Antes de me especializar em relações internacionais e política externa do Brasil, eu era professor de Sociologia Política (no Instituto Rio Branco, a academia diplomática do Itamaraty, e no mestrado em Sociologia da UnB), tendo produzido alguns textos nunca publicados, como o que segue aqui abaixo, datado de 9 de maio de 2004.
Paulo Roberto de Almeida
SOCIOLOGIA
Origens, contexto
histórico, político e social
Mestres fundadores:
Marx, Weber e Durkheim
Sumário:
1. Origens da disciplina: contexto histórico, político e
social de seu surgimento
2. Um reformista social: Auguste Comte
3. Um reformista radical
com ares de revolucionário: Karl Marx
5. Um funcionalista prático: Durkheim
6. A sociologia no Brasil: os mestres da escola paulista
Bibliografia
1. Origens da disciplina: contexto
histórico, político e social de seu surgimento
Como várias outras disciplinas
modernas das ciências sociais aplicadas (economia, política, direito positivo,
por exemplo), a sociologia nasce no contexto da revolução industrial na Europa
ocidental, quando a reflexão sobre as organizações humanas, inclusive num
sentido comparativo entre as sociedades civilizadas – em contraposição à
comparação entre estas e as sociedades ditas primitivas, que redundará na
antropologia –, começa a ser sistematizada pelos primeiros filósofos sociais,
ou “ideólogos”, como foram chamados alguns deles, na passagem do Iluminismo
para a sociedade capitalista, movimento aliás coincidente com a Revolução
francesa. Alguns desses pensadores iluministas – entre eles Rousseau e
Condorcet, por exemplo – colocam as bases de um discurso não mais simplesmente
filosófico, ou apenas histórico, mas de natureza quase sociográfica sobre as
formas de organização social e as instituições criadas pelos homens para
regular as relações entre eles. O contratualismo inglês ou o de Rousseau, o
progresso das luzes na visão desses ideólogos da sociedade civil e a evolução
dos meios materiais (tecnologia), assim como as funções do Estado e os modos
pelos quais os homens entram em relações de trabalho ou se organizam
politicamente constituem alguns dos diversos elementos conceituais que
integrarão, já no século XIX, essa nova disciplina que seria batizada pelo
pensador francês Augusto Comte de “sociologia”.
Antes dele, alguns “estatísticos”
tinham começado a coletar dados sobre a vida dos homens em sociedade:
nascimento, morte, trabalho, criminalidade, ocupações profissionais etc.
Outros, preocupados com a amplitude do sofrimento humano – naturalmente
existente ou provocado pelos próprios homens – e as desigualdades existentes
(algumas aprofundados nessa mesma época), se dedicaram a preconizar grandes
projetos de reforma das sociedades tradicionais, ou em transição para o sistema
fabril capitalista, em função de projetos algo utópicos que também se situam
nas origens das doutrinas socialistas. Entre estes se destaca o aristocrata
francês Saint-Simon que, com base nesse tipo de valor ideal, passa a investigar
as causas da organização social de sua época, com vistas a preconizar melhorias
graduais no funcionamento da sociedade.
Desse tronco
derivam as diferentes doutrinas socialistas e, no plano do método, as formas de
interpretar os problemas sociais e eventuais formas de superá-los.
Essa é uma era das revoluções, como
intitulou Eric Hobsbawm seu estudo de história cobrindo essa passagem da antiga
sociedade aristocrática e absolutista para uma outra na qual mais classes
passam a ter acesso ao sistema político, em primeiro lugar a burguesia, mais
adiante o proletariado. Mas, segundo ele mesmo, a era revolucionária deu lugar
à era do capital, tão bem estudada por Karl Marx e seus discípulos, que faziam
sociologia ainda que não de forma deliberada ou sistemática. Um desses
seguidores, Herbert Marcuse, já no século XX, considerou que o surgimento da
teoria social se faz sob o signo da negatividade, isto é, o fato de tentar
superar o conjunto de contradições sociais negando o conjunto de relações
sociais existentes em favor de formas superiores de organização social, o que
revela a contribuição do hegelianismo para a configuração doutrinal dessa
disciplina.
