trabalhadores mais jovens, facilitando a contratação e demissão de pessoas, foi criticada por favorecer interesses de empresários e donos de negócios."
Eu pessoalmente acho, como Simon Bolivar dizia, que esse pessoal ara no mar...
Parbleu! Como eles estão atrasados esses franceses.
Pois eu diria que a revolução, na verdade, atrasou o domínio do capitalismo, consolidando nos franceses apenas a mania de fazer greves (aliás, uma palavra francesa).
Bem, acho que vai demorar mais uns duzentos anos para os franceses aceitarem definitivamente o capitalismo.
Enquanto isso, não faltará matéria prima para reportagens desse tipo, para brilhantes análises sociológicas sobre o "mal francês" e também oportunidades para impulsionar programas desse tipo, de promoção do capitalismo, mas por via estatal, bien sur et pour cause...
França fará ‘campanha’ a favor do capitalismo
BBC, 10.07.2006, 16h44
O governo da França quer diminuir a hostilidade que os seus cidadãos têm em relação ao capitalismo. Para isso, está sendo criado um novo instituto que promoverá a educação da população sobre assuntos financeiros e de negócios. O Conselho para a Difusão da Cultura Econômica será lançado ainda este ano e estará subordinado ao Ministério da Fazenda francês.
O objetivo do novo organismo é utilizar os meios de comunicação populares – como televisão, imprensa escrita e até jogos de computador – para educar os franceses sobre finanças.
Uma pesquisa feita recentemente revelou que grande parte da população não entende nem mesmo os jargões mais simples do mundo dos negócios. Na ocasião, o ministro da fazenda, Thierry Breton, lamentou, em um discurso, a "falta significativa de cultura econômica da França".
Atitude positiva
Os ministros franceses querem que a população tenha uma atitude mais positiva em relação à economia. O governo está com dificuldades para promover uma reforma econômica no país. Alguns ministros, como o candidato à presidência Nicolas Sarkozy, defendem um rompimento radical com o modelo econômico corporativista francês.
Há o temor de que a participação do Estado é grande demais nos negócios, o que prejudicaria o dinamismo do setor empreendedor. Recentemente, a atitude dos franceses em relação ao setor privado piorou ainda mais, depois que o governo se viu obrigado a abandonar um plano de criação de empregos, devido a protestos em massa.
A medida, que visava reduzir o desemprego entre os trabalhadores mais jovens, facilitando a contratação e demissão de pessoas, foi criticada por favorecer interesses de empresários e donos de negócios."
Eu pessoalmente acho, como Simon Bolivar dizia, que esse pessoal ara no mar...
582) Derrubando Chavez...
Não, não sou eu. É o Norman Gall, em entrevista dada ao jornalista gaúcho Políbio Braga, e publicada em sua newsletter datada (equivocadamente) da terça-feira, 12 de julho de 2006:
"Entrevista com Norman Gall, jornalista e escritor.
Chavez não durará mais um ano no poder.
P: Lula saiu ligeirinho da Venezuela, quinta a noite, antes que na sexta-feira o coronel Chavez o levasse para um desfile militar com aviões e armas russos, do tipo caça Sukhoy e fuzis Kalashnikov, tudo para cutucar os EUA. Como é esta aliança Lula-Chavez?
NG: Lula não tem nada a ganhar com Chavez e nem deveria apoiar a inclusão da Venezuela no Conselho de Segurança da ONU.
P: O que significa o ingresso da Venezuela no Mercosul?
NG: Nada. O Mercosul não é foro político para brilhatura.
P: E o gasoduto do Sul?
NG: A Venezuela não tem esse gás.
P: O que o senhor espera do futuro de Chavez?
NG: Morei seis anos em Caracas. Tenho voltado lá. Estudo o caso. Chavez não dura mais um ano ou dois. Ele está conduzindo a economia para um desastre anunciado e seus apoiadores já se dividem em mil frações. Pode anotar. A Venezuela mergulhará na total desordem.
E-mail: ngall@braudel.org.br"
Minhas impressões pessoais (PRA): Eu não morei em Caracas, visitei a Venezuela há muitos anos, mas já encontrei o Chávez nos EUA, num jantar promovido pelo ex-presidente Jimmy Carter, à margem de reunião promovida pelo Carter Center em Atlanta, em 2003. Minha impressão é a de que o Norman Gall se engana, não quanto à extensão do desastre econômico sendo promovido atualmente na Venezuela, mas quanto à possibilidade de uma queda iminente de Chávez. Com dinheiro, pode-se fazer de tudo, inclusive plantar banana na Groenlândia. Não fosse apenas pelo dinheiro, haveria ainda todos os mecanismos de "poder popular" que ele também está construindo, a golpes de muito dinheiro, muito dinheiro... Isso pode durar muito tempo, mais de dez anos, provavelmente, ou enquanto o petróleo for essa fonte generosa de recursos livremente administrados pelo poder central...
"Entrevista com Norman Gall, jornalista e escritor.
Chavez não durará mais um ano no poder.
P: Lula saiu ligeirinho da Venezuela, quinta a noite, antes que na sexta-feira o coronel Chavez o levasse para um desfile militar com aviões e armas russos, do tipo caça Sukhoy e fuzis Kalashnikov, tudo para cutucar os EUA. Como é esta aliança Lula-Chavez?
NG: Lula não tem nada a ganhar com Chavez e nem deveria apoiar a inclusão da Venezuela no Conselho de Segurança da ONU.
P: O que significa o ingresso da Venezuela no Mercosul?
NG: Nada. O Mercosul não é foro político para brilhatura.
P: E o gasoduto do Sul?
NG: A Venezuela não tem esse gás.
P: O que o senhor espera do futuro de Chavez?
NG: Morei seis anos em Caracas. Tenho voltado lá. Estudo o caso. Chavez não dura mais um ano ou dois. Ele está conduzindo a economia para um desastre anunciado e seus apoiadores já se dividem em mil frações. Pode anotar. A Venezuela mergulhará na total desordem.
E-mail: ngall@braudel.org.br"
Minhas impressões pessoais (PRA): Eu não morei em Caracas, visitei a Venezuela há muitos anos, mas já encontrei o Chávez nos EUA, num jantar promovido pelo ex-presidente Jimmy Carter, à margem de reunião promovida pelo Carter Center em Atlanta, em 2003. Minha impressão é a de que o Norman Gall se engana, não quanto à extensão do desastre econômico sendo promovido atualmente na Venezuela, mas quanto à possibilidade de uma queda iminente de Chávez. Com dinheiro, pode-se fazer de tudo, inclusive plantar banana na Groenlândia. Não fosse apenas pelo dinheiro, haveria ainda todos os mecanismos de "poder popular" que ele também está construindo, a golpes de muito dinheiro, muito dinheiro... Isso pode durar muito tempo, mais de dez anos, provavelmente, ou enquanto o petróleo for essa fonte generosa de recursos livremente administrados pelo poder central...
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