Uma análise mais sistemática desses
problemas sociais será proposta tanto por pensadores franceses, como o já
citado Comte, como ingleses, entre os quais se destaca Herbert Spencer, adepto
do evolucionismo e da seleção natural à la Darwin. É nessa época que a
sociologia deixa de lado os aspectos morais e filosóficos para penetrar em um
campo mais “científico”, com estudos quantitativos sobre as sociedades humanas.
Mas a influência da “biologia social” sobre essa disciplina ainda é muito
forte, pois a sociedade é pensada como um corpo orgânico, cujos “membros” (os
homens) precisam cumprir certas funções para o maior benefício do todo. A
intenção seria o de construir a “paz social”, algo violentamente negado por
Marx e seus seguidores, que vêem no princípio da luta de classes o motor da
história.
Nessa tradição, a sociologia aparece de fato como a ciência da luta de
classes, mas os psicólogos sociais, sobretudo franceses (como Gustave Le Bon),
buscam corrigir essa visão pela análise dos comportamentos humanos e das formas
de sociabilidade. A fusão desses diferentes ramos das ciências sociais,
inclusive o da história e o da economia, irá resultar numa das mais importantes
obras já efetuados sobre o pensamento e o método da sociologia: a do pensador
alemão Max Weber. Vindo da tradição da escola histórica alemã, mas também
influenciado pelo marxismo (que ele procurará contestar), Weber deixa um
importante legado que será recuperado por praticamente todos os sociológos do
século XX,a começar pelos funcionalistas e pelos comparatistas. Com Weber a
sociologia emerge, realmente, como disciplina completa e dotada de métodos
rigorosos, para servir, não mais uma causa política – reformista ou
revolucionária, como tinha sido o caso até então – mas um objetivo de análise
científica da sociedade.
2. Um reformista social: Auguste Comte
Auguste Comte se vangloriava de ter
libertado a análise da sociedade de suas origens filosóficas, dando-lhe status
de ciência, ou de “filosofia positiva”, como ele preferia dizer. Ele vê essa
passagem da religião para a metafísica e daí para a ciência positiva como um
movimento ascensional, em direção de mais ordem e mais progresso para o homem
em sociedade. Ele também é um reformista social, mas pretende que seu trabalho
corresponde à verdadeira essência da sociedade moderna, enfim liberta das
névoas do misticismo feudal e da metafísica dos antigos.
Comte era um verdadeiro continuador
de Saint-Simon, pois que também via na tecnocracia e na revolução industrial os
sinais precursores de uma nova sociedade. Ele foi, aliás, o inventor da palavra
“sociologie”, que ele descrevia como o estudo científico da sociedade. Em sua
época, estavam na moda os estudos administrativos, as “enquêtes” sociais, sobre
as doenças humanas, as causas da mortalidade, a vida dos trabalhadores, as
raizes da criminalidade e muitos outros problemas “sociais”, que eram medidos,
comparados, colocados em progressão. Segundo Raymond Aron (Etapas do Pensamento Sociológico), no entanto, estatísticos e
“investigadores sociais” como Quetelet e Le Play fizeram mais pelos progressos
práticos da sociologia do que as elocubrações algo “metafísicas” de Comte. Ele
próprio fazia pouco uso dessas novos métodos de investigação social, preferindo
fundar a sua doutrina com roupagens prescritivas, mais até do que simplesmente
interpretativas. Em outros termos, Comte pretendia estar no centro não apenas
de uma nova maneira de interpretar a sociedade, como igualmente de
transformá-la em seus próprios fundamentos.
A despeito de seus esforços – que no
final de seus dias mais pareciam aos do fundador de uma nova religião do que de
uma nova ciência – Comte não fez muitos discípulos, a não ser na própria França
e em alguns países latinos, entre os quais o Brasil. O movimento republicano
brasileiro, em suas várias vertentes, mas sobretudo no castilhismo gaúcho,
herdou várias lições do pai fundador da sociologia, a começar pelo binômio que
foi entronizado na nova bandeira, “ordem e progresso”.
3. Um reformista radical com ares de
revolucionário: Karl Marx
Talvez Marx não tivesse plena
consciência de “fazer sociologia”, mas toda sua obra, ainda na interpretação de
vários mestres, como Raymond Aron, é basicamente uma sociologia convertida em
princípio dinâmico da história. Apoiando-se na tradição filosófica alemã
– sobretudo na dialética de Hegel – e nos historiadores franceses, Marx
concebia a história em termos de luta de classes e de revolução. Para Marx, as
lutas de classes eram o verdadeiro “motor da história”, como ele escreveu nos
primeiros textos filosóficos e no Manifesto
do Partido Comunista, em colaboração com seu amigo de toda a vida,
Friedrich Engels.
Marx, entretanto, subordina a
política, isto é, a luta pela tomada do poder, à economia, já que ele atribuia
as lutas de classes à situação de dominação provocada pelas forças econômicas
predominantes na sociedade. A política seria uma espécie de superestrutura
jurídica, ao passo que a infra-estrutura material era formada pelas forças
materiais, das quais as mais importantes eram as forças produtivas, isto é,
econômicas. Segundo o progresso destas, ocorria uma mudança nas relações de
produção, ou seja, entre os principais agentes econômicos dominantes em casa
época (senhor e escravo, senhor feudal e servo, burgueses e proletários). Em
certos trechos de sua obra, o Estado moderno aparece como um mero apêndice do
capital, em outros textos pode existir uma certa independência do político
(como na análise do bonapartismo).
Toda a obra de Marx está fortemente
impregnada de filosofia da história e de sociologia, mesmo se não de forma
explícita. Em todo caso, todo o aparelho conceitual da sociologia contemporânea
já está presente na obra de Marx e nela tem raízes indisfarçáveis. Noções como
aparelho de Estado, luta de classes, dominação política, exploração econômica,
infra- e superestrutura e muitas outras, forjadas ou transformadas por Marx,
fazem parte do instrumental analítico da sociologia contemporânea e foram
consagradas até no vocabulário jornalístico. Mais até do que no trabalho
propriamente intelectual, noções como as de “revolução” e de “luta de classes”
penetraram nos movimentos sociais, sindicais e políticos e marcaram
profundamente o caráter de nossa época, pelo menos até uma data relativamente
recente. Mesmo o trabalho de sociólogos não comprometidos com a chamada
“ruptura” com a sociedade de classes, como podem ter sido as atividades didáticas
e de escritores como Max Weber e Raymond Aron, foi profundamente marcado pelas
propostas políticas e pelos sistemas interpretativos oferecidos por Marx ao
longo de sua obra. Esses autores, entre muitos outros, construiram suas obras
respectivas num diálogo à distância, e até num certo confronto, talvez
involuntário, com a sombra gigantesca de Marx.
Esse reconhecimento público em torno
da grandiosidade da obra de Marx não é sem justificativa, por mais que se possa
fazer críticas – que foram feitas até em sua época, por economistas como
John Stuart Mill e, pouco depois, por Vilfredo Pareto – às colocações marxistas
a respeito do poder político, da violência como “parteira da história”, da
necessária superação do poder burguês pela ditadura do proletariado e de outras
propostas desse mesmo teor. Foi Marx quem pretendeu “revolucionar” – stricto et lato sensi – o mundo burguês
de sua época, fundando um outro tipo de sociedade que deveria terminar por
abolir o Estado e toda dominação de classe. Idéia certamente generosa, e
idealista, essa, que no entanto se chocou com toda a realidade da dominação
pura e simples. Antes de ser de classe, o poder é simplesmente poder, dos mais
capazes, dos mais fortes, ou dos mais preparados a exercê-lo, sendo que o poder
de classe teve muito poucas manifestações concretas na história. Esse idealismo
marxista, de aspirar a uma redenção da dominação política através de uma classe
pretendidamente universal, que deveria ser o proletiariado, revela o quanto de
hegelianismo Marx ainda conservou na elaboração de sua interpretação
sociológica da história, como revelado na excelente análise da tradição
inaugurada por ele feita por Herbert Marcuse (em Razão e Revolução).
Nesse sentido, a revolução assume na
obra de Marx um caráter quase mítico, talvez messiânico e prometéico: a
redenção da humanidade se faria pela ruptura revolucionária, protagonizada pela
classe oprimida. Esse culto estético das revoluções seria recuperado por
discípulos que viviam em situações de autoritarismo radical, ou de autocracia
direta, como ocorreu no caso da Rússia. Mas já não foi seguido pelos líderes
operários reformistas da Europa ocidental, que não viam muitas vantagens na
luta revolucionária, preferindo o reformismo gradual.
A bem da verdade, quando se examinam
alguns textos de Marx e sua própria ação no movimento operário de sua época,
pode-se constatar que ele foi mais reformista do que revolucionário,
aconselhando os operários a lutarem por conquistas graduais que melhorassem sua
vida cotidiana, até que as “condições objetivas” – a contradição entre as
“forças produtivas” capitalistas e as “relações de produção” do sistema fabril,
quase coletivo – pudessem oferecer uma chance real de passagem de um sistema
social a outro. Já no próprio Manifesto,
ele recomenda uma série de dez reformas parciais tocando o trabalho, a
educação, a reforma agrária e os tributos, ao passo que na “crítica ao Programa
de Gotha” (do partido social-democrata alemão) ele recomenda a acumulação de
forças antes do enfrentamento final com a burguesia. Mesmo no auge das “lutas
de classe” da Comuna de Paris, em 1871, Marx não entretem muitas ilusões quanto
à possibilidade de um verdadeiro poder operário na ausência daquelas condições
objetivas que sua análise econômica pretendeu “demonstrar”.
Um outro aspecto foi mais importante
tanto na obra de Marx como no destino ulterior do movimento socialista que ele
ajudou a fundar: a recusa do mercado como elemento mediador das relações
sociais e das próprias realidades econômicas. Marx tinha uma concepção
extremamente negativa a respeito do mercado, terreno no qual ele via a
predominância dos mais fortes e a espoliação dos mais fracos. Esse tipo de
reação foi provavelmente despertada pela sua análise – que está presente
em seus primeiros escritos e na sua obra máxima, O Capital – do fenômeno do fechamento das terras públicas aos
camponeses pobres, o que fez surgir a grande propriedade de um lado e a
mão-de-obra disponível para o sistema manufatureiro de outro. Essa visão se
prolongou na análise do sistema fabril, para a qual contribuiu seu amigo
Engels, ele mesmo dono ou administrador de fábricas de tecidos na Inglaterrra:
o mercado é o terreno privilegiado da exploração do proletariado, da
despossessão mais completa daqueles que só tinham sua força de trabalho para
vender e por isso se tornam dependentes, escravos modernos, do grande capital.
Esse tipo de preconceito contra o
mercado iria influenciar poderosamente o pensamento de discípulos marxistas, e
até a prática daqueles que primeiro chegaram ao poder: os bolcheviques russos.
Sua recusa radical do mercado conduziu, provavelmente, o socialismo para
caminhos inviáveis e insustentáveis, como pode ser provado, a posteriori, pela
experiência chinesa de modernização, que pretende combinar a “ditadura do
proletariado” (na verdade do partido único) com um regime de mercado que
assegure um mínimo de eficácia ao sistema produtivo.
O que restou do pensamento marxista,
ademais dessa enorme contribuição à sociologia contemporânea, foi essa visão
humanista da “libertação do homem” das agruras da exploração capitalista e da
dominação política de classe (feudal, em alguns casos, burguesa em outros). Que
ele tenha se equivocado em várias predições – como a da crescente polarização
social na sociedade capitalista e o aprofundamento da miséria operária – não
eliminou o atrativo de seu pensamento para uma classe específica de
“trabalhadores”: os intelectuais, ou seus modernos representantes, os
acadêmicos e universitários. Raymond Aron, por exemplo, passou grande parte de
sua vida nesse “diálogo” com os intelectuais marxistas – a começar por
Jean-Paul Sartre – e nunca deixou de criticar suas ilusões românticas, mas com
muito pouca eficácia, diga-se de passagem, enquanto o socialismo persistiu
enquanto sistema social alternativo.
4. Um pensador sistemático: Weber
Max Weber começou sua carreira pelo
estudo e a prática do direito, no final do século XIX, mas logo enveredou pela
filosofia da história e pelo estudo comparado das religiões. Sua tese de
doutoramento foi sobre a história das companhias de comércio da Idade Média, o
que o fez debruçar-se nas inúmeras conexões entre história econômica e direito.
Logo em segudo, sua habilitação se deu numa tese sobre as instituições agrárias
da antiguidade, o que despertou a admiração do grande historiador alemão dessa
época, Theodor Mommsen (introdução de Hans Gerth e C. Wright Mills aos Ensaios de Sociologia, de Max Weber).
Weber teve uma carreira
essencialmente acadêmica, entrecortada por problemas psíquicos e muitas viagens
fora da Alemanha, mas a partir do início do século XX ele dá início a uma
produção sistemática de estudo comparado das religiões e sobre a estrutura da
sociedade capitalista, que ele examinou tanto pelo lado da racionalidade
econômica como pela vertente da administração burocrática. Ainda que admirador
do sistema político alemão e da sua eficiência econômica, ele também colocou
seu país em contraste com a América democrática, concluindo pelo bom desempenho
das associações livres entre os homens e o vigor da inovação técnica numa
sociedade aberta. Ele colocou essas situações em contraste com os problemas da
sociedade russa, convulsionada por revoluções e incapaz de se reformar.
Sua viagem aos Estados Unidos
permitiu-lhe recolher material suplementar para seu estudo já iniciado sobre a
influência do fator religioso na evolução da sociedade, o que resultou em sua
obra mais conhecida A Ética Protestante e
o Espírito do Capitalismo. Muita polêmica se deu em torno das principais
teses dessa obra, que no entanto não era apresentada por Weber como indicativa
de uma correlação causal entre o protestantismo e o capitalismo, mas tão
somente como reveladora de certas afinidades eletivas entre certos
comportamentos religiosos, presentes em algumas seitas protestantes, e formas
de organização social que tendiam a favorecer o referido espírito capitalista
(frugalidade, predestinação, não rejeição do sucesso material, não aversão ao
lucro, como na tradição católica, mas também a separação dos assuntos
religiosos da condução do Estado).
Participando ativamente dos
trabalhos de uma associação de ciências sociais, a partir de 1908, Weber
estimulou os estudos sistemáticos sobre grupos sociais, desde ligas esportivas,
a seitas religiosas e partidos políticos. Datam desta época seus estudos que
depois (creio que postumamente) seriam reunidos no volume Economia e Sociedade. Trata-se, provavelmente de sua obra mais
importante, do ponto de vista da sociologia, muito embora ele tenha elaborado,
igualmente, trabalhos sobre a metodologia das ciências sociais que ainda hoje
possuem validade para uma reflexão sobre o estatuto da sociologia no conjunto
das disciplinas científicas. Foi nas diversas partes de Economia e Sociedade que Weber aprofundou sua análise sistemática
do poder e da burocracia, assim como sobre esses instrumentos analíticos que
foram por ele chamados de “tipos-ideais”, isto é, estruturas arquetípicas de um
determinado fenômeno social que recolhe elementos da realidade em suas
definições mais generalizantes e puramente abstratas.
Ainda que expressos de maneira
abstrata, os tipos-ideais poderiam referir-se a elementos históricos concretos
e particulares, como por exemplo a racionalidade ocidental (em oposição a
valores das civilizações do Oriente), ou a cidade-Estado moderna, ou ainda o
próprio capitalismo, tal como ele se desenvolveu na Europa ocidental e foi
transplantado para a América. Mais relevante ainda, e até hoje usados na
ciência política, sua designação dos tipos-ideais de dominação política, como
sendo de natureza carismática, tradicional ou racional. São referências
importantes na literatura sociológica contemporânea, ainda que poucos autores
se dediquem a inovar a partir desses conceitos, preferindo usá-los como três
tipos opostos ou excludentes (em alguns casos sucessivos) de dominação
política, quando eles poderiam talvez ser combinados para explicar toda a
complexidade das sociedades concretas.
Weber possui muitos outros escritos, de natureza política, de reflexão
sobre a prática da política, assim como sobre os regimes políticos
contemporâneos na Alemanha e na Rússia, mas seu legado principal deve ser
considerado essencialmente como um pensador da teoria sociológica em suas
formulações analíticas – por ele designada como Vertehen, ou compreensão –,
inclusive em bases comparativas. Nisso, como observou Raymond Aron (Etapas do Pensamento Sociológico), ele
estava muito longe de Auguste Comte, que tentava ver na sociologia um conjunto
de leis que permitisse organizar e dirigir a sociedade. Ele achava que as ciências
sociais deveriam sempre buscar aproximar-se do ideal de compreender o mundo,
sem que se tivesse entretanto a ilusão de compreendê-lo em sua totalidade,
inclusive por uma questão de cunho prático, o problema dos valores do
pesquisador, que interferem na sua maneira de ver o seu objeto de análise.
Weber apreciava o método histórico de Marx, ainda que não partilhasse da
maior parte, e provavelmente de nenhuma, de suas conclusões sobre o destino
final do capitalismo. Existe entre ambos, como sublinharam vários autores, uma
espécie de antinomia, entre de um lado o materialismo histórico de Marx, de
base essencialmente econômica, e a abordagem multicausal, mas também histórica,
de Weber, privilegiando os aspectos políticos de uma formação social, ou basicamente
o fenômeno da dominação (que não se resume à suas dimensão de classe). Marx
tendia a subordinar o político ao econômico, ao passo que Weber enfatizava a
especificidade do primeiro e sua independência em relação à esfera material ou
do processo produtivo. A concepção do Estado em ambos talvez reflita essa
diferença de abordagem, já que o revolucionário alemão do século XIX tendia a
ver no aparato estatal um mero reflexo da dominação econômica de uma
determinada classe num momento dado da história, ao passo que o sociólogo
alemão reformista do século XX – que enfatizava o monopólio do uso da força
legítima – reconhecia a autonomia do político em face de determinadas injunções
econômicas.
Da mesma forma, a análise do
capitalismo difere muito em cada um dos autores. Marx via irracionalidade e
dominação brutal de classe no capitalismo, enquanto Weber enfatizava justamente
os aspectos racionais do capitalismo, com aspectos similares podendo ser
encontrados no Estado moderno, isto é, a racionalidade das estruturas
burocráticas de qualquer governo moderno e dos sistemas de administração das
grandes empresas. Onde Marx vê luta de classes para a superação do capitalismo,
Weber vê a crescente afirmação da burocracia racional, ao ponto de constituir
uma verdadeira “gaiola de ferro” burocrática, que aprisiona atores privados e
agentes públicos numa teia de relações sociais que não tem nada daquele caráter
de oposição política irredutível idealizada e também desejada por Marx. Em
lugar da ditadura do proletariado, Weber via uma perigosa ditadura do
funcionário público se aproximando. Ele não deixava, contudo, de reconhecer a
racionalidade e a eficiência desse tipo de dominação.
Um pensador brasileiro, José
Guilherme Merquior, inovou nesse particular, propondo em seu livro Rousseau
and Weber: two studies in the theory of legitimacy (não traduzido ou
publicado no Brasil, ao que saiba) uma hipótese da dominação
carismático-racional, que seria representada pelo tipo de dominação exercida
pelo Partido Comunista da ex-União Soviética. Não conheço, entretanto, outras
formulações brasileiras retiradas de Weber, em relação, por exemplo, ao
exercício populista de poder no Brasil, que combina elementos tradicionais e
carismáticos de dominação.
5. Um funcionalista prático: Durkheim
Émile Durkheim é o primeiro grande
sociólogo sistemático do século XX, tendo formulado as bases da análise social
com um rigor próximo do “cientismo”, então em vigor na academia. Seu pequeno e
conhecido livro, As Regras do Método
Sociológico, permaneceu, e talvez ainda permaneça, como uma das leituras
obrigatórias de todos os cursos de ciências sociais no Brasil e em muitos
outros países. Mas ele começou sua carreira acadêmica com uma tese de
doutoramento que está na base da reflexão sobre a vida em sociedade: A Divisão Social do Trabalho.
Ele
rejeitava as explicações de tipo individual ou psicológico para expor um
fenômeno básico da vida em sociedade, que é a da crescente integração entre os
atores sociais, a despeito mesmo do declínio dos valores religiosos e dos laços
de solidariedade (típicos das comunidades menores). A divisão social do
trabalho, no entanto, não é apenas encontrada nas sociedades complexas: ela já
existe nas sociedades primitivas, mas assume aqui a forma de divisão sexual do
trabalho. Mas é na sociedade moderna, com seu regime fabril, que a divisão se
aperfeiçoa em alto grau, com base na especialização profissional. Durkheim não
deixa de traçar um paralelo entre essa evolução e a diferenciação nos
organismos, para formas cada vez mais complexas. Nas sociedades, ele vê a
passagem da solidariedade mecãnica, típica dos estágios mais elementares da
vida em sociedade, para a solidariedade orgânica, mais estruturada e denotando
formas superiores de coesão social.
Esse tipo de análise é reencontrada no estudo de Durkheim sobre o
suicídio, que explora os casos patológicos de anomia, mas ele ainda aqui tende
a enfatizar mais a ação dos fatores sociais do que psisológicos na determinação
dos casos de suicídio. Ele chega a determinar três tipos de suicídio: egoista,
altruista e anômico, sendo que as taxas relativas dependem da idade e do sexo e
variam conforme as religiões (ele encontrou uma maior incidência nos indivíduos
protestantes do que nos católicos).
Sua outra grande obra, As Formas Elementares da Vida Religiosa,
não necessariamente se ocupa da antropologia das religiões primitivas, mas sim
– de acordo com o princípio já estabelecido nas Regras do Método Sociológico, de que os fatos sociais devem ser
considerados como “coisas” – das formas mais elementares do culto religioso,
que ele exemplifica pelo totemismo (ele seleciona como estudo de caso o
totemismo australiano). As principais categorias utilizadas por ele nessa
análise são as de sagrado e profano, que ele recupera de Fustel de Coulanges.
Como na análise da divisão social do trabalho, o que está em causa é mais o
coletivo social, do que o indivíduo no plano psicológico (ver Anthony Giddens, Capitalismo e Moderna Teoria Social, p.
165).
6. A sociologia no Brasil: os mestres da
escola paulista
A formação da sociologia no Brasil
também esteve fortemente impregnada de cientismo e de organicismo, como
enfatizado, por exemplo, na obra de Silvio Romero (um racista confesso, mas
conforme aos padrões da época) e de Euclides da Cunha, este um dos primeiros
autores a propor uma interpretação social, psicológica e moral ao grande
problema que ele examinou como “espectador participante”: o conflito de
Canudos, que ele explica pelo primitivismo religioso de populações desprovidas
de qualquer sentimento moral mais elevado, mas no qual também vê as raízes
sociais de um drama maior, que poderia ser traduzido em termos de “anomia
durkheimniana” (mas Euclides não faz esse tipo de análise).
O grande denunciador desse tipo de
interpretação pretendidamente científica da realidade brasileira, mas que se
encontrava eivada de racismo “científico”, será Manoel Bonfim, que nas
primeiras três décadas do século XX realiza um obra de interpretação histórica
e sociológica sobre a formação da nacionalidade brasileira (e latino-americana)
que infelizmente passou despercebida durante e no imediato seguimento de sua
atividade pública (ainda assim, um contemporâneo não deixava de registrar “a
grande obra de sociologia brasileira de Manoel Bonfim…”; ver Bonfim, O Brasil Nação, p. 30). Nessa época, em
especial nos anos 1920, estavam em voga análises relativamente pessimistas da
formação e do “caráter” do brasileiro, como exemplificado na obra de Paulo Prado,
por exemplo.
Os grandes eixos de interpretação do
Brasil moderno seriam dados pelas obras de um antropólogo, Gilberto Freyre, um
bacharel em direito convertido em historiador auto-didata, Caio Prado Júnior, e
um historiador, Sérgio Buarque de Holanda. Embora de qualidade e escopo muito
diferentes, Casa Grande e Senzala, Evolução Política do Brasil (ambos de
1933) e Raízes do Brasil (de 1936)
constituem marcos fundadores de uma ciência social fundada na pesquisa de
fontes e na interpretação dos grandes movimentos sociais, humanos, econômicos e
políticos que estiveram na origem da formação da nacionalidade, e não mais como
simples extrapolações da realidade brasileira a partir de modelos analíticos
extraídos de uma outra realidade.
Foi precisamente nos anos 1930 que a
disciplina “sociologia” é introduzida nos currículos dos cursos preparatórios
para o ingresso no ciclo superior de estudos e é também nessa época (1933) que
surge a Escola Paulista de Sociologia, seguida um ano depois pela Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (Oracy Nogueira, “A
Sociologia no Brasil”, p. 193). Nesta última, o grande introdutor de Durkheim
para os alunos brasileiros foi Fernando de Azevedo, muito embora vários mestres
franceses tenham se sucedido nas matérias de ciências sociais (antropologia e
sociologia), como Paulo Arbousse Bastide, Roger Bastide, Claude Lévy-Strauss, e
também Fernand Braudel (este na história). No Rio de Janeiro atuou Anísio
Teixeira e o francês Jacques Lambert.
As primeiras turmas de formandos estiveram
na origem de uma concepção propriamente brasileira de ciência social, sendo de
se distinguir paulistas como Florestan Fernandes, Antonio Cândido de Mello e
Souza e Dante Moreira Leite (entre muitos outros), ao passo que no Rio de
Janeiro se formavam Alberto Guerreiro Ramos e Luiz de Aguiar Costa Pinto
(Nogueira, op. cit., p. 194). A partir dos anos 30, e sobretudo nas duas
décadas seguintes se forma uma verdadeira comunidade de sociólogos no Brasil,
com importantes estudos conduzidos pelos discípulos dos primeiros mestres que
marcariam o pensamento social brasileiro (sobretudo no estudo das raças e sua
“integração à sociedade de classes”, para seguir o título de uma das obras do
grande mestre Florestan Fernandes). Dentre esses discípulos podem ser citados Maria
Isaura Pereira de Queirós, Duglas Teixeira Monteiro, Octavio Ianni (recentemente
falecido), Fernando Henrique Cardoso, Francisco Weffort, Juarez Rubens Brandão
Lopes, Marialice Mencarini Forachi (falecida há muitos anos), Gabriel Cohn e
muitos outros.
